TRADUÇÃO

“A HISTÓRIA DA DIALÉTICA” – HERBERT MARCUSE[1] [2]

 

João Paulo Andrade[3]

Victor Hugo Saldanha[4]

 

Resumo: A tradução apresenta ao público de língua portuguesa o texto “A história da dialética”, de Herbert Marcuse. Publicado como parte do verbete “Dialética”, na enciclopédia Marxism, Communism, and Western Societies: A Comparative Encyclopaedia (New York: Herder and Herder, 1972), este trabalho fornece uma análise acadêmica relativamente detalhada do “Significado da dialética na Filosofia Antiga”, iniciando em Zenão, nos sofistas e Sócrates, passando por Platão e Aristóteles e concluindo com uma abordagem sobre os estoicos e Plotino; na sequência, volta-se para o horizonte da Filosofia Moderna, a que Marcuse dedica a seção “Significado da dialética em Kant, Fichte e Hegel”; o texto é finalizado com uma análise sobre o “Significado e o alcance da dialética em Marx”, único filósofo privilegiado com uma seção própria. De modo geral, esta publicação revela Marcuse como um estudioso de primeira classe do conceito de dialética e oferece ao leitor uma análise abrangente e extremamente qualificada da história da dialética, no plano filosófico. 

 

Palavras-chave: Herbert Marcuse. Dialética. Filosofia Antiga. Filosofia Moderna. Karl Marx.

 

I. O SIGNIFICADO DA DIALÉTICA NA FILOSOFIA ANTIGA

1. As origens: Zenão, os sofistas e Sócrates.Aristóteles atribui o emprego mais antigo da dialética a Zenão de Eleia. E, de fato, todos os paradoxos de Zenão manifestam um caráter genuinamente dialético: o da reviravolta, da negação do que é assumido como verdadeiro, na experiência imediata, negação esta baseada no pensamento conceitual. Ao apontar as contradições envolvidas na assunção da pluralidade e do movimento dos entes, Zenão busca conduzir o pensamento à improvável (paradoxal) verdade de seu mestre Parmênides, segundo a qual o ser é uno e destituído de movimento. Assim, desde sua origem histórica, a dialética envolve a negação, na forma de uma ruptura com a imediatidade da experiência: o caráter negativo do pensamento como o caminho para a verdade, o conceito como a forma do real, o mundo conceitual (inteligível) como o único mundo verdadeiro.

Dentro de pouco tempo, o caráter paradoxal da dialética foi divorciado de sua relação com a natureza da verdade e considerado exclusivamente uma técnica de retórica. Entendida desse modo, a dialética é posta a serviço de um tipo de argumento que visa a promover uma causa particular qualquer, seja no mercado ou num tribunal de justiça, seja numa assembleia ou num debate. As contradições na experiência – especialmente a contradição entre a ideia (justiça, lei, moralidade) e sua realização – são consideradas indiscriminadamente um índice da relatividade da verdade, tal como ela aparece, em sua forma extrema, na doutrina sofística do direito do mais forte, mais astuto e mais inteligente. Contudo, mesmo nesse caso, a dialética conserva a sua força crítica na destruição da “ideologia”, concebida como um baluarte do status quo: o pensamento é treinado a desconfiar de todos os direitos positivos e a rejeitar qualquer exigência que eles lhe possam fazer. A partir daqui, estamos a apenas um passo da dialética dos sofistas, condenada por Platão, no diálogo socrático.

Esse diálogo termina tipicamente com uma nota negativa: o que se assume ser corajoso não é coragem; o que se assume ser pio não é piedade; o que se assume ser justo não é justiça. E, todavia, a sobrevivência da sociedade e do Estado depende de um tal conhecimento. Os homens vivem na ignorância, na inverdade – e eles não sabem disso. Eles devem aprender a pensar, e o pensamento começa com a percepção da inverdade de tudo que é assumido imediatamente como verdadeiro. O pensar emerge da imediatidade da experiência e não pode ir além dela, a menos que seja posto em movimento pelo filósofo, o qual já sabe que os homens vivem na inverdade. Essa intervenção não vai além da experiência; ela apenas abala a experiência, pondo-a em movimento, a fim de que ela revele sua própria contradição. E o homem que aprende com a intervenção do filósofo vem a reconhecer essa contradição, não como um reflexo de sua própria deficiência ou um erro de sua consciência particular, mas como algo universal e objetivo que pertence à validade e efetividade do status quo. A questão é o que se deve entender por “corajoso”, “pio” e “justo”; a análise revela que o significado desses termos não encontra, de fato, expressão no discurso cotidiano e na atividade cotidiana dos homens, de modo que tal discurso e atividade não podem ser considerados propriamente verdadeiros. A verdade deve residir, de certa forma, naquilo que é comum aos vários modos de ser mais ou menos corajoso, mais ou menos pio, mais ou menos justo, constituindo-se como o corajoso, o pio, o justo, como o “um” que converte os “múltiplos” em aparências incompletas e imperfeitas da coragem, da piedade e da justiça. Como nos eleatas, o interesse primordial do pensamento está direcionado à relação entre o um e os muitos, entre o universal e o particular: o significado dos termos só pode ser encontrado nessa polaridade, a qual aparece na forma de uma contradição irreconciliável. Ele só pode ser trazido à luz “discutindo” (διαλέγεσθαι) o que é assumido como autoevidente no discurso cotidiano: as coisas que foram prematuramente identificadas devem ser distinguidas; as que foram prematuramente separadas devem ser novamente unidas. Pensar torna-se um diálogo em que posições são confrontadas umas com a outras, para que cada uma delas receba o reconhecimento e a rejeição que lhe são devidas.

A questão que frequentemente se coloca é que os diálogos socráticos têm apenas a aparência de um discurso genuíno, circunstância que se torna especialmente evidente nos diálogos tardios de Platão: os interlocutores de Sócrates desempenham um papel bastante subordinado, frequentemente limitado a breves expressões de assentimento ou recusa. O fato, porém, é que o pensamento dialético é realmente incompatível com duas posições genuinamente iguais: ele deve romper com a imediatidade em que os interlocutores estão aprisionados no começo do diálogo, e esta é a contribuição decisiva daquele que já rompeu com tal imediatidade, i.e., o filósofo. Suas questões são formuladas de tal maneira que não se admite uma abertura para uma resposta qualquer; elas impõem uma exigência muito específica, a negação da imediatidade. Se o interlocutor estiver preparado para elaborar seu pensamento em resposta a tal exigência, ele estará livre para decidir por si mesmo se prossegue com a discussão ou se se retira dela. O diálogo socrático mantém a tensão dialética entre pensamento e Ser, método e realidade. O pensamento que é incapaz de transcender o imediato é o reflexo de uma prática empobrecida, e a disrupção desse pensamento ameaça a prática à qual ele pertence. O julgamento de Sócrates mostra o caráter subversivo da dialética, o qual é ainda perceptível nos livros centrais da República de Platão, mas que desaparece com a incorporação da dialética à lógica. 

 

2. Platão e Aristóteles. – Nos livros VI e VII da República, Platão apresenta a dialética como o poder de associar capaz de compreender o nível mais alto do mundo inteligível (o mundo das Ideias e da Ideia de bem). Enquanto tal poder, o pensamento dialético é razão (λόγος), que capta a realidade verdadeira e essencial sem a ajuda dos sentidos (PLATÃO, 2001, 511b e 532a). A razão dialética (como todo pensamento) começa com as premissas (hipóteses), entretanto, ao contrário da ciência matemática, ela emprega tais premissas, não como “origens causais” ou primeiros princípios (ἀρχαὶ), mas como meras hipóteses relativas ao que (realmente) é, como

[...] hipóteses de fato, uma espécie de degraus e de pontos de apoio, para ir até àquilo que não admite hipóteses, que é o princípio de tudo, atingido o qual desce, fixando-se em todas as consequências que daí decorrem, até chegar à conclusão, sem se servir em nada de qualquer dado sensível, mas passando das ideias umas às outras, e terminando em ideias. (PLATÃO, 2001, p. 511b).

 

A primeira descrição “sistemática” da dialética revela, de um modo até então indiferenciado, as características essenciais que  são atribuídas a ela, posteriormente: (i) a relação antagônica entre o logos e os sentidos; (ii) o tratamento das premissas do pensamento como meras hipóteses, a partir das quais se pode ascender aos “primeiros princípios” que as sustentam; (iii) a “descida” dos primeiros princípios (que se tornam propriamente princípios do intelecto, uma vez que o pensamento os intelige) de volta às hipóteses, agora firmemente fundamentadas, a mediação do imediato.

Aqui, a dialética claramente se tornou um método de busca da verdade (q.v.),[5] mas a verdade reside na realidade das Ideias, e as mediações dialéticas do pensamento constituem a estrutura real do ser, através das quais o mundo sensível “participa” das Ideias; o múltiplo, do uno; e o particular, do universal. Toda comunicação genuína, todo discurso que pode ser verdadeiro ou falso, concebe o particular como universal (sendo precisamente isso que o torna inteligível e comunicável) e, portanto, considera todas as coisas percebidas pelos sentidos à luz do que é não sensível e acessível somente à razão – ela revela o uno que faz do múltiplo o que ele é. Para Platão, essa função da comunicação verdadeira não é simplesmente a preocupação de uma lógica formal (q.v.) divorciada do conteúdo particular factual da realidade; o logos do pensamento é o logos da realidade; como método, a dialética possui um caráter essencialmente “realista”. Isso fica particularmente claro no Sofista, no qual a análise dialética das “hipóteses” exige a renúncia da unidade estática e da particularidade das Ideias, em favor de sua “mistura” e inter-relação. O método de análise combina separação e composição, compor e separar o que é composto ou separado no próprio ente real (PLATÃO, 2017, 253b-d). Aqui, as Ideias são γένη (famílias, gêneros) do ser, uma caracterização que parece considerá-las unidades eficientes, dinâmicas; e a dialética, por conseguinte, é considerada a ciência da separação e combinação dos gêneros dos entes, tendo como seu objetivo saber quais são compatíveis ou incompatíveis e que grau de universalidade se atribui a cada um deles, i.e., o efeito unificador que cada gênero exerce, na pluralidade dos entes (particulares). A oposição do uno ao múltiplo, do universal ao particular, se revela como a imagem invertida [mirror-image] da verdade, enquanto o caráter jocoso da manipulação dialética das contradições se revela a imagem invertida [mirror-image] de sua verdadeira seriedade. Portanto, podemos tomar como uma marca da dialética o fato de que, no diálogo que recebe o nome Sofista, justamente porque ali se busca a sua definição, o que vemos emergir ao final é o oposto, a definição do filósofo (PLATÃO, 2017, 253c). O diálogo que toma de empréstimo o nome do sofista lança o fundamento ontológico da dialética, e é a concepção mesma da dialética que diferencia o filósofo do sofista. A essência da dialética é a mediação dos opostos, a possibilidade do que agora foi descrito. O Filebo (16c) exalta a dialética como um presente dos deuses: “Por meio de Prometeu ou alguém de igual estatura, ela foi dada à humanidade.” Cada ente é tanto uno quanto múltiplo, tanto limitado quanto ilimitado, mas a multiplicidade de cada ente não pode ser entendida em seu caráter ilimitado, enquanto o número de mediações entre (μεταξύ) o uno e o ilimitado não for reconhecido e determinado (PLATÃO, 2015, 16d-e). Essa superação [overcoming] dos opostos distingue o logos filosófico de sua contraparte sofística, que, em seu ἀντιλέγειν,[6] nunca vai além da mera descoberta dos opostos.

Na transição de Platão para Aristóteles, a dialética sofre uma desvalorização, aproximando-se novamente da sofística, da qual Platão a havia distinguido tão incisivamente. É significativo que Aristóteles (2002, 987b 29ss) explique a apresentação que Platão faz das Ideias através de sua preocupação com a dialética, i.e., que explique a ontologia platônica por meio de seu “método”. Para Aristóteles, a dialética é essencialmente uma técnica de persuasão, a qual, contrariamente ao caráter científico-apodítico da filosofia, funda-se em premissas “tão somente prováveis” (2002, 995b 20ss).

A dialética recebe sua definição própria no Organon aristotélico, em que a lógica formal emerge da lógica dialética de Platão. Os Tópicos, obra em que se determina o “lugar” da inferência dialética, trazem a observação extremamente esclarecedora de que qualquer forma dialética “de colocar as perguntas e ordenar os argumentos” interessa apenas ao parceiro de conversa, ao passo que “[...] para o filósofo, para o homem que pratica a investigação a título pessoal, desde que sejam verdadeiras e do conhecimento geral as premissas sobre que constrói o seu raciocínio, é indiferente que o interlocutor não as admita [...]” (ARISTÓTELES, 2007, 155b 8). Deveríamos, pois, ver nesse contraste a rejeição metodológica do diálogo e uma fuga da filosofia para a sua própria certeza autossuficiente? Seja como for, muito embora Aristóteles reconheça na dialética um valor mais alto que o da sofística, ela aparece em sua abordagem predominantemente como uma técnica de argumentação: o dialético é “[...] um construtor de proposições e objeções. Apresentar uma proposição consiste em reduzir à unidade um grande número de elementos [...] e apresentar uma objeção consiste em dividir um todo nos seus vários componentes [...]” (ARISTÓTELES, 2007, 164b 3).

Aqui, a significação objetiva “da unidade e da multiplicidade”, para além de sua aplicação no argumento, é obliterada. Isso também fica evidente no modo quantitativo e formal no qual é concebida a relação da dialética com o universal. Em Sobre as refutações sofísticas (ARISTÓTELES, 1987, 170a 34ss), a dialética se ocupa com as refutações que são comuns a toda τέχνη e δύναμις,[7] “[...] refutações que procedem dos princípios compartilhados por todas as artes (τέχνη), mas que não são próprios a nenhuma delas em particular”.[8] A Metafísica (ARISTÓTELES, 2002, 1061b 8ss) identifica a dialética à sofística, porquanto a dialética, dedicada aos atributos comuns a todos os entes, não os compreende como pertencentes ao ser enquanto tal. E, na frase inicial da Retórica (ARISTÓTELES, 1982, 1354a 1), a retórica é caracterizada como a contraparte (ἀντιστροθος) da dialética, uma vez que ambas se ocupam de todo e qualquer assunto de uma forma igualmente não conceitual. Portanto, a dialética falha em desempenhar o papel que Platão atribui a ela: relacionar a pluralidade dos entes ao conceito do universal, capturar o universal no particular. A dialética não pode fazer mais que apontar a contradição (q.v.): ela não é conhecimento (q.v.) em sentido estrito. Por essa razão, ela é essencialmente distinta da filosofia (q.v.): a dialética se limita à dúvida e ao questionamento, ao passo que “[...] a filosofia conhece verdadeiramente” (ARISTÓTELES, 2002, 1004b 24). O caráter não científico da dialética também é responsável pelo fato de que o tratamento dialético dos opostos permanece inadequado (ARISTÓTELES, 2002, 1078b 25ss). A própria discussão de Aristóteles sobre os opostos procede então a uma enumeração e classificação dos vários significados do “uno”, em que cada significado é designado com uma palavra diferente (ARISTÓTELES, 2002, 1006b 1ss).

 

3. Os estoicos e Plotino. – Nas Escolas Estoicas (desde o século III a.C.), a dialética se torna uma disciplina específica dentro de uma concepção disciplinar da filosofia. Os textos que chegaram até nós não são suficientes para nos fornecer uma descrição adequada da dialética estoica, de modo que devemos nos contentar com referências ocasionais, as quais, além de tudo, são incapazes de transmitir qualquer ideia acerca das diferenças entre as várias escolas.

A dialética é uma parte da lógica. Ela deve ser distinguida da outra parte, a retórica, pelo fato de alcançar o seu discurso próprio (ὸρθὠς διαλέγεσθαι), na forma de pergunta e resposta, ao passo que a retórica trata do monólogo ininterrupto. Assim, a dialética é o conhecimento do que é verdadeiro e falso e do que não é nem um nem outro (LAERTIUS, 2013, VII, 42). A própria dialética se divide em duas partes: uma lida com os sons referenciais (fonética) e a outra, com aquilo que os sons significam ou a que se referem (τά οημαινόμενα). Os objetos dos significados são as coisas em si mesmas (τύ πράγματα). Dado, porém, que as coisas estão fora da linguagem, a dialética se ocupa dos significados apenas à medida que eles são expressos na língua τύ λεκτόν (VON ARMIN, 1903). Os estoicos abordam a maior parte da lógica tradicional no escopo da teoria do significado: os gêneros, a proposição, o juízo e a inferência, em suas várias formas válidas ou inválidas. O desdobramento do tema [subject-matter], por meio da afirmação e da objeção, da pergunta e da resposta, parece ser preterido em nome da sua descrição sistemática. A realidade dialética dos opostos e do negativo se converte simplesmente em uma preocupação da lógica formal.

Esse desenvolvimento é decisivo para a história da dialética. O conceito de logos é hipostasiado, tornado uma coisa, e isso leva à hipóstase do movimento dialético. Essa tendência só é revertida com o advento do Idealismo Alemão (q.v.), mas apenas parcialmente.

Para os estoicos, o logos se torna o princípio vital e criador da substância cósmica que permeia toda matéria – ele se torna Deus. O problema da unidade dos opostos, do uno e do múltiplo, da experiência (imediatidade) e da realidade, converte-se em um problema de cosmologia e teologia. Consequentemente, entender esse problema é, agora, tarefa da lógica e da epistemologia: a relação do sujeito com o objeto (ver SUJEITO, OBJETO) não é mais entendida dialeticamente. A dialética perde, portanto, seu motivo próprio, o fundamento de sua necessidade, tal como formulado por Platão. Ao mesmo tempo, ela perde a base racional [rationale] da negação e de sua resolução.

Quando Plotino concebe novamente a dialética como um processo real, como movimento, e determina os níveis hierárquicos nesse processo de ascensão ao uno e descida ao múltiplo, a impressão que se tem é a de que a dialética assume uma concepção um tanto mística, uma suspeita que permaneceria associada a ela, durante vários séculos. Mesmo quando entendida como um método de conhecimento, a dialética viria a ser tomada como misticismo. Plotino (1991, I, III e V) detrai o pensamento discursivo, conceitual, em favor de um tipo de visão ou intuição imediata, que abrange os entes em si mesmos. Assim, o conceito de dialética, em Plotino, é digno de uma análise mais detida, não só pela forte (porém indireta) influência que exerce sobre a Idade Média, mas também pela unidade que ele efetua entre as concepções da dialética como um método de conhecimento e como um processo real.

A parte III da Primeira Enéada trata da dialética como a ciência da verdade suprema e do supremo bem. Plotino começa simplesmente recapitulando as conclusões da discussão de Platão sobre a dialética na República, no Fedro e no Sofista, sem, no entanto, mostrar a lógica interna que conduziu Platão a tais conclusões. Por sua própria natureza, o filósofo está em condições de livrar-se da dependência do mundo sensível; a matemática, então, o fortalece na sua confiança em um mundo inteligível, para que a dialética possa, ao final, conduzi-lo ao conhecimento do primeiro princípio e do ser verdadeiro (PLOTINUS, 1991, I, III, III). A dialética é a ciência capaz de compreender a verdadeira natureza e as verdadeiras relações de todas as coisas, de distinguir e organizar os gêneros e as espécies, de inteligir o ser e o não ser, o bem e o não bem, o eterno e o não eterno. Mas o porquê de a negação e a oposição serem necessárias à constituição da verdade não é explicado, uma vez que a doutrina aparece somente no contexto da cosmologia de Plotino: a razão se funda, em última análise, no primeiro e uno – que pode ser expresso apenas na negação de todos os predicados, conquanto ele seja a condição de possibilidade de todos os predicados. Depois que a dialética clarificou a ordem e as distinções essenciais dos entes e compreendeu a estrutura do mundo inteligível, bem como as relações dos gêneros primários (γένη), a análise retorna ao Primeiro Princípio (PLOTINUS, 1991, I, III e IV). Aí, a dialética repousa numa visão do uno, não mais se dissipando em meio à multiplicidade das coisas. Uma vez, pois, de posse da verdade, a dialética não depende mais da teoria das proposições e dos silogismos; ela pode empregá-los ocasionalmente como instrumentos, mas relegará a preocupação com tal lógica às ciências menores (PLOTINUS, 1991, I, III, IV e V). Após essa rejeição desdenhosa da lógica, Plotino levanta a questão crucial: quais princípios podem assegurar a pretensão absoluta da dialética? Ele responde: a razão é a origem dos princípios que são evidentes em si mesmos para a alma capaz de apreendê-los: ή νοὺς δίδωσιν ἐναργείς ἀρχάς, εἲ τις λαβείν δύναιτο ψυχή[9] (PLOTINUS, 1991, I, III e V). Em virtude dessa evidência imediata de seus princípios últimos (ver PRINCÍPIO), que é própria à θεορία (teoria) e à nossa intuição intelectual, a dialética se relaciona com os entes em si mesmos e com o uno que está além de todos eles. Logo, ela não é simplesmente um instrumento da filosofia, porém, opera no interior das coisas em si mesmas e tem o ser, por assim dizer, como seu objeto [matter]: περὶ πράγματά ἐστι χαὶ οἷον ὓλην ἒχει τὰ ὂντα[10] (PLOTINUS, 1991, I, III e V); ao intuir, ela também sustenta as coisas em si mesmas: ἅμα τοὶς θεωρμασι τὰ πράγματα ἒχούσα[11] (PLOTINUS, 1991, I, III e V). A intuição intelectual provê a base para a unidade do conhecimento dialético e a dialética enquanto um processo real. A lógica enrijecida dos estoicos é posta de lado e a dialética se torna, em um sentido literal, o processo do cosmos.

Devemos ser cautelosos para não sobrestimar o caráter místico da filosofia de Plotino. Comparada com a dialética teológica da Idade Média, as noções plotinianas de mediação objetiva no ente e nas esferas do Ser e, por outro lado, de superação [overcoming] da negação possuem uma precisão conceitual que é muito mais próxima do pensamento platônico que do misticismo cristão. Sua filosofia tem muitas afinidades com a filosofia hegeliana, pelo que o próprio Hegel enfatiza o “intelectualismo” de Plotino e adverte contra o erro de enxergar em Plotino nada mais que um simples “êxtase”.

Na Idade Média, é especialmente a ideia de negação, enquanto um poder positivo de saber, que recebe desenvolvimento adicional. Essa ideia é, pois, abordada em grande parte no misticismo e na teologia negativa. Sua forma conceitual pode ser localizada nos escritos de Nicolau de Cusa. A matemática é utilizada como um dispositivo hermenêutico. Mas nada disso influencia significativamente o surgimento da dialética hegeliana.

 

II. O SIGNIFICADO DA DIALÉTICA EM KANT, FICHTE E HEGEL

1. Kant. – Para Hegel, a transformação decisiva do conceito de dialética na era moderna se deve a Kant. Kant despoja a dialética da “aparência de arbitrariedade”, com a qual ela tinha sido comumente associada, descrevendo-a como “[...] um atuar necessário da razão.” (HEGEL, 1927-1940c, v. 4, p. 38).[12]

É certamente arbitrário, argumenta Hegel, tratar a dialética simplesmente como um método (de argumentação ou conhecimento), sem fundamentar a sua verdade no movimento do próprio ser (na objetividade). Por outro lado, é igualmente arbitrário conceber a dialética objetiva como um processo cosmológico ou ontológico completamente divorciado da subjetividade ou relacionado a ela apenas extrinsecamente. O interesse pela unidade de opostos, a negação ou a totalidade das coisas não merece o título de “verdadeira dialética”, a menos que compreenda a necessidade de suas determinações e consiga expor o conceito como o movimento da coisa referida nele. Assim, de uma só vez, Hegel lança em descrédito toda dialética pré-kantiana, com exceção de suas origens pré-socráticas e da dialética platônica, às quais ele concede algum grau de reconhecimento. O próprio Kant não logrou superar a subjetividade da dialética, na medida em que ele a restringe unicamente às “determinações do pensamento”, em sua aplicação ilusória às coisas-em-si [things-in-themselves]. No entanto, ele propicia “[...] o impulso para a reconstituição da lógica e da dialética” (HEGEL, 1927-1940d, v. 5, p. 483), ao reconhecer a necessidade da ilusão e, por conseguinte, a objetividade da contradição.

Ao considerar Kant como responsável pela restituição da dialética, Hegel está se referindo à filosofia crítica de Kant, à dialética transcendental das antinomias da razão pura. Contudo, podemos encontrar a mesma tendência já nos escritos pré-críticos (DEBORIN, 1926, p. 7-81), particularmente no tratado de 1763, intitulado “Ensaio para introduzir a noção de grandezas negativas em filosofia”. O tratado começa com uma distinção fundamental entre a oposição lógico-formal, tal como expressa no princípio de não contradição e excluída por ele, e a “oposição real”, “[...] na qual dois predicados de uma coisa são opostos, mas não pelo princípio de contradição.”[13] (KANT, 1912-1918, v. 2, p. 209). Na oposição real, assim como na oposição lógico-formal, “um [predicado] nega o que o outro afirma”, mas, diversamente da contradição puramente lógica, o resultado não é um nada, mas “algo”. Tal oposição, em que a própria negação é algo positivo, reina na realidade – ela é certamente a lei da realidade, como demonstrou a física newtoniana, na lei da composição e resolução [composition and resolution] das forças e na forma como essa oposição se expressa, no conceito matemático de grandezas negativas. “Pois as grandezas negativas não são negações de grandezas [...], sendo, antes, algo em si mesmo verdadeiramente positivo, algo que apenas se opõe a outra coisa.” (KANT, 1912-1928, v. 2, p. 207). Kant não apenas estabelece a unidade dos opostos como a estrutura da realidade e o seu princípio dinâmico; e não só compreende o positivo como determinado pela negação: indo além da tradição, ele reconhece precisamente a negação como a determinação fundamental de todas as coisas positivas. “Determinações conflitantes umas com as outras têm de [...] ser encontradas no mesmo sujeito.” (KANT, 1912-1918, v. 2, p. 214). Aqui, Kant aborda o conceito de mediação, por meio do qual se pode provar que a substância é sujeito. Entretanto, na medida em que toda a abordagem nesse tratado pré-crítico é determinada pelos modelos da matemática e da física newtoniana, a dialética permanece uma dialética da natureza, sem qualquer referência essencial à subjetividade.

Já em seus escritos pré-críticos, Kant reconhece o caráter questionável do princípio lógico-formal de não contradição, mas sem ainda conceber a ideia de uma lógica dialética. Isso ocorrerá apenas na Crítica da razão pura, onde, na sequência da Analítica transcendental, Kant desenvolve a Dialética transcendental como a segunda parte da Lógica transcendental. A Analítica transcendental, que expõe os elementos de todo conhecimento puro do entendimento, constitui a “lógica da verdade”. A Dialética transcendental, por outro lado, é uma crítica da ilusão dialética, a qual surge necessariamente quando os conceitos e princípios do entendimento puro são aplicados além dos limites da experiência possível, i.e., quando, ao invés de ser entendida como um cânon para o uso adequado do entendimento, a lógica é empregada inadequadamente como um instrumento [organon] de conhecimento (KANT, 2001, B 86-87). Quando isso ocorre, a razão se vê inevitavelmente enredada em contradições que se manifestam em uma série de inferências dialéticas (e.g., do condicionado ao incondicionado, das partes ao todo), nas quais cada tese possui uma antítese específica e cada afirmação, uma negação específica, podendo ambas serem provadas de um modo logicamente consistente. Assim, Kant retrata a antinomia da razão pura nas antinomias da finitude e da infinitude, divisibilidade e indivisibilidade, causalidade segundo as leis da natureza e causalidade segundo a liberdade (ver CAUSALIDADE), a existência e a não existência de um ser absolutamente necessário. A Dialética Transcendental pode desvelar a razão dessas antinomias e expor o caráter ilusório das inferências que são válidas de um ponto de vista puramente lógico, mas ela não pode eliminar a ilusão ou fazê-la deixar de ser ilusão (KANT, 2001, B 354), pois a dialética da razão humana é “natural e inescapável”.

Não só a ilusão pertence à verdade, como a razão ao entendimento: a ilusão é a manifestação da verdade, a consumação do entendimento. Nós devemos ir além da experiência e do conhecimento obtido pelo entendimento e resistir à ilusão. A verdade que se manifesta na ilusão transcendental é a verdade das ideias, dos conceitos da razão que possuem uma importância apenas normativa. As ideias representam o “máximo” a que toda teoria e toda prática devem aspirar, embora jamais possam alcançá-lo (ver TEORIA E PRÁTICA). A verdade das ideias é o poder teórico e prático da liberdade humana, o poder de transcender todos os limites dados.

Pois qual seja o grau mais elevado em que a humanidade deverá parar e a grandeza do intervalo que necessariamente separa a ideia da sua realização, é o que ninguém pode nem deve determinar, precisamente porque se trata da liberdade e esta pode exceder todo o limite que se queira atribuir. (KANT, 2001, B 374).

 

É apenas na esfera da ação humana que as ideias podem se tornar “causas efetivas”, como no caso de “[...] uma constituição, que tenha por finalidade a máxima liberdade humana, segundo leis que permitam que a liberdade de cada um possa coexistir com a de todos os outros.” (KANT, 2001, B 373). Aqui também Kant fala do apelo vulgar “[...] a uma experiência pretensamente contrária, pois essa experiência não existiria se, em devido tempo, se tivessem fundado aquelas instituições de acordo com as ideias.” Caso possamos encontrar em algum lugar a conexão interna entre razão, liberdade (q.v.) e dialética, é precisamente nessas passagens.

Embora Hegel (1927-1940c, v. 4, p. 183) considere as antinomias kantianas como “a principal transição para a filosofia moderna”, a concepção da dialética originada por essas antinomias não é o que vincula Hegel mais profundamente a Kant. O que Hegel continuamente denomina “a grande e imortal contribuição” da filosofia kantiana não é a Dialética, mas a Analítica. É, portanto, a Analítica transcendental que propicia o enraizamento da dialética hegeliana no Idealismo Alemão. “Uma das intuições mais válidas e profundas da Crítica da razão pura é o seu reconhecimento da unidade que constitui a essência do conceito como unidade originária, sintética, da apercepção; a unidade do 'Eu penso' [...] ou da consciência-de-si.” (HEGEL, 1927-1940d, v. 5, p. 221, trad. mod.). É o conceito de entidades distintas que estão ao mesmo tempo inseparavelmente conjugadas ou de uma identidade que é em si mesma uma diferença inseparável (HEGEL, 1927-1940c, v. 4, p. 104). Aqui, reconhecemos dois dos mais importantes elementos da dialética hegeliana: a ideia da “substância como sujeito” e a ideia de mediação. Mas, entre a unidade da apercepção, em Kant, e o conceito da subjetividade como “substância”, em Hegel, se encontra o desenvolvimento da dialética transcendental realizado por Fichte, que primeiro devemos ter em conta.

 

2. Fichte.Fichte também toma o conceito kantiano de apercepção transcendental como seu ponto de partida. Também para ele, esse é o conceito original da dialética, no qual o progresso dialético do pensamento, a posição dos opostos e sua resolução são exigidos pelo “fato” originário do sujeito transcendental. Nesas origem, a dialética é essencialmente idealista.

O eu transcendental – ou a egoidade [I-ness] – é o terreno original e a unidade última dos opostos: “A reivindicação crucial do filósofo... é esta: assim como o eu é apenas para-si, assim também surge ao mesmo tempo e necessariamente um ser fora dele: a base deste repousa naquele...” (FICHTE, 1910b, v. 3, p. 41). O eu (por meio do qual Fichte também se refere a uma consciência transcendental e universal, e nunca ao indivíduo) é ao mesmo tempo sujeito e objeto: “A busca por um elo entre sujeito e objeto deve permanecer eternamente infrutífera, se ambos não forem concebidos em sua unidade desde o princípio.” (FICHTE, 1910b, v. 3, p. 112). O que está implícito na apercepção kantiana, enquanto “síntese” de opostos (na qual toda unidade reflete a unificação entre sujeito e objeto através do sujeito), se torna agora explícito em Fichte. O sujeito existe apenas à medida que ele age (FICHTE, 1910b, v. 3, p. 41), e o Ser existe apenas enquanto posição e oposição: “Toda realidade é, portanto, ativa; e tudo que é ativo é realidade.” (FICHTE, 1910a, v. 1, p. 329). Todavia, isso não significa que o sujeito epistemológico de Kant tenha se tornado o sujeito da ação. Fichte convoca o leitor a “pensar o conceito de atividade, aqui, de uma forma completamente pura” e a “abstrair completamente” de todas as condições temporais e todos os objetos da atividade. Portanto, a oposição de Fichte entre eu e não eu, entre a realidade e a negação, por um lado, e a síntese dos opostos no conceito de limite, por outro, toda a sua concepção da dialética formulada em 1749, na Primeira parte do Fundamento da doutrina da ciência (Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre), permanece transcendental e teórica. A dimensão da atividade humana reside, em sentido estrito, fora e além da teoria, mas, em sua evolução imanente, a teoria alcança o ponto no qual se exige a ação como a única solução possível ao problema que ela mesma põe (ver TEORIA E PRÁTICA). O problema é encontrar um ponto de cruzamento [find some ‘X’] capaz de mediar a oposição entre o eu e o não eu, sem abdicar da identidade da consciência (FICHTE, 1910a, v. 1, p. 302). Tal mediação é teoricamente impossível: este é o nó górdio que jamais pode ser resolvido, mas que pode, ao menos, ser rompido pela “[...] pretensão da razão a um poder absoluto.” (FICHTE, 1910a, v. 1, p. 339). A teoria compreende a unidade indissolúvel do eu e do não eu como unidade entre atividade e passividade, porém, o fundamento dessa unidade de opostos permanece ininteligível para a própria teoria: esse fundamento se encontra “[...] além dos limites da parte teórica da ciência do conhecimento.” (FICHTE, 1910a, v. 1, p. 372). A “pretensão da razão a um poder absoluto” afirma: “Não deve haver um não-eu, uma vez que inexiste qualquer maneira pela qual o não-eu possa ser reconciliado com o eu.” (FICHTE, 1910a, v. 1, p. 339). Mas o não eu existe, e o eu só pode existir com ele e por meio dele. A subjetividade originária é um modo de ser determinado que é, ao mesmo tempo, um modo de determinar; o que determina esse modo de determinar “[...] permanece inteiramente insolúvel na teoria” – de sorte que a teoria é impelida, para além de si mesma, à “[...] parte prática da doutrina da ciência.” (FICHTE, 1910a, v. 1, p. 173). A parte prática da ciência concebe o “dever” como a lei do eu: o Ser do eu é um esforço que possui limites apenas para que sejam superados. Assim, a objetividade é concebida como resistência, e é apenas superando tal resistência que o eu pode tornar-se um sujeito livre. Com o desparecimento de toda resistência, o eu também desapareceria, de tal forma que seu esforço só poderia ser uma eterna “aproximação”.

Na doutrina fichtiana da ciência, a dialética é concebida novamente – e pela primeira vez, desde Platão – como uma exigência de compreender a imediatidade, determinando-a como mediação; de compreender o ser como ser posto: a filosofia se converte na tarefa de superar o dado por meios conceituais, reconhecendo e resolvendo a negação que ele comporta. A relação entre dialética e liberdade é ainda mais clara aqui do que em Kant. A dialética aparece, em primeira instância, como liberdade de pensar: o filósofo “[...] é capaz de abstrair, i.e., ele consegue separar, pela liberdade de pensamento, aquilo que está unido na experiência.” (FICHTE, 1910b, v. 3, p. 9). O que é dado na experiência (imediata) é uma união de opostos, a evolução do que constitui (o movimento d)a realidade. A compreensão desse processo como um processo necessário, fundado na própria natureza das coisas, é o fundamento teórico da ação livre. Isso exige a separação do que está unido na lógica (tradicional). Os princípios da lógica não podem ser assumidos como imediatamente dados; eles próprios devem ser deduzidos, mediados. Isso ocorre quando eles são apreendidos como a estrutura da subjetividade; não pode haver qualquer outra explicação última senão esta. Desse modo, Fichte demonstra que o princípio de identidade (A=A) pressupõe e expressa a unidade originária e sintética da consciência, uma unidade que (enquanto consciência de algo) implica sua própria oposição e, ao mesmo tempo, engendra o princípio de não contradição, que ela supera (ver também IDENTIDADE; CONTRADIÇÃO). Isso aponta o caminho para a lógica dialética como a “superação” [overcoming] da lógica tradicional. 

 

3. Hegel. – A dialética hegeliana não pode ser apropriadamente descrita como uma continuidade ou um desenvolvimento ulterior das dialéticas kantiana e fichtiana. É verdade que Hegel vê como sua tarefa completar o trabalho, iniciado por Kant e continuado por Fichte, de justificar a lógica ela mesma e fundamentar as categorias. Com isso, os limites da lógica tradicional foram já ultrapassados. Mas, apesar dessa continuidade na história das ideias, surge ali na dialética hegeliana um elemento qualitativamente novo, o qual pode ser provisoriamente caracterizado como a “força do negativo”. É verdade que Fichte, no conceito e na função do não eu, encontra na negação o ímpeto para o processo dialético, contudo, Hegel reconhece pela primeira vez a realidade desse processo para além da esfera idealista e transcendental. Assim, a “unidade de opostos” enquanto a “unidade originária e sintética da apercepção” (Kant) é também removida do reino da constituição transcendental. O conceito de subjetividade constitutiva experimenta agora uma transformação decisiva: a subjetividade torna-se substância real. A lógica dialética torna-se ontologia. Isso significa que a dialética hegeliana não pode ser isolada de seu sistema; sua estrutura é a estrutura do sistema como um todo. O próprio Hegel insiste nisso, no último capítulo da Ciência da lógica: seu método é “[...] apenas o movimento do próprio conceito”, “o método próprio a cada Coisa mesma.” (1927-1940d, v. 5, p. 486).[14]

Uma vez que é impossível, neste curto espaço, apresentar uma ideia adequada do sistema de Hegel como um todo, devemos nos concentrar nos aspectos da dialética hegeliana que são decisivos para Marx, seguindo, na maior parte, as próprias formulações de Hegel.

A força motriz da dialética é a necessidade de que os pensamentos se tornem “fluidos” – apenas dessa maneira eles se tornam “conceitos” capazes de compreender a realidade (HEGEL, 1927-1940a, v. 2, p. 35). Que os pensamentos, pois, se tornem fluidos e sejam alçados ao patamar do conceito, do conhecimento científico, é algo demandado pela própria natureza das coisas, i.e., pelo conteúdo a ser compreendido, a realidade, pois a substância das coisas é “movimento” e, como tal, não pode ser capturada pelas categorias tradicionais do entendimento, porquanto as categorias fixam o que está realmente fluindo e separam o que está realmente unido. Essa “purificação” e estabilização do pensamento e de seus conteúdos, que é o princípio de todos os axiomas da lógica formal, mas especialmente do princípio de não contradição, é o início de todo conhecimento – mas nada mais que isso. Ela é o trabalho do entendimento, o qual põe as distinções e determinações unívocas que possibilitam, a princípio, a compreensão da realidade no pensamento. Logo, o entendimento é ele mesmo “negativo”, já que nega a imediatidade da experiência sensorial e põe em seu lugar, como sua verdade, uma ordem conceitual do objeto. Entretanto, essa primeira contradição, essa primeira ruptura com a experiência imediata, a partir da qual se inicia todo pensamento e conhecimento, produz uma ordem abstrata na qual o entendimento permanece sempre aprisionado, não importa o quanto possa estendê-la e aprofundá-la. O próprio pensamento, se não está atado desde o início a normas estabelecidas (para as quais não há justificação real), vai além das categorias do entendimento: a negação da primeira negação. Este é o trabalho da razão e a sua verdade. A razão “[...] é negativa e dialética porque dissolve as determinações do entendimento em nada.” (HEGEL, 1927-1940c, v. 4, p. 6).[15] Nessa dissolução, contudo, os conceitos do entendimento não desaparecem; eles são transformados em outros conceitos – que são apenas outros conceitos deles mesmos – e só estes são capazes de capturar concretamente a realidade. Em qualquer descrição abstrata da dialética, é da maior importância compreender o que significa o concreto, que aparece no terceiro estágio do processo. A negação dialética do abstrato não tem nada em comum com a exigência pela concretude existencial e a imediatidade não conceitual. A razão é “[...] igualmente positiva e, portanto, produziu o que é primeiro e simples, mas enquanto algo universal que é concreto em si mesmo”; além disso, ela compreende e determina o particular (HEGEL, 1927-1940c, v. 4, p. 6).[16] O concreto que emerge como o resultado da negação dialética do imediato, enquanto algo determinado pelo entendimento, é o universal, e certamente o universal do “primeiro e simples”. Isso significa que o resultado é o conceito do objeto ou o objeto conceitual, pois o modo como ele veio a ser determinado agora é o objeto em sua realidade e verdade. Não há duas dialéticas, uma do pensamento e outra da realidade: as duas estão unidas desde o início da dialética hegeliana. O objeto real (conceitual) é um “universal”, na medida em que sua identidade e objetividade consistem na unidade de todas as suas determinações individuais (que, individualmente consideradas, se excluem mutuamente). O objeto é o que é apenas enquanto unidade dessas determinações distintas; sua identidade não é senão o processo dessa unificação, em que cada “ser outro” dado (porque toda qualidade individual determinada envolve um “ser outro” e, daí, uma negação) é mediado com o Ser (Sein). Com isso, entretanto, o objeto torna-se o sujeito de seu próprio Ser. Os modos de ser do sujeito diferem nas diferentes regiões do Ser; o processo da unificação de opostos, a mediação da alteridade, é uma ocorrência passiva na matéria, uma ascensão gradual para a consciência na natureza orgânica, a dominação reflexiva da existência e do entendimento na história humana. Na história, o sujeito não é apenas a substância da realidade em-si, mas também para-si e, portanto, é espírito. O movimento da realidade é a transformação conceitual do dado, o qual é reconhecido como negação e negatividade. Só por intermédio desse conhecimento e da atividade em que ele é realizado o homem (que, aqui, é o objeto) se torna o sujeito livre de sua existência, mas esse sujeito é, muito claramente, um “universal”: a subjetividade que realiza a si mesma através da totalidade de mediações que ocorrem na teoria e na atividade, e que constitui um todo histórico. E esse sujeito histórico atrai então a natureza para dentro do círculo de suas mediações; assim compreendida e transformada, a natureza se torna uma manifestação do espírito, ela mesma se torna histórica.

A dialética hegeliana não pode ser entendida simplesmente como um desenvolvimento de Kant a Hegel, em que a objetividade é constituída primeiramente pelo sujeito do conhecimento de Kant, seguida pelo sujeito transcendentalmente posto de Fichte e, finalmente, pelo sujeito histórico de Hegel. O que é qualitativamente novo na dialética hegeliana é a função do negativo. Mesmo na Antiguidade Clássica, o conceito de negativo (enquanto não ser, μή öν) desempenhou um papel central na dialética e manteve essa centralidade na teologia negativa e na cosmologia da Idade Média. Fichte envolve esse conceito na noção de subjetividade constitutiva. Em Hegel, ele se torna uma determinação da subjetividade e, por conseguinte, uma determinação da própria substância. A “substância viva” é “[...] como o sujeito, negatividade pura e simples e, portanto, a divisão do simples...” (HEGEL, 1927-1940, v. 2a, p. 23). O “eu” e a “força do negativo” são dois aspectos da mesma coisa (HEGEL, 1927-1940, v. 2a, p. 35); como tais, eles são também o fundamento da liberdade, e não apenas da liberdade transcendental. Essa conexão, a qual é desenvolvida na Fenomenologia do espírito e na Ciência da lógica, está condensada em uma questão decisiva, no “Prefácio” à Fenomenologia do espírito:

Mas o fato de que, separado de seu contorno, o acidental como tal – o que está vinculado, o que só é efetivo em sua conexão com outra coisa – ganhe um ser-aí próprio e uma liberdade à parte, eis aí a força portentosa do negativo: é a energia do pensar, do puro Eu. A morte […] é a coisa mais terrível; e suster o que está morto requer a força máxima. A beleza sem-força detesta o entendimento porque lhe cobra o que não tem condições de cumprir. Porém não é a vida que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta da devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se conserva, que é a vida do espírito. O espírito só alcança sua verdade na medida em que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência como o positivo que se afasta do negativo - como ao dizer de alguma coisa que é nula ou falsa, liquidamos com ela e passamos a outro assunto. Ao contrário, o espírito só é essa potência enquanto encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-se é o poder mágico que converte o negativo em ser. Trata-se do mesmo poder que acima se denominou sujeito […]. (HEGEL, 1927-1940a, v. 2, p. 34).[17]

 

Se fosse possível falar em “evidência elementar”, na dialética hegeliana – o que, em sentido estrito, é impossível, já que a dialética hegeliana não admite nenhum ponto de partida absoluto –, ela seria a experiência da negatividade dos entes, que se torna positiva ao suprassumir [surmounting] ou ser suprassumida [surmounted]. Todo ente (das Seiende) é a negação do que ele (na verdade) é e pode ser, e, desse modo, é um outro de si mesmo, uma alteridade. Portanto, o Ser ele mesmo se torna contradição. A existência não é só algo determinado pelo outro que se lhe opõe; o que uma coisa não é não é algo extrínseco a ela, mas a coisa mesma: ela é na contradição. Sua existência consiste em “suportar” a contradição; sua existência é uma unidade (unificadora), a mediação da alteridade consigo mesma – ao mesmo tempo que ela é apenas essa mediação –, os opostos que se suprassumem [the surmounting opposites]. E, por que estes são, em sentido estrito, opostos “íntimos” que constituem a estrutura do ser real, eles não podem ser suprassumidos [surmounted] pelo ser determinado a que eles pertencem, mas devem representar a “transição” de um ser determinado para o outro e, portanto, sua negação real. Isso prefigura o movimento da dialética em direção à totalidade.

Isso se segue do objeto do pensamento que, sendo uma contradição em si, suprassume [surmounts] a si mesmo e se extingue no outro. Ele só pode ser determinado concretamente, se for visto no contexto do todo em que ele existe ou se desdobra e ultrapassa a si mesmo. Toda definição fixada e isolada é incompleta e, por conseguinte, não verdadeira, pois isola o objeto das próprias possibilidades através das quais ele realiza a si mesmo, levando assim o movimento – que é a lei de seu ser – à interrupção. Não há nenhum aspecto, nenhuma condição, nenhum movimento do objeto ou estágio desse movimento que não seja determinado[18] pelo todo em que suas contradições internas se desdobram, fazendo assim com que cada forma sucessiva estilhace a identidade do objeto. O dinamismo catastrófico da dialética a distingue radicalmente de todo holismo ou filosofia da Gestalt; ele reflete a destrutividade inconsciente da natureza e a destrutividade consciente da história, que, ao destruir, manifesta a si mesmo enquanto razão. O que existe destrói a si mesmo, no processo de sua evolução, passando a uma nova forma na qual os “limites” ou a negatividade da antiga são transcendidas: o que é novo, portanto, é a libertação do antigo, um processo de autolibertação. Enquanto libertação, a liberdade (q.v.) é essencialmente negação; enquanto um processo de libertação (subjetividade), o movimento da objetividade constitui o “progresso”. Isso ocorre, quando o processo se torna consciente e autoconsciente: a compreensão da realidade e de sua necessidade. Nessa compreensão, o universal é realizado: o processo da história abarca em si todas as diversas regiões do Ser, fazendo da própria natureza o material de sua liberdade, uma manifestação do espírito.

Contudo, ao hipostasiar o universal como uma totalidade racional e autossuficiente, a dialética idealista priva a si mesma de seu próprio impulso, o que é a pedra-angular da interpretação idealista do movimento dialético como um todo. Desde seu início, em Kant, a dialética é o movimento da subjetividade enquanto constituição da objetividade, a unidade sintética e originária de opostos. Após escapar do contexto puramente transcendental, esse dinamismo é reconhecido como o processo da realidade em todas as suas regiões. “Substância” torna-se seu próprio sujeito; seu Dasein (ser-aí) concreto é a unificação e a superação [overcoming] de opostos; sua identidade, a transição para o seu outro. Nessa unificação do múltiplo – representando suas determinações e condições tais como estão dadas a cada momento – sua identidade real emerge como o universal que mantêm a si mesmo em toda negação. Mas esse universal é concebido desde o início como o do conceito, ou melhor, do processo de conceber, pois somente no conceito o “múltiplo” é representado por determinações opostas unificadas, e a essa unidade é dada um fundamento seguro. O que a “coisa mesma” realmente é, ela o é em seu conceito, ao mesmo tempo em que o conceito é o universal ou “[...] a qualidade determinada que inclui nela mesma, como uma unidade, todas as várias determinações de uma coisa.” (HEGEL, 1927-1940b, v. 3, p. 145). No entanto, se o conceito é a “essência reconhecida” da coisa mesma, ele não pode ser algo externo à coisa, um produto do “mero pensar”. Ao contrário, a coisa mesma deve perseguir seu conceito, ela própria deve ser um processo de “compreensão”. A matéria é um obstáculo para se alcançar esse objetivo e, em seu domínio, a unificação dos opostos permanece cega, passiva e incompleta. Mesmo na história, apesar de todo progresso na liberdade, a matéria permanece (na natureza e na sociedade) a barreira que nunca é completamente superada [surmounted]. Ela aparece em sua plena negatividade até mesmo no estágio mais racional da história, i.e., nas contradições da sociedade burguesa (HEGEL, 1927-1940e, v. 7, § 243ss),[19] que então se afiguram insolúveis e só podem ser controladas pelo poder coercitivo do Estado. O Estado (q.v.) é o universal que não pode ser realizado na sociedade burguesa, ele é o sujeito livre – mas, nessa forma, ele ainda não é o verdadeiro universal nem representa a verdadeira liberdade, pois contém ainda os conflitos da sociedade burguesa e é ele mesmo um Estado particular entre outros. Nas relações entre Estados, impera “[...] aquilo que há de mais mutável na particularidade, nas paixões, interesses, finalidades, talentos, virtudes, violências, injustiças e vícios” (HEGEL, 1927-1940, v. 7e, § 340)[20] – um jogo de forças que expõe ao acaso e ao capricho “o próprio organismo ético”, o Estado. O próprio Estado é só um particular no universal da história do mundo, no curso da qual todas as totalidades particulares (os reinos oriental, grego, romano e germânico) são suprassumidas [surpassed] em um processo “racional” de evolução. Todavia, o que é o sujeito livre da história do mundo, que une seus opostos na razão universal e transforma a sequência histórica das negações em um padrão do progresso (q.v.) na realização da liberdade? Na própria história, não encontramos nada que possa assim ser definido; aqui também a razão é cega, e o universal não existe nas ações livres dos indivíduos e dos povos. Desse modo, a história do mundo é ela mesma só uma “manifestação” de um universal superior, a verdadeira totalidade. É só em uma tal totalidade que a matéria, enquanto objeto, enquanto algo “lançado contra” um sujeito, pode ela mesma ser sujeito, de sorte que seja e permaneça ela mesma em meio a toda alteridade e toda negação. E essa unidade livre entre sujeito e objeto (ver SUJEITO, OBJETO) é pensamento (puro), que contém seu objeto em si mesmo como um objeto capturado e compreendido, o objeto em sua realidade e verdade. Tal pensamento não pode pertencer a nenhum sujeito particular: ele é o mundo como algo compreendido e como conceito, mas também como ato de conceber, como atividade, movimento. Nesse sentido, ele é o absoluto, a Divindade. Enquanto saber absoluto, ele é a “ideia” que “exterioriza” a si mesma livremente, na natureza e na história, e que, nesse e por meio desse movimento negativo, permanece ele mesmo e retorna a si mesmo.

A verdadeira realidade é vista como ideia absoluta, como o movimento do saber absoluto; e assim, na análise final, a dialética hegeliana se revela[21] precisamente aquilo que, no princípio, ela não parecia ser: um método. A ideia absoluta se revela no fato de que

[...] a determinidade não tem a figura de um conteúdo, mas pura e simplesmente como forma, a ideia é dessa maneira como a ideia universal pura e simplesmente. O que aqui ainda tem de ser considerado, portanto, não é tanto um conteúdo como tal, mas o universal de sua forma - isto é, o método. (HEGEL, 1927-1940d, v. 5, p. 485).[22]

 

III. O SENTIDO E A IMPORTÂNCIA DA DIALÉTICA EM MARX

Ainda que Hegel faça do Pensamento algo absoluto – o absoluto como método –, esse passo não deve ser considerado o ponto de partida ou a base de sua dialética. Ao contrário, ele é um resultado, a realização da exigência do sujeito livre, a unidade entre o universal e o particular, que remanesce não realizada no mundo material e mesmo no reino do espírito objetivo (a sociedade e o Estado). Na medida em que, na dialética hegeliana, todo ser e todo estágio no desdobramento e superação [overcoming] dos opostos só encontram seu lugar e função no contexto último de uma totalidade fechada, a dialética pode, de fato, ser considerada a completa transfiguração do status quo, tal como Marx a caracteriza, no epílogo à segunda edição de O capital. E, uma vez que ela organiza todas as negações superantes [surpassing negations] em uma ordem coerente do progresso, na qual a síntese representa sempre o “nível mais alto”, a dialética revela sua dimensão otimista, a qual é a dádiva final a que toda negatividade se destina. O momento acrítico e abstrato da dialética hegeliana não se encontra em sua forma triádica – tese, antítese, síntese: o próprio Hegel caracteriza a triplicidade como “[...] a face exterior e muito superficial do modo de conhecer” (1927-1940d, v. 5, p. 498) –, mas na ordem das contradições como a harmonia necessária do todo. Contudo, a negatividade e a crítica radical reinam em cada estágio individual do processo. Este é o modo como Marx entende a dialética hegeliana:

Em sua configuração racional, ela constitui um escândalo e um horror para a burguesia e seus porta-vozes doutrinários, uma vez que, na intelecção positiva do existente, inclui, ao mesmo tempo, a intelecção de sua negação, de seu necessário perecimento. Além disso, apreende toda forma desenvolvida no fluxo do movimento, portanto, incluindo o seu lado transitório; porque não se deixa intimidar por nada e é, por essência, crítica e revolucionária. (MARX; ENGELS, 1989, p. 55).[23]

 

Isso significa dizer que o caráter crítico e revolucionário não é simplesmente uma propriedade entre muitas outras da dialética, mas que ele pertence ao seu núcleo idealista. Já que o conceito é entendido como “a Natureza ou a Essência” das coisas (HEGEL, 1927-1940c, v. 4, p. 14), a imediatidade de todas as coisas, sua forma dada tal como ela é naquele momento, é negada. E essa negação não é um decreto de metafísica, ela se dá no conceito da própria coisa, na realidade compreendida. “O pensamento rouba o poder do positivo.” (HEGEL, 1927-1940f, v. 8, p. 71). Mesmo que o pensamento dialético permaneça pensamento, ele ainda assim possui uma função revolucionária: em toda sua abstração, por meio da qual compreende e, portanto, transcende o poder do positivo, ele pavimenta o caminho para um novo conceito do concreto.

Na passagem mais conhecida em que Marx comenta sua relação com a dialética hegeliana, ele enfatiza, não a similaridade essencial, mas a diferença da concepção hegeliana da dialética com respeito à sua própria posição.

Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu oposto. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem. (MARX; ENGELS, 1989, p. 55).[24]

 

Marx destaca repetidamente a concepção invertida de Hegel acerca da relação entre aparência e realidade, entre mediação ideal e material (MARX, 1967, p. 154ss e 159ss). Isso diz respeito ao contraste entre materialismo histórico e idealismo absoluto, porém, nada muda o fato de que Marx deriva de Hegel tudo o que é essencial à sua versão da dialética. O próprio Marx reconhece a essência da dialética na “[...] negatividade enquanto princípio motor e gerador.” (1982, p. 404-405).[25] Com base em seu pressuposto materialista, ele concebe tal negatividade tanto como a exteriorização e objetificação do homem quanto como a superação [overcoming] dessa condição, i.e., como o processo do trabalho (q.v.). O “aspecto positivo” da dialética hegeliana é a “[...] intuição da apropriação do ser (Wesen) objetivo mediante a suprassunção de seu estranhamento [...]” (MARX, 1982, p. 413).[26]

Hegel, portanto, [...] apreende o auto-estranhamento, a exteriorização da essência (Wesensentäusserung), a desobjetivação e a desefetivação do homem enquanto auto-aquisição, externação da essência (Wesensäusserung), objetivação, efetivação. Em resumo, ele apreende – no interior da abstração – o trabalho como ato de produção de si do homem. (MARX, 1982, p. 413-414).[27]

 

Desde que Feuerbach – “o único que tem para com a dialética hegeliana um comportamento sério, crítico” (MARX, 1982, p. 400)[28] – situou o homem real no lugar do conceito que move a si mesmo, a “[...] diferença entre ser e pensar, entre consciência e vida” (ver SER E CONSCIÊNCIA), mais uma vez se tornou “dolorosamente” óbvia (MARX; ENGELS, 1962, p. 55).[29] A negatividade como o princípio motor, o desdobramento dos opostos e a resolução destes no reino do finito agora não são mais movimentos do pensamento, da consciência, mas da história humana real (ver ALIENAÇÃO). Em sua estrutura fundamental, o materialismo marxiano é ao mesmo tempo histórico e dialético, assim como a dialética marxiana é ao mesmo tempo materialista e histórica. O todo, que é em si mesmo dialético, torna-se agora a sociedade (q.v.), i.e., a sociedade particular dada em qualquer momento de sua evolução histórica. É por isso que Marx analisa o capitalismo (q.v.) como o sistema decorrente do feudalismo (q.v.), no qual a oposição entre forças produtivas e relações de produção que impedem a sua plena utilização permeia o todo social em todas as suas esferas e, em última instância, ocasiona sua própria negação, a qual libera as forças sufocadas no antigo sistema e produz novas formas de organização social na divisão do trabalho e na propriedade, formas estas já prefiguradas no antigo sistema. Logo, o sistema capitalista apresenta uma “negação determinada” e a superação [overcoming] do status quo, com base em sua própria dinâmica interna.

A força que move e sustenta o capitalismo, sua lei de crescimento, torna-se a lei de seu retrocesso (regression) e de sua queda. A realização do capitalismo é a negação; sua liberdade é supressão, pois, no mero contrato de trabalho, a troca de bens equivalentes já é exploração (q.v.); a competição livre é o caminho para a concentração em monopólios; o aumento da produtividade conduz necessariamente à destruição e ao desperdício de forças produtivas. Nessa dinâmica, surgem novas formas de organização social das forças produtivas que não podem mais ser mantidas dentro da estrutura da propriedade privada e do controle privado.

A gênese de novas formas de ser social na resolução de opostos coloca agora um problema crucial para uma dialética materialista: o próprio processo dialético representaria o “progresso”, i.e., suas novas formas históricas seriam necessariamente “superiores”, no sentido de uma organização mais racional de forças produtivas e de permitir uma maior liberdade humana? Teria a dialética marxiana adotado implícita ou explicitamente o padrão hegeliano – apenas o colocando sobre um fundamento materialista –, de acordo com o qual a sucessão de “reinos” históricos, em sua sequência necessária, representa um progresso (q.v.) na consciência-de-si e na realização da liberdade? A dialética materialista também reconheceria a razão na história? Não há resposta simples para tais questões. É evidente que o desenvolvimento histórico aparece nas obras de Marx tanto como um desenvolvimento das forças produtivas quanto como um avanço na liberdade, o qual supera períodos anteriores de retrocesso (regression). Também é verdadeiro que essa posição obscurece as referências conflituosas à possibilidade real de declínio e aniquilação. Mas, por outro lado, Marx rejeita qualquer tentativa de transformar seu “esboço histórico da gênese do capitalismo na Europa Ocidental” em uma

[...] teoria histórico-filosófica da trajetória geral que todos os povos estão fadados a trilhar, não importando as circunstâncias históricas em que se encontrem, para chegar, em última instância, à forma de economia que, junto à maior expansão das forças produtivas do trabalho social, assegura também o mais completo desenvolvimento do homem. (MARX; ENGELS, 1955, p. 379) .[30]

 

Uma ambiguidade similar orbita o conceito de necessidade dialética. Marx claramente atribui caráter de necessidade à “ação das leis imanentes da produção capitalista”: “[...] a produção capitalista produz, com a mesma necessidade de um processo natural, sua própria negação.”[31] De fato, o conceito de dialética imanente implica um desdobramento necessário e uma superação [overcoming] de opostos – de outra maneira, ele não seria um conceito dialético. E, contudo, essa necessidade só pode se dar através de uma atividade social na qual a consciência de cada homem que age (ou sofre a ação) constitua, em si mesma, um elemento necessário da resolução final. Mas a consciência, a reflexão e a vontade para a negação arraigada na reflexão são todas elas uma questão de liberdade. Na dialética marxiana, pensamento e subjetividade permanecem como fatores decisivos do processo dialético: a função da consciência de classe (ver CLASSE, LUTA DE CLASSES) atesta isso. É verdade que essa subjetividade não é mais aquela da ideia absoluta, do puro pensamento, mas antes é a subjetividade da consciência das classes sociais; isso só torna o papel da consciência ainda mais decisivo no processo da história. Assim como esse processo é “aberto”, i.e., não pode ser capturado em um sistema filosófico, ele também é determinado pelo desenvolvimento da consciência da possibilidade da liberdade (libertação) ou da escravidão. Liberdade e necessidade aparecem aqui na forma de uma tensão não resolvida. A unidade do sujeito e do objeto nunca é realizada definitivamente: o conflito com a natureza (e com a sociedade alienada em sua semelhança com a natureza) permanece um reino da necessidade, da objetividade, que não pode ser resolvido ou redimido na subjetividade. A concepção marxiana não admite uma dialética da natureza em que a matéria se realizaria como sujeito (ver MATERIALISMO DIALÉTICO).

A dialética marxiana envolve uma tensão não resolvida entre liberdade e necessidade, sujeito e objeto, a qual a priva da reconciliação última e da justificação características da dialética hegeliana. Falta a ela o caráter afirmativo que encontramos na dialética hegeliana como um todo. Nesse sentido, a dialética marxiana é essencialmente revolucionária. Ela entende o poder coercitivo que os homens exerceram sobre si mesmos e sobre a natureza, ao longo da história; ela não o justifica nem mesmo oferece o consolo de uma abolição não violenta da violência. As contradições internas a uma ordem social dada se desenvolvem sob o domínio do poder estabelecido; as forças produtivas – materiais e intelectuais – que estão aprisionadas nessas contradições são liberadas para operar a transição a uma forma histórica “superior” de ser social, que está em conflito consciente com os poderes existentes e os respectivos interesses e instituições que estes mesmos poderes determinam. O resultado depende das condições de possibilidade do conflito e da consciência que emerge, nesse embate. Para isso, é necessário que aqueles em posse de tal consciência reconheçam a própria servidão e suas causas, que desejem a própria libertação e entendam como ela pode ser concretizada. Marx insere o desenvolvimento de uma consciência de classe revolucionária e o conflito do proletariado na dialética do capitalismo: o capitalismo necessariamente produz e reproduz a classe trabalhadora, na forma de proletariado (q.v.). A existência do proletariado é a contradição real na realidade de tal sociedade, a qual proclama a propriedade privada e a liberdade do indivíduo como sua lei. Essa lei não se aplica ao proletariado, ou melhor, para a classe trabalhadora, a lei do capitalismo é uma lei de pobreza e impossibilidade de uma existência genuinamente humana, pois, em uma sociedade capitalista, o proletariado é a negação absoluta dessa mesma sociedade: seu interesse existencial é incompatível com o status quo, e só pode ser satisfeito com a dissolução do capitalismo. Contudo, o proletariado é o agente histórico da libertação apenas enquanto negação da ordem existente. Se sua existência não representasse mais uma contradição real, ele se tornaria então outra força que contribui para a ordem estabelecida[32], e seu interesse residiria na preservação dessa ordem. A própria necessidade do socialismo depende da condição social do proletariado e do desenvolvimento da consciência de classe. Dessa maneira, a concepção marxiana contém a possibilidade de sua própria negação, a possibilidade da supressão da consciência de classe e da derrota da atividade revolucionária.

Na carta de novembro de 1877, citada acima, Marx nos lembra da similaridade entre os processos que, tanto na Roma Antiga quanto no surgimento do capitalismo, despojaram os camponeses livres de seus meios de produção e conduziram à formação de grandes Estados e às concentrações de capital. Mas esse desenvolvimento análogo teve consequências muito diferentes, nos dois casos: em Roma, os plebeus foram reduzidos não à condição de assalariados, mas a um “bando de pessoas sem ocupação”; em vez de uma forma de produção capitalista, lá surgiu uma forma assentada na escravidão. Até que o homem tenha dominado a história, a própria sociedade será apenas uma expressão da natureza, a qual determina as possibilidades de seu desenvolvimento. Não há nenhum padrão racional aqui. A dialética materialista vê a si mesma diante do horizonte aberto da história, que ela compreende. Com isso, ela paga uma dívida à liberdade humana, sua maior preocupação. 

 

Translation: “The History of Dialetics”, by Herbert Marcuse

Abstract: This translation provides a Portuguese version of “The History of Dialectics”, written by Herbert Marcuse. The original was published as an encyclopedia entry on “Dialectics”, in Marxism, Communism, and Western Societies: A Comparative Encyclopaedia (New York: Herder and Herder, 1972). It starts by presenting a detailed analysis of “The Significance of Dialectics in Ancient Philosophy”, since Zeno, the Sophists and Socrates to Plato, Aristotle, the Stoics and Plotinus. Further on, Marcuse writes a section on “The Significance of Dialectics in Kant, Fichte and Hegel”; he finally concludes with an approach to “The Meaning and Significance of Dialectics in Marx”, the only philosopher who was bestowed with a whole section. Overall, this text exhibits a very comprehensive, qualified analysis of the history of dialectics and reveals Marcuse as a first-rated philosophical scholar in the concept of dialectics.

 

Keywords: Herbert Marcuse. Dialectics. Ancient Philosophy. Modern Philosophy. Karl Marx.

 

Referências

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Recebido: 12/11/2021

Aceito: 22/03/2022



[1] Referência do texto original: MARCUSE, Herbert. The History of Dialectics. In: MARCUSE, Herbert. Marxism, Revolution and Utopia. Collected Papers of Herbert Marcuse. Ed. Douglas Kellner e Clayton Pierce. New York: Routledge, 2014. p. 132-152.

[2] Nota dos editores estadunidenses. “A História da Dialética” foi publicada como parte do verbete “Dialética”, na enciclopédia Marxism, Communism, and Western Societies: A Comparative Encyclopaedia, editada por C. D. Kernig, v. 2 (New York: Herder and Herder, 1972), p. 408-18. O verbete “Dialética” é dividido em duas partes: “A. O Método Dialético” e “B. A História da Dialética”. Na página 420, após uma bibliografia compilada por Walter Kern, a autoria é atribuída a “Claus D Kernig (A)” e “Herbert Marcus (B)”, do que concluímos que Marcuse foi o autor da parte sobre “A História da Dialética”, a qual publicamos aqui. O texto fornece uma análise acadêmica extremamente detalhada do “Significado da dialética na filosofia antiga”, seguido por uma seção sobre “O significado da dialética em Kant, Fichte e Hegel” e conclui com uma seção sobre “O significado e o alcance da dialética em Marx”. O texto revela Marcuse como um estudioso de primeira classe do conceito e da história da dialética no plano filosófico, privilegiando Marx com uma seção própria. Encontramos um folheto na coleção privada de Marcuse que continha textos de uma Enciclopédia que também possui uma versão alemã do verbete “Dialética”, mas não há qualquer referência bibliográfica para uma publicação alemã nesse arquivo. O projeto revela que Marcuse foi um especialista em dialética e no marxismo internacionalmente reconhecido, tanto com credenciais acadêmicas quanto com uma forte influência política e intelectual sobre a Nova Esquerda (New Left).

[3] Doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com apoio do CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9773-8989. E-mail: jpandradedias@gmail.com.

[4] Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9075-6028. E-mail: victor.totustuusmariae@gmail.com.

[5] A contração abrevia quod vide, ou “queira ver”, em português. Ela sinaliza quais outros verbetes estão disponíveis para consulta, na enciclopédia.  Durante o curso do texto, o leitor irá perceber ainda um outro tipo de remissão: o nome do verbete em caixa alta, acompanhado da indicação “ver” (e.g. ver LUTA DE CLASSES). Os tradutores preferiram manter essas indicações a limpar o texto, com a confiança de que a forma-enciclopédia permaneça assim respeitada. (N.T.)

[6] Discurso opositivo, contraditar, objetar, debater. (N.T.)

[7] Arte e capacidade/potência, respectivamente. (N.T.)

[8] Aqui, optamos por traduzir diretamente a versão inglesa citada no texto original. Contudo, citamos abaixo outras três traduções do mesmo trecho – em português, espanhol e francês – para a comparação do leitor:

1.       “[...] a refutação que procede dos primeiros princípios comuns que não caem no campo de nenhum estudo especial.” (ARISTÓTELES, 1987);

2.       “[...] la (refutación) derivada de (principios) comunes y no subordinados a ninguna técnica.” (ARISTÓTELES, 1982);

3.       “Tandis que celle [refutation] qui est tirée des notions communes et qui ne tombe sous aucun art, c'est aux dialecticiens qu'il revient d'examiner [...]” (ARISTOTE, 2014).

[9] Enéada I. 3. 5, 1-5. Apresentamos abaixo a tradução do excerto em três idiomas para comparação do leitor. Adotaremos o mesmo procedimento nas duas notas subsequentes. (N.T.)

1.       “O intelecto fornece princípios claros, se se é capaz de aprendê-los com a alma.” (PLOTINO, 2006, p. 267);

2.       “Intellect gives clear principles to any soul which can receive them.” (PLOTINO, 1995, p. 159);

3.       “La inteligencia proporciona principios evidentes al alma que sea capaz de recibirlos.” (PLOTINO, 1992, p. 230).

[10]  Enéada I. 3. 5, 10-15:

1.       “[a dialética] abrange as coisas e tem os entes como matéria.” (PLOTINO, 2006, p. 267);

2.       “It [dialectic] deals with things and has real beings as a kind of material for its activity.” (PLOTINO, 1995, p. 161);

3.       “[la dialéctica] versa sobre cosas reales e maneja los Seres como material.” (PLOTINO, 1992, p. 231).

[11] Enéada I. 3. 5, 10-15:

1.       “[a dialética] possui ao mesmo tempo as coisas e seus teoremas.” (PLOTINO, 2006, p. 267);

2.       “[dialectic] possesses real things along with its theories.” (PLOTINO, 2006, p. 161);

3.       “[...] llevando consigo, junto com los teoremas, las cosas reales (PLOTINO, 1992, p, 231).

[12] Para as citações a essa obra, adotamos sempre que possível a seguinte tradução: HEGEL, G. W. F. Ciência da lógica: 1. A doutrina do ser. Trad. Christina G. Iber, Marloren L. Miranda e Federico Orsini. Petrópolis (RJ): Vozes; Bragança Paulista (SP): Editora Universitária São Francisco. (N.T.)

[13] A tradução brasileira ora utilizada segue o texto kantiano e verte o termo alemão Satz des Widerspruchs por “princípio de contradição”. A esse respeito, há que se notar que, ao longo do texto, Marcuse prefere o emprego do termo “princípio de não contradição” (principle of non-contradiction).

[14] Cf. trad. em HEGEL, 2018, p. 315. (N.T.)

[15] Cf. trad. em HEGEL, 2016, p. 28. (N.T.)

[16] Cf. trad. em HEGEL, 2016, p. 28. (N.T.)

[17] Cf. trad. em HEGEL, 2003, p. 44. (N.T.)

[18] Neste trecho, o texto original oferece problemas gramaticais e/ou de grafia, que nossa tradução procura evitar. Para todos os efeitos, segue o trecho original com o nosso destaque em itálico: “There is no aspect, no condition, no movement of the object or stage of such movement which lot determined by […]”. (N.T.).

[19] Cf. trad. em HEGEL, 1997, § 243ss. (N.T.)

[20] Cf. trad. em HEGEL, 1997, § 340. (N.T.)

[21] Neste trecho, o texto original oferece problemas de pontuação, que nossa tradução procura evitar. Para todos os efeitos, segue o trecho original com o nosso destaque em itálico: “True reality is seen as absolute idea, as the movement of absolute knowing, and so, in the final analysis. Hegelian dialectics eventually proves to be […].” (N.T)

[22] Cf. trad. em HEGEL, 2018, p. 314. (N.T.)

[23] Cf. trad. em MARX, 2013, p. 130-131.

[24] Cf. trad. em Marx, 2013, p. 129.

[25] Cf. trad. em Marx, 2004, p. 123.

[26] Cf. trad. em Marx, 2004, p. 132.

[27] Cf. trad. em Marx, 2004, p. 132.

[28] Cf. MARX, K.; ENGELS, F. A Sagrada Família ou a crítica da Crítica crítica (contra Bruno Bauer e consortes). Trad. Marcelo Backes. 1. Ed. revista. São Paulo: Boitempo, 2001, p. 111. (N.A.). Cf. trad. em MARX, 2004, p. 117. (N.T.)

[29] Cf. trad. em MARX; ENGELS, 2004, p. 66.

[30] Trata-se da correspondência de Marx ao comitê editorial da revista literária Otechestvennye zapiski (do russo, Notas Patrióticas), publicada mensalmente entre 1818 e 1884 e que mobilizava a chamada intelligentsia russa, incluindo Mikhail Bakhtin e Ivan Turgenev, entre outros. Foi o local onde se publicaram pela primeira vez alguns contos notáveis, como “O Duplo” (1846) e “O adolescente” (1875), de Fiódor Dostoiévsky (N.T.).   

[31] MARX; ENGELS, 1989, p. 713; cf. trad. em MARX, 2013, p. 1013.

[32] Neste trecho, o texto original oferece problemas de pontuação, que nossa tradução procura evitar. Para todos os efeitos, segue o trecho original: “But only as the negation of the existing order is the proletariat the historical agent of liberation: should its existence no longer pose a real contradiction. It becomes another force contributing to the established order […].”