CONTEXTUALISMO E RELATIVISMO NA ÉTICA1


Wilson Mendonça2


Resumo: De acordo com uma abordagem proeminente na semântica formal contemporânea, a verdade das asserções morais depende de uma perspectiva normativa sobre os fatos do mundo. A implementação dessa abordagem, conhecida como contextualismo indexical, trata a dependência da verdade moral vis-à-vis a perspectiva moral correspondente em analogia com a dependência contextual característica de sentenças contendo termos indexicais. Alternativamente, a perspectiva moral é vista como configurando as circunstâncias de avaliação nas quais o conteúdo expresso pela ocorrência de uma sentença moral é avaliado como verdadeiro ou falso. A versão moderada dessa visão alternativa (o contextualismo não indexical ou relativismo moderado) considera que a verdade da ocorrência de uma sentença moral em um contexto de uso é determinada pela avaliação do seu conteúdo na “circunstância do contexto”: a circunstância de avaliação representada pelo mesmo conjunto indexado que representa o contexto de uso. A versão radical (o relativismo de apreciação), por sua vez, faz a verdade da ocorrência de uma sentença moral em um contexto depender essencialmente do valor do padrão normativo em outro contexto, a partir do qual o enunciado original é apreciado. Tomando o juízo sobre o status moral do casamento poligâmico como ilustração, o presente trabalho examina os méritos concorrentes de explicações contextualistas e relativistas do uso da linguagem moral, especialmente em situações de desacordo e debate. O trabalho argumenta que, embora o contextualismo indexical acoplado a considerações pragmáticas adequadas possa explicar alguns dados relevantes do desacordo, a explicação alternativa desses dados, dada pelo contextualismo não indexical, é preferível, porque mais simples e mais econômica. Também é argumentado que o relativismo de apreciação está mais bem situado do que o contextualismo não indexical para explicar os fenômenos relevantes da retratação obrigatória, podendo, portanto, acomodar mais facilmente algumas possibilidades discursivas que desempenham um papel central em debates morais.

Palavras-chave: Verdade moral. Desacordo moral. Contextualismo indexical. Contextualismo não indexical. Relativismo de apreciação.


I


Boys are playing basketball around a telephone pole with a backboard bolted to it.” Esta é a linha de abertura do primeiro romance de John Updike, centrado no personagem Rabbit Angstrom. Como podemos compreender o que o narrador de Rabbit, Run, nos diz com sua primeira sentença? Qual é o significado desse uso particular da sentença Boys are playing basketball around a telephone pole with a backboard bolted to it? A teoria semântica bem estabelecida associa ao uso de uma sentença declarativa um conteúdo (um tipo de significado) que coincide com o objeto da asserção direta feita pelo uso em questão. A qualificação “direta” reflete o reconhecimento de que tipicamente, além da asserção direta, o proferimento de uma sentença declarativa realiza outros atos ilocucionários, por exemplo, outras asserções indiretas, as quais podem ser pragmaticamente mais importantes que a asserção direta. No sentido pré-teórico das noções de significado e do que é dito, o objeto da asserção direta pode ser menos relevante na caracterização do que é dito pelo uso assertivo de uma sentença e, portanto, na caracterização do significado associado ao uso dessa sentença. Portanto, o conteúdo a que se refere a teoria semântica é um construto teórico, uma versão empobrecida do que compreendemos intuitivamente como o significado.3 Isso salta aos olhos na tentativa de uma interpretação adequada da linha de abertura de Rabbit, Run. O que Updike nos comunica diretamente é a ocorrência de uma atividade envolvendo alguns garotos em uma quadra improvisada de basquetebol. Contudo, além de simplesmente marcar o tempo dessa ocorrência como coincidente com o tempo do proferimento de Boys are playing basketball around a telephone pole with a backboard bolted to it, o uso do verbo no tempo presente (não somente na primeira linha de Rabbit, Run, mas ao longo de todos os livros sobre Rabbit) pretende revelar ao leitor o “fluxo de consciência” de um adulto que se sente aprisionado em um ambiente vital frustrante, tanto pessoal quanto profissionalmente. O adulto Rabbit se vê confrontado com alguns garotos que se divertem, praticando, em condições precárias, uma atividade na qual ele, quando jovem, tinha tudo para se transformar em um participante bem-sucedido: um brilhante jogador de basquetebol. A visão da atividade espontânea dos garotos (designados a seguir como real boys) intensifica o sentimento que Updike tenta transmitir ao seu leitor: o sentimento de quem sabe que perdeu sua juventude e foi alienado da vida real. Evidentemente, essas nuances do que é dito pela sentença usada por Updike escapam à caracterização do conteúdo como ele é visto na teoria semântica.

Como o interesse principal do presente trabalho é mostrar o que a teoria semântica nos pode ensinar sobre o modo de funcionamento do vocabulário moral mobilizado em asserções exclusivamente diretas, consideremos inicialmente, para tornar as coisas muito mais simples, embora menos interessantes do ponto de vista da interpretação de obras literárias, uma modificação da sentença usada por Updike no início de Rabbit, Run. A ideia é discutir a semântica e a pragmática de uma sentença simples que poderia figurar em um relato não ficcional sobre acontecimentos mundanos, envolvendo um garoto de nome João: João está jogando basquetebol. Nessas condições, a sentença expressará uma verdade — e só isso nos interessa nos relatos não ficcionais —, se João estiver de fato jogando basquetebol no mesmo instante de tempo em que a sentença é proferida e no mesmo lugar onde está o autor do relato. Consideremos, ademais, que a sentença é elítica, que ela contém (implicitamente) a especificação do local exato onde a ação ocorre e o narrador está situado. Isso deixa, como única variável para a caracterização do conteúdo, o instante de tempo em que a sentença é proferida. Há pelo menos três construções linguísticas relevantes para nossos propósitos:


(1) João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022.

(2) João está jogando basquetebol agora.

(3) João está jogando basquetebol.


O uso pré-teórico do predicado é verdadeiro é tal que a asserção (no sentido do que é asserido, não no sentido do ato de asserir) feita pelo proferimento de (1) é verdadeira, se somente se João estiver jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022. Verdade nesse sentido (verdade simpliciter) é uma noção absoluta aplicável a proposições, isto é, a conteúdos expressos por sentenças declarativas. Verdade simpliciter é expressa na linguagem vernacular por um predicado monádico. No caso presente, o que é asserido pelo proferimento de (1) é que João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022. E a verdade simpliciter dessa proposição depende somente da circunstância se João está ou não jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022. Generalizando, o uso do predicado monádico de verdade é governado pelo


(4) Esquema da Equivalência:

A proposição que
é verdadeira sse4 .


A verdade simpliciter do conteúdo expresso por uma sentença declarativa qualquer impõe, por assim dizer, algumas condições ao mundo onde a sentença é proferida (o mundo atual). Um modo formal de codificar o fato de que a verdade de uma proposição depende de como as coisas são no mundo atual recorre a uma noção de verdade proposicional relativa a mundos possíveis. A ideia crucial é que (1), por exemplo, pode ser visto como particionando o universo das possibilidades entre as que são compatíveis, e as que são incompatíveis, com a verdade do conteúdo expresso por João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022.

Os mundos que são compatíveis com a verdade da proposição expressa por (1) no mundo atual, são aqueles que contêm, como um dos seus constituintes, o estado de coisas que João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022, isto é, os mundos onde João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022. Não é problemático descrever os mundos compatíveis como aqueles nos quais a proposição em questão é verdadeira, pois a noção de verdade em um mundo possível (ou verdade relativa a mundos possíveis), mobilizada nessa descrição, não precisa ser vista como distinta da noção de verdade simpliciter. Ao contrário, a noção de verdade relativa a mundos possíveis pode ser explicada em termos da verdade simpliciter.

Nesse ponto crucial, a semântica formal inverte a direção da explicação. A noção de verdade relativa a mundos possíveis desempenha, na semântica formal, o papel de um primitivo. Trata-se de uma noção técnica que funciona como um dispositivo para a caracterização sistemática do conteúdo e a explicação da noção de verdade simpliciter. A semântica formal almeja especificar, em primeiro lugar, a natureza formal da proposição designada, por exemplo, pela cláusula que João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022 e, em segundo lugar, as condições nas quais essa proposição é verdadeira simpliciter. Isso explica por que os semanticistas formais preferem especificar o conteúdo proposicional não em termos de verdade, pois isso poderia sugerir que a noção fundamental para a semântica formal é a da verdade simpliciter, mas em termos de uma função que mapeia mundos possíveis e sentenças declarativas ao conjunto . A função é concebida de tal forma que o conteúdo de um ato assertivo será verdadeiro (ou falso) simpliciter sse a teoria semântica atribuir a esse conteúdo o valor 1 (ou o valor 0) em uma situação privilegiada: a situação constituída pelo mundo atual. A cláusula bicondicional acima deixa claro que o uso da noção técnica, por parte do semanticista formal, é, por assim dizer, metodologicamente controlado pelos fatos sobre verdade simpliciter e conteúdo como codificados no Esquema da Equivalência. Portanto, qualquer incompatibilidade entre uma proposta semântico-formal e o Esquema da Equivalência constitui uma boa razão para sua rejeição.

As seções II, III e IV expõem o tratamento semântico formal das construções (1), (2) e (3) listadas acima.


II


A semântica formal de sentenças declarativas fará uso, no presente trabalho, do seguinte esquema notacional geral:


o conteúdo da expressão em um contexto de uso

o caráter de uma expressão

a extensão do conteúdo na circunstância de avaliação

a intensão do conteúdo

a extensão, na circunstância de avaliação , do conteúdo da expressão em um contexto de uso


é uma função que, para cada expressão sentencial ou subsentencial, mapeia contextos a conteúdos. Como o tratamento de termos demonstrativos, por exemplo, deixa claro, o conteúdo pode variar com o contexto pragmático de uso. Em alguns casos especiais, o conteúdo pode ser uma função constante do contexto. Mas, em geral, o conteúdo varia de contexto a contexto. Isso explica a variável sobrescrita , cujos valores são contextos de uso específicos. A associação sistemática entre conteúdos e extensões é representada pela função , a intensão do conteúdo. A extensão de um conteúdo é comumente vista como a avaliação do conteúdo em “[...] both actual and counterfactual situations with respect to which it is appropriate to ask for the extensions of a given well-formed expression” (KAPLAN, 1989, p. 502) — na terminologia introduzida por Kaplan: a avaliação do conteúdo em circunstâncias de avaliação.

Tipicamente, a extensão de um conteúdo varia de circunstância a circunstância. Ademais, diferentes tipos de expressão têm diferentes tipos de extensão. Termos singulares têm objetos individuais como extensão, ao passo que conjuntos são as extensões de predicados: conjuntos de objetos individuais, no caso de predicados monádicos, conjuntos de pares ordenados de objetos individuais, no caso de predicados diádicos etc. No caso das expressões linguísticas que são sentenças declarativas, as extensões são valores de verdade. Para deixar claro que a noção de verdade com a qual operamos aqui, a saber, verdade relativa a circunstâncias de avaliação, é distinta da verdade simpliciter, os valores de verdade em circunstâncias de avaliação serão 0 ou 1. Portanto, se for o conteúdo associado a uma sentença declarativa, será verdadeiro em ca sse . E será falso em ca sse .

Plausivelmente, o conteúdo de (1) não varia com o contexto pragmático. O objeto da asserção direta de João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022 independe de quando e onde essa expressão sentencial é usada, mas também de quem a profere ou ouve ou de qualquer característica do contexto de uso que pudesse determinar o conteúdo. Por outro lado (e também plausivelmente), a avaliação do conteúdo de (1) varia de um mundo possível a outro. É verdade, em alguns mundos possíveis, e falso, em outros mundos possíveis, que João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022. Nesse caso, portanto, . Isso leva ao seguinte resultado:


(5) Semântica de (1) João está jogando basquetebol em 6 de novembro de 2022:

sse João estiver jogando basquete em 6 de novembro de 2022 em w.], onde W é o universo de todos os mundos possíveis.


O lado direito do bicondicional acima não faz referência a c. Isso reflete o fato de que o conteúdo de (1) independe do contexto de uso. Por outro lado, o domínio da função d é constituído exclusivamente por valores da variável w: as circunstâncias de avaliação reduzem-se a mundos possíveis.

O próximo passo na teoria semântico-formal consiste em definir estipulativamente que o conteúdo de um ato assertivo realizado no mundo atual será verdadeiro (em um sentido não relacional de verdade) sse definida acima, isto é, no caso presente, sse João estiver jogando basquete em 6 de novembro de 2022 na situação em que (1) é usada. Mas isso quer dizer, fazendo abstração do fato de que a situação de uso de (1) é o mundo atual, que a proposição que João está jogando basquetebol em 6 de novembro de 2022 é verdadeira, sse João está jogando basquetebol em 6 de novembro de 2022, o que é obviamente uma instância do Esquema da Equivalência. Portanto, a noção de verdade definida pela semântica formal coincide com a noção pré-teórica fundamental de verdade simpliciter.


III


(2) envolve um indexical. A contribuição de termos como eu, ela, aqui, agora, amanhã, mas também dos demonstrativos isto, isso, ou aquilo, para as condições de verdade das sentenças onde eles aparecem é determinada por características do contexto de uso. Por exemplo, a extensão associada ao conteúdo do uso do termo agora é o instante de tempo de seu proferimento em c: O que um falante quer dizer, quando profere assertivamente João está jogando basquetebol agora, só poderá ser completamente compreendido quando ficar claro aos envolvidos na conversação qual é a extensão do termo agora. Suponhamos que o contexto de uso indique claramente, em um caso concreto, que a extensão, nesse caso, é o dia 6 de novembro de 2022, a data a respeito da qual o falante faz uma asserção. Ao proferir nesse contexto, isto é, no dia 6 de novembro de 2022, a sentença João está jogando basquetebol agora, o falante afirma que João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022.

De acordo com a abordagem semântica proposta por David Kaplan em “Demonstratives” (KAPLAN, 1989), devemos associar a qualquer sentença que contenha indexicais, em uma primeira fase, um caráter, isto é, uma função que mapeia contextos de uso a conteúdos. No caso presente, o caráter pode ser especificado assim: na data determinada pelo contexto de uso, João está jogando basquetebol. O caráter kaplaniano é o que o usuário tem de apreender (know) para ser competente na linguagem em questão. Em outras palavras, o caráter kaplaniano é um tipo de significado. Na segunda fase, a semântica dos indexicais proposta por Kaplan associa ao proferimento contextualizado de (2), como seu conteúdo, o resultado da aplicação do caráter ao argumento constituído pela característica relevante do contexto de uso, que, no caso presente, é o tempo de proferimento t.

O conteúdo kaplaniano é outro tipo de significado, essencialmente ligado ao contexto de uso. No caso presente, isso leva à concepção dos contextos de uso como mundos possíveis centrados, representados genericamente pela sequência . Ocorrências de (2) em diferentes contextos (basicamente: em diferentes datas) expressam diferentes conteúdos. O tempo t desempenha, em outras palavras, o papel de um parâmetro na determinação do conteúdo expresso por (2). Ao contrário do conteúdo de (1), o conteúdo de qualquer sentença que contenha um indexical envolve um parâmetro cujo valor é determinado pelo contexto de uso. O conteúdo de (2) parametrizado com t pode então ser avaliado como 1 ou 0 em diferentes mundos possíveis, exatamente como o conteúdo de (1): em ambos os casos, .


(6) Semântica de (2) João está jogando basquetebol agora:

sse, no instante de tempo determinado pelo contexto de uso c, João estiver jogando basquetebol em w.]


Ao contrário do que ocorre em (5), o lado direito do bicondicional de (6) faz referência a c: o conteúdo expresso por (2) depende do contexto de uso. Em consonância com (5), o domínio da intensão do conteúdo é constituído exaustivamente por mundos possíveis.

O procedimento que o semanticista formal adota agora para definir uma noção de verdade não relacional em termos da extensão (0 ou 1) atribuída pela função ao conteúdo expresso pelo uso de (2) no instante tempo no mundo atual é semelhante ao que foi descrito no final da seção II. A condição necessária e suficiente para que esse conteúdo seja verdadeiro é que . Após a abstração do fato de que a situação de uso é o mundo atual, mas não do fato de que o instante de uso é , o resultado é: a proposição que João está jogando basquetebol no instante de tempo é verdadeira sse João estiver jogando basquetebol no instante de tempo . Portanto, mais uma instância do Esquema da Equivalência e mais uma vez a identidade da verdade definida pelo semanticista formal e a verdade simpliciter.


IV


O tratamento semântico de (3) pode proceder de duas maneiras mutuamente exclusivas. Em primeiro lugar, é possível (e, para muitos, muito natural) basear a interpretação de (3) na suposição de que a sentença João está jogando basquetebol é indexical, envolvendo a ocorrência (implícita) do termo agora. Nessa perspectiva, o que o falante afirmaria, ao proferir, por exemplo, em 6 de novembro de 2022, a sentença João está jogando basquetebol é que as crianças estão jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022. Portanto, de acordo com esse modo de ver, (3) expressaria um conteúdo parametrizado pelo contexto de uso e avaliado em mundos possíveis, conforme já caracterizado em (6).

A interpretação alternativa de (3) é uma instância da tese semântica do temporalismo. Na perspectiva temporalista, a cláusula João está jogando basquetebol é vista como a expressão completa de um conteúdo asserido mediante o proferimento de (3) em qualquer instante de tempo. (3) expressaria, portanto, não um conteúdo sobre o tempo, como (2), mas ainda assim uma proposição que diz respeito ao tempo (concerns the time), no sentido em que o valor de verdade de (3) quando usada em um contexto é determinado pelo tempo de proferimento no contexto.5 (3) não se prestaria, portanto, ao tratamento contextualista indexical aplicado a (2): na perspectiva teórica do temporalismo, o conteúdo associado ao proferimento de (3) seria contextualmente invariante; sua caracterização não seria parametrizada pelo contexto de uso.

Naturalmente, o temporalista reconhece que o valor de verdade de um uso específico de (3), ao contrário do valor de verdade do uso de (1), depende, de alguma forma, do tempo de proferimento. A verdade de (2) também varia com o tempo de proferimento, mas essa variação é explicada como o resultado da variação do conteúdo ao longo da dimensão temporal do contexto de uso. Com a rejeição da interpretação contextualista indexical e, consequentemente, da relativização do conteúdo expresso por (3) ao instante de tempo do seu proferimento, o temporalista desloca a explicação da dependência da verdade de (3) vis-à-vis o tempo de proferimento t para o plano das circunstâncias de avaliação. No caso da sentença declarativa (1) João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022, a avaliação do conteúdo correspondente resulta no valor de verdade 1 ou no valor de verdade 0, dependendo de como estão as coisas no mundo w no dia 6 de novembro de 2022. Isso quer dizer que as circunstâncias de avaliação relevantes são mundos possíveis A situação não muda muito se considerarmos (2). Em alguns mundos possíveis, a extensão associada ao conteúdo de João está jogando basquetebol agora, proferida em um contexto específico, será 1; em outros mundos possíveis, será 0. Portanto, também quando consideramos (2), .

Para dar conta da dependência temporal da verdade de (3), o temporalista introduz mais uma dimensão nas circunstâncias de avaliação, além da dimensão dos mundos possíveis. A ideia crucial é que (3) seleciona, por assim dizer, um conjunto de pontos de avaliação em um espaço bidimensional: os pontos nos quais o conteúdo contextualmente invariante de (3) é avaliado como verdadeiro ou falso. Isso quer dizer, no quadro teórico do temporalismo, que as circunstâncias de avaliação apropriadas à interpretação semântica de (3) têm duas coordenadas: uma coordenada “mundana,” cujo valor é um estado possível do mundo, e uma coordenada temporal t. De acordo com essa proposta, (3) particiona o universo, não dos mundos possíveis, mas dos pares ordenados

Em geral, Kaplan chama a atenção para o fato de que, em muitos casos mais complexos do que os exemplificados por (1) e (2), as circunstâncias de avaliação devem ser concebidas como pontos em um espaço pluridimensional. “A circumstance [of evaluation] will usually include a possible state or history of the world, a time, and perhaps other features as well” (KAPLAN 1989, p. 502). Podemos pensar aqui em sentenças como Em algum lugar vai nevar nos próximos dias, cuja interpretação, na semântica kaplaniana, exige a introdução, nas circunstâncias de avaliação, de uma coordenada temporal e de uma coordenada de localização. No modo de expressão comum na semântica, a coordenada temporal t é deslocada (shifted) pelo termo vai nevar, concebido como um operador, ao passo que o operador em algum lugar desloca (shift) a coordenada de localização l. O resultado geral é que as circunstâncias de avaliação na semântica kaplaniana podem ter de ser representadas por sequências de coordenadas .

Circunstâncias de avaliação com mais de uma coordenada são requeridas para dar conta do modo de funcionamento de sentenças que contêm operadores intensionais diferentes dos operadores modais aléticos.6 Quais coordenadas devem ser acrescentadas à coordenada mínima dos mundos possíveis w, é, antes de tudo, uma questão empírica, dependente, por exemplo, dos tipos distintos de operadores intensionais que estão de fato integrados à linguagem objeto.7 Operadores intensionais são dispositivos com os quais as coordenadas das circunstâncias de avaliação podem ser independentemente deslocadas. Por exemplo, operadores de modalidade alética (necessariamente, possivelmente) deslocam a coordenada w das circunstâncias de avaliação. Avaliada em um mundo , a fórmula Possivelmente p será verdadeira sse o conteúdo expresso por p for verdadeiro em pelo menos um dos mundos w acessíveis a , segundo uma relação de acessibilidade .

Da mesma forma, Necessariamente p será verdadeira sse o conteúdo expresso por p for verdadeiro em todos os mundos w R-acessíveis a . Nesse sentido, os operadores de modalidade alética deslocam o mundo possível onde p é avaliado. Do mesmo modo, operadores temporais (assumindo que eles estão presentes na linguagem objeto) deslocam a coordenada temporal t — e assim por diante, para outros possíveis operadores. Em resumo, as sequências simbólicas que representam as circunstâncias de avaliação têm pelo menos tantas coordenadas quantos são os tipos de operadores intensionais que encontramos na linguagem objeto.8

Sob a suposição crucial de que as diferentes formas da flexão verbal no tempo (tense) devem ser tratadas como operadores intensionais, o temporalismo aparece como o resultado da aplicação do esquema geral, descrito nos últimos parágrafos, a sentenças flexionadas temporalmente (tensed sentences). Isso quer dizer, por exemplo, que a forma lógica da sentença (3) João está jogando basquetebol envolve a aplicação do operador intensional a um conteúdo p. Este tem de ser temporalmente neutro, pois ele será avaliado em circunstâncias de avaliação que têm t como uma de suas coordenadas. Podemos postular aqui que (7), formulada no presente durativo, expressa o conteúdo temporalmente neutro requerido pela interpretação temporalista de (3).


(7) João joga basquetebol.


Ao mesmo conteúdo temporalmente neutro poderia ser aplicado, por exemplo, o operador , ou o operador , como eles poderiam aparecer nas formas lógicas das sentenças João vai jogar basquetebol e João estava jogando basquetebol.

(8) especifica a intensão do conteúdo associado à fórmula flexionada (3).


(8) Semântica de (3) João está jogando basquetebol (abordagem temporalista):

sse, no instante de tempo t, João joga basquetebol em w.]


O procedimento que o temporalista deve adotar, agora, para definir uma noção de verdade não relacional em termos da extensão (0 ou 1) atribuída pela função ao conteúdo expresso pelo uso de (3), por exemplo, é mais complicado do aquele que foi descrito nos últimos parágrafos das seções II e III. No caso temporalista, o conteúdo de um ato assertivo realizado em um contexto c será verdadeiro sse , onde é o mundo do contexto de uso c e é o instante de tempo de uso de (3) João está jogando basquetebol, por exemplo. Os detalhes e as consequências dessa definição de verdade não relacional proposta no caso temporalista e em casos estruturalmente semelhantes serão discutidos nas seções IX e X.


V


A tese temporalista é controversa. Alguns semanticistas argumentam que a tese é extensionalmente inadequada, não cobrindo corretamente os fenômenos da flexão verbal.9 Para os propósitos do presente trabalho, é menos importante reconstruir criticamente o debate sobre o temporalismo do que dirigir a atenção ao fato de que o temporalismo é o resultado da aplicação do esquema kaplaniano descrito acima aos fenômenos da flexão verbal, sob a suposição de que a flexão verbal deve ser concebida segundo o modelo dos operadores intensionais. O esquema kaplaniano requer o acréscimo de uma coordenada extra diferente de w (uma coordenada “não mundana”) nas circunstâncias de avaliação, desde que seja possível mostrar que a linguagem objeto contém de fato um operador capaz de deslocar a coordenada em questão.

Talvez não seja uma boa ideia modelar os fenômenos da flexão verbal como resultantes de operadores intensionais. E se essa não for uma boa ideia, então desaparecem as razões que pensávamos ter para introduzir uma coordenada temporal extra nas circunstâncias de avaliação do conteúdo expresso por João está jogando basquetebol, por exemplo. Isso implicaria o abandono da interpretação temporalista de (3), em favor da interpretação contextualista indexical. Mas isso não torna o esquema kaplaniano inútil. Se um fragmento da nossa linguagem objeto contiver de fato operadores intensionais apropriados (além dos operadores aléticos), nós estamos justificados ao especificar a semântica das construções linguísticas nesse fragmento em termos da distribuição de valores de verdade em pontos de avaliação que têm mais de uma coordenada, em analogia com a explicação temporalista.

De fato, a estratégia kaplaniana tem sido posta à prova, no caso de asserções cujo valor de verdade parece depender não somente do modo como estão configuradas no mundo “objetivo” as coisas explicitamente mencionadas nos proferimentos correspondentes, mas também de uma característica peculiar do sujeito que faz a asserção: o sujeito que, via de regra, não é explicitamente mencionado.10 É bastante plausível supor que existem de fato conteúdos de pensamento que não podem, nem mesmo em princípio, ser avaliados de forma completamente objetiva, sem uma menção ao ponto de vista do sujeito desses pensamentos. Por exemplo, o conteúdo que alcaçuz é saboroso parece poder ser avaliado como verdadeiro, somente por um sujeito cujo paladar constitui uma perspectiva na qual alcaçuz é saboroso. De maneira similar, o juízo sobre a probabilidade de um certo evento futuro depende, no que diz respeito à sua verdade, da perspectiva cognitiva limitada (o estado de conhecimento) do sujeito que faz o juízo. Isso pode ser suficiente para excluir como inadequada a interpretação “objetivista” de juízos de gosto ou de juízos de probabilidade: a interpretação segundo a qual as condições de verdade de Alcaçuz é saboroso ou de O evento X tem uma probabilidade Y devem ignorar as atitudes pessoais dos sujeitos que asserem sinceramente os conteúdos expressos por essas sentenças. Talvez seja possível argumentar a partir daqui que, embora a perspectiva do paladar “correto” seja uma condição necessária para a avaliação alética do conteúdo em pauta, o que o sujeito em questão acredita é que alcaçuz é saboroso, não para os indivíduos que têm um certo paladar, mas para uma autoridade “superior”, cujo paladar determina definitivamente se alcaçuz é saboroso ou não.

Como a próxima seção deixará claro, se existir um argumento assim, a abordagem contextualista indexical da sentença Alcaçuz é saboroso deverá ser excluída como inadequada. Mutatis mutandis, isso vale também para a sentença O evento X tem uma probabilidade Y. A opção que resta para a abordagem semântica dessas sentenças, bem como de qualquer outra sentença que não faça alusão exclusiva a questões objetivas, é a da estratégia kaplaniana estendida: a avaliação do conteúdo em circunstâncias de avaliação que contêm, como uma de suas coordenadas, perspectivas pessoais subjetivas.11

Na literatura atual sobre o contextualismo e o relativismo na semântica, os exemplos paradigmáticos de sentenças que supostamente não podem ser apreciadas (assessed) de um ponto de vista estritamente objetivista incluem, entre outros:12


(9) Licorice is tasty.

(10) This is funny.

(11) Popocatépetl will probably erupt within ten years.

(12) I know that I have two dollars in my pocket.

(13) Joe might be in China.

(14) Jim ought to choose Sarah.

(15) Cheating on one's spouse is bad.


O aspecto subjetivo supostamente presente na interpretação de sentenças exemplificadas por (9) a (15) varia de caso a caso. (9) é um exemplo de juízos de gosto que são avaliados da perspectiva do paladar individual. Para juízos de quão divertida é alguma coisa, como, por exemplo, (10), a perspectiva subjetiva relevante é o senso de humor. (11), (13) e (14) expressam conteúdos que variam em valores de verdade dependendo do estado de conhecimento factual que caracteriza contingentemente o sujeito que avalia a probabilidade de um evento futuro, ou o paradeiro de Joe, ou as obrigações de Jim vis-à-vis Sarah. (12) depende de padrões epistêmicos (standards of evidence) endossados por agentes que atribuem conhecimento a outros agentes ou a si mesmos. Os padrões epistêmicos em questão variam de situação prática a situação prática: à luz de alguns padrões epistêmicos, (12) expressa uma verdade, mas não à luz de outros padrões mais rigorosos (ou mais exigentes).

Finalmente, (15) depende, no que concerne à sua verdade, de padrões morais (ou códigos morais, ou sistemas de normas de conduta) impostos ao mundo não normativo. As perspectivas que devem ser invocadas no tratamento desses casos não são igualmente subjetivas, em um sentido comum de “subjetividade.” Plausivelmente, senso de humor e paladar são traços mais idiossincráticos, característicos de sujeitos individuais. Padrões epistêmicos e padrões morais, por outro lado, têm (ou podem ter) uma natureza mais coletiva, talvez “intersubjetiva”. Contudo, o que justifica a classificação dos elementos do amplo espectro que vai do paladar e do senso de humor individual a padrões morais adotados comunitariamente como perspectivas pessoais é o fato de que esses elementos não objetivos desempenham um papel insuprimível na avaliação semântica de certos conteúdos de pensamento, na medida exata em que são, de alguma maneira, adotados por um sujeito, um usuário da linguagem, o qual eventualmente representa uma coletividade.

O importante é separar analiticamente a contribuição do mundo objetivo para a avaliação alética de certos conteúdos, por um lado, e a contribuição das perspectivas pessoais, por outro. E isso pode ser feito de acordo com duas possibilidades inicialmente abertas: segundo o modelo do contextualismo indexical ou segundo a estratégia kaplaniana descrita na seção anterior. A partir deste ponto, o raciocínio será análogo ao que levou, na consideração do caso (3) acima, à distinção entre os papéis desempenhados pela variável t, como um parâmetro contextual relevante na determinação do conteúdo de (3) João está jogando basquetebol, por um lado, ou, por outro, como uma das dimensões das circunstâncias de avaliação do conteúdo expresso por (3).

Se, para o contextualista indexical, o conteúdo expresso por (3) era, nesse sentido, sobre t, para o temporalista, o conteúdo dizia respeito a t. Analogamente, nós precisamos decidir se as construções exemplificadas por (9) a (15) são sobre a perspectiva pessoal a que elas de algum modo aludem — e, nesse caso, elas terão de ser tratadas de acordo com o paradigma contextualista indexical — ou se elas dizem respeito à perspectiva pessoal — e, nesse caso, as circunstâncias de avaliação conterão, além da coordenada de mundos possíveis, uma coordenada perspectivista extra.

A decisão não precisa ser uniforme. Talvez o balanço das vantagens e desvantagens da abordagem contextualista indexical comparada com a abordagem segundo o esquema kaplaniano seja diferente em cada um dos casos (9) a (15). Com o propósito de manter a discussão dentro de limites razoáveis, as seções seguintes serão principalmente restritas ao exame semântico de sentenças morais do tipo (16). A questão será: que forma deve adotar a semântica das sentenças morais do tipo (16), a forma contextualista indexical ou a do esquema kaplaniano?


(16) O casamento poligâmico é errado.


VI


O contextualista indexical deriva o conteúdo expresso por (16) de um princípio formulado de modo exemplar por Alex Silk:


Contextualism claims that [morally speaking, Sally must give to charity] is context-sensitive in the same way as sentences with paradigm context-sensitive expressions — ‘here’, ‘now’, demonstratives (‘this’, ‘that’), pronouns (‘I’, ‘she’), etc. (SILK, 2017, p. 209).


A tese distintiva do contextualismo indexical significa que a especificação do conteúdo proposicional associado ao proferimento assertivo de uma sentença moral envolve essencialmente um parâmetro contextual, isto é, uma perspectiva pessoal. Predicados morais são tratados como indexicais implícitos. Diferentemente do tratamento semântico de termos como ela ou aqui, onde as características contextuais relevantes são tipicamente as relações espaciais objetivas centradas no falante, diferentemente também do tratamento de termos como agora ou ontem, onde o contexto de uso é caracterizado em termos de relações temporais objetivas centradas no (instante de) tempo do proferimento, o contexto de uso invocado na interpretação de um predicado moral envolveria antes um aspecto “subjetivo,” um padrão normativo endossado pelo falante que ocupa o contexto de uso c. Em outras palavras: tratada como sentença indexical, O casamento poligâmico é errado tem seu conteúdo relativizado a um padrão normativo concebido como uma característica “não objetiva” da situação de uso.

O elemento-chave do contexto de uso de uma sentença moral qualquer pode ser visto como um sistema de normas morais, ou talvez um código moral (designado genericamente por m) endossado pelo falante que ocupa o contexto de uso. Isso leva à concepção dos contextos de uso de sentenças morais como mundos centrados, que podem ser representados por pares ordenados contendo uma possibilidade maximamente específica de combinação das entidades mundanas objetivas (um mundo possível) e um código moral. “Transportar” a ocorrência de uma mesma sentença moral de um centro a outro alteraria o seu conteúdo, isto é, o que está sendo dito, comunicado ou informado pelo agente que profere a sentença moral em questão. Ao proferir, em um contexto específico, O casamento poligâmico é errado, o falante se refere (implicitamente) ao código moral em vigor no contexto por ele ocupado. Se o proferimento for sincero, o falante acredita, de fato, que, à luz das normas morais contextualmente relevantes, o casamento poligâmico é errado. Portanto, o objeto completo do proferimento assertivo de O casamento poligâmico é errado (e da crença correspondente) deve ser especificado assim: O casamento poligâmico é errado de acordo com o código moral que define o contexto específico em questão. Como códigos morais já desempenham o papel de determinantes do conteúdo, eles não precisam ser acrescentados às circunstâncias nas quais o conteúdo é avaliado. Portanto, aqui, .


(17) Semântica de (16) O casamento poligâmico é errado (abordagem contextualista indexical):

sse em w o casamento poligâmico for errado de acordo com o código moral m determinado pelo contexto de uso c.]


VII


Consideremos agora um diálogo intercontextual entre o falante mencionado no parágrafo acima e um interlocutor que ocupa um outro centro, fala e pensa em outro contexto. Suponhamos, ademais, que o interlocutor está interessado em uma discussão séria sobre o valor moral da instituição do casamento poligâmico e que ele está inclinado a pensar que não é verdade, de um ponto de vista genuinamente moral, que o casamento poligâmico seja errado. Como ele poderia expressar seu desacordo com o que o falante asseriu? Talvez assim: “Não, o casamento poligâmico não é errado.” O interlocutor poderia acrescentar: “Eu vejo que a condenação do casamento poligâmico é um costume entre os que pensam como você. Mas o costume me parece ser errado.”

O problema imediato para o contextualismo indexical na ética é que o que vale para o proferimento do falante tem de valer também para o proferimento do interlocutor. Todos os proferimentos morais são centrados e nós assumimos que há vários centros possíveis. Se o contextualismo indexical na ética for a visão semântica correta, o conteúdo informacional completo transmitido pelo interlocutor deve ser explicitado da seguinte forma: O casamento poligâmico não é errado de acordo com o código moral , onde é o código moral característico do contexto de uso ocupado pelo interlocutor. Se a tese contextualista indexical for verdadeira, ao proferir sinceramente O casamento poligâmico não é errado, o interlocutor acredita, não exatamente que o casamento poligâmico não é errado ponto final, mas que o casamento poligâmico não é errado de acordo com . Como os códigos morais e são diferentes (por suposição), a asserção e a crença do falante não são necessariamente incompatíveis com a asserção e a crença correspondentes do interlocutor. E com isso desaparece uma boa razão para considerar que o falante e o interlocutor estão em desacordo. Intuitivamente, eles estão em desacordo. Mas o desacordo parece desaparecer quando o caso é considerado na perspectiva do relativismo de conteúdo implicado pelo contextualismo indexical. Na literatura semântica, esse problema é discutido sob a rubrica “o problema do desacordo perdido” (the problem of lost disagreement). De qualquer forma, os defensores do contextualismo indexical reconhecem que há um problema aqui, ao mesmo tempo que supõem que ele pode ser resolvido.13

Deve-se notar aqui que a modelagem da linguagem da moral sobre a base da semântica dos indexicais paradigmáticos gera um problema que simplesmente não existe na base da modelagem. Os conteúdos dos proferimentos, em contextos diferentes, de Ela é alemã, por um lado, e Ela não é alemã, por outro, não estão necessariamente em uma relação de incompatibilidade, o que é reconhecido sem problemas pelos falantes competentes. A expressão denotadora ela tem um caráter kaplaniano que independe do contexto. Todavia, o proferimento assertivo de Ela é alemã não é sobre o caráter, mas sim sobre a pessoa denotada em um contexto — a pessoa que só contingentemente será idêntica à pessoa denotada pelo uso da expressão ela em outro contexto. Da mesma forma, o falante situado em Hamburgo que afirma Aqui está frio não discorda do falante situado no Rio de Janeiro, que responde ao primeiro com o proferimento Aqui não está frio. O conteúdo negado pelo interlocutor não é o mesmo conteúdo afirmado pelo falante. Se o interlocutor respondesse Não é verdade, aqui não está frio, nós teríamos de considerar como inadequado (infelicitous) o seu uso da (primeira) negação. Os respectivos contextos de uso fixam diferentemente as extensões de aqui. Por outro lado, pelo menos à primeira vista, o uso da negação na resposta O casamento poligâmico não é errado, dada ao opositor do casamento poligâmico, é adequado (felicitous). É natural ver no enfático não do interlocutor um “marcador de desacordo” (disagreement marker) que introduz uma visão divergente sobre o valor de verdade que deve ser atribuído a um só conteúdo.

Uma opção para o defensor do contextualismo metaético concebido em analogia com a semântica dos indexicais poderia invocar o princípio de que analogias não precisam ser perfeitas. A explicação da dependência contextual característica dos termos morais não precisa reproduzir todos os detalhes estruturais da explicação contextualista dos termos que são paradigmaticamente dependentes de contexto (os indexicais). Talvez o recurso ao entorno pragmático peculiar do discurso moral permita explicar por que o uso da expressão de negação, na resposta Não é verdade, o casamento poligâmico não é errado, dada pelo interlocutor que ocupa outro contexto, é adequado (felicitous). O uso da negação marcaria adequadamente a existência de um desacordo genuíno que poderia ainda ser acomodado na perspectiva do contextualismo indexical, desde que estejamos dispostos a dirigir a atenção teórica à dimensão pragmática dos proferimentos morais.14 De qualquer forma, não podem ser subestimadas as dificuldades envolvidas no desenvolvimento detalhado dessa opção engenhosa.


VIII


Nesse ponto do processo dialético, nós devemos investigar a possibilidade de desenvolvimento de uma versão não indexical da conexão constitutiva entre a avaliação alética de juízos morais e os códigos morais contextualmente determinados, em consonância com o que foi chamado acima de esquema kaplaniano. A abordagem não indexical mais geral foi chamada por Max Kölbel (2004) de relativismo genuíno, em oposição ao relativismo indexical, isto é, o contextualismo indexical. A versão mais radical do relativismo genuíno é conhecida hoje como relativismo de apreciação (assessment relativism). Trata-se, contudo, tanto na versão moderada quanto na versão mais radical do relativismo genuíno, de versões do relativismo alético (truth-relativism), em oposição ao relativismo de conteúdo (content-relativism) característico do contextualismo indexical. O foco da presente seção e da próxima será a posição semântica intermediária entre o contextualismo indexical e o relativismo de apreciação: o contextualismo não indexical.

Em termos gerais, o núcleo do contextualismo não indexical pode ser visto como uma teoria semântica à la Kaplan, isto é, uma teoria envolvendo circunstâncias de avaliação que incluem pelo menos uma coordenada perspectivista (por exemplo, paladares, sensos de humor, estados de conhecimento limitado, padrões epistêmicos, códigos morais). Em particular, o que opõe o contextualismo não indexical ao contextualismo indexical na ética é o papel desempenhado pela variável m, cujos valores são códigos morais contextualmente determinados. Para os contextualistas não indexicais, m é um componente ou uma coordenada extra das circunstâncias de avaliação: a coordenada que pode ser deslocada por um predicado moral interpretado como operador intensional. De acordo com os contextualistas indexicais, m é um aspecto essencial do contexto de uso: uma característica mobilizada na derivação do conteúdo a partir do contexto.

Em oposição à sua contraparte indexical, o contextualista não indexical na ética considera que os predicados morais se comportam como operadores intensionais sobre conteúdos moralmente neutros, os quais serão avaliados em circunstâncias de avaliação que têm códigos morais m como uma de suas coordenadas. Isso significa que, no caso de sentenças morais que não contêm termos genuinamente indexicais, o conteúdo será absolutamente contextualmente invariante. De qualquer forma, o conteúdo expresso por uma sentença moral será uma função constante do código moral m que caracteriza o contexto de uso. Portanto, o que opõe o contextualismo não indexical na ética ao contextualismo indexical é o papel ativo desempenhado pela variável m, ou bem na determinação da verdade em uma circunstância de avaliação, ou bem na determinação do conteúdo expresso pela ocorrência da sentença moral em um contexto de uso.

A aplicação da estratégia contextualista não indexical ao domínio ético requer


  1. o tratamento dos predicados morais como operadores intensionais que permitem o deslocamento da coordenada m das circunstâncias de avaliação;

  2. a identificação do conteúdo moralmente neutro sobre o qual opera o suposto operador moral;

  3. a definição de verdade em circunstâncias de avaliação .


Retomemos o nosso exemplo inicial, O casamento poligâmico é errado. De acordo com a cláusula (i) acima, a forma lógica dessa sentença envolveria, em uma primeira aproximação, a expressão de um operador intensional: . No caso presente, (18) poderia ser a expressão de p.


(18) Existem casamentos poligâmicos.


Além de satisfazer a cláusula da neutralidade moral (ii), (18) reflete a interpretação intuitiva da sentença moral original como É errado que existam (ou possam existir) casamentos poligâmicos.

Uma sugestão para satisfazer a cláusula (iii) recorre à noção de mundos ideais determinados por códigos morais m.15 Podemos conceber uma função que mapeia os mundos possíveis em um certo pano de fundo modal (modal background) aos mundos ideais , isto é, os mundos que estão no topo de uma ordenação parcial induzida pela função no pano de fundo modal. Os mundos ideais são aqueles mundos do pano de fundo modal que satisfazem o maior número de princípios ou normas mais fundamentais que constituem o código moral m. O pano de fundo modal, por sua vez, é relativizado a cada mundo possível w. Ele é formado pelos mundos possíveis que contêm as mesmas proposições (os mesmos “estados de coisas”) que são moralmente relevantes no mundo de partida w. Podemos conceber uma função que associa a cada mundo possível w o pano de fundo modal correspondente. Portanto, cada mundo possível w determina via um pano de fundo modal, ao passo que seleciona os mundos ideais desse pano de fundo. É possível então estipular que o conteúdo de O casamento poligâmico é errado será verdadeiro em uma circunstância de avaliação sse não existirem casamentos poligâmicos em todos os mundos onde são os mundos ideais no pano de fundo modal que corresponde a w.


(19) Semântica de (16) O casamento poligâmico é errado (abordagem contextualista não indexical):

sse Não existem casamentos poligâmicos em .].]


IX


A noção de verdade em uma circunstância de avaliação mobilizada na especificação sistemática da intensão do conteúdo, seja na perspectiva do contextualismo indexical, seja na perspectiva do contextualismo não indexical, não é pragmaticamente relevante, ao contrário da noção de verdade sentencial, a qual será caracterizada a seguir. A noção de verdade em uma circunstância de avaliação não nos diz ainda em que condições nós estamos autorizados a asserir significativamente um conteúdo mediante o proferimento de uma sentença que o expressa. Aqui, é bastante defensável a tese segundo a qual nós não devemos proferir seriamente senão as sentenças que, no contexto em que nos encontramos, expressam conteúdos que são verdadeiros simpliciter, isto é, verdadeiros em um sentido diferente do sentido de ser verdadeiro em uma circunstância de avaliação. A tarefa agora é caracterizar a noção pragmaticamente relevante de verdade sentencial em termos da noção de verdade em uma circunstância de avaliação, já mobilizada na especificação sistemática da intensão do conteúdo semântico.

Uma distinção terminológica introduzida por John MacFarlane (2014) é especialmente útil no presente contexto e será adotada a partir de agora. A especificação sistemática da extensão do conteúdo associado ao uso contextualizado de sentenças da linguagem-objeto como o valor de uma função que mapeia circunstâncias de avaliação ao conjunto esgota a semântica. A pós-semântica, por sua vez, consiste na especificação das condições de aplicabilidade da noção de verdade sentencial sobre a base da semântica.

No trabalho original de Kaplan, a definição pós-semântica de verdade sentencial é formulada assim:

If c is a context, then an occurrence of Φ in c is true iff the content expressed by Φ in this context is true when evaluated with respect to the circumstance of the context. (KAPLAN, 1989, p. 522).



O que Kaplan quer dizer com a circunstância do contexto pode ser ilustrado se considerarmos o caso particular de uma sentença cuja interpretação semântica requer a presença de uma coordenada temporal t entre as circunstâncias de avaliação. A pós-semântica de Kaplan estipula que a ocorrência dessa sentença será verdadeira em um contexto de uso sse o conteúdo expresso por ela nesse contexto for verdadeiro na circunstância de avaliação especial , onde é o mundo do contexto e é o tempo de proferimento no contexto . Isso pode ser facilmente generalizado para outras sentenças que requerem, para sua interpretação, a presença, nas circunstâncias de avaliação, de uma coordenada extra, isto é, uma coordenada diferente da coordenada obrigatória w. Em particular, a pós-semântica à la Kaplan de uma sentença moral dirá que seu uso no mundo por um agente que endossa o código moral será verdadeiro, sse o conteúdo expresso pela sentença moral nesse contexto for verdadeiro na circunstância de avaliação , isto é, na circunstância especial que Kaplan chamaria de a circunstância do contexto.

Se, na semântica temporalista de Kaplan, a forma genérica das sequências que representam os contextos de uso é , no quadro semântico do contextualismo não indexical, os contextos de uso são representados genericamente por . A substituição de p, em cada caso, indica a característica do contexto de uso (a perspectiva pessoal) que é relevante para a avaliação semântica das sentenças perspectivistas da linguagem-objeto, isto é, aquelas sentenças exemplificadas por (9)–(15) que não podem ser interpretadas de um ponto de vista estritamente objetivista. p pode ser um padrão epistêmico e (envolvido na interpretação de atribuições de conhecimento), um padrão estético b (envolvido na interpretação de sentenças estéticas), um código moral m (requerido para a interpretação de sentenças morais), e assim por diante.

É como ocupante de um contexto adequadamente caracterizado por um valor da variável p que o agente profere uma sentença Φ do tipo (9)-(15), gerando o input da função-caráter cujo output é o conteúdo da ocorrência contextualizada de Φ. A função-intensão aplicada ao conteúdo gera a extensão correspondente (1 ou 0) em diferentes circunstâncias de avaliação. No quadro do contextualismo não indexical, as circunstâncias de avaliação terão como coordenada extra valores específicos da mesma perspectiva pessoal mobilizada na caracterização dos contextos de uso. Portanto, é a forma mais geral das sequências que representam as circunstâncias de avaliação e os contextos de uso.16

Ainda que sejam representados da mesma forma, contextos de uso e circunstâncias de avaliação não podem ser confundidos. Uma sentença Φ do tipo (9)-(15) adquire conteúdo, quando proferida por um falante que ocupa um contexto de uso caracterizado por um valor específico de p. E o conteúdo será avaliado em circunstâncias que envolvem valores específicos da mesma perspectiva pessoal p. Se a sentença Φ for moral, por exemplo, o conteúdo associado ao uso de Φ em contextos de uso representados genericamente pela sequência será avaliado em circunstâncias cuja representação geral também é

A sugestão decisiva que se impõe agora consiste em associar a cada circunstância de avaliação um contexto de apreciação (context of assessment), a partir do qual um agente aprecia (assesses) a ocorrência da sentença Φ em um contexto de uso c. A notação básica é a seguinte:


contexto de uso

circunstância de avaliação

contexto de apreciação


Como um contexto de apreciação, é um mundo centrado representado por uma instância da sequência Mas o contexto de apreciação não pode ser confundido com a circunstância de avaliação ca que lhe corresponde, mesmo que ambos sejam representados da mesma maneira. A conexão entre os dois é a seguinte. O contexto de apreciação inicializa a coordenada extra da circunstância de avaliação correspondente, isto é, fixa o valor da variável p que define a circunstância de avaliação correspondente. A inicialização é tal que a coordenada extra da circunstância de avaliação correspondente assume o mesmo valor que a perspectiva p assume no contexto de apreciação a partir do qual um agente aprecia (assesses) usos de sentenças.17 Em termos gerais, a relação entre a apreciação do uso de uma sentença perspectivista Φ a partir do contexto de apreciação , por um lado, e, por outro, a avaliação, na circunstância de avaliação que corresponde a , do conteúdo associado a Φ tem a seguinte forma:


(20) Apreciação e Avaliação:


A ocorrência de uma sentença perspectivista
Φ em um contexto de uso c será apreciada como verdadeira a partir do contexto de apreciação sse o conteúdo expresso por Φ no contexto de uso c for avaliado como verdadeiro na circunstância de avaliação inicializada pelo contexto .18


Evidentemente, a postulação de um contexto de apreciação e de um agente que o ocupa não faz muito sentido, quando a coordenada extra das circunstâncias de avaliação representa uma característica “objetiva” da situação. Por exemplo, na abordagem temporalista, ninguém precisa postular um agente apreciador (um “inicializador” de t) para decidir se o conteúdo expresso por uma sentença flexionada temporalmente deve ser verdadeiro ou falso em uma circunstância de avaliação Portanto, a relevância da noção de contexto de apreciação deve ser restrita ao tratamento dos casos especiais cujas circunstâncias de avaliação envolvem uma perspectiva: um ponto de vista subjetivo, pessoal, que guia normativamente o agente apreciador na apreciação de usos de sentenças.19 No caso que nos interessa mais de perto, a coordenada extra das circunstâncias de avaliação requeridas para o tratamento de sentenças morais como O casamento poligâmico é errado pode ser vista como inicializada por um sujeito apreciador que endossa um código moral específico.

O contextualismo não indexical privilegia (da mesma forma que Kaplan) uma circunstância especial de avaliação (a circunstância do contexto) na caracterização pós-semântica da noção de verdade sentencial. Isso quer dizer que a verdade da ocorrência de uma sentença perspectivista em um contexto de uso emerge na pós-semântica do contextualismo não indexical como a avaliação ao longo da “diagonal,” segundo registrado em (21).


(21) Verdade sentencial relativizada ao contexto de uso (contextualismo não indexical):

A ocorrência de uma sentença perspectivista Φ em um contexto de uso c será verdadeira, sse o conteúdo expresso por Φ em for verdadeiro na circunstância de avaliação privilegiada , onde é o mundo do contexto e é o valor da coordenada perspectivista p no contexto .


De acordo com essa definição do predicado de verdade sentencial, o contexto de uso fixa o valor dos parâmetros relevantes dos dois contextos envolvidos. Mas a definição do predicado sentencial de verdade anula qualquer contribuição independente do contexto de apreciação. A verdade sentencial no contextualismo não indexical é determinada, em última instância, somente pelo contexto de uso. É por essa razão que o contextualismo não indexical é visto como uma forma de contextualismo, ou uma versão moderada do relativismo semântico.


X


Até aqui, os dados linguísticos considerados giraram em torno do proferimento da sentença O casamento poligâmico é errado, por parte de um agente A, e do proferimento da sentença O casamento poligâmico não é errado, por parte de um agente B. O agente A ocupa o contexto de uso , caracterizado pelo código moral , ao passo que é o código moral do contexto de uso ocupado pelo agente B. Podemos assumir que o mundo de é o mesmo de . Em oposição à explicação proposta pelo contextualista indexical (§VII), a explicação contextualista não indexical desses dados não precisa empreender um detour especial pela pragmática distintiva dos termos morais, a fim de reconhecer o que já era intuitivamente claro: os proferimentos de A e de B estão em desacordo. E eles estão em desacordo porque os respectivos conteúdos são logicamente incompatíveis.

Isso quer dizer que, na explicação contextualista não indexical, o código moral que define o contexto de uso de uma sentença determina o valor de verdade da ocorrência da sentença em um contexto de uso, mas não o seu conteúdo. O resultado é que a proposição afirmada por A é idêntica à proposição negada por B. A diferença entre A e B se reflete na diferente avaliação alética das proposições que eles expressam: o que B pensa, em oposição direta ao que é afirmado/pensado por A, é que não é verdade que o casamento poligâmico seja errado. Isso sugere que o contextualismo não indexical fornece uma explicação de alguns dados linguísticos do desacordo perspectivista, a qual, por ser mais simples e econômica do que as explicações propostas pelos defensores do contextualismo indexical, é pelo menos potencialmente melhor do que estas.

Recentemente, MacFarlane tem argumentado que a consideração cuidadosa de outros dados linguísticos, além dos que foram mencionados na última seção, requer a radicalização da abordagem relativista representada pelo contextualismo não indexical. De um ponto de vista estritamente semântico, isto é, do ponto de vista da definição de verdade em circunstâncias de avaliação, não há diferenças entre a forma mais radical do relativismo semântico que será considerado aqui (o relativismo de apreciação) e a forma mais moderada (o contextualismo não indexical). O aspecto responsável pela radicalização aparece na concepção alternativa da conexão entre a semântica e a pragmática, isto é, na pós-semântica. Para o contextualista não indexical, a conexão relevante está refletida na definição que relativiza a verdade sentencial exclusivamente ao contexto de uso. Como será desenvolvido na presente seção, o relativista radical propõe a substituição dessa noção de verdade sentencial por uma alternativa que relativiza a verdade a contextos de apreciação.

A relevância pragmática de qualquer noção de verdade sentencial deriva de sua relação com as regras constitutivas do jogo de linguagem da asserção: as chamadas normas da asserção, as quais conectam as sentenças verdadeiras em uma linguagem objeto L com seu uso assertivo apropriado.20 A chamada regra da verdade é comumente vista como a norma mais fundamental da asserção. Ela é constitutiva, no sentido em que qualquer ato de fala que viole a regra da verdade falha como asserção. No caso especial do uso de sentenças absolutamente independentes de contexto, a regra da verdade estabelece que um agente está autorizado a asserir que p somente se p for verdadeiro — no sentido de verdade simpliciter. Uma versão mais geral da regra da verdade deve ser capaz de cobrir o uso assertivo de sentenças cujo conteúdo depende do contexto:


(22) Regra da verdade:

Um agente está autorizado a proferir assertivamente uma sentença
Φ em um contexto , somente se Φ expressar uma verdade nesse contexto.


A operação conjunta da regra da verdade e da noção de verdade que está no núcleo da pós-semântica do contextualismo não indexical resulta na determinação normativa segundo a qual a condição necessária para que o uso assertivo de uma sentença declarativa em um contexto esteja correto é a apreciação como verdadeira desse uso, a partir do contexto de apreciação privilegiado pelo contexto de uso ).

O agente apreciador que ocupa esse contexto especial pode ser visto como a contraparte racional do falante que profere a sentença em questão, isto é, seu self ideal, cujos juízos de apreciação são guiados exclusivamente pela perspectiva pessoal que define também o contexto de uso ocupado pelo falante real. O falante real, ao contrário de sua contraparte ideal, pode ser guiado por outras normas que não a da verdade, por exemplo, normas de polidez, de relevância para o assunto discutido etc. Como no contexto de apreciação especial invocado na definição de verdade proposta pelo contextualista não indexical o valor do parâmetro relevante é idêntico ao valor que especifica o contexto de uso, somente este adquire um sentido normativo próprio.

Se existir uma noção de verdade sentencial que, ao contrário da noção proposta pelo contextualista não indexical, permita atribuir um papel ativo e independente ao contexto de apreciação , também e sobretudo nos casos em que , sua relevância pragmática não pode ser explicada somente com base na regra da verdade. Partindo dessa constatação negativa, a estratégia do relativista radical pode ser caracterizada em dois pontos. Em primeiro lugar, o relativista radical dirige a atenção para alguns dados linguísticos ignorados pelo contextualista não indexical. Tais dados sugerem a existência de uma nova regra constitutiva da nossa prática da asserção, além da regra da verdade. Em segundo lugar, a consideração sobre a forma que deve tomar a nova regra revela os limites da noção de verdade sentencial conectada exclusivamente ao contexto de uso, ao mesmo tempo que aponta para a formulação de uma noção de verdade relativizada a contextos de apreciação.

A natureza da regra constitutiva que o relativista radical tem em mente pode ser percebida mais claramente se nós introduzirmos uma modificação no nosso exemplo inicial. Nós podemos conceber que o agente A que profere sinceramente no contexto de uso a sentença O casamento poligâmico é errado é o mesmo agente que, mais tarde, profere sinceramente no contexto a sentença O casamento poligâmico não é errado. Ou seja, o agente adota, com o tempo, uma perspectiva normativa diferente, diametralmente oposta à que o guiava no passado. Podemos assumir aqui que o agente não comete erros de raciocínio ou de ignorância do que o seu código moral verdadeiramente exige, quando profere inicialmente O casamento poligâmico é errado, e tampouco comete esse tipo de erro, quando profere, mais tarde, O casamento poligâmico não é errado. Também é razoável assumir que, qualquer que seja nossa concepção definitiva de verdade sentencial, ela deve preservar, como um caso limite, a noção de verdade defendida pelo contextualista não indexical. Nessas condições, a apreciação, a partir do contexto de apreciação privilegiado pelo contexto de uso, do uso contextualizado de uma sentença perspectivista decide sobre sua verdade ou falsidade. Portanto, mesmo o agente situado no contexto reconhece (ou tem de reconhecer) que, usado no contexto e apreciado a partir do contexto de apreciação o proferimento de O casamento poligâmico é errado é absolutamente correto. Digamos que, do ponto de vista do agente no passado, o proferimento original de O casamento poligâmico é errado é verídico. Por outro lado, o que o agente no presente reconhece é que do seu ponto de vista atual o proferimento original de O casamento poligâmico é errado é inverídico. A menos que estejamos prontos a conceber o valor de verdade do uso de uma sentença perspectivista como essencialmente dependente dos múltiplos contextos de apreciação, tudo o que podemos garantir até aqui é que o proferimento original de O casamento poligâmico é errado é apreciado como verídico pelo agente, antes da mudança de perspectiva, mas apreciado como inverídico pelo mesmo agente, depois da mudança de perspectiva.

O que é razoável esperar do agente que não pode mais apreciar como verídico o que ele mesmo disse no passado, mas tampouco pode censurar de um ponto de vista epistemológico ou metodológico a asserção feita no passado, é que ele se retrate (retract), isto é, que ele retire a asserção feita no passado e, com isso, suspenda os comprometimentos anteriormente incorridos. A expectativa de que o agente se retrate reflete o reconhecimento tácito de um componente prescritivo/normativo na prática da asserção que vai além da regra da verdade. A retratação (retraction) da asserção passada não parece ser opcional. Aparentemente, se quiser manter sua integridade agencial em uma prática governada por regras constitutivas, o agente que passou por uma mudança na perspectiva pessoal, mobilizada na apreciação de seus atos de fala, não pode deixar de revogar agora as consequências normativas do ato de fala realizado no passado, o que ele faz ao retirar sua asserção original. Isso sugere a existência de uma regra constitutiva da prática linguística, além da regra da verdade.


(23) Regra da retratação:

Um agente em um contexto
está obrigado a retirar sua própria asserção feita corretamente mediante o uso de uma sentença Φ em um contexto se o conteúdo expresso por Φ em for falso quando avaliado na circunstância .


A retratação é um tipo de ato de fala que tem como objeto outro ato de fala: um ato de fala de segunda ordem. É um ato de fala que alguém realiza dizendo, por exemplo, “Eu retiro minha asserção/minha pergunta/minha ordem/minha oferta etc.).” Com isso, o agente suspende, a partir do instante de tempo da retratação, as implicações normativas incorridas pelo ato de fala anterior: a obrigação autoimposta de justificar sua asserção, quando ela for questionada, a obrigação imposta ao interlocutor de responder à sua pergunta, de obedecer à sua ordem, a obrigação de fazer valer sua oferta, de cumprir sua palavra etc. A rejeição é também um ato de fala de segunda ordem, com a diferença que o objeto da rejeição é um ato de fala realizado por outro agente. “Eu rejeito sua asserção/sua pergunta/sua ordem/sua oferta... e assim revogo as implicações normativas correspondentes.”

O ponto importante é que o ato de fala que funciona como objeto da retratação ou da rejeição ocorre em um contexto diferente do contexto a partir do qual ele é retirado ou rejeitado. Casos de retratação são casos que envolvem um agente e dois contextos: a diferença entre o primeiro e o segundo contexto deve ser interpretada como o fato de que o agente era guiado, em seus juízos, por uma perspectiva particular , realizando, no primeiro contexto, o ato de fala original, mas passou posteriormente a ocupar outro contexto definido pela perspectiva . Situado no novo contexto, o agente está obrigado a se retratar, a retirar o ato de fala original. Nos casos de dois agentes e dois contextos, o esquema é menos exigente. O agente situado no segundo contexto pode vir a rejeitar o ato de fala realizado pelo agente do primeiro contexto. A ênfase em pode é importante. A retratação é obrigatória; a rejeição é opcional.

Acoplada à regra da verdade (22), a noção relativista moderada de verdade relativizada ao contexto de uso (21) gera resultados normativos corretos: a condição necessária para que um agente possa proferir assertivamente Φ em um contexto é que o conteúdo expresso por Φ nesse contexto seja verdadeiro na circunstância de avaliação privilegiada . Contudo, a noção relativista moderada de verdade não tem implicações sobre a obrigatoriedade da retratação ou a permissibilidade da rejeição. Em um certo sentido, o problema é gerado pelo fato de que a noção relativista moderada só abre espaço para a influência do contexto de uso. Somente uma noção de verdade sentencial determinada por contextos de apreciação poderia gerar a determinação normativa mencionada na regra da retratação (23). A sugestão do relativista de apreciação é a seguinte:


(24) Verdade sentencial relativizada a contextos de apreciação (relativismo de apreciação):


Uma sentença perspectivista Φ será verdadeira quando usada em um contexto e apreciada a partir de um contexto de apreciação sse o conteúdo expresso por Φ no contexto for verdadeiro, na circunstância de avaliação inicializada pelo contexto .



A relevância pragmática dessa noção de verdade relativizada a contextos de apreciação deriva do fato de que ela estabelece as condições para a realização apropriada do ato de fala da retratação. Ela permite fechar o hiato entre a veridicidade de um proferimento, por um lado, e a apreciação desse proferimento a partir de qualquer um dos contextos de apreciação não privilegiados pelo contexto de uso, por outro. Do ponto de vista do agente situado em , o proferimento de uma sentença perspectivista Φ em pode, por exemplo, ser apreciado como inverídico, embora ele seja corretamente apreciado como verídico do ponto de vista do agente situado em . Por isso mesmo, o relativista radical dirá, o proferimento da sentença perspectivista Φ em apreciado pelo agente em é inverídico. Isso explica por que o agente situado em pode estar obrigado a retrair o ato de fala que ele mesmo tinha realizado em , sob pena de irracionalidade. O agente não pode endossar proferimentos inverídicos do seu ponto de vista atual.

Deve-se notar que a noção de verdade relativizada a contextos de apreciação não requer que o agente situado em seja também o agente situado em . Se o proferimento de uma sentença perspectivista por um agente em se revelar como inverídico, por não poder ser apreciado como verídico pelo agente em , o proferimento não pode ser endossado pelo segundo agente. Nesse caso, o segundo agente pode, mas não precisa, rejeitar o proferimento do primeiro agente, pois a combinação da atitude de não endosso com a recusa da rejeição não torna o segundo agente irracional.

A implicação normativa da noção de verdade relativizada a contextos de apreciação é que a ocorrência de uma sentença perspectivista Φ em um contexto de uso , mas apreciada a partir de um contexto de apreciação , será verdadeira, sse o conteúdo expresso por Φ no contexto original for verdadeiro na circunstância de avaliação cuja coordenada extra é inicializada pelo agente avaliador que ocupa , independentemente da apreciação de Φ como verdadeira ou falsa segundo a perspectiva do avaliador que ocupa o contexto de avaliação privilegiado pelo contexto original.21 Com isso, o segundo contexto, no qual são retirados ou rejeitados os atos de fala realizados no primeiro contexto — o contexto que não desempenha papel algum na definição de verdade proposta pelo contextualista não indexical — adquire relevância normativa.

O núcleo semântico comum ao relativismo de apreciação e o contextualismo não indexical é a definição de verdade em circunstâncias de avaliação envolvendo uma coordenada perspectivista. A esse núcleo o contextualista não indexical acopla, no nível pós-semântico, a definição de um predicado de verdade aplicável ao uso de sentenças da linguagem objeto: a especificação das condições necessárias e suficientes para que seja verdadeira a ocorrência de uma sentença Φ em um contexto. Isso representa uma forma moderada de relativismo, no sentido em que, uma vez fixado o contexto, a ocorrência da sentença Φ que satisfaz as condições especificadas pelo contextualismo não indexical será absolutamente verdadeira. Se o que foi exposto na presente seção estiver correto, o preço a pagar por essa solução “teoricamente mais conservadora” (Brogaard) é a incapacidade de dar conta dos dados linguísticos da retratação e da rejeição. Na melhor das hipóteses, o agente descrito pelo relativista moderado pode classificar os proferimentos feitos em um contexto diferente do seu próprio contexto (ou do seu novo contexto) como verídicos ou inverídicos à luz da perspectiva determinante do contexto diferente do seu (ou à luz de sua antiga perspectiva), mas não como verídicos ou inverídicos simpliciter.

Tendo em vista exatamente os jogos de linguagem assertivos nos quais os fenômenos da retratação desempenham um papel central, o relativista radical mantém o núcleo semântico do contextualismo não indexical, mas relativiza a noção de verdade sentencial essencialmente a contextos de apreciação, que podem divergir do contexto de uso original. Mesmo depois de fixado o contexto de uso, a verdade da ocorrência de uma sentença passa a depender ainda da apreciação por parte de agentes situados em outros contextos. No quadro conceitual do contextualismo não indexical, a verdade da ocorrência de uma sentença perspectivista Φ em um contexto de uso é fixada de uma vez por todas pela avaliação do conteúdo correspondente na circunstância do contexto. Do ponto de vista do relativismo radical, há sempre mais do que um contexto de possível apreciação da ocorrência original da sentença, o que leva à atribuição variável de verdade sentencial. Por mais contraintuitiva que possa parecer à primeira vista, a definição de verdade do relativismo radical foi, por assim dizer, confeccionada sob medida para dar conta dos dados da retratação, que o contextualista não indexical não levou em conta.


XI


As principais opções, expostas até aqui, para a abordagem de sentenças perspectivistas são o contextualismo indexical, o contextualismo não indexical e o relativismo de apreciação. Embora a questão exija mais do que o que foi apresentado, na seção VII, sobre a abordagem contextualista indexical dos fenômenos do desacordo, é bastante viável o diagnóstico crítico segundo o qual o problema do desacordo perdido é “[...] o calcanhar de Aquiles do contextualismo indexical” (MACFARLANE, 2014, p. 118). E se esse diagnóstico for aceito, restam como opções exploráveis o contextualismo não indexical e o relativismo de apreciação.

Deve-se notar que, embora simpáticos à ideia do relativismo alético (truth-relativism), em oposição ao relativismo de conteúdo, alguns semanticistas (entre os autodenominados relativistas) não reconhecem ainda a existência de boas razões para adotar uma atitude radical em detrimento da moderação.22 Para esses relativistas, também na explicação do que ocorre na nossa prática linguística comum, menos é mais. A conclusão de Berit Brogaard (2008) é representativa dessa tendência à moderação. (De acordo com um uso já bem estabelecido na discussão semântica, Brogaard se refere, com o termo relativismo, exclusivamente ao relativismo de apreciação.)

Moral relativism provides a compelling explanation of linguistic data involving ordinary moral expressions like ‘right’ and ‘wrong.’ But it is a very radical view. Because relativism relativizes sentence truth to contexts of assessment, it forces us to revise standard linguistic theory. […] However, I have argued that a version of nonindexical contextualism can account for the same data as relativism without relativizing sentence truth to contexts of assessment. […] Because it is theoretically more conservative, nonindexical contextualism is preferable to relativism on methodological grounds. (BROGAARD, 2008, p. 408-409).


Contudo, no corpo do trabalho cuja conclusão é a passagem citada acima, Brogaard não mostra como a sua versão preferida do contextualismo não indexical poderia dar conta dos dados linguísticos da retratação. Brogaard parece não reconhecer a existência desses dados. A omissão pode ser grave. Em primeiro lugar, como até mesmo os críticos do relativismo radical Herman Cappelen e John Hawthorne reconhecem, “[...] retraction [is] perfectly natural, given suitable background facts.” (CAPPELEN; HAWTHORNE, 2009, p. 108). Em segundo lugar, a retratação parece ser um lance obrigatório em pelo menos alguns setores da linguagem vernacular cujo funcionamento o semanticista almeja explicar, por exemplo, o setor da linguagem da moral. Impossibilitado de apresentar o seu proferimento no passado (O casamento poligâmico é errado) como resultado de um erro cometido no passado, o agente imaginado na seção anterior parece não ter outra opção racional que não a de se retratar, de desfazer, a partir de agora, as consequências normativas do seu ato de fala original. Não é razoável ver como assentada em bases metodológicas mais firmes uma teoria que não diz coisa alguma sobre essas manifestações aparentemente naturais e racionalmente obrigatórias da prática linguística comum.

O ponto crucial aqui se torna mais claro, se considerarmos o possível desenvolvimento do debate intercontextual sobre o valor ou a correção moral do casamento poligâmico. Suponha que, além de afirmar (e reafirmar) o que pensam sobre o casamento poligâmico e negar obstinadamente o que pensa o seu interlocutor, os agentes resolvam fazer uso da possibilidade de rejeitar reciprocamente seus proferimentos iniciais: “Mesmo reconhecendo que o que você diz é correto/verdadeiro, à luz da sua perspectiva, eu rejeito o seu proferimento.” A possibilidade da rejeição, nesse sentido especial, parece ser natural no jogo de linguagem da moral. Isso pode transformar qualitativamente o debate. Os participantes do debate podem sentir-se racionalmente motivados a conduzir a conversação até um ponto ideal de convergência nas visões normativas inicialmente conflitantes. Isso significa que os agentes podem agora almejar conduzir o debate até o ponto ideal em que a outra parte se retrate.

O ponto é enfaticamente reconhecido por Karl Schafer (2012, p. 611) na sua caracterização do desacordo moral: “So long as the conversation continues, the parties will generally regard themselves as being under some obligation to try to bring it about that they converge upon a shared view of the issues under dispute.” Schafer reconhece imediatamente que a convergência intencionada aqui requer que as partes envolvidas manifestem algo assim como a retratação de suas asserções prévias.

Suponha, portanto, que os agentes imaginados por nós rejeitem reciprocamente os proferimentos conflitantes sobre a correção do casamento poligâmico e almejem idealmente a retratação por parte do respectivo interlocutor. Com isso se abre uma nova possibilidade, a saber, a possibilidade de questionar as razões que os debatedores têm (ou julgam ter) para rejeitar os proferimentos conflitantes sobre o casamento poligâmico. Como as razões para a rejeição repousam, em última instância, nos códigos morais determinantes dos contextos de uso, o foco do debate é deslocado dos juízos diretamente sobre o casamento poligâmico para as perspectivas normativas nas quais esses juízos são avançados. Se estiverem realmente interessados em um debate sério, nossos debatedores poderão empenhar-se na tentativa de articular (ou rearticular) construtivamente seus padrões normativos, o que pode levar, entre outras coisas, (i) ao reconhecimento de que os debatedores podem ter baseado suas convicções mais básicas em argumentos não convincentes, (ii) a uma percepção mais clara do valor das nossas atitudes e reações vitais a propósito de muitos aspectos da prática da união poligâmica, (iii) a uma visão mais realista das eventuais consequências pessoais e sociais da institucionalização da poligamia etc. — isto é, a uma compreensão mais reflexiva do status moral da união poligâmica. A constatação importante para os propósitos do presente trabalho é que a descrição acima faz referência às possibilidades discursivas da rejeição e da retratação, que são facilmente acomodáveis pelo relativista de apreciação, mas aparentemente não pelo contextualista não indexical.

Essa descrição simplificada do debate sobre a moralidade do casamento poligâmico não pressupõe indevidamente o que ela almeja deixar claro. O uso do vocabulário da rejeição e da retratação na descrição do debate moral não é induzido pela preferência teórica que deveria ser justificada via essa descrição. A ideia básica, independentemente plausível, é que a obrigação de procurar atingir um consenso racional e, consequentemente, a obrigação de buscar a retratação das asserções prévias questionadas no decorrer da conversação é uma característica essencial do debate moral. Esse é o ponto reconhecido por Schafer e que merece ser endossado por nós.

Como foi explicada na seção X, a obrigação da retratação tem uma conotação moral. Ela é requerida pela manutenção da integridade agencial de quem experimenta uma mudança na sua orientação normativa e almeja ainda permanecer no debate. O agente que passa por uma mudança na perspectiva pessoal induzida no âmbito de uma prática dialógica, tem de revogar as consequências normativas dos atos de fala realizados no passado, sob pena de perder o respeito e a consideração especial por parte dos seus parceiros da conversação. Isso se aplica com mais força, se o objeto do debate for uma questão moral.

O que foi dito até aqui nos permite colocar em perspectiva os resultados críticos de alguns trabalhos recentes cuidadosamente comentados por Teresa Marques. Em “Retractions,” Marques (2018) almeja revelar a falsidade das “intuições sobre a retratação” invocadas pelos defensores do relativismo de apreciação. As pesquisas empíricas revistas por Marques têm seu foco no uso de modais epistêmicos (Joe might be in Boston) e no uso de predicados estéticos e de gosto pessoal (Pocoyo is funny). Elas revelam que, de fato, os falantes reais não se sentem obrigados a retirar uma asserção feita mediante o uso de uma sentença Φ, mesmo quando eles reconhecem que não podem mais usar Φ no novo contexto. Eis um exemplo explorado por Marques:

Von Fintel and Gillies discuss several might claims where the prediction that one must retract fails. Consider for instance, that A asserts (1) and later finds that the kids finished the ice cream.

1. There might be ice cream in the freezer.

According to the relativist, when it is revealed that there is no ice cream left, the asserter of (1) ought to retract with something like “Oh, I guess I was wrong” or “I take that back, there’s no ice cream left then”.

The point von Fintel and Gillies make […], however, is that not all mights are retracted in the face of new evidence. Often, speakers resist an invitation to retract. A speaker could resist thus:

6. Look, I didn’t say there is ice cream in the freezer; I said there might be. Maybe the kids finished it last night. Sheesh. (MARQUES, 2018, p. 3345).


A lição que Marques retira de exemplos desse tipo é que o falante que se nega a retirar sua asserção prévia não deve eo ipso ser caracterizado como irracional. Com isso cairia, segundo Marques, a oportunidade de teorização semântica de certas construções linguísticas nos moldes do relativismo de apreciação:

This paper argued that there is no obligation to retract true past epistemic modal or personal taste assertions. There are enough resources available to offer an explanation of the permissibility of retractions in these central cases without the need to revise semantics. We know, moreover, that a constitutive rule for retractions that imposed an obligation to retract on speakers would commit them to either insincerity or irrationality. This undermines the point of assessment-relativism. (MARQUES, 2018, p. 3357).


O núcleo empírico na base desse comentário crítico pode ser concedido, desde que se atente às restrições nem sempre explícitas no trabalho de Marques. O que seu trabalho mostra é que seria injustificado ver no comportamento verbal dos agentes que se recusam a retirar suas asserções feitas mediante o uso de modais epistêmicos ou o uso de predicados de gosto pessoal meros erros de performance, que não precisam ser considerados por uma teoria do significado que almeja reconstruir a nossa competência linguística. Contudo, não se pode inferir daí, como Marques parece sugerir, que as “intuições sobre a retratação” são itens descartáveis de uma abordagem teórica errada: que é ilusória a obrigatoriedade da retratação postulada pelo relativista de apreciação. Por exemplo, continua sendo bastante plausível, a despeito dos casos nos quais se baseia o argumento desenvolvido por Marques, que há, no uso da linguagem da moral em situações de debate e desacordo racionais, fenômenos de retratação obrigatória que devem ser adequadamente acomodados por uma teoria semântica. Aqui, o contextualismo não indexical encontra seus limites.

Evidentemente, o diagnóstico negativo das abordagens semânticas que permanecem confinadas aos limites do contextualismo não indexical só se aplica às tentativas de explicação do uso linguístico marcado pelos fenômenos da retratação. Para explicar os setores da prática linguística onde a retratação é mais permissível do que obrigatória ou onde ela desempenha um papel marginal, não é necessário estender a noção de verdade sentencial até o ponto em que a verdade de um proferimento em um contexto de uso passe a depender essencialmente da perspectiva de apreciadores que ocupam outros contextos. O presente trabalho procurou mostrar, contra os contextualistas indexicais e os contextualistas não indexicais, que o tratamento adequado do uso de sentenças morais requer o endosso do ponto de vista relativista radical.


Contextualism and Relativism in Ethics


Abstract: According to a prominent approach in contemporary formal semantics, the truth of moral assertions depends on a normative perspective imposed on the facts of the world. The implementation of this approach known as indexical contextualism treats the dependence of moral truth on the corresponding moral perspective in analogy with the contextual dependence characteristic of sentences containing indexical terms. Alternatively, the moral perspective is seen as configuring the circumstances of evaluation in which the content expressed by the occurrence of a moral sentence is evaluated as true or false. The moderate version of this alternative view (non-indexical contextualism) considers that the truth of the occurrence of a moral sentence in a context of use is determined by the evaluation of its content in “the circumstance of the context”: the circumstance of evaluation represented by the same indexed set that represents the context of use. The radical version (assessment relativism), in turn, makes the truth of the occurrence of a moral sentence in a context depend essentially on the value of the normative standard in another context, from which the original utterance is assessed. Taking the judgment on the moral status of polygamous marriage as an illustration, the present work examines the competing merits of contextualist and relativist accounts of the use of moral language, especially in situations of disagreement and debate. The paper argues that, while indexical contextualism coupled with adequate pragmatic considerations can explain some relevant disagreement data, the alternative explanation of these data given by non-indexical contextualism is preferable, because it is simpler and more economical. It is also argued that relativism of assessment is better situated than non-indexical contextualism to explain the relevant phenomena of obligatory retraction and therefore to accommodate some discursive possibilities that play a central role in moral debates.


Keywords: Moral truth. Moral disagreement. Indexical contextualism. Nonindexical contextualism. Assessment relativism.


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Recebido: 12/09/2022

Aprovado: 14/11/2023



1 Eu agradeço enfaticamente a André Fuhrmann por suas observações críticas, que identificaram vários problemas em uma versão prévia do presente trabalho, ao mesmo tempo que continham propostas de solução valiosas. Eu espero ter incorporado adequadamente à versão final do trabalho os detalhes e o sentido geral de tais propostas.

2 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4817-0941. E-mail: wilsonpessoamendonca@gmail.com.

3 Lasersohn (2017, p. 11) escreve: “[…] if I say ‘I am drinking coffee’, what I directly assert is the content which the sentence I am drinking coffee has in the context of my assertion. Of course in so doing, I might also perform additional illocutionary acts indirectly: I might assert that I would not like tea, or invite you to have some coffee, or perform any number of other speech acts. It may in fact happen that indirect acts of this kind are much more central to my communicative intent in making the utterance than is the direct act, but they are indirect nonetheless. No doubt the objects of these other acts are things of the same type as the contents of sentences, but they are not the content of the sentence I am drinking coffee (even in context), in the sense of the term content intended here.”

4 A expressão sse abrevia se e somente se.

5 A distinção ser sobre X / dizer respeito a X foi introduzida por Perry (1986).

6 A explicação semântica de sentenças que contêm operadores modais aléticos (necessariamente, possivelmente) requer a presença da primeira coordenada w. Portanto, w é, por assim dizer, a coordenada obrigatória na semântica de sentenças que podem ser modalizadas aleticamente.

7 “What sort of intensional operators to admit seems to me largely a matter of language engineering.” (KAPLAN, 1989, p. 504).

8 MacFarlane (2014, p. 60) escreve: “[…] the only motivation for positing a coordinate of [circumstances of evaluation] is the presence of an operator that shifts it; conversely, the only grounds for objecting to a coordinate of [circumstances of evaluation] is the absence of such operators.”

9 Cf. King (2003), Lasersohn (2017, §8.7) e a discussão em Brogaard (2019).

10 Cf. MacFarlane (2007, p. 17).

11 Existe, é claro, a opção expressivista radical que consiste basicamente em negar que construções como Alcaçuz é saboroso tenham condições de verdade. Essa opção não será considerada aqui.

12 Os exemplos foram retirados de Kölbel (2002) e MacFarlane (2014).

13 As propostas de solução mais discutidas na literatura recente incluem (i) o quase-expressivismo (BJÖRNSSON; FINLAY (2010), FINLAY (2014, 2017)), (ii) o desacordo metalinguístico (PLUNKETT; SUNDELL (2013), KHOO; KNOBE (2018)) e (iii) o desacordo conversacional (SILK (2016, 2017)).

14 Cf. Silk (2017, p. 213): “A common contextualist strategy is to try to explain disagreement phenomena in the pragmatics, in terms of non-conventional aspects of use.”

15 A presente sugestão é baseada na semântica contextualista dos modais desenvolvida em Kratzer (1981, 1991) e na “Semântica dos Modais Informacionais” desenvolvida em Kolodny e MacFarlane (2010, §IV.3).

16 Cf. Kaplan (1989, p. 512): “We could then represent contexts by the same indexed sets we use to represent circumstances.”

17 Um contexto de apreciação é, por definição, “[...] a situation in which a (past, present, or future, actual or merely possible) utterance of a sentence might be assessed for truth or falsity.” (MACFARLANE, 2005, p. 18).

18 Isso especifica as condições de aplicação do predicado apreciado como verdadeiro, não do predicado sentencial verdadeiro.

19 “Every thinker possesses a perspective, and moreover everyone ought not to believe contents that are not true in relation to their own perspective.” (KÖLBEL, 2004, p. 307).

20 Sobre as regras constitutivas da asserção, ver Kölbel (2008, p. 250), Cappelen e Hawthorne (2009, p. 13) e MacFarlane (2014, §5.2).

21 “When we assess an assertion, made yesterday by Ted, that the Mona Lisa is beautiful, what matters for its truth is not Ted’s aesthetic standards but our own. So, we say that Ted has spoken truly if the Mona Lisa is beautiful by our standards.” (MACFARLANE, 2014, p. 90).

22 Os exemplos mais importantes são Kölbel (2002), Recanati (2007), Richard (2008), Brogaard (2008).