CONSTELAÇÃO, PARATAXE E ENSAIO: OS ARCANOS DO PENSAMENTO DA NÃO IDENTIDADE
Resumo: O propósito deste trabalho consiste na reconstrução dos conceitos de constelação, parataxe e ensaio no pensamento de Theodor Adorno, no intuito de aproximá-los por afinidade, porém, demonstrando a maneira que cada qual expressa, dentro de suas especificidades, a insistência de Adorno em um modelo de pensamento no qual o não idêntico: 1) resiste à subsunção conceitual, ao se dispor em uma configuração constelatória; 2) não sucumbe a justaposições subordinadas próprias da linguagem meramente comunicativa; e 3) encontra sua melhor expressão filosófica na forma ensaio. Para tanto, tomar-se-á como ponto de partida o rearranjo da categoria de constelação como herança do pensamento de Walter Benjamin, para, em seguida, apresentar a ampliação dessa categoria no pensamento de Adorno, relacionando-a tanto à concepção de parataxe como à acepção da forma ensaio, mas visando a entender essas categorias enquanto modo de se pensar filosoficamente, com vistas à elucidação do lugar do não idêntico no âmbito do pensamento dialético.
Palavras-chave: Adorno. Benjamin. Constelação. Ensaio. Parataxe.
Introdução
No contexto da construção do pensamento da não identidade, o filósofo Theodor Adorno recorrera à tradição filosófica do idealismo alemão, sobretudo às construções teóricas de Hegel, bem como seguira os passos de Walter Benjamim, apropriando-se criticamente do pensamento desses autores. Tal apropriação subsidiaria o filósofo frankfurtiano com os elementos necessários para a reconstrução de uma dialética que não se aquiesce aos modelos identitários do pensamento sistemático, na medida em que insiste nas particularidades não idênticas e negativas, as quais tendem a impulsionar o pensamento para além das construções sistemáticas e identitárias, ao conduzir as contradições aos seus limites. É nessa perspectiva que despontarão, no texto que se segue, os arranjos constelatórios, a figura da parataxe e a forma ensaio, enquanto motivos que se valem dos impulsos do não idêntico e, simultaneamente, revelam as contradições no âmbito das relações entre objeto e conceito, bem como as partes e a totalidade constitutivas de uma situação ou arranjo conceitual dado, no interior da dialética de Theodor Adorno.
Sob esse viés, o que se pretende é investigar as categorias de constelação, parataxe e ensaio no pensamento de Adorno, buscando demonstrar que a constelação se inscreve em um modelo de apresentação conceitual no qual a verdade do todo se revela, na medida em que as partes se movem e, nesse movimento, o todo se transforma e, ao se transformar, compele, retrospectivamente, as partes a se moverem; a cada nova posição das partes, o todo alcança novos significados, afigurando um movimento dialético de transformação recíproca e transição identitária contínua, que faz justiça ao pensamento da não identidade, tal como foi explicitado no pensamento da maturidade de Adorno, sobremaneira na sua obra de 1966, a Dialética negativa.
Igualmente, pretende-se, neste artigo, realocar a figura de linguagem da parataxe, ao trazê-la para o debate filosófico, demonstrando que seus modos de justaposição de orações insubordinadas permite a emersão do não idêntico, uma vez que a parataxe dramatiza as construções sintáticas, ao posicionar orações coordenadas, enfatizando suas tensões, as quais obrigam os significados a se deslocarem; dessa forma, essa figura de linguagem se torna um dos expoentes de um modo de se pensar e se fazer filosofia sob a perspectiva da não identidade.
Por fim, valendo-se dos modos constelatórios e paratáticos, o ensaio será apresentado como uma maneira privilegiada de se produzir filosofia ,no contexto do pensamento da não identidade, haja vista que valoriza o movimento que o conceito realiza sobre o objeto investigado, quando este exige novas visadas conceituais, no sentido de produzir outros campos de significados, ao reposicionar o conceituado. Logo, o que se perceberá é que o objeto determina o movimento do conceito, no entanto, a conceituação sedimenta significados no conceituado e esses novos significados modificam a maneira como os objetos são percebidos; e, para explicar esse movimento do conceito, as três categorias (constelação, parataxe e ensaio) serão evocadas, com o objetivo de evidenciar suas especificidades e complementariedades, no domínio do pensamento dialético de Adorno.
Para o empreendimento proposto, far-se-á necessário percorrer o itinerário da construção do conceito de constelação, partindo das proposições de Walter Benjamim pertinentes ao conceito propriamente dito, para que, em seguida, seja possível compreender a maneira pela qual Adorno se apropria do mesmo, fazendo dele uma espécie de chave de leitura para os seus modelos de pensamento, os quais se posicionam como crítica ao pensamento sistemático e identitário. Destarte, a categoria de constelação será o pressuposto fundamental para se analisar doravante as concepções de parataxe e a maneira pela qual as construções constelatórias e paratáticas apresentam o momento de não identidade, no pensamento adorniano, enquanto espaço de resistência ao pensamento sistemático e identitário. O pensamento não sistemático, o qual enaltece o não idêntico, encontrará, como se verá, o seu lugar de expressão na forma ensaio, forma que será entendida enquanto modo privilegiado da escritura filosófica.
1 AS CONSTELAÇÕES COMO HERANÇA DE WALTER BENJAMIN
Não obstante haja uma relação de reciprocidade entre sujeito e objeto, na epistemologia de Theodor Adorno, a dialética negativa, enquanto modelo de pensamento (Denkemodelle), prioriza e salvaguarda a singularidade do objeto, a qual se refere ao mutismo do objeto como coisa em si que resiste à identificação conceitual, preservando-se desse modo como ente não idêntico. Na medida em que subleva o caráter necessário da contradição entre objeto e conceito, a insistência do conceito em particularizar os objetos e a resistência destes à determinação fazem com que a representação seja conduzida aos seus limites. Ora, no contexto da dialética negativa, o objeto se estabelece enquanto ente negativo – negatividade que se reserva à tarefa de constituir seu sentido filosófico, enquanto algo passível de ser pensado como a apresentação (Darstellung)[2] conceitual do verdadeiro, isto é, da verdade da não identidade no seio do conhecimento conceitual, para além de seu caráter meramente particularizado, ou seja, dissociado de seu contexto relacional, no que concerne à teia de significados à qual o objeto necessariamente pertence, tal como observara Walter Benjamin (1892-1940).
No sentido proposto, se se toma a concepção de negatividade como a verdade da dialética, a consequência imediata deve ser também[3] o reconhecimento da dívida de Adorno para com Walter Benjamin, haja vista que, para este, na apresentação conceitual da ideia “[...] o singular é subsumido no conceito e permanece o que era – singularidade.” (BENJAMIN, 2011, p. 35). Acrescenta Benjamin (2011, p. 23): “O universal é a ideia.” Para o supracitado filósofo, a universalidade da ideia salvaguarda o fenômeno em sua particularidade e em sua alteridade radical em relação a ela; a salvação do fenômeno na ideia implica, por sua vez, a apresentação e a salvação da própria ideia. Se Adorno (cf. 2009, p. 260) afirma que a consciência é dependente da particularidade, isto é, a ideia depende do fenômeno, então, em termos conceituais, o universal depende do particular, isto é, o conceito depende do objeto. Seguindo essa linha, Benjamim (cf. 2011, p. 17) valoriza o que ele chama de “fragmentos do pensamento”, considerando-os mais decisivos que a “concepção de fundo”, aspectos os quais, em Benjamin, são análogos às noções de fenômeno e ideia, fator que possibilita ao filósofo concluir: “As ideias se relacionam com as coisas assim como as constelações se relacionam com as estrelas.” (BENJAMIN, 2011, p. 35).
No “Prólogo epistemológico-crítico” de sua obra Origem do drama trágico alemão (Trauerspiel), de 1925, Benjamin busca definir os caminhos para enfrentar os problemas do drama trágico alemão como gênero literário marginalizado na literatura germânica, graças à sua qualidade duvidosa, bem como para “[...] reformular a relação entre a singularidade das obras particulares e a universalidade do gênero, de modo que não perdesse a especificidade das obras particulares.” (GATTI, 2009, p. 83). Benjamin reivindica a especificidade e a singularidade das obras de arte particulares tradicionalmente aviltadas pela universalidade do gênero literário, seguindo-se a afirmação do filósofo, que argumenta: “Uma obra importante, ou funda um gênero ou se destaca dele, e nas mais perfeitas encontram-se as duas coisas.” (BENJAMIN, 2011, p. 33). Além de se contrapor às concepções de crítica que diluem as obras no gênero, ao acentuar suas semelhanças e omitir suas diferenças, Benjamin advoga um modelo de obra de arte e de crítica à obra de arte que resiste à dissolução da obra particular na arte em sentido absoluto.
Benjamin equipara a noção de gênero literário com a concepção de ideia, concebendo-a, em princípio, no sentido platônico, uma vez que compreende a ideia como algo real e independente em relação à obra; todavia, Benjamin rompe com Platão, ao admitir que a ideia não invalida a especificidade da obra enquanto representação singular da verdade do belo, haja vista que o sustentáculo entre a obra particular e o gênero (universal) é a relação codependente entre a ideia – entendida como gênero – e o fenômeno – compreendido enquanto obra de arte específica. Ademais, “[...] Benjamin não aceita a hierarquização ontológica entre o mundo das ideias, como domínio da verdade, e o mundo dos fenômenos como âmbito da ilusão, do engano e da opinião” (GATTI, 2009, p. 94); pois, para ele, a beleza (das obras particulares) não é mero brilho ou simples aparência, mas a própria exposição da verdade (cf. GATTI, 2009, p. 94).
O fato é que Benjamin se refere às constelações, apresentando uma inversão da “teoria das ideias” de Platão, pois, na representação da verdade, os particulares mediados conceitualmente reemergem nas ideias como fenômeno, ou seja, se transformam em ideias, na medida em que organizam conceitualmente seus elementos. Na teoria benjaminiana, as ideias são, simultaneamente, fenômenos empíricos e constelações; mas, se as ideias platônicas são formas transcendentais absolutas que aparecem nos objetos empíricos como um reflexo ou eco longínquo da verdade eterna, em Benjamin, a forma absoluta é construída a partir dos fragmentos dos elementos empíricos. Por isso, para Platão, as ideias aparecem como verdade no fenômeno e, em Benjamin, o fenômeno aparece como verdade nas ideias, o que mantém a dignidade do particular. Nesse sentido, a redenção do fenômeno e a apresentação das ideias ocorrem ao mesmo tempo.
Em Benjamin, os elementos fenomênicos são tratados como absolutos, contudo, o filósofo considera as ideias (isto é, a verdade) como específicas e mutáveis; por conseguinte, essas ideias não são eternas, mas constelações pontuais. É nessa perspectiva que o autor do Trauerspiel inverte a concepção platônica do “mundo das ideias”. Em outras palavras, Benjamin vale-se da realidade empírica, no intuito de edificar sua teoria, fundindo o empírico e o inteligível. Para ilustrar sua intenção, o filosofo estatui: “As ideias se relacionam com as coisas como as constelações com as estrelas.” (BENJAMIN, 2011, p. 22). As constelações tornam-se, sob esse viés, uma imagem central esboçada por Benjamin que, como método, busca perceber algo mais do que o objeto é; porém, a partir do próprio objeto.
Portanto, a análise crítica do drama trágico se propõe apresentar a ideia, mas salvaguardando a especificidade das obras de arte como fenômenos particulares. Nessa perspectiva, as ideias são a disposição virtual e a interpretação objetiva dos fenômenos; entretanto, se as ideias não contêm em si os fenômenos, ela os alcança por meio da sua representação. Enfatiza Walter Benjamin (2011, p. 37): “A ideia é uma mônada – isso significa, em suma, que cada ideia contém a imagem do mundo. A tarefa imposta à sua representação é nada mais nada menos que o esboço dessa imagem abreviada do mundo.” Todavia, a ideia é a instância de reordenação do fenômeno, por isso, não se constitui como uma realidade alheia em relação a ele. A ideia se expõe na representação dos fenômenos particulares, e esses, por sua vez, salvaguardam a ideia; nisso consiste o duplo trabalho do conceito que redime os fenômenos da imediatidade, fazendo deles os agentes da exposição da ideia nos fenômenos e da salvação destes (na ideia).
Considerando que as ideias não se representam por si mesmas, elas se utilizam dos conceitos como um agente por meio do qual e no âmbito do qual os elementos coisais são organizados e configurados. Como se sabe, o trabalho do conceito (Begriff) consiste em agrupar os fenômenos e a fragmentação que neles se opera no sentido de realizar uma façanha ambivalente, a saber, salvar os fenômenos e apresentar as ideias (cf. BENJAMIN, 2011, p. 23). Para Benjamin, não há uma analogia entre o fenômeno singular e a ideia, embora haja uma relação; por essa razão, a ideia constitui um domínio diverso do mundo fenomênico e empírico, haja vista que o empírico será tanto mais acuradamente apreendido, quanto mais for visto como algo extremo; ora, é a partir da relação da oposição extrema entre os fenômenos e as ideias que os conceitos operam, na condição de mediadores, no sentido de estabelecer o nexo entre o empírico e o inteligível, compreendidos como aspectos extremos da realidade. Ora, aquilo que o nome, na condição de conceito, não consegue transmitir, é absorvido, transformando-se, desse modo, em elemento delimitado e salvo no interior da ideia, e, por isso, constitutivo da ideia, entendida como o lugar de acolhida dos extremos. Seguindo Benjamin (2011, p. 23), “[...] as ideias só ganham vida quando os extremos se reúnem à sua volta.”
Em Benjamin, portanto, o esforço da filosofia consiste na descrição expositiva das ideias, no intuito de apreender a sua verdade, nas distintas exposições particulares dessas ideias nos fenômenos. Sob esse viés, a verdade é o resultado ou produto do processo da exposição conceitualmente mediada entre ideia e fenômeno. Assim como “[...] o singular é subsumido no conceito e permanece o que era – singularidade” (BENJAMIN, 2011, p. 35), os fenômenos – enquanto descrições conceituais – e as ideias subsistem sob os auspícios de uma relação de codependência – também mediada pelo conceito – que assegura a coexistência de ambos. Com vistas à salvação do singular, Benjamin volta a atenção para os elementos fugidios à mediação conceitual, os quais são reorganizados pela ideia, pois, como se sabe, a ideia não absorve o semelhante, uma vez que nela “[...] o singular, o fenômeno extremo, não é incorporado à média do conceito.” (GATTI, 2009, p. 107). Tanto no conceito quanto na ideia, o singular e o fenômeno, respectivamente, não são subsumidos no geral, mas salvos enquanto singularidade.
Ao sobressaltar a singularidade e os fenômenos como exposição da ideia, Benjamim apresenta a ideia como uma constelação dos fenômenos singulares, na medida em que a compara com um mosaico que “[...] não perde sua majestade pelo fato de ser caprichosamente fragmentado.” (BENJAMIN, 2011, p. 17). É precisamente o caráter fragmentado dos objetos que possibilita sua acolhida e sua salvação, no universal da ideia; contudo, a apreensão da ideia depende de uma aproximação micrológica dos elementos singulares. No encalço de Benjamin (2011, p. 17):
O valor dos fragmentos de pensamento é tanto mais decisivo quanto menos imediata é a sua relação com a concepção de fundo, e desse valor depende o fulgor da representação, na mesma medida em que o mosaico depende da qualidade da pasta de vidro. A relação entre a elaboração micrológica e a escala do todo, de um ponto de vista plástico e mental, demonstra que o conteúdo de verdade (Wahrheitsgehalt) se deixa apreender apenas através da mais exata descida ao nível dos pormenores de um conteúdo material (Sachgehalt).
A relação entre ideia e fenômeno como representação de uma totalidade antagônica, porém, complementar, que lança luz sobre o singular, o fragmentado e o particular, está circunscrita à categoria de constelação, o que, como se verá, aparecerá na recategorização adorniana de constelação, pois, em Adorno (cf. 2009, p. 140), a constelação tende a iluminar aquilo que há de mais específico no objeto. Em verdade, a constelação enfatiza o singular nos objetos particularizados por meio da mediação conceitual. Consoante Adorno (2009, p. 141), “[s]ó os fragmentos enquanto forma da filosofia seriam capazes de entregar às mônadas projetadas de maneira ilusória pelo idealismo o que lhes é devido. Elas seriam representações no particular da totalidade irrepresentável enquanto tal.” Adorno procura traduzir a teoria de Benjamin, em princípio de teor místico, em uma teoria materialista dialética, uma vez que Adorno “[...] articula uma ‘ideia’ no sentido benjaminiano de construir uma constelação específica e concreta a partir dos elementos do fenômeno, de maneira que a realidade sócio histórica que constitui sua verdade se torne fisicamente visível em seu interior.” (BUCK-MORSS, 1981, p. 203). Por conseguinte, a Adorno interessa a representação da ideia na realidade material concreta, de forma que a essência (Wesen) social se erija da aparência (Schein) dos fenômenos; tudo isso, revelado no confronto do conceito com a coisa, fricção geradora dos modelos constelatórios.
2 AS CONSTELAÇÕES EM ADORNO [OU: AS ESTRELAS DECLINAM DO CÉU]
A concepção benjaminiana de constelação incide sobre o pensamento adorniano como um legado que insiste em afirmar que, na especulação filosófica, é mais importante imergir no fenômeno particular do que elaborar estruturas universais. Ora, em Adorno (cf. 2009, p. 16-17), o trabalho do conceito e, por conseguinte, da própria filosofia, está em ultrapassar o conceito, aproximando-se do não conceitual, mas por meio do conceito; pois a verdade alcançada pelo conceito seria chegar àquilo que o conceito reprime em seu interior; consequentemente, “[a] utopia do conhecimento seria abrir o não-conceitual com conceitos, sem equipará-los a esses conceitos.” (ADORNO, 2009, p. 17). Tal abertura está inexoravelmente associada ao fato de o conceito permitir àquilo que lhe escapa ser representado em um arranjo constelatório, porque, enquanto arranjo conceitual,
[a]s constelações só representam de fora aquilo que o conceito amputou no interior, o mais que ele quer ser tanto quanto ele não o pode ser. Na medida que os conceitos se reúnem em torno da coisa a ser conhecida, eles determinam potencialmente seu interior, alcançam por meio do pensamento aquilo que o pensamento necessariamente extirpa de si. (ADORNO, 2009, p. 141).
No pensamento de Adorno, uma vez que os conceitos não são progressivamente encadeados, de forma que, por meio de etapas alcancem o universal, eles se configuram em constelação, com a finalidade de iluminar o que há de específico no objeto, em sua singularidade. Para o filósofo, perceber o objeto em sua constelação implica conhecer o processo que ele historicamente acumulara, significa decifrar o que a coisa traz em si enquanto história sedimentada, não como algo estático e dado, mas enquanto algo que veio a ser. As constelações propõem abandonar as estruturas de pensamento herdadas do idealismo, ao apontar para uma experiência filosófica inteiramente outra, visto que busca em suas configurações reconhecer os processos materiais sedimentados nos objetos particulares que compõem os arranjos conceituais. Adorno (2009, p. 53) se vale da concepção benjaminiana de constelação, mas acrescenta que, na medida em que os conceitos fracassam na apreensão integral dos objetos, emerge daí a necessidade de que se evoquem outros conceitos, os quais gravitam em torno do conceituado na tentativa de apreender sua verdade imediata, como uma necessidade de exterioridade da particularidade negativa enquanto força motora que impulsiona o pensamento dialético. Logo, ao sustentar que as constelações são a representação dos detritos dos objetos que o conceito rejeitara, Adorno reconhece o legado de Hegel, sobretudo aquele que diz respeito à necessidade do conceito de exteriorizar o não idêntico, porém, advoga que essa exteriorização não deve fazer concessões aos momentos repressivos de uma suposta identidade positiva, afirmativa e universal.
A categoria de constelação, no pensamento de Adorno, remete igualmente à sua apropriação crítica da dialética hegeliana, mas que, embora adote o sistema de posições do filósofo idealista, muda a sua direção, ao criticar seu modelo sistemático; por conseguinte, negar a concepção de sistema, preservando, contudo, a noção de impulso sistemático, é o pressuposto que permite a circunscrição daquilo que é rejeitado e do que é acolhido do pensamento de Hegel, na dialética de Adorno. A acepção de uma totalidade em cujo interior se articula a reconciliação entre o não idêntico e a identidade é rechaçada, todavia, a negação enquanto móbile do pensamento é a parte do latifúndio hegeliano que Adorno reivindica, quinhão que lhe cabe e lhe convém. Se, para Hegel (2011, p. 69), a razão de existência da ciência reside no automovimento do conceito, em Adorno, as constelações constituem um procedimento realizado pelo conceito, entretanto, não se configuram somente enquanto um processo conceitual, mas também linguístico e expressivo, contraposto aos momentos repressivos das formas coercitivas das classificações e definições conceituais teleológicas ulteriores, como pretendia Hegel. As constelações se configuram por meio da insistência contumaz do pensamento conceitual que se dirige ao objeto, perfazendo ao seu redor uma circunlocução, a qual representa cada um dos momentos do conceito, dentro do contexto de sua significação.
Adorno entende que Hegel, na construção de seu sistema, expressa confiança excessiva na totalidade e permite, dessa maneira, que escape a autoconsciência crítica da dialética; por esse motivo, a crítica adorniana ao sistema hegeliano, a qual possibilita ao filósofo frankfurtiano justapor a concepção de constelação como antípoda e instância de superação à categoria de totalidade, frisa o seguinte:
Constelação não é sistema. Tudo não se resolve, tudo não se torna compreensível nela, mas um momento lança luz sobre o outro e as figuras que os momentos particulares formam são um signo determinado e um escrito legível. Isto não se encontra articulado em Hegel. (ADORNO, 2013, p. 199).
As constelações ilustram a maneira pela qual a totalidade se expressa no pensamento do filósofo frankfurtiano, não como uma construção sistemática, apresentação universal ou telos que se arvora a partir da superação dos momentos particulares, entretanto, como um arranjo que se constitui enfatizando a produção de significados cristalizados nos momentos de não identidade no âmbito das relações entre o todo e suas partes. Isso leva Jameson (1997, p. 76) a constatar que a constelação é um sistema total, mas “momentâneo e provisório”. Nas constelações, o todo se revela nos momentos conceituais que se expressam como particularidades, no sentido de evidenciar a efetividade do conceito particular dentro de uma trama de significados, mostrando, igualmente, o condicionamento histórico do conceito e o núcleo temporal da verdade enquanto devir, haja vista que, na qualidade de recurso epistemológico de coordenação e exposição do conceito, as constelações submetem os objetos conceituados a um processo cambiante e variável, do qual emergem as múltiplas perspectivas sob as quais o objeto é apresentado como uma totalidade, mas que reconfigura a noção hegeliana de síntese, ao negar a identidade dos momentos contraditórios e apresentar-se como cifra da determinação da diferença.
Para melhor compreensão da categoria de constelação, a qual apresenta a totalidade, porém, agrupando os conceitos que gravitam em torno do objeto, reconfigurando seus significados em uma disposição em que a diferenciação das partes (ou perspectivas conceituais), é condição fundamental para a apreensão do todo, Adorno (2009, p. 141) vale-se de uma metáfora muito bem-sucedida:
Enquanto constelação, o pensamento teórico circunscreve o conceito que ele gostaria de abrir, esperando que ele salte, mais ou menos como os cadeados de cofres-fortes bem guardados: não apenas por meio de uma única chave ou de um único número, mas de uma combinação numérica.
As constelações evidenciam as relações de interdependência dos conceitos para com os objetos, bem como desses conceitos em relação à trama de significados dentro da qual estão compreendidos. O fato é que, na medida em que os conceitos não dão conta de apreender os objetos, novos conceitos são evocados, na tentativa de, pelo menos, apresentar uma descrição desejável com respeito ao objeto; essa descrição se inscreve na trama conceitual como um momento de verdade do objeto que visa a mostrar uma de suas facetas, no interior de uma totalidade fragmentada, porém, agrupada pela força da contradição da identidade e da não identidade na relação objeto e conceito, e, por isso, sob os auspícios de uma totalidade antagônica.
Com efeito, a constelação é uma imagem histórica, configurada sob o signo dos múltiplos momentos de significação conceitual, os quais se articulam em torno do objeto, na tentativa de expressá-lo, dentro de um contexto ou conjunto de significações. Essas significações conceituais particulares emergem, quando o conceito não consegue apreender o objeto, em sua totalidade, mas apenas parcial e unilateralmente, e, por essa razão, evocam outros conceitos, no intuito de abordar sob outro viés e extrair novos significados conceituais, os quais se articulam em torno do objeto, apresentando a unidade da diferença sob a imagem da constelação. Esses significados surgem como variações conceituais que, à proporção que cada uma dessas variações é disposta, o conjunto das variações forma uma “estrutura de explicação mútua”, que somente se configura quando uma variação for capaz de explicar as outras.
Pelas razões expostas, a categoria de constelação reforça tanto a identidade quanto as diferenças entre o particular e o universal, em suas mediações na dinâmica das interações, mas, na medida em que se compreende as constelações como cifra da unidade da não identidade e da diferença, torna-se possível preservar os elementos não idênticos e diferenciados, quer no particular, quer no universal, o que permite deduzir um modelo dialético em que o não idêntico permanece irredutível à experiência mediada da identidade, entendida enquanto identidade estática e universal; e é precisamente a permanência ou a persistência do elemento não idêntico, contraditório ou negativo, que circunscreverá a dialética negativa como modelo de pensamento no contexto da teoria crítica adorniana.
As constelações se formam a partir da tentativa incontinente do conceito de apreender, na sua porfia com o objeto, aquilo que neste lhe escapa. Cada uma das tentativas empreendidas e realizadas pelo conceito de captar os conteúdos sedimentados no objeto vão se agrupando em perspectiva, ao redor do conceituado, em busca de evidenciar os múltiplos significados de suas expressões, as quais se configuram enquanto momentos da representação dos conteúdos de verdade do objeto, apreendidas parcialmente a cada investida conceitual sobre o objeto, seguindo – não a necessidade do conceito – mas a exigência do objeto de ser nomeado. Esse circunlóquio se constitui como um campo de força conceitual, constelado em torno do objeto, o qual delimita o caráter polissêmico tanto dos conceitos quanto do conceituado no contexto de uma interação dinâmica bilateralmente mediada. Embora não seja a salvação do conhecimento, que em registro adorniano permanece utópico, graças à negatividade do objeto, a constelação – concebida como linguagem e expressão conceitual – é o que faz com que o objeto particular seja apresentado e se articule no âmbito de uma trama conceitual horizontal, superando, de um modo específico, sua existência particularizada, que se mostra na mera identidade das coisas consigo mesmas.
Ora, o reconhecimento da não identidade das coisas consigo mesmas é mais um dos méritos de Hegel a compor os alicerces que fundamentam a construção da concepção adorniana de constelação. Se, por um lado, Adorno admite a possibilidade de os conceitos levarem as coisas a transcenderem a si mesmas, em suas determinações, por outro lado, o filósofo aponta para os limites da suposta autossuficiência do conceito de equacionar o real e o racional, como se o conceito fosse um dispositivo linear que posiciona o conceituado, de maneira hierárquica, em uma disposição conceitual sucessiva, cuja dinâmica evolutiva deve ser conduzida em direção a um telos.
Adorno compreende que, na medida em que as coisas não se identificam consigo mesmas, elas tendem a ir além de si mesmas, no sentido de atender ao impulso de expressar a totalidade latente, propulsionada pela singularidade no interior dos objetos particulares. Nas constelações, o que uma vez se denominou totalidade latente se assenta na pluralidade dos diferentes significados, dispostos em perspectiva ao redor do objeto, no entanto, que se alteram, na medida em que se desloca o ponto de vista desde onde o observador busca apreendê-lo; ou seja, como o objeto não pode ser capturado em sua totalidade, as constelações consistem em um conjunto de apresentações que se aproximam do conceituado. O movimento concêntrico do conceito em derredor da coisa, o qual se constitui como uma trama entretecida pela atividade conflitiva entre significante e significado, se expressa em relações dinâmicas de interdependência das partes, as quais apresentam o todo em configurações e perspectivas diversificadas, todavia, insubordinadas ao todo, tal como descreve a figura de linguagem da parataxe.[4]
3 PARATAXE [OU: POR UMA GRAMÁTICA DO NÃO IDÊNTICO]
A rigor, a parataxe é a disposição de frases de um determinado enunciado, justapostas sem conjunção coordenativa ou subordinativa entre elas. Sob esse viés, a parataxe, assim como a constelação, não permite que as determinações conceituais particulares se edifiquem como elos formadores de uma cadeia lógica, porém, ilumina a variabilidade e as diferenças, por meio das quais o todo se revela. No polo diametralmente oposto à parataxe está a hipotaxe, na qual prevalecem as orações sintaticamente subordinadas; por conseguinte, na parataxe, predominam as orações coordenadas, em detrimento das subordinadas. Em virtude da insubmissão subordinativa das partes ao todo, no interior das estruturas sintáticas, mas da justaposição coordenada das partes em relação ao todo, a parataxe configura-se ou pode ser vista como uma totalidade, entretanto, trata-se, definitivamente, de uma totalidade fragmentada, tal como se afigura a constelação.
Em um dos textos de Adorno que compõem as Notas de literatura, intitulado “Parataxis: Sobre a lírica tardia de Hölderlin”, além de expor a diatribe à interpretação de Martin Heidegger (1889-1976) aos escritos do poeta, o filósofo frankfurtiano busca, entre outros afazeres, explicitar alguns momentos de ocorrência de usos paratáticos na literatura de Hölderlin. Adorno (cf. 1991, p. 100) atesta que, embora Hölderlin não abra mão das hipotaxes mais audaciosas, suas construções se apresentam como parataxes, visto que se esquivam de disposições hierárquicas, no âmbito da lógica subordinativa da sintaxe. No sentido proposto, Adorno reconhece a habilidade de Hölderlin em modificar a configuração sintética da unidade, ao fazer refletir nela o múltiplo, indicando, destarte, seu caráter inconcluso enquanto unidade.
Ora, o caráter de construção inacabada nos grandes hinos de Hölderlin faz-se sentir, segundo Adorno, no caráter fragmentário e descontínuo; assim, ao relacionar figuras antigas e modernas, ao fundir épocas e ligar aspectos afastados e isolados, o procedimento paratático encontra seus correspondentes na lírica de Hölderlin (cf. ADORNO, 1991, p. 108). De acordo com o filósofo, na poesia de Hölderlin, a parataxe não deve ser estritamente entendida enquanto figura micrológica de “transição alinhadora”, mas como tendência que abrange estruturas maiores, tal como sucede na música, pois “Hölderlin conhece formas que em um sentido mais amplo podem ser chamadas globalmente de paratáticas. A mais conhecida entre elas é Metade da vida (Hälfte des Lebens).”[5] (ADORNO, 1991, p. 102).
Aludindo ainda à poesia hölderliniana, entretanto, dispondo sua diferença em relação à música, Adorno (1991, p. 99) assegura que “[...] na poesia a síntese não conceitual se volta contra o medium: transforma-se para a dissociação constitutiva. A lógica tradicional da síntese, por isso, é apenas brandamente suspensa em Hölderlin.” Se a imagem originária da poesia é síntese não conceitual, e o que Adorno chama “grande música” é, igualmente, síntese não conceitual, a ideia que Hölderlin tem do canto, como natureza solta e efusiva, livre do poder do domínio da natureza, vale rigorosamente para a música, porque é também graças a essas características que a música está capacitada a transcender a si mesma.
Nessa perspectiva, música e poesia resistem às formas de linguagem diretamente comunicável, isto é, a linguagem falada e imediata dos usos cotidianos. Muito embora Adorno (1991, p. 99) considere que a linguagem, “[...] devido ao seu elemento significativo – contrapólo do elemento mimético-expressivo – acha-se vinculada à figura da sentença e da frase e com isso à função sintática do conceito”, o filósofo admite: “Sem a unidade, na linguagem nada existiria senão natureza difusa; o reflexo sobre isso era a unidade absoluta.” Diante disso, “[...] em Hölderlin se delineia o que seria apropriadamente cultura: natura assimilada.” (ADORNO, 1991, p. 106). Entretanto, Hölderlin nega a tese, porém, sustenta a tensão entre natureza e espírito como elementos vitais em sua obra, todavia, ambos são, para o poeta, suspeitos enquanto princípios que exigem conclusão (cf. ADORNO, 1991, p. 114). Ao se esquivar dos modos meramente comunicativos da linguagem e negar qualquer posição (tese) como forma de superação sintética de elementos díspares, Hölderlin faz justiça aos usos paratáticos, segundo Adorno.
Na esteira da interpretação adorniana, a poesia de Hölderlin salvaguarda os momentos miméticos e expressivos, uma vez que reconfigura a ordem hierárquica da lógica subordinativa da sintaxe, contrariando os usos normativos da linguagem comunicativa, o que faculta extrair de sua apreciação modos expressivos de parataxe. Consoante Adorno (1991, p. 108), a linguagem de Hölderlin aproxima-se da loucura em virtude do “conjunto de atentados” que ela comete contra a linguagem falada. O filósofo frankfurtiano busca evidenciar os usos paratáticos em Hölderlin, também no intuito de demonstrar que o escopo da parataxe ganha maior amplitude em usos fora do contexto exclusivamente gramatical, podendo ser redimensionado, no âmbito da obra de arte.
Na poesia de Hölderlin, os usos paratáticos tendem a abalar a unidade simbólica da obra de arte, aludindo, dessa forma, à falsa conciliação entre o particular e o universal (cf. ADORNO, 1991, p. 96). Ao resistir às formas reconciliadas das justaposições subordinadas, próprias da linguagem meramente comunicativa, Hölderlin, por meio dos usos paratáticos, salvaguarda o momento de não identidade em sua lírica e, por essa razão, ganha espaço na elegia adorniana, não apenas pela qualidade estética da sua poética, entretanto, sobretudo, por dar voz e expressão aos elementos não idênticos, libertando-os dos momentos formais reprimidos sob a tutela da linguagem prosaica.
4 A FORMA ENSAIO: A CONSTELAÇÃO PARATÁTICA DO NÃO IDÊNTICO NA ESCRITURA FILOSÓFICA
Se, da perspectiva gramatical, a parataxe designa somente estruturas gramaticais e padece no exílio das circunscrições sintáticas, sob o viés da produção poética e filosófica, essa figura de linguagem recebe o aceno de boas-vindas em Hölderlin, bem como conquista ampla anistia em um modo de fazer filosofia muito apreciado por Adorno. A parataxe encontra sua pátria no ensaio, cuja forma descreve, de antemão, o modo ou o gênero por meio do qual Adorno apresenta seu pensamento. À diferença da exposição sistematizada da lógica discursiva, o filósofo frankfurtiano reitera que o ensaio não subordina, mas coordena seus elementos constitutivos, mantendo a tensão entre a exposição e o exposto (cf. ADORNO, 2003a, p. 43-4). O ensaio, no sentido em que propõe Adorno, busca evidenciar o procedimento paratático e constelatório que se articula em torno do objeto investigado, na insistente tentativa de apresentá-lo conceitualmente sob suas múltiplas facetas:
Assim, o próprio método do ensaio expressa sua intenção utópica. Todos os seus conceitos devem ser expostos de modo a carregar os outros, cada conceito deve ser articulado por suas configurações com os demais. No ensaio, os elementos diretamente separados entre si são reunidos em um todo legível; ele não constrói nenhum andaime ou estrutura. Mas, enquanto configuração, os elementos se cristalizam por seu movimento. Essa configuração é um campo de forças, assim como cada formação do espírito, sob o olhar do ensaio, deve se transformar em um campo de forças. (ADORNO, 2003a, p. 31).
O ensaio, enquanto forma de escritura filosófica, se configura como a expressão descritiva e externa que se refere e alude à lógica interna da relação entre o objeto e o nome, o conceituado e o conceito, o particular e o universal, no seio de constelações cambiáveis. Em outras palavras, o ensaio tende a iluminar o teor de verdade resultante da fricção entre os objetos e os conceitos e da colisão destes entre si, construindo significados a partir do movimento dos conceitos, dentro de um campo semântico parataticamente ordenado. No torvelinho de interações mediadas, os momentos de não identidade impulsionam os conceitos que, quando conceituam e se alteram dinamicamente, compelem igualmente a coisa conceituada à alteração.
No entanto, se, nas concepções da relação dialética entre o particular e o universal, a mediação é a categoria que assegura o estatuto lógico e ontológico do objetivo e do subjetivo, bem como o caráter necessário de ambos, na dialética entre o conceituado e o conceito, as constelações salvaguardam o fragmentado, o parcial, o contingente, o descontínuo e o transitório, frente à totalidade. Nessa perspectiva, as constelações, assim como a forma “ensaio”, frustram a ilusão do pensamento filosófico de se apropriar da totalidade do real; não obstante, produzem e apresentam uma totalidade fragmentada ou antagônica, a qual precede – sem, no entanto, antecipar – o momento de reconciliação universal, haja vista que se detém e lança luz sobre os momentos constelatórios do particular, isto é, do não idêntico, dentro de um campo de forças.
No discurso inaugural de 1931, publicado no ano seguinte, no texto Die Aktualität der Philosophie, ao alegar que a tarefa da filosofia seria construir “constelações mutáveis”, Adorno depura o termo de conotações astrológicas, mas se apropria da concepção benjaminiana de constelações, como foi visto, entretanto, compreendendo-as enquanto “similitude representacional”, ou seja, “imagens históricas” (geschtliche Bilder), as quais, assim como as ideias em Benjamin, são representações que não subsistem por si mesmas e tampouco são encontradas organicamente prontas na história, mas devem ser produzidas pelo homem, pois são instrumentos da razão humana e, como tal, requerem a atividade subjetiva para serem descobertas (cf. ADORNO, 2003b, p.341), pois as constelações unem o perceptual e o conceitual, traduzindo os conceitos às formas visíveis.
O processo dialético de construção das constelações se efetiva em dois momentos, a saber: o analítico-conceitual e o representacional. O primeiro divide o fenômeno e separa seus elementos, mediatizando-os conceitualmente, enquanto o segundo unifica os elementos de tal forma que a realidade social se torne visível dentro das representações. Por sua vez, as representações são imagens que iluminam as contradições, antes de negá-las ou superá-las, em um processo que consiste em um modo de representação mimética e não em síntese. As imagens históricas são réplicas autênticas, as quais, como as traduções, são transformações miméticas que nomeiam aquilo que o conceito não alcança. No entanto, essas imagens não são símbolos dos conceitos e tampouco analogias da totalidade social, mas a manifestação real, material, de ambos; ou seja, as imagens são as evidências perceptíveis da relação mediatizada entre o particular conceitual e a própria estrutura social.
O ensaio seria, por conseguinte, um modo beneficiado de se produzir filosofia, que, além de não ostentar a tendência sistemática do pensamento identitário, traria à tona essas imagens históricas e devenientes, fruto da atividade conceitual, cuja capacidade de dialetizar seus elementos constitutivos nega tanto as possíveis formas de causalidades impulsionadas por supostos princípios primeiros quanto uma suposta finalidade escatológica ou telos. O ensaio justapõe, de forma constelatória e paratática, seus aspectos e elementos constitutivos, visando lançar luz sobre a verdade da não identidade emergente de toda forma de pretensão identitária e sistemática.
A insuficiência do pensamento tradicional e sua pretensão à totalidade impulsionam a consciência, impelindo-a a impor unidade ao diferenciado (particular) – representado pelo divergente, pelo dissonante, pelo negativo. Considerando a experiência do pensamento como uma estrutura de reciprocidade e transformação mediada, a dialética de Adorno apresenta-se como condição e possibilidade dessa experiência. Enquanto ensaio e constelação, a dialética negativa pretende capturar a estrutura que torna o particular inteligível, em oposição à crença de Hegel, segundo a qual somente o universal seria inteligível.[6] Ora, se a constelação é a trama conceitual que circunscreve e desvela os estratos históricos sedimentados no objeto, o ensaio permite que o objeto – enquanto constelação histórica – seja exposto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dado o caráter circunspecto do artigo proposto, graças à insistência em abordar o pensamento da não identidade, é possível crer, não obstante, que a categoria de constelação, a figura da parataxe e a forma ensaio são modos privilegiados da apresentação e representação do pensamento da não identidade, no interior da dialética adorniana, uma vez que essas categorias tendem a iluminar o não idêntico, com vistas à crítica do caráter normativo do pensamento da identidade, seja dentro dos sistemas filosóficos, seja na seara da linguagem ordinária e comunicativa, seja ainda na própria escritura do discurso filosófico. Nesse ínterim, a constelação, a parataxe e o ensaio protagonizaram – no pensamento de Adorno – uma pequena parte de um problema que se estende ao longo da história da filosofia, no sentido de investigar as condições de possibilidade de reconciliação entre o conceito e o objeto, as partes e o todo, e a maneira pela qual a produção conceitual lida com essa dialética.
Se, por um lado, o texto se limitara ao problema proposto, basicamente dando mais voz a um autor, buscando um cuidado para com o recorte e a perspectiva da abordagem, por outro lado, essa atitude reduzira a amplitude do problema que, como se sabe, tem escopo muito mais abrangente, na medida em que poderiam ser evocados outros autores, momentos da história da filosofia, problemas, categorias e conceitos adjacentes. Todavia, foi possível cumprir o propósito de semear alguns caminhos alternativos de interpretação do problema da identidade, ao apontar alguns limites do pensamento sistemático, expondo posições, pressuposições e alguns interlocutores de Adorno, acreditando que esses aspectos e autores sejam os mais importantes dentro do recorte proposto e apresentado.
Portanto, procurou-se compreender que o pensamento da não identidade, embora tenha suas raízes no idealismo alemão, sobremaneira no pensamento de Hegel, vale-se em grande parte do pensamento de Benjamin, nos usos e atributos da categoria de constelação como ferramenta de condução da não identidade; esse modelo de pensamento é reconfigurado na filosofia tardia de Theodor Adorno e encontra seu lugar de redenção, tanto na categoria de constelação como na figura da parataxe e na forma ensaio, enquanto expressões de resistência ao pensamento sistemático e identitário.
CONSTELLATIONS, PARATAXES AND ESSAY: THE ARCANES OF NON-IDENTITY THOUGHT
Abstract: The objective of this work is to reconstruct the concepts of constellation, parataxis and essay, from the perspective of Theodor Adorno, in order to approach them by affinity, but demonstrating the way that each one expresses within its specificities the Adorno's insistence in a model of thought in which the non-identical: 1) resists conceptual subsumption by arranging itself in a constellatory configuration; 2) it does not succumb to subordinate juxtapositions typical of merely communicative language; and, 3) finds its best philosophical expression in the essay form. In order to do so, we will take as a starting point the adornian reconstruction of the constellation category as a legacy of Walter Benjamin's thought, so that later we can present the expansion of this category in Adorno's thought, relating it both to the conception of parataxis as in the conception of the essay form, but aiming to understand these categories as way of thinking philosophically aiming to elucidate the place of the non-identical in the scope of dialectical thinking of Theodor Adorno.
Keywords: Adorno. Benjamin. Constellation. Essay. Parataxis.
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Recebido: 17/04/2022
Aceito: 17/06/2022
[1] Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0993-8033. E-mail: fabiano.fil@hotmail.com.
[2] A concepção de Darstellung, aqui proposta como apresentação e não como representação (Vorstellung), no sentido enunciado por Walter Benjamin e que é – de um modo específico – seguida por Adorno, está em consonância com a posição de Gagnebin (Cf. 2006, p. 184). Há uma discussão bastante prolífica acerca do problema, a qual incide sobremaneira no que concerne à tradução em língua portuguesa dos termos em questão. No entanto, Gagnebin opta assertivamente pelo termo Darstellung, ao constatar que Benjamin se esquiva de uma suposta filosofia da representação (Vorstellung) mental dos objetos, preferindo, não obstante, dispor o pensamento conceitual como “exposição” ou “apresentação” da verdade, considerando o “valor retórico e heurístico da exposição” (GAGNEBIN, 2006, p. 185). Benjamin valoriza, nesse sentido, a dimensão contemplativa e especulativa do pensamento sobre a realidade como uma aproximação da verdade.
[3] Vale lembrar que a noção de subsunção das singularidades no conceito é herdada por Walter Benjamin do idealismo alemão, sobretudo da interpretação e objeção de Hegel ao sistema transcendental de Kant.
[4] O Dicionário de filologia e gramática, de Joaquim Mattoso Câmara Junior (1974, p. 127), define que a Parataxe ou Coordenação “[...] é a construção em que os termos se ordenam numa sequência e não ficam conjugados em um sintagma [...] cada termo vale por si e a sua soma dá a significação global em que as significações dos termos constituintes entram ordenadamente lado a lado.”
[5] Eis o poema citado: Mit gelben Birnen hänget/Und voll mit wilden Rosen/Das Land in den See,/Ihr holden Schwäne,/Und trunken von Küssen/Tunkt ihr das Haupt/Ins heilignüchterne Wasser. Weh mir, wo nehm’ ich, wenn/Es Winter ist, die Blumen, und wo/Den Sonnenschein,/Und Schatten der Erde?/Die Mauern stehn/Sprachlos und kalt, im Winde/Klirren die Fahnen. (HÖLDERLIN, 1970, n.p.).
[6] Desponta aqui um posicionamento um tanto obscuro e inexplicado da interpretação adorniana de Hegel, pois este compreende que o particular, embora seja uma determinação mediada do universal, goza de certa autonomia, prescrita na sua diferenciação qualitativa (enquanto “ser outro”) em relação ao universal. A diligência de Adorno na contemplação do particular hegeliano pode ser pensada como consequência de seu afã em contrapor as concepções hegelianas de totalidade e sistema às suas respectivas noções de constelação e ensaio, lançando luz muito mais no caráter contingente do particular de Hegel dentro do sistema, em detrimento de evidenciar o caráter necessário de sua determinação como “[...] centro de força latente que atua nos momentos singulares.” (ADORNO, 2013, p. 137).