A INVESTIGAÇÃO ARQUEOLÓGICA COMO DIAGNÓSTICO DO PRESENTE: UMA CRÍTICA AO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO

 

Fernanda Gomes da Silva[1]

 

Resumo: Este artigo busca produzir uma leitura da investigação arqueológica empreendida por Michel Foucault como um trabalho de diagnóstico do presente, que se estabelece como uma crítica ao pensamento antropológico dominante no cenário francês da década de sessenta. Para essa tarefa, parte-se de uma descrição do aparato conceitual forjado por sua Arqueologia do saber, a fim de acompanhar um duplo movimento, de forte presença nietzschiana: ao mesmo tempo que efetiva a sua crítica aos humanismos que permeiam o pensamento filosófico então vigente, Foucault ensaia um outro modo de pensar, liberado de amarras antropológicas e de qualquer instância fundadora.

 

Palavras-chave: Arqueologia. Crítica. Diagnóstico do presente. Antropologia

 

INTRODUÇÃO

Antes da publicação de A arqueologia do saber, Foucault já havia escrito três grandes estudos classificados costumeiramente como arqueológicos.[2] O livro, lançado  em 1969,[3] tem, portanto, ao menos três atribuições: primeiramente, busca elucidar certos parâmetros utilizados em investigações empreendidas desde 1960; retrospectivo, ao invés de programático, também procura apontar diferenças entre esses estudos e realizar um exercício de autocrítica de quase uma década de pesquisa[4]; por fim, a publicação pretende, estrategicamente, responder a críticas feitas contra suas pesquisas, principalmente àquelas direcionadas a As palavras e as coisas.[5]

Já na introdução do livro, Foucault (2009, p. 18-19) procura mostrar as especificidades da análise histórica empreendida pela arqueologia: uma história que busca se liberar de características totalizantes, antropológicas e dialéticas.[6] Trata-se, portanto, de apontar uma clara ruptura entre dois tipos de investigação: de um lado, a história “tradicional”, “global” ou “antropológica”, cujo fim é garantir a continuidade evolutiva de um sujeito que determina seu futuro, e, de outro, a história “geral” ou “antiantropológica”, na qual ele se inscreve ao lado de Marx – o qual, segundo Foucault, foi o primeiro a operar esse deslocamento – e Nietzsche.[7] Desse modo, defende a arqueologia como uma investigação histórica e, ao mesmo tempo, vincula-se a pensadores que, de acordo com sua leitura, teriam produzido uma desapropriação do sujeito na história (2009, p. 14-17).

            Além disso, Foucault também marca, de forma bastante contundente, a influência da epistemologia francesa – notadamente Gaston Bachelard e Geoges Canguilhem – para o estabelecimento de suas análises:

Atos e limiares epistemológicos descritos por G. Bachelard: suspendem o acúmulo indefinido de conhecimentos, quebram sua lenta maturação e os introduzem em um tempo novo, os afastam de sua origem empírica e de suas motivações iniciais, e os purificam de suas cumplicidades imaginárias; prescrevem, dessa forma, para a análise histórica, não mais a pesquisa dos começos silenciosos, não mais a regressão sem fim em direção aos primeiros precursores, mas a identificação de um novo tipo de racionalidade e de seus efeitos múltiplos. Deslocamentos e transformações de G. Canguilhem podem servir de modelo pois mostram que a história de um conceito não é, de forma alguma, a de seu refinamento progressivo, de sua racionalidade continuamente crescente, de seu gradiente de abstração, mas [a história] de seus diversos campos de constituição e de validade, a de suas regras sucessivas de uso, a dos meios teóricos múltiplos em que foi realizada e concluída sua elaboração. (FOUCAULT, 2009, p. 4-5).

 

            Nota-se, assim, que a investigação arqueológica caracteriza um posicionamento crítico com relação à história e ao pensamento francês então dominante, forjando procedimentos que se tornam ainda mais contundentes, nos trabalhos posteriores de Foucault. É esse movimento de pesquisa que o artigo pretende explorar. Inicialmente, buscamos enfatizar uma preocupação com o presente, já nesse momento – em contraposição, portanto, às análises que tendem a situar essa questão apenas a partir da década de setenta, com os estudos genealógicos. Nossa perspectiva é a de que esse gesto de Foucault ganha maior expressão, se situarmos as pesquisas arqueológicas como uma crítica aos humanismos que marcam o pensamento francês do período e que propõe, ao mesmo tempo, uma abertura para se pensar um pensamento outro.

 

1 ESPECIFICIDADES DA ANÁLISE ARQUEOLÓGICA

O uso da palavra “arqueologia” foi alvo de muitas incompreensões. Além de estar associada diretamente a uma disciplina científica, o fato de o termo já ter sido utilizado por outros filósofos contribuiu ainda mais para a confusão em torno da investigação empreendida por Foucault. Em entrevista concedida a Brochier e publicada na Magazine Littéraire, logo após o lançamento de A arqueologia do saber, Foucault tenta, mais uma vez, elucidar a questão:

Essa palavra “arqueologia” me incomoda um pouco, porque ele recobre dois temas que não são exatamente os meus. Inicialmente, o tema da origem (arkè, em grego, significa começo). Ora, eu não procuro estudar os começos no sentido da origem primeira, do fundamento a partir do qual todo o resto seria possível. [...] São sempre começos relativos que procuro, antes instaurações ou transformações que fundamentos, fundações. E, depois, me incomoda da mesma forma a ideia de escavações. O que procuro não são as relações que seriam secretas, ocultas, mais silenciosas ou mais profundas que a consciência dos homens. Procuro, ao contrário, definir relações que estão na superfície dos discursos; tento tornar visível o que só é invisível por estar muito na superfície das coisas.[8] (FOUCAULT, 2001a, p. 800).

 

            Desse modo, Foucault pretende fazer com que a multiplicidade de começos históricos “relativos” – que a sua arqueologia faz emergir – atue contra a unidade meta-histórica do fundamento. Tal operação produz uma inversão metodológica dos princípios que caracterizam a noção mesma de fundamento. A análise arqueológica não se ocupa com a origem, mas se atém a uma “população de acontecimentos dispersos” (FOUCAULT, 2001a, p. 729). Cada ponto dessa breve declaração tem um lugar de destaque nesse deslocamento metodológico: contrariamente à história tradicional, a população refere-se a uma multiplicidade não reduzível. Isso significa que a multiplicidade em Foucault constitui um esforço por manter a disparidade, sem atribuir significado superior a nenhuma unidade, seja ela uma verdade divina, seja o espírito de uma época ou o gênio absoluto. Foucault a emprega como um conceito operatório que não se opõe intrinsecamente à unidade, mas que tem a função de problematizar o status de antigas unidades e facilitar a proposição de outras “formações discursivas”.

Tomemos como exemplo o estudo sobre a loucura. Não há um momento em que um discurso da razão, como o da psiquiatria no século XIX, chegue a uma verdade definitiva; o discurso da psiquiatria é elaborado como um acontecimento que deve ser analisado em relação à multiplicidade de discursos sobre ela. Trata-se, ainda, de identificar as singularidades do acontecimento, e não de torná-lo um elemento absoluto, irredutível ao pensamento racional, lógico ou causal. É também em uma perspectiva metodológica e não ontológica que o acontecimento é pensado. Ele constitui o nível elementar sobre o qual o historiador pode exercer o seu trabalho, de forma livre e crítica.[9]

            Desse modo, multiplicidade e acontecimento possuem uma função estratégica, que não fundam, de modo algum, normas absolutas para a análise arqueológica. O mesmo poderia ser dito quanto à descontinuidade. Foucault não pensa a arqueologia em conformidade absoluta com o princípio do descontínuo. Trata-se, assim como o contínuo, de um instrumento de análise; e se, em alguns momentos, é privilegiado, como em As palavras e as coisas, por exemplo, é para se opor ao tradicional predomínio da continuidade.[10] Foucault se esforça, dessa forma, para forjar um procedimento de pesquisa sem caminhos privilegiados previamente, o qual se abre à descrição de acontecimentos e não pode ser aplicado, mas apenas constituído nas próprias investigações. Ao trabalhar com “múltiplos começos” e uma “população de acontecimentos dispersos”, Foucault privilegia o campo da imanência em contraposição às formas tradicionais de tratamento do passado.

            É importante acrescentar que esses começos não são fixos, nem sustentam um progresso ou desenvolvimento científico. Eles possuem, na abordagem arqueológica, o caráter contingente de um acontecimento. É o “jogo de relações” que é arqueologicamente relevante.[11]

Relações entre os enunciados […]; relações entre grupos de enunciados assim estabelecidos [...]; relações entre enunciados ou grupos de enunciados e acontecimentos de uma ordem inteiramente diferente (técnica, econômica, social, política). Fazer aparecer, em sua pureza, o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos não é tentar restabelecê-lo em um isolamento que nada poderia superar; não é fechá-lo em si mesmo; é tornar-se livre para descrever, nele e fora dele, jogos de relações. (FOUCAULT, 2009, p. 32).

 

            Esse aspecto pode ser visualizado – uma vez mais – na abordagem empreendida em História da loucura, onde a loucura não é um objeto estável. O discurso psiquiátrico foi se formando, gradativamente, como ciência, todavia, a loucura é um conjunto de relações entre os discursos moral, político, médico, teórico e prático, o qual, por si mesmo, constitui um objeto variável. Desse modo, a arqueologia conserva certa “relatividade contra o princípio de imutabilidade que caracteriza o fundamento. Mais uma vez, é preciso destacar que essa relatividade é metodológica e não ontológica, pois não se trata de negar a existência da verdade ou do sujeito consciente, mas de tensionar os limites da análise histórica, experimentar o quanto ela pode ser conduzida ao sujeito e à verdade a-históricos, em função de um conjunto de relações abertas.

            A arqueologia identifica, nos começos, regras a partir das quais os pensamentos e as práticas individuais são moldados. Assim, os começos se impõem como “[...] um tipo de anonimato uniforme, a todos os indivíduos.” (FOUCAULT, 2009, p.69). No entanto, isso não implica uma fatalidade, na qual os indivíduos têm suas condutas integralmente determinadas por uma norma transcendente. Trata-se de colocar em evidência as condições que o sujeito não pode ignorar, nem modificar na sua prática histórica, já que a arqueologia propõe a suspensão de verdades históricas e o esvaziamento de universais. Logo, ela contrapõe uma “atitude cética” ao dogmatismo próprio do fundamento.[12]

            Foucault utiliza dois recursos estratégicos ou precauções metodológicas (“relatividade” e “atitude cética”) para travar uma batalha contra os princípios que caracterizam o conceito de fundamento. É importante reiterar, contudo, que esses recursos são metodológicos e não ontológicos, descritivos e não explicativos. Não há um transcendente que sustenta a análise arqueológica. Se a arqueologia se opõe ao fundamento, não é para contrapor à solidez da arquitetura metafísica o fluxo do devir. Trata-se de descrever a já mencionada “população de eventos dispersos”. Esses recursos funcionam como conceitos operativos – procedimentos – que não visam a estabelecer verdades gerais. Operam com base na premissa de que nada escapa à história e de que nenhum princípio positivo, fundamental ou original pode ser erigido. Ao multiplicar os começos, a arqueologia propõe a radicalização de uma suspeita ou de um questionamento sobre qualquer princípio positivo.

            A possibilidade lúdica, que permite a ligação entre o prefixo arché e a palavra “arquivo”, abre ainda outras possibilidades de compreensão da análise arqueológica. Foucault (2001, p. 623) propõe esse jogo, ao declarar que a arqueologia constitui a “análise do discurso em seu modo de arquivo”. Essa associação entre arquivo e discurso sugere que a metodologia negativa encontra no discurso a sua positividade.

            No entanto, para compreendermos como esse uso metodológico do discurso opera, é preciso antes saber o que Foucault entende por discurso. Comecemos por identificar o que ele não é: o discurso não é a linguagem, comumente tomada como a faculdade de usar signos em um sistema articulado. Foucault não concebe o discurso como a capacidade própria do homem, que faz dele um animal racional. O discurso também não é a língua, no sentido de uma herança coletiva da qual o sujeito extrai o conteúdo de sua fala; não é, tampouco, o objeto de uma análise linguística, isto é, de uma análise formal que permita fazer surgir infinitas possibilidades, a partir de um número limitado de regras. A análise do discurso que a arqueologia propõe não se apoia no que pode ser dito segundo normas estabelecidas pela estrutura binária do significante e do significado.[13] O discurso não corresponde à fala, isto é, não é o ato físico, individual e consciente.

            Passemos então a uma caracterização positiva. Foucault define o discurso como o domínio das coisas que foram ditas no passado e preservadas no presente. O discurso, portanto, designa um domínio autônomo que a arqueologia busca analisar: “[...] não procuramos, pois, passar do texto ao pensamento, da conversa ao silêncio, do exterior ao interior, da dispersão espacial ao puro recolhimento do instante, da multiplicidade superficial à unidade profunda. Permanecemos na dimensão do discurso.” (FOUCAULT, 2009, p. 85). A singularidade que a arqueologia introduz está na opção de pensar o discurso por si mesmo. A especificidade da análise discursiva pode ser entendida, desse modo, como uma recusa de toda forma de interioridade ou intencionalidade. É esse aspecto que possibilita à arqueologia colocar em questão a noção tradicional de sujeito.[14]

            Para Foucault, a importância do discurso está em sua materialidade. A análise discursiva não produz diferenciações, nem hierarquizações, e procura dar o mesmo tratamento a uma obra literária, um tratado filosófico ou um decreto governamental.[15] Isso não significa, por exemplo, que o pensamento de Descartes e um documento político possuem exatamente o mesmo valor, mas que o privilégio concedido à interioridade do sujeito na avaliação de um discurso é suspenso e a atenção é primeiramente lançada sobre as suas condições de possibilidade. Nesse aspecto, a arqueologia é uma história do ato e não da intenção, e pode ser tida como uma “pragmática do discurso” (WAHL, 1989, p. 89) que inverte a análise fenomenológica: ao invés de um sujeito que se coloca contra qualquer pré-julgamento, temos a racionalidade que habita a prática discursiva contra qualquer sujeito.

            Nesse movimento, Foucault (2009, p.90) destaca a noção de enunciado, definida como “átomo do discurso”.[16] O enunciado também é caracterizado a partir de negações: ele não funciona nem como uma proposição lógica, nem como uma frase gramatical (FOUCAULT, 2009, p. 95). A função enunciativa estrutura um agenciamento conceitual que percorre toda a arqueologia do saber: objeto, sujeito, conceito, estratégia. Assim, ela não tem como correlato um referencial ou um significado fixo, como a loucura, por exemplo, todavia, define um referencial geral no qual são distribuídos objetos possíveis:

Esse conjunto de enunciados está longe de se relacionar com um único objeto, formado de maneira definitiva, e de conservá-lo indefinidamente como seu horizonte de idealidade inesgotável; o objeto que é colocado como seu correlato pelos enunciados médicos dos séculos XVII ou XVIII não é idêntico ao objeto que se delineia através das sentenças jurídicas ou das medidas policiais; da mesma forma, todos os objetos do discurso psicopatológico foram modificados desde Pinel ou Esquirol até Bleuler: não se trata das mesmas doenças, não se trata dos mesmos loucos. (FOUCAULT, 2009, p.35).

 

            Do mesmo modo, a função enunciativa não tem como instância de produção um sujeito-autor imutável, mas define um lugar vazio que pode ser preenchido por diferentes sujeitos e/ou papéis. Além disso, não permite a análise de um enunciado de maneira puramente interna, porém, requer sempre o uso de outros enunciados, de um “espaço correlativo”.[17] Por fim, a função enunciativa não possui uma existência ideal ou formal, mas material. Para cada uma dessas quatro dimensões da formação discursiva ou da função enunciativa, Foucault insiste no caráter regular de um jogo de relações ou “nexo das regularidades” (FOUCAULT, 2009, p. 65).

            A análise discursiva coloca, ainda, em suspenso a liberdade absoluta do sujeito e o valor geral da verdade. A liberdade do sujeito é primeiramente neutralizada pela noção de a priori histórico[18], através da qual Foucault busca designar, ao lado da função enunciativa, “[...] as condições de emergência dos enunciados.” (FOUCAULT, 2009, p. 144). O a priori histórico possibilita a Foucault aproximar teorias aparentemente opostas em outro nível do discurso. É com recurso ao a priori histórico que Foucault pode afirmar, por exemplo, que, para o pensamento antropológico e histórico instaurado pela economia do século XIX, Marx não rompe com Ricardo, mas evolui nesse ambiente discursivo como um peixe na água.[19]

Foucault define, contudo, condições históricas e particulares, e não condições universais e necessárias derivadas do sujeito transcendental, como em Kant. O a priori histórico é variável: cultural e não natural, discursivo e não perceptivo. Move-se a partir de certos limiares descritíveis arqueologicamente. Nas palavras de Foucault (2009, p.145), não é algo que constitui uma “[...] grande figura imóvel e vazia que surgiria, um dia, à superfície do tempo; que faria valer sobre o pensamento dos homens uma tirania da qual ninguém poderia escapar.”

            Ao afirmar que o a priori histórico é “uma figura puramente empírica” Foucault (2009, p. 145) marca a sua diferença fundamental em relação a Kant. Para o filósofo francês, trata-se de um instrumento que não garante a legitimidade do saber, ao delimitar suas condições de possibilidade, mas deslegitima – provisoriamente – a verdade pretendida das ciências humanas, ao colocar em questão limites considerados seguros e inquestionáveis. O fundamento da verdade universal é posto em suspenso com a análise dos começos relativos do discurso.

            É, entretanto, com o conceito de saber que Foucault (2009, p. 207). se opõe à garantia dogmática do fundamento: a arqueologia “[...] deve mostrar, positivamente, como uma ciência se inscreve e funciona no elemento do saber.” Obedecendo à ilusão retrospectiva, a história das ideias procede de maneira binária. Nesse tipo de análise, a ciência é considerada como norma e fim de todos os discursos. Assim, tudo que está fora dela constitui o espaço obscuro da opinião, do erro ou das ideologias.

            Em relação a esse esquema dualista de verdade e erro, a arqueologia propõe quatro limiares: um de positividade, que indica o aparecimento de uma formação discursiva autônoma e descritível, em sua unidade; outro de epistemologização, que marca o surgimento do saber por um certo número de normas de verificação e coerência; outro de cientificidade, quando aparece um certo número de critérios formais; e, enfim, um de formalização, quando um discurso científico é capaz de estruturar sua enunciação em um sistema. Essa descrição torna possível, por um lado, justificar a arqueologia como um tipo específico de história das ciências que se concentra no segundo limiar, a epistemologização: “[...] o que se tenta revelar, na história arqueológica, são as práticas discursivas na medida em que dão lugar a um saber, e em que esse saber assume o status e o papel de ciência.” (FOUCAULT, 2009, p. 213). Por outro lado, esse movimento possibilita recusar a teleologia subjacente à história das ideias e situar a arqueologia como uma descrição precisa das práticas discursivas, em vez de uma “ontogênese da razão” (FOUCAULT, 2009, p. 210).

Para o arqueólogo, o saber não é a condição a priori de todo conhecimento derivado da estrutura universal e necessária do sujeito. Ele é referido às regras anônimas e históricas das práticas discursivas e designa a descrição “positiva” dos discursos científicos e não científicos, de modo que o “território arqueológico” é composto de textos científicos, mas também de discursos filosóficos, literários e políticos. O que desaparece na descrição do saber é, portanto, o originário e a normatividade da verdade. O a priori histórico e o saber, derivados da mesma “atitude cética”, referem-se ao discurso como um nível autônomo e analisável de acordo com suas próprias regras, conforme Foucault indica na seguinte passagem: “[...] gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva.” (2009, p. 55).

            A arqueologia pode, por conseguinte, ser entendida como o estudo do arquivo ou do “[...] sistema geral de formação e transformação de enunciados.” (FOUCAULT, 2009, p. 148). Essa articulação dá um sentido mais complexo à análise arqueológica, porque o arquivo reúne, ao mesmo tempo, o nível elementar dos enunciados concebidos como população de acontecimentos dispersos, as relações que articulam as quatro dimensões da função enunciativa, além do a priori histórico de uma época. É nesse último registro, portanto, que propomos pensar a arqueologia como um trabalho de diagnóstico do presente, segundo veremos a seguir.

 

2 ARQUEOLOGIA COMO DIAGNÓSTICO DO PRESENTE: RESSONÂNCIAS DE NIETZSCHE

            A autonomia do discurso também foi alvo de muitos questionamentos e incompreensões. Foucault foi acusado de “absolutizar” o discurso, ao isolá-lo do sujeito e das condições sociais, políticas ou econômicas de sua produção. Essa acusação, contudo, não se sustenta, se nos aproximarmos mais detidamente da análise arqueológica. Já em 1967, Foucault (2001, p. 618) afirma:

Só há interesse em descrever esse estrato autônomo do discurso na medida em que se pode relacioná-lo com outros estratos, de práticas, de instituições, de relações sociais, políticas, etc. [...] eu quis, precisamente, na História da loucura e em O nascimento da clínica, definir as relações entre esses diferentes domínios.[20]

 

A autonomia do discurso é, pois, um aspecto privilegiado – importante, não absoluto. A análise arqueológica, entretanto, sempre busca sua articulação com os campos social, político e econômico. Essa discussão também pode ser encontrada em dois textos que serviram de base para A arqueologia do saber: “Réponse à une question” (FOUCAULT, 2001, p. 701-723) e “Sur l'archéologie des sciences. Réponse au Cercle d'épistémologie” (FOUCAULT, 2001, p. 724-759), ambos escritos em 1968. Neles, a arqueologia é situada em oposição a uma filosofia política, que, “para cantar a ladainha da contestação”, nega o trabalho da história analítica e contemporânea (FOUCAULT, 2001, p. 728). Desenvolve, assim, uma história em que se mistura, de forma confusa, a dialética, a continuidade, a liberdade transcendente da práxis e a soberania do sujeito.

            A crítica (encabeçada por Sartre) que pretende denunciar a ausência do político nas análises de Foucault é, de maneira geral, centrada na identificação de uma suposta filiação da arqueologia ao estruturalismo. A introdução de Arqueologia do saber, no entanto, situa de forma bastante clara os parâmetros dessa relação: arqueologia está ao lado do estruturalismo e não dentro dele. Se quisermos pensar em termos de filiação – embora, Foucault (2002, p. 1107) insista na origem kantiana do termo “arqueologia” – é à genealogia de Nietzsche que a arqueologia está, mais diretamente, vinculada.[21]

Desde 1961, no primeiro prefácio de História da loucura, Foucault faz referência direta à presença de Nietzsche em suas pesquisas.[22] O vínculo entre arqueologia e genealogia pode ser encontrado na rejeição do fundamento, na abordagem histórica. Foucault se apropria da herança negativa e crítica de Nietzsche, sem vincular-se à axiologia, característica da genealogia nietzschiana. Trata-se, desse modo, de uma apropriação de Nietzsche como ferramenta metodológica. Assim, Foucault não se ocupa dos grandes temas de Nietzsche, mas busca, antes, retomar o seu gesto filosófico.

Nessa perspectiva, se a genealogia de Nietzsche buscou empreender um diagnóstico da cultura, a arqueologia foucaultiana se propõe realizar um diagnóstico do presente: ela “[...] começa com o exterior da nossa própria linguagem; seu lugar é o afastamento de nossas próprias práticas discursivas. Nesse sentido, vale para nosso diagnóstico. [...] Ela nos desprende de nossas continuidades.” (FOUCAULT, 2009, p. 148-49). Assim, ao contrário do que é estabelecido em uma leitura dominante, o diagnóstico não surge no pensamento de Foucault apenas em 1970-1971, com o chamado período genealógico e a referência explícita à Nietzsche. Já em 1966, a arqueologia enfatiza o seu interesse pelo presente.[23] A arqueologia usa o passado para colocar em questão todas as confiabilidades que o presente inventa para se manter estável, almejando fissurar, desse modo, as ideias tranquilizadoras de continuidade e identidade.

É nesse registro que a arqueologia procura negar a totalização dialética, mantendo uma vigilância cética sobre as idealizações que poderiam preencher inquietudes do pensamento. Nesse sentido, a história não é o caminho para a verdade humana e não tem uma dimensão antropológica, porém, desempenha um papel de distanciamento de si mesmo e de crítica à sua própria cultura.[24] A arqueologia, como a genealogia de Nietzsche, visa a quebrar as evidências do que é supostamente necessário e mostrar que o que parece natural e eterno pode ser transformado, porque não foi sempre o mesmo. Ao mostrar que as coisas foram constituídas de uma certa maneira, a análise arqueológica indica que elas podem ser desfeitas e/ou feitas de outro modo. A arqueologia pode ser vinculada à genealogia de Nietzsche, portanto, na medida em que ambas buscam dissolver a crença em um sentido fundador e estão orientadas para o diagnóstico crítico do presente. A genealogia de Nietzsche e a arqueologia de Foucault possuem, sobretudo, o mesmo objeto de confrontação: o homem.

 

3 ARQUEOLOGIA COMO UMA CRÍTICA AO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO

O humanismo é objeto de uma profunda desconfiança, por parte de Foucault, porque ele se ancora em uma retórica de libertação e, na realidade, leva à dominação dos seres humanos e do pensamento. É nesse sentido que o anúncio polêmico da “morte do homem” – feito em As palavras e as coisas – deve ser entendido. O desaparecimento do homem constitui a tese mais complexa dos primeiros anos de produção de Foucault e concentra a crítica radical da arqueologia no pensamento antropológico que domina o cenário filosófico francês, nos anos do pós-guerra. Foucault (2001, p. 568) combate o humanismo, expressamente, em suas análises: “[...] não somente o humanismo não existe em outras culturas, mas ele está na nossa, provavelmente, na ordem de uma miragem.” Ao propor uma arqueologia do humanismo, Foucault evidencia a sua contingência e preconiza uma análise em termos de saber, livre de ideias pré-concebidas. O homem que tem sua morte anunciada não é o ser humano, mas um objeto de pensamento, uma figura historicamente determinada do conhecimento ocidental.

            O humanismo se funda numa ideia de homem que, além de produzir um padrão normal, estabelece também um parâmetro normalizador. E são as ciências humanas que, desde o final do século XVIII, produzem essas normas, ao definirem múltiplas “essências humanas”. Foucault argumenta (2007, p. 507) que as ciências humanas se constituíram, arqueologicamente, como “o reverso” das três ciências positivas e empíricas (biologia, economia e filologia), as quais emergem no início do século XIX. As ciências humanas só são “científicas” no nome e constituem, apenas, positividades do saber: “Inútil, pois, dizer que as ‘ciências humanas’ são falsas ciências; simplesmente não são ciências.” O homem é constituído, desse modo, por um discurso que recobre os conhecimentos de biologia, economia e filologia, numa reflexão sobre a finitude.[25] É tratado, então, como um animal psíquico, social e discursivo; mas as leis segundo as quais ele pensa, convive com os outros e fala são colocadas, nesse domínio do saber, de forma mais prescritiva que descritiva. É justamente esse aspecto que Foucault tem interesse em combater.

Nesse movimento, Foucault (2007, p.359) denuncia, ainda, o caráter circular e ilusório do “antropologismo”, o qual consiste no fechamento do discurso e do conhecimento ocidental moderno sobre a figura inventada do homem. O argumento que sustenta essa denúncia é a afirmação de que o homem é um não ser, mas que é esse não ser que tem o poder de animar o discurso, fazendo gravitar em torno dele todo o pensamento, desde o fim do século XVIII. Seguiremos aqui o nono capítulo de As palavras e as coisas, intitulado “O homem e seus duplos” – mais precisamente, os seguintes tópicos: “A analítica da finitude”, “O empírico e o transcendental”, “O cogito e o impensado” e “O recuo e o retorno da origem” – para compreender o esforço desses quatro círculos em fundar a figura do homem. A crítica decisiva de Foucault consiste, justamente, em apontar as consequências negativas desse discurso.

            O primeiro círculo antropológico provém do fato de que o homem deve encontrar nele mesmo a força, até então confiada ao infinito divino, para fundar um saber positivo e empírico sobre ele próprio. Assim como os outros, esse primeiro círculo antropológico é possibilitado pela passagem de uma metafísica do infinito – de tipo cartesiana – para uma analítica de finitude decorrente da filosofia de Kant: como o conhecimento da finitude é fundado em uma negação do infinito, é em si mesmo que o homem deve encontrar a garantia de sua verdade. Mas, enquanto a finitude kantiana mantém a necessidade do absoluto nas ideias da razão, a finitude antropológica só se reporta a ela mesma:

Assim, do coração mesmo da empiricidade, indica-se a obrigação de ascender ou, se se quiser, de descer até uma analítica da finitude, em que o ser do homem poderá fundar, na possibilidade delas, todas as formas que lhe indicam que ele não é infinito. E o primeiro caráter com que essa analítica marcará o modo de ser do homem, ou, antes, o espaço no qual ela se desenrolará por inteiro, será o da repetição  –  da identidade e da diferença entre o positivo e o fundamental: a morte que corrói anonimamente a existência cotidiana do ser vivo é a mesma que aquela, fundamental, a partir da qual se dá a mim mesmo minha vida empírica; o desejo que liga e separa os homens na neutralidade do processo econômico é o mesmo a partir do qual alguma coisa me é desejável; o tempo que transporta as linguagens, nelas se aloja e acaba por desgastá-las, é esse tempo que alonga meu discurso antes mesmo que eu o tenha pronunciado numa sucessão que ninguém pode dominar. De um extremo ao outro da experiência, a finitude responde a si mesma; ela é, na figura do Mesmo, a identidade e a diferença das positividades e de seu fundamento. (FOUCAULT, 2007, p. 433-434).

 

            No século XIX, as potências da vida, do trabalho e da linguagem revelam a finitude insuperável do homem. Nesse sentido, o homem é desvinculado do infinito, entretanto,  projetado em novas metafísicas. Ao mesmo tempo, a finitude anseia se perder na passividade de uma pura objetividade empírica e busca fundar nela mesma a verdade das ciências positivas. A antropologia coloca em cena uma finitude esfacelada, cavando indefinidamente o espaço de sua própria objetivação.

A consequência direta do primeiro círculo antropológico é o estabelecimento do homem como “[...] um estranho duplo empírico-transcendental, porquanto é um ser tal que nele se tomará conhecimento do que torna possível todo conhecimento.” (FOUCAULT, 2007, p.439). Há, de fato, uma forma de circularidade no status do homem, uma vez que ele é esse sujeito que, a partir do conhecimento que pode adquirir sobre si mesmo como objeto empírico, quer deduzir as estruturas universais do conhecimento – necessariamente redundantes – que contribuem para moldar o objeto do conhecimento.

Dessa maneira, produz-se, sobretudo, uma confusão dos modos de conhecimento em relação à crítica kantiana; o a posteriori pretende se fundamentar em si e por si mesmo, sem recorrer ao a priori: na ausência de qualquer fundamento, o objeto fundado pretende constituir seu próprio fundamento. Aqui, a crítica de Foucault consiste em recordar que o homem não pode surgir bruscamente como um sujeito transcendental do indivíduo que vive, trabalha e fala. Tal procedimento faria ressurgir todas as ilusões pré-críticas, e as ciências empíricas acabam por se instituir como metafísicas dogmáticas, com o trabalho, a vida e a linguagem pensados como novos absolutos, transcendentais ou coisas em si. O duplo empírico-transcendental significa a precipitação do pensamento nas ilusões da dialética, não uma dialética transcendental, como em Kant, mas uma dialética antropológica, portanto, necessariamente circular.

Há uma terceira forma de circularidade na relação do ser do homem com seu outro: enquanto o cogito cartesiano afirmava que todo erro permanecia no pensamento e levava à existência de uma coisa que pensa, o pensamento antropológico se abre indefinidamente ao impensado, o qual permanece para ele inassimilável e inevitável. Assim, “[...] todo o pensamento moderno é atravessado pela lei de pensar o impensado.” (FOUCAULT, 2007, p.440). Os “transcendentais” – trabalho, vida e linguagem – são, no entanto, impensados, mas não são impensáveis.

Se eles atraem o pensamento como os únicos objetos a serem conhecidos, eles emergem do processo do conhecimento como o incognoscível – ou como resistência a todo conhecimento. É como se o “eu penso” moderno nunca pudesse certamente levar ao “eu sou”, porque entram no pensamento aqueles seres que o afastam de si mesmo sob a figura dupla da falta. Assim o cogito moderno não se define mais por uma adequação a si mesmo, contudo, por uma abertura indefinida ao outro que atravessa e fissura a consciência.

O quarto círculo antropológico é o que Foucault chama de “o recuo e o retorno da origem”. Ele supõe, primeiramente, que a origem do homem não é jamais compreendida: “[...] ora, essa própria impossibilidade tem dois aspectos: significa, por um lado, que a origem das coisas está sempre recuada, já que remonta a um calendário onde o homem não figura; [o homem] é o ser sem origem.” (FOUCAULT, 2007, p.342). A origem do homem ainda se refere àqueles transcendentais da vida, do trabalho e da linguagem. Mais precisamente, o homem não possui origem em si mesmo, porque ele não tem um fundamento, e sua origem se apresenta mais como um já dado do trabalho, da vida e da linguagem, que o precedem, exigem e constituem ao mesmo tempo. Daí sua estrutura complexa: o homem não se encontra simplesmente na necessidade de pensar sua origem nas coisas. Em sentido inverso, o pensamento experimenta sobretudo a necessidade de fundar a origem das coisas no homem, a fim de lhe dar uma origem. É nesse círculo que a origem, sempre recuada, das coisas se cruza com a origem sempre antecipadora do homem.

Foucault identifica nesses quatro círculos duas grandes correntes do humanismo moderno: de um lado, a dialética “oscilante” de Hegel e Marx, que procede por alienação e reconciliação, recuo e retorno da origem, jogo do mesmo e do outro; por outro lado, a fenomenologia “mista” de Husserl e Heidegger, que busca na análise do vivido os meios de capturar, ao mesmo tempo, o empírico e o transcendental, a natureza e a história, o pensamento e o impensado. Finalmente, a figura de Sartre se coloca como ponto de convergência das duas vertentes. Com esse diagnóstico, tanto da estratégia retórica quanto da análise filosófica, a arqueologia se apresenta como um exercício de análise que se pretende antidialético e antifenomenológico, lembrando que o mesmo não pode jamais anexar completamente o seu outro; ao contrário, quanto mais o mesmo se esforça para abarcar o outro, mais o outro resiste, deixando entrever o vazio no qual a antropologia pensa encontrar o homem. É por essa razão que as ciências humanas chegaram ao reverso de seu objetivo inicial: não na fundação do homem, mas na sua dissolução (FOUCAULT, 2001, p. 530).

Foucault combate, igualmente, a generalidade do conceito de humanismo, que opera em uma perigosa confusão de significados ideológicos e crenças morais, capaz de criar uma categoria tão ampla que todos podem preencher o seu significado e reivindicá-lo como um universal ou uma norma de dominação.[26] Trata-se de uma recusa, não somente aos universais antropológicos, mas à própria universalidade do humanismo. Foucault rejeita a ideia de uma natureza humana, seja boa, seja má, individualista ou coletivista, imutável ou evolucionista. Reconhece, assim, que é a necessidade de uma unidade conceitual que impõe a redução do ser humano a um domínio particular, elevado a universal e reivindicado como padrão. De acordo com Foucault, o homem, a natureza humana e o humanismo são noções gerais demais para serem úteis para uma atividade teórica ou prática. A análise arqueológica, assim, suspende o julgamento sobre o humanismo teórico. Dito de outro modo, o homem não constitui nem o fundamento, nem a norma, nem o padrão em suas investigações.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com vistas a estabelecer uma perspectiva para a arqueologia como ferramenta para uma crítica ao pensamento antropológico, procuramos enfatizar o seu vínculo com a filosofia nietzschiana, no que diz respeito ao exercício filosófico como diagnóstico: da nossa cultura, para Nietzsche; do nosso presente, para Foucault. Se o primeiro se ocupava de grandes temas axiológicos, a análise arqueológica ancora-se em uma análise discursiva que não perde de vista os campos social, político e econômico. Essa aproximação entre os dois pensadores tem eficácia, como vimos, em função da coincidência de um objeto de confrontação: o Homem. Tal formulação, assim, ganha contornos mais precisos, quando retomamos a leitura que Foucault faz das ciências humanas.

            A abordagem arqueológica, portanto, abre um caminho investigativo para a produção de um diagnóstico do presente, sem se enredar no emaranhado humanista do qual Foucault buscava se desvencilhar. O pensamento antropológico é versado, em A arqueologia do saber, como uma crise da qual a arqueologia ensaiaria um exercício de saída:

Quanto à vantagem maior, ela consiste, é claro, em mascarar a crise em que estamos envolvidos há muito tempo e cujo âmbito não para de crescer: crise em que estão comprometidas a reflexão transcendental com a qual se identificou a filosofia desde Kant; a temática da origem, da promessa do retorno pela qual evitamos a diferença de nosso presente; um pensamento antropológico que consagra todas as interrogações à questão do ser do homem, e permite evitar a análise da prática; todas as ideologias humanistas; e – enfim e sobretudo – o status do sujeito. (FOUCAULT, 2009, p. 266).

 

A despeito da ironia que permeia a conclusão de A arqueologia do saber, é essa a perspectiva, por conseguinte, que inscreve duplamente a investigação arqueológica como análise do presente. Primeiro, como posicionamento diante da filosofia que lhe é contemporânea. E, segundo, por meio do diagnóstico crítico que constrói, no coração do presente, a possibilidade de se pensar diferentemente do que se pensa.

 

The archaeological investigation as a diagnosis of the present: a critique of the anthropological thought

 

Abstract: This article aims to produce a perusal of the archaeological investigation undertaken by Michel Foucault as a diagnostic work of the present. This posture seeks to establish a critique of the dominant anthropological thinking in the French scenario of the nineteen sixties. For this task, we describe the conceptual apparatus forged in the Archeology of Knowledge to follow a double movement of strong Nietzschean presence: at the same time that Foucault makes his critique of the humanisms that permeate the current philosophical thinking, he rehearses another way of thinking, freed from anthropological bonds and from any founding instance.

 

Keywords: Archeology. Criticism. Diagnosis of the present. Anthropology.

 

Referências

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Recebido: 26/01/2022

Aceito: 10/5/2022



[1] Pós-doutoranda no Departamento de Filosofia da FFLCH-USP. Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP e membro do grupo de pesquisa “Michel Foucault” (CNPq/PUC-SP). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6081-2076  E-mail: fernanda.gdasil@gmail.com.

[2] São eles: Folie et déraison: Histoire de la folie à l'âge classique, publicado em 1961 (Plon) e revisto, com título alterado, em 1972 (Gallimard); esta última edição foi publicada no Brasil, em 1978, pela editora Perspectiva, com tradução de José Teixeira Coelho Neto; Naissance de la clinique – une archéologie du regard médical, publicado em 1963 (PUF) e traduzido no Brasil em 1977 (Forense Universitária), por Roberto Machado; Les mots et les choses (une archéologie des sciences humaines) foi publicado em 1966 (Gallimard), ganhando tradução brasileira, de Salma Tannus Muchail, em 1981 (Martins Fontes).

[3] L’archeologie du savoir foi publicado pela Éditions Gallimard. Em 1972, foi editado no Brasil, com tradução de Luiz Felipe Baeta Neves (Editora Vozes).

[4] Essa autocrítica é especialmente direcionada a termos empregados nesses primeiros estudos, que poderiam ser vinculados à ideia de sujeito – ainda que de forma metafórica – como é o caso, por exemplo, da noção de “experiência da loucura”, em Histoire de la folie, o qual será posteriormente abandonado por Foucault. O que nos interessa particularmente nesse exercício de autorreflexão é acompanhar o caráter móvel da arqueologia, os deslocamentos que caracterizam esse modo de fazer pesquisa, que se estabelece em oposição à própria ideia de método sistematicamente aplicável.

[5] Após a publicação de 1966, Foucault foi fortemente acusado de negar a história (no sentido marxista de relações de poder) e sustentar uma posição anti-humanista, em suas análises.

[6] Aqui a oposição à análise histórica praticada por Sartre parece clara, e as passagens a seguir, selecionadas de Critique de la raison dialectique, nos ajudam a sustentar essa afirmação: “[...] la vérité́ devient, elle est et sera devenue. C'est une totalisation qui se totalise sans cesse ;  [...] la dialectique, si elle existe, ne peut être que la totalisation des totalisations concrètes opérées par une multiplicité́ de singularités totalizantes. L’intelligibilité de la Raison dialectique peut être aisément établie : elle n'est rien d'autre que le mouvement même de la totalisation.” (SARTRE, J. P. Critique de la raison dialectique I. Paris: Gallimard, 1960, p. 30, 132, 139). Além disso, Foucault já situa o seu trabalho em oposição a Sartre, em 1966, quando declara que “[...] la Critique de la raison dialectique, c'est le magnifique et pathétique effort d'un homme du XIXe siècle pour penser le XXe siècle.” (FOUCAULT, M. L'homme est-il mort? Dits et écrits I (1954-1975), Paris: Gallimard (Quarto), 2001, n° 39, p. 569-70).

[7] Foucault inclui também nesse novo modo de análise as investigações empreendidas pela psicanálise, pela etnologia e pela linguística (2009, p. 16).

[8] Sobre esse aspecto, ver também “Qu'est-ce qu'un auteur?” (FOUCAULT, M. Dits et écrits I, op. cit., n° 69, p. 818-849), onde Foucault declara que suas análises se opõem ao que ele nomeia “le rôle de fondement originaire”, em referência à filosofia de Husserl e à tradição francesa, herdeira do cogito cartesiano.

[9] Paul Veyne (1979, p. 38) se aproxima dessa perspectiva, ao definir o acontecimento como “um cruzamento de possíveis rotas”.

[10] Judith Revel (2010, p. 19) propõe a noção de descontinuidade como um fio condutor do pensamento Foucault, como é indicado no seguinte trecho: “[...] il y a donc simultanément la recherche d'un statut philosophique de la discontinuité, une tentative de construire une pensée qui intègre la rupture, le saut, la différence, le changement d'une manière inédite, et qui fasse de ce travail du concept extrêmement précis le moteur même des travaux entrepris.” Sobre esse aspecto, ver a entrevista concedida a Dreyfus e Rabinow e reproduzida em L'origine de l'herméneutique de soi: Conférences prononcées à Dartmouth College 1980 (FOUCAULT, 2013, p. 140): “[...] l'importance accordée aux discontinuités, pour moi, c'est tout de même essentiellement une méthode et pas un résultat. Je ne décris pas des choses pour trouver des discontinuités, mais j'essaie, là où elles semblent apparaître, d'en prendre la mesure et de ne pas vouloir les réduire tout de suite.”

[11] Acerca desse ponto, a passagem a seguir é igualmente elucidativa: “[...] l'épistémè n'est pas une sorte de grande théorie sous-jacente, c'est un espace de dispersion, c'est un champ ouvert et sans doute indéfiniment descriptible de relations.” (FOUCAULT, 2001, p. 704).

[12] Essa “atitude cética” também pode ser entendida como um “nominalismo metodológico”. Os dois termos foram propostos por Paul Veyne. A respeito da qualificação da arqueologia como nominalista, cf. Veyne (1978). Para a questão do ceticismo, cf. Veyne (2008).

[13]De sorte a marcar a sua diferença de interesse com relação ao estruturalismo, Foucault afirmou, em muitas ocasiões, não estar interessado nas possibilidades formais oferecidas pela análise linguística. Conferir, por exemplo, Foucault (2001, p. 623).

[14] Com essa expressão, Foucault deixa em suspenso as especificidades inerentes a cada filosofia que analisa e trabalha com uma noção de sujeito suficientemente ampla, capaz de abranger o sujeito cartesiano, kantiano, hegeliano, husserliano e sartriano.

[15] Sobre esse ponto, conferir a entrevista “Michel Foucault, Les Mots et les Choses” (2001 p. 527).

[16] Foucault (2009, p. 129). observa que a referência ao átomo não significa, no entanto, um recurso ao fundamento: “Não infiro a análise das formações discursivas a partir de uma definição dos enunciados que valeria como fundamento.”

[17] Cf., sobre esse aspecto, a seguinte passagem: “Não há enunciado em geral, enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo.  [...] Não há enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências, efeitos de série e de sucessão, uma distribuição de funções e de papéis.” (FOUCAULT, 2009, p. 112).

[18] A inclusão do adjetivo “histórico” coloca imediatamente a noção proposta por Foucault em contraposição a Kant. Quanto a esse aspecto, cf. Potte-Bonneville (2010, p. 33-4). É preciso destacar também que Foucault não trabalha com o a priori histórico no mesmo sentido atribuído por Husserl, em L'Origine de la géométrie. Béatrice Han também explora esse ponto (1998, p. 110-112).

[19] Cf. Foucault (2007, p. 359-360): “[...] pouco importa a alternativa entre o ‘pessimismo’ de Ricardo e a promessa revolucionária de Marx. Tal sistema de opções nada mais representa senão duas maneiras possíveis de percorrer as relações entre a antropologia e a História, tais como a economia as instaura através das noções de raridade e de trabalho. Para Ricardo, a História preenche o vão disposto pela finitude antropológica e manifestado por uma perpétua carência, até o momento em que seja atingido o ponto de uma estabilização definitiva; segundo a leitura marxista, a História, espoliando o homem de seu trabalho, faz surgir em relevo a forma positiva de sua finitude – sua verdade material enfim liberada.  [...] No nível profundo do saber ocidental, o marxismo não introduziu nenhum corte real; alojou-se sem dificuldade  [...] no interior de uma disposição epistemológica que o acolheu favoravelmente  [...]. O marxismo está no pensamento do século XIX como peixe n'água: o que quer dizer que noutra parte qualquer deixa de respirar.”

[20] Cf. também Foucault (2008, p. 32): “[...] fazer aparecer, em sua pureza, o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos não é tentar restabelecê-lo em um isolamento que nada poderia superar; não é fechá-lo em si mesmo; é tornar-se livre para descrever, nele e fora dele, jogos de relações.” Em L'archéologie du savoir, Foucault retoma essa crítica várias vezes, especialmente direcionada a Les mots et les choses, já que, em Histoire de la folie e Naissance de la clinique, há referências mais explícitas a elementos não discursivos.

[21] Cf. “Sur les façons d'écrire l'histoire” (FOUCAULT, 2001, p. 627): “Mon archéologie doit plus à la généalogie nietzschéenne qu'au structuralisme proprement dit.”

[22] Cf. “Préface, Folie et Déraison. Histoire de la folie à l'âge classique” (FOUCAULT, 2001, p. 190): “Cette longue enquête, qui sous le soleil de la grande recherche nietzschéenne, voudrait confronter les dialectiques de l'histoire aux structures immobiles du tragique.”

[23] Sobre esse ponto, ver a cronologia estabelecida por Daniel Defert, em Dits et écrits I (FOUCAULT, 2001, p. 36).

[24] Cf., por exemplo, este trecho da entrevista concedida a R. Bellour e publicada em junho de 1967, onde Foucault afirma que [...] “si l'histoire possède un privilège ce serait plutôt dans la mesure où elle jouerait le rôle d'une ethnologie interne de notre culture et de notre rationalité.” (FOUCAULT, 2001, p. 626).

[25] Nesse sentido, Foucault ressalta (2007, p. 504-505): “Dir-se-á, pois, que há ‘ciência humana’ não onde quer que o homem esteja em questão, mas onde quer que se analisem, na dimensão própria do inconsciente, normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciência as condições de suas formas e de seus conteúdos.”

[26] Na década de 80, ao retomar o tema, Foucault (2001b, p. 1601) enfatiza os seus aspectos perigosos: “[...] il est possible que l'humanisme ne soit pas universel, mais corrélatif à une situation particulière. Ce que nous appelons humanisme les marxistes, les libéraux, les nazis et les catholiques l'ont utilisé.”