SOBRE O STATUS METAFÍSICO DAS CORES
Plínio Junqueira Smith
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Resumo: Neste artigo, pretende-se desenvolver uma concepção sobre as cores como parte de uma
visão cética do mundo. Para isso, investiga-se como alguns dos principais céticos, ao longo da
história da filosofia, conceberam as cores, seja em relação a outras qualidades sensíveis, seja em
relação ao objeto físico. Depois, à luz do debate entre Barry Stroud e John McDowell, descreve-
se aquela que parece ser a concepção comum das cores, sustentando-se que o cético não apenas
aceita que os objetos são coloridos, mas que ele pode saber qual é a sua cor, por meio da
percepção.
Palavras-chave: Qualidade secundária. Qualidade primária. Metafísica. Visão cética do mundo.
Dogmatismo. Percepção.
1 Suspensão do juízo e visão cética do mundo
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Os céticos foram vistos como críticos da metafísica. Contudo, historicamente, eles
combateram o dogmatismo, não a metafísica. É comum confundir os termos “metafísica”
e “dogmatismo”. A palavra “metafísica” adquiriu muitos sentidos diferentes, ao longo
dos séculos, mas um de seus principais sentidos, hoje, é o de que a “metafísica” é uma
área da filosofia: ao lado da ética, da política, da estética, da epistemologia etc., haveria
um domínio específico que seria a “metafísica”. Enquanto, por exemplo, a epistemologia
trata do conhecimento e a ética do bem e do mal, a metafísica trataria da realidade.
Todavia, o dogmatismo é um tipo de reflexão que pretende transcender o domínio da
experiência, de modo que uma teoria dogmática se diferencia radicalmente de uma teoria
científica. Com efeito, Sexto define “dogma” como “[...] assentimento a uma proposição
não-evidente (adelon)” (2000, 1.16) e Hume condena às chamas todo livro que não tratar
de matemática ou não contiver “[...] raciocínios experimentais sobre questão de fato ou
existência.” (1985, 12.iii.132, p. 165).
Mas é preciso manter essas duas expressões separadas. Neste artigo, usarei
“metafísica” no sentido de uma área específica da filosofia, aquela que se ocupa em saber
como é a realidade e, por “dogmatismo”, entenderei um tipo de teoria que envolve de
maneira crucial a aceitação de entidades naturalmente não observáveis, isto é, que não
1
Docente na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), São Paulo, SP Brasil. Bolsista Produtividade
do CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5239-3190. E-mail: plinio.smith@gmail.com.
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Agradeço a André Vasques Abreu, Israel Vilas Bôas, Oscar Moreira dos Santos e, especialmente, a Raquel
Albieri Krempel, cujos comentários e sugestões me ajudaram a corrigir e reformular uma versão prévia
deste artigo, evitando alguns erros e tornando algumas ideias mais precisas. Agradeço também ao
parecerista, cujos comentários úteis e cuidadosos me levaram a reformular diversas passagens.
podem nunca ser observadas, ou um discurso explicativo não submetido a um controle
empírico. Assim, em qualquer investigação filosófica, um filósofo pode ser dogmático ou
cético: dogmático, quando aceita entidades controversas e que não fazem parte da
experiência do mundo; ou cético, quando suspende o juízo a respeito delas, mas pode
aceitar explicações empíricas sobre o mundo em que vivemos e que percebemos (neste
caso, entidades aceitas pelas teorias científicas, na medida em que são passíveis de
controle empírico, podem ser aceitáveis para o cético). Como veremos, suspender o juízo
sobre entidades não empíricas e controversas não impede o filósofo cético de ter crenças,
e até conhecimento, sobre as coisas que fazem parte de nossa experiência do mundo.
Convém insistir nessa ideia, porque ela diverge da ideia de ceticismo que boa parte dos
filósofos tem.
Os céticos investigam questões filosóficas tanto quanto os dogmáticos. Sexto
destaca que estes pretendem ter encontrado a resposta correta, enquanto aqueles não têm
nenhuma resposta a oferecer e continuam investigando (2000, 1.1-4). Mas essa posição
inicial de Sexto precisa ser mais bem explicada, porque ao menos dois tipos de
investigação. A investigação filosófica, tal como praticada pelos dogmáticos, concerne a
algo obscuro ou não evidente (na terminologia estoica que Sexto utiliza). Na medida em
que é controverso (diferentes dogmáticos dão diferentes respostas), um assunto é obscuro
ou “não evidente”. Porém, há investigações que lidam com as coisas manifestas, claras e
evidentes e que, enquanto tais, não suscitam controvérsia. Essas investigações são
empíricas, visto que lidam com aquilo que se revela na experiência. Os dogmáticos, para
estabelecer a verdade de uma tese sobre o não evidente, pretende transcender o domínio
da experiência. Teses sobre as coisas obscuras podem ser estabelecidas, segundo os
próprios dogmáticos, com argumentos não empíricos. A suspensão cética do juízo só diz
respeito a essa pretensão dogmática de transcender a experiência por meio de um discurso
argumentativo. Quando se tem essa pretensão, os céticos lembram que argumentos
para teses opostas e, assim, a investigação não chegou a um consenso.
Isso vale, por exemplo, para a epistemologia e para a ética. Os céticos investigam
os principais tópicos em cada uma dessas áreas da filosofia e não chegam a nenhum
veredito, não defendendo nenhuma teoria do conhecimento, em particular, nem
advogando uma doutrina sobre valores morais como objetivos ou subjetivos. Isso não os
impede, contudo, não somente de ter conhecimentos empíricos em sua vida cotidiana ou
de sustentar valores que digam respeito à sua prática, como também podem ter uma
concepção filosófica do conhecimento ou dos valores morais, desde que não envolva
“coisas não evidentes” ou um saber não empírico. A meu ver, um cético pode ter uma
teoria empirista ou naturalista do conhecimento, desde que essa teoria fosse construída
empiricamente e se sujeitasse aos resultados empíricos e científicos.
O que vale para a epistemologia e para a ética também vale para a metafísica. O
cético não aceita nenhuma teoria dogmática sobre uma realidade obscura, porque
controversa, e, no entanto, pode ter uma concepção sobre o mundo, quais coisas existem
(pessoas, rios, pedras) e quais são imaginárias (bruxas, formas platônicas e os átomos de
Demócrito), pois, em nossa experiência do mundo, traçamos essa distinção. O dogmático,
entretanto, transforma essa distinção comum entre a realidade e a aparência numa
distinção dogmática. Qual a diferença? Primeiro, a diferença reside nos objetos que caem
em cada lado da distinção: o que, na distinção comum, é um objeto real (um livro), na
distinção filosófica, é considerado uma aparência. De fato, todos os objetos reais, segundo
a nossa distinção comum, passam a ser vistos como meras aparências e, no melhor dos
casos, indícios da “verdadeira” realidade.
Isso leva a uma segunda diferença entre a distinção comum e a dogmática. O
próprio conceito de realidade parece mudar, embora talvez seja difícil explicar essa
mudança. É certo que, para as duas distinções, toda realidade é independente do que
percebemos ou pensamos; se não fosse independente, não diríamos se tratar de uma
realidade. Enquanto, na distinção comum, o que percebemos ou concebemos é
independente de nós, para o filósofo dogmático, contudo, é algo dependente. Assim, o
dogmático parece dar um passo a mais: além de ser independente, a realidade também
seria, por assim dizer, absoluta. Então, para deixar clara a diferença entre a concepção
comum e a concepção dogmática, seria conveniente usar a expressão “realidade absoluta”
para a última, falando da “realidade”, quando se tratar da concepção comum. Os
dogmáticos exigem que, além da experiência, seria preciso de um argumento que
demonstrasse que as coisas são realmente como as percebemos, ao passo que os céticos
aceitam, como todo mundo, que a experiência basta para estabelecer a realidade de
alguma coisa.
A essa concepção empírica e não dogmática do mundo, Porchat (2007, p. 136)
deu o nome de “visão cética do mundo”, embora, por prudência, tenha se recusado a
chamá-la de “metafísica” (2007, p. 137). Porém, tendo esclarecido o significado em que
uso “metafísica”, não vejo por que não a caracterizar como tal. Parte importante da visão
cética do mundo depende de uma compreensão de como nós concebemos o mundo, em
nossa vida cotidiana (SMITH, 2017, p. 159-196; 2020, p 162-171). o vejo como
começar uma investigação filosófica sem aceitar a nossa visão cotidiana do mundo. É
preciso partir de algum lugar, e esse lugar não pode ser a suposição de alguma teoria
filosófica, ou mesmo científica, porque isso seria arbitrário, ou dependeria da aceitação
prévia da visão comum do mundo. Se, no final dessa investigação filosófica, acabamos
por nos tornar céticos, isso se deve, ao menos em parte, por não termos aceitado as teorias
dogmáticas que fatalmente envolvem uma reformulação de nossa visão inicial. Portanto,
sem termos razões filosóficas para abandonarmos as crenças de que partimos, a filosofia
“[...] deixa tudo como está.” (WITTGENSTEIN, 2009, p. 124).
Não é claro, no entanto, como descrever essa visão comum do mundo que
compartilhamos na vida cotidiana. Neste artigo, eu gostaria de investigar um tópico
específico, para tentar descrever um aspecto certamente secundário, mas ainda assim
relevante, da nossa visão comum do mundo e, dessa maneira, começar a elaborar uma
parte da visão cética do mundo. A questão a ser investigada é: numa metafísica cética,
qual o status das cores? Eis, a meu ver, uma questão filosófica instigante que um cético
contemporâneo, isto é, o neopirrônico, pode responder positivamente, mesmo que
suspenda o juízo sobre as respostas dogmáticas.
Todavia, no cenário contemporâneo, o ceticismo é visto, com frequência, como
uma doutrina negativa ou uma forma de dogmatismo negativo, isto é, como a tese de que
não temos conhecimento ou de que não sabemos nada. Essa concepção do ceticismo (a
meu ver, equivocada) favorece uma determinada posição na questão das cores. Para um
cético contemporâneo, poder-se-ia pensar, as cores são meras sensações subjetivas, e não
propriedades objetivas das coisas materiais ou objetos físicos, como mesas, livros, frutas
e árvores. Uma maçã não seria vermelha, mas o vermelho seria uma característica
fenomênica da nossa sensação, ao perceber a maçã; uma flor não seria amarela, mas teria
a disposição de produzir em nós a sensação do amarelo. Afirmar que as coisas materiais
ou objetos físicos têm uma determinada propriedade (por exemplo, essa ou aquela cor)
seria comprometer-se com um dogmatismo inaceitável para um cético, porque implicaria
uma crença sobre como as coisas são, no mundo à nossa volta.
Talvez se pudesse mesmo dizer que essa foi, desde sempre, a opinião de todos os
céticos. Os céticos antigos admitiriam que as coisas aparecem de tal ou tal cor para nós,
porém, isso seria admitir somente que é em relação a nós que elas aparecem com essa ou
aquela cor, mas, sobre se as coisas têm realmente essa ou aquela cor, eles suspenderiam
o juízo. Do mesmo modo, os céticos modernos, como Hume, sustentam que as qualidades
secundárias estão na mente; ora, as cores são qualidades secundárias; portanto, estão
apenas na mente, não nos objetos externos a ela.
Não me parece, entretanto, que o assunto se resolva de maneira tão fácil, seja do
ponto de vista histórico, seja da reflexão contemporânea. Porque o subjetivismo das cores
pode parecer, para um cético pirrônico antigo, uma forma de dogmatismo, uma vez que
o subjetivismo afirma a tese filosófica de que as cores são propriedades de sensações (ou
percepções), não das coisas materiais ou dos objetos físicos. Um cético deveria, antes,
suspender o juízo a respeito do status metafísico das cores. A seção 2 deste artigo é
dedicada a um estudo do que os céticos antigos e modernos disseram sobre as cores.
A seção 3 apresenta o debate entre Barry Stroud e John McDowell. Ambos tentam,
cada um à sua maneira, descrever nosso conceito comum de cor. Mas encontramos
descrições conflitantes. McDowell defende uma concepção subjetivista e Stroud faz a
crítica do subjetivismo. Esse debate me permite balizar a discussão sobre qual seria uma
concepção cética das cores. Talvez seja importante assinalar, desde já, que esse é um
debate que pretende prescindir das ciências naturais ou de qualquer argumento que
dependa da investigação empírica do mundo. Isso, certamente, limita o interesse do
debate, mas, de outro, enseja determinar com mais precisão o conceito comum de cor,
antes mesmo de qualquer investigação científica.
O objetivo da seção 4 é descrever qual seria, numa visão cética do mundo, o status
metafísico das cores. Supondo que Stroud e McDowell apresentem respostas compatíveis
com o neopirronismo, qual dessas respostas expressa de forma mais adequada e coerente
uma visão cética do mundo? Qual dessas descrições das cores capta melhor a concepção
comum das cores e, dessa maneira, constitui o ponto de partida para a elaboração de uma
visão cética das cores? A meu ver, uma concepção cética do mundo não se limita a uma
descrição do conceito comum de cor, contudo, deve começar com ela, para, em seguida,
avaliar as contribuições da ciência ao nosso conceito comum de cor (SMITH, 2020, p.
162-171).
2 A tradição cética e as cores
Qual teria sido a posição de um pirrônico antigo a respeito das cores? Nos Dez
Modos de Enesidemo, as cores são exemplos frequentes de oposição entre nossas
percepções do mundo físico e dos objetos externos (por ex., SEXTO EMPÍRICO, 2000,
1.94, 1.120). Um exemplo clássico é o dos olhos de quem sofre amarelão ou de quem tem
olhos avermelhados, os quais alterariam a percepção das cores de um objeto. Nesses
casos, o cético concluiria que podemos dizer que os objetos aparecem com esta ou aquela
cor para nós, mas não podemos dizer qual é realmente a sua cor. Entretanto, os céticos
antigos têm argumentos que parecem ir mais longe: se o que percebemos é uma mistura
do objeto externo com o meio externo, com nossos órgãos sensoriais e com nossa mente
(2000, 1.126) ou se tudo é relativo a quem percebe e julga (2000, 1.135-136), então pode
ser que, não somente não sabemos qual é a cor que um objeto tem, mas sequer sabemos
se os objetos têm cor. Haveria uma suspensão do juízo a respeito das cores entendidas
como propriedades objetivas das coisas, porém, o cético admitiria com que cor elas nos
aparecem.
Além disso, na investigação da parte física da filosofia, Sexto não trata da
realidade das cores. Os tópicos de que trata a física são: Deus, causa, corpo, espaço,
movimento, número, tempo etc., mas não uma preocupação específica com as cores.
Não estaria Sexto admitindo implicitamente que as cores não fazem parte do mundo físico
ou, pelo menos, que os objetos físicos poderiam não ter cor? Com base nessas passagens,
poder-se-ia inferir que as cores são, para um pirrônico antigo, uma mera sensação que
não corresponde a nada objetivo.
Nos Dez Modos, entretanto, as cores são exemplos menos frequentes do que se
poderia esperar, à primeira vista. Não nenhum privilégio da variação das percepções
de cores, e outros exemplos, como o gosto do vinho e a sensação causada pelo vento, são
tão, ou até mais, frequentes quanto as cores dos objetos. Por exemplo, quando trata das
oposições entre as percepções dos sentidos usadas por Heráclito (2000, 1.210-211) e por
Demócrito (2000, 1.213-214), Sexto não menciona as cores. O gosto do mel é seu
exemplo preferido. Sexto estabelece oposições entre percepções referentes aos cinco
sentidos com igual insistência e, mesmo entre percepções visuais, as cores não gozam de
nenhum privilégio. Sexto opõe também percepções visuais das assim chamadas
qualidades primárias, como movimento e repouso (2000, 1.107), e a forma de um objeto
(2000, 1.118). Desse ponto de vista, as cores seriam tão “subjetivas” quanto o movimento
e a forma de um objeto.
De fato, o cético opõe percepções visuais a percepções táteis, que, diante de um
quadro, a visão percebe um objeto tridimensional, enquanto o tato percebe um objeto
bidimensional (2000, 1.92). Noutras palavras, Sexto não dá nenhuma indicação de traçar
a distinção entre qualidades primárias e secundárias, incluindo as cores nesta última
categoria. Assim, ou todas as propriedades dos corpos são igualmente subjetivas, ou não
nenhuma razão para afirmar que as cores, em oposição à forma e movimento, o são.
Embora haja controvérsia entre os estudiosos de Sexto, a interpretação mais plausível, a
meu ver, sustenta que o fenômeno (o que aparece) não é uma mera entidade mental,
contudo, é o objeto que aparece. Se isso for correto, pode-se dizer que, assim como o mel
aparece doce, uma maçã aparece vermelha.
Com relação à parte física, convém lembrar que Sexto investiga o que está nas
doutrinas dogmáticas, e são estas que definem os tópicos a serem investigados, não o
cético. Nesse sentido, quem exclui as cores como um assunto privilegiado a ser
investigado pela filosofia é o dogmático, não o cético. A nenhum momento vemos Sexto
traçar alguma distinção entre tipos de qualidades dos objetos, tal como estamos discutindo
aqui, ou tratar as cores e outras qualidades de modo diferente das assim chamadas
qualidades primárias. Seguindo os dogmáticos, Sexto ordena sua investigação de outra
maneira, em torno de noções como princípios ativos e passivos, corpóreos e incorpóreos.
Tudo leva a crer que essa distinção entre qualidades primárias e secundárias é, a seu ver,
uma distinção dogmática, cujo representante na Antiguidade é o dogmatismo atomista de
Demócrito. Essa é, portanto, uma distinção de um dogmatismo particular, não uma
distinção relevante (naquele contexto) para ordenar uma investigação geral sobre a parte
física da filosofia. O cético pirrônico faz um ataque metódico ao dogmatismo, não se
preocupando, em geral, com doutrinas dogmáticas particulares (2000, 2.21, 2012, 1-3).
Os céticos modernos viram-se confrontados com a distinção entre qualidades
primárias e qualidades secundárias como um tópico central da filosofia moderna. Hume
chega mesmo a dizer que “[...] o princípio fundamental dessa filosofia é a opinião a
respeito das cores, sons, sabores, aromas, calor e frio, os quais afirma serem apenas
impressões na mente, derivadas das operações dos objetos externos e sem qualquer
semelhança com as qualidades dos objetos.” (2004, 1.4.4.3). Após referir-se à
importância de Gassendi na retomada do ceticismo antigo, Bayle deixa esse ponto muito
claro: “Hoje, a nova filosofia tem uma linguagem mais positiva: o calor, o odor, as cores
etc. não estão nos objetos de nossos sentidos, são modificações de minha alma, sei que os
corpos não são como me parecem.” (2005, “Pirro”, B).
Como essa distinção foi empregada por diversos filósofos, para sustentar uma
visão dogmática da realidade, a saber, que os objetos físicos seriam essencialmente
extensos e suas propriedades (forma, movimento etc.) poderiam ser matematizadas, os
céticos modernos trataram de atacar essa distinção:
[...] gostar-se-ia de excluir a extensão e o movimento, mas não se pode, pois,
se os objetos dos sentidos nos parecem coloridos, quentes, frios, cheirosos,
embora não o sejam, por que não poderiam parecer extensos e figurados, em
repouso e em movimento, ainda que não tivessem nada disso? (BAYLE, 2005,
“Pirro”, B).
Talvez seja importante notar, para deixar mais claro qual é o foco do problema,
que os céticos não atacaram o uso da matemática na explicação da natureza, mas tão
somente a ideia dogmática de que a natureza seria em si mesma escrita em linguagem
matemática; o recurso à matemática, para explicar os fenômenos naturais, não é
questionado pelos céticos (HUME, 1985, 4.i.27, p. 31). Mesmo que não se aceite a tese
de que os corpos materiais são extensos na sua essência, isso não impede uma ciência que
lance mão da matemática para explicar o seu comportamento. A questão, portanto, diz
respeito somente à essência da matéria.
Bayle desferirá um poderoso ataque à ideia de que a extensão é a essência dos
corpos materiais, em seu verbete “Zenão de Eléia”. Primeiro, Bayle relembra os
argumentos de Zenão contra o movimento (2005,Zenão de Eléia”, F). Mas a crítica de
Zenão atinge somente uma modalidade do corpo material, a saber, o movimento, mas não
a sua essência, isto é, a extensão. É preciso, então, levar essa batalha até o seu âmago e
mostrar que a extensão não pode ser uma propriedade dos corpos. Para Bayle, a extensão
é somente algo “ideal”, não uma propriedade dos objetos em uma realidade independente.
Primeiro, Bayle desenvolve um longo raciocínio, idêntico na forma a muitos argumentos
empregados por Sexto, para provar que a extensão não existe. Eis o silogismo hipotético
de Bayle:
Se a extensão existisse, seria composta, ou por pontos matemáticos, ou por
pontos físicos, ou por partes infinitamente divisíveis;
Ora, a extensão não é composta, nem por pontos matemáticos, nem por pontos
físicos, nem por partes infinitamente divisíveis;
Portanto, a extensão não existe. (2005, “Zenão de Eléia”, G)
A forma gica, assevera ele, é claramente válida, restando somente estabelecer
as premissas. A primeira premissa enumera exaustivamente as possibilidades lógicas da
questão: ou a matéria é divisível, ou não é; se for divisível, sua divisão termina num ponto
com extensão (ponto físico) ou sem extensão (ponto matemático). O problema, por
conseguinte, gira em torno da segunda premissa. Segundo Bayle, “[...] cada uma dessas
três seitas, quando somente ataca, triunfa, arruína, abate, mas, por sua vez, é abatida e
destruída quando se coloca na defensiva.” (2005, “Zenão de Eléia”, G). É fácil ver que,
com base em pontos matemáticos, nunca se produzirá uma reta, pois a soma de infinitos
zeros é zero; assim, a extensão não pode ser constituída de pontos matemáticos. Também
é fácil ver que a ideia de pontos físicos (ou átomos) é absurda, pois um ponto físico admite
partes (o lado direito, mais perto de outro ponto físico à sua direita, e o lado esquerdo,
mais longe desse outro ponto físico; assim, pode-se dividir o ponto físico). Mais longa é
a refutação da doutrina da infinita divisibilidade. Deixo-a de lado, por nos afastar demais
do nosso assunto. Se as duas premissas são verdadeiras e a forma lógica é válida, a
conclusão se segue inevitavelmente: a extensão não existe.
Após estabelecer essa conclusão, Bayle dá um passo a mais e afirma:
É preciso reconhecer, com relação ao corpo, o que os matemáticos reconhecem
com relação às linhas e superfícies, dos quais demonstram tantas coisas belas.
Eles aceitam de bom grado que um comprimento e largura sem profundidade
são coisas que não podem existir fora de nossa alma. Digamos o mesmo das
três dimensões. Estas poderiam encontrar lugar em nossa mente, podem
existir apenas idealmente. (2005, “Zenão de Eléia”, G)
Portanto, a posição de Bayle não somente nega a existência real da extensão, mas
também admite que ela existe apenas na mente. Enquanto Sexto se utilizava de
argumentos hipotéticos para negar a existência de alguma coisa, a fim de equilibrar o
debate, contrapondo-os a argumentos igualmente fortes a favor da existência real do
espaço (e do corpo material), Bayle parece julgar que esse argumento hipotético é o mais
forte, impondo uma conclusão negativa.
De modo coerente, que não traça a distinção entre qualidades primárias e
secundárias, Bayle afirma que as cores também existem apenas idealmente, mas não
realmente. “Nossa mente é um certo fundo em que cem mil objetos de cor diferente, de
figura diferente e de situação diferente se reúnem, pois podemos ver todos de uma só vez
do alto de uma colina uma vasta planície salpicada de casas, árvores, rebanhos etc.”
(2000, “Zenão de Eléia”, G). Dessa forma, Bayle dá um passo que Sexto não deu, porque
nega que a extensão e as cores sejam propriedades objetivas dos corpos materiais,
afirmando que existem apenas na nossa mente, enquanto Sexto suspende o juízo sobre
esse tópico. Há, portanto, uma forma de idealismo, na posição de Bayle.
Talvez seja interessante fazer uma breve comparação entre o idealismo
fenomênico de Bayle e o idealismo transcendental de Kant, porque se pode sustentar o
idealismo, seja com a distinção entre qualidades primárias e secundárias, seja sem essa
distinção. Bayle parece ter antecipado, ao menos em parte, a filosofia transcendental
kantiana, segundo a qual devemos distinguir entre as coisas em si mesmas e as coisas
enquanto fenômenos que aparecem para nós. Kant (2000, A28-9/B44), contudo, traçará
a distinção entre qualidades primárias e secundárias no interior desse mundo que aparece
à mente humana: o vermelho da rosa não é uma propriedade da rosa que aparece, mas
somente sua forma.
Bayle, ao contrário de Kant, rejeita essa distinção e, no interior do mundo
fenomênico, tratará todas as qualidades sensíveis em pé de igualdade. Berkeley (1998, I,
9-15, p. 105-8) levará adiante a posição de Bayle, elaborando de maneira mais detalhada
o que significa que qualidades primárias (extensão, movimento, forma etc.) e qualidades
secundárias (cores, odores, sabores etc.) são somente propriedades de objetos que existem
na mente, não na matéria. Essa divergência mostra que o status metafísico das cores pode
reaparecer, num debate entre idealistas.
Vejamos como Hume lidou com essa questão. O ceticismo humiano claramente
se distingue do de Bayle (RYAN, 2013). Para Hume, é possível encontrar uma maneira
de resolver o impasse entre aquelas três teorias sobre a extensão que foram criticadas por
Bayle. Se este, raciocinando à maneira dos céticos antigos, destruía as três teorias e
concluía, de maneira pouco cética, que a extensão não existe, Hume deixará de lado o
raciocínio hipotético que rejeita as três teorias, e defenderá uma delas, porém,
paradoxalmente, restaurará a suspensão do juízo por uma via original. Para evitar as
dificuldades levantadas por Bayle, Hume admitirá que existem pontos matemáticos
coloridos (ou táteis) e, assim, será possível gerar uma reta com base em pontos
matemáticos coloridos, caindo por terra a dificuldade levantada por Bayle (2004, 1.2.2.9,
T 1.2.3.14). Hume, obviamente, não tinha a intenção de reviver a teoria dogmática de que
a extensão é a essência da matéria, mas pretendia mostrar que a nossa ideia de extensão
é uma ideia adequada dos corpos físicos (2004, 1.2.2.1). A seu ver, a ideia que temos da
extensão e que representa adequadamente a extensão é uma ideia que não pode ser
separada das cores.
Essa solução humiana para o problema cético da extensão possibilita reavaliar o
status metafísico das cores. Como a ideia de extensão é uma ideia adequada, pode-se dizer
do objeto aquilo que concebemos na sua ideia. Logo, se a ideia de extensão que temos
envolve necessariamente a cor, então, os corpos materiais, por serem extensos, também
são coloridos. A indissociabilidade da extensão e da cor estaria na base da nossa ideia do
que é um corpo material e, sem essa indissociabilidade, o ceticismo de Bayle triunfaria.
Não somente concebemos que o corpo material extenso é colorido, como também é
impossível para nós conceber os corpos de outra maneira, sob o risco de cair no trilema
suscitado por Bayle. Se retirarmos as cores dos objetos físicos, não teremos como
concebê-los adequadamente. Na verdade, ao retirar qualidades primárias e secundárias,
não restará nada que possamos conceber como a causa de nossas percepções (1985, 12.
i.123, p. 155).
Assim, longe de relegar as cores à categoria de qualidades secundárias que
existiriam apenas na mente, em oposição à extensão (como fazem dogmáticos realistas,
como Descartes, Locke e Malebranche), ou de considerá-las como meramente mentais ao
lado das demais qualidades que seriam igualmente mentais (como fazem dogmáticos
idealistas, como Bayle, Berkeley e Kant, embora este recupere a distinção dogmática
realista no interior do “mundo fenomênico”), o cético humiano se limita a reconhecer que
os corpos materiais extensos são também coloridos, tentando explicar como a mente
humana concebe esses corpos.
Há, portanto, quatro posições básicas. Entre os que aceitam a distinção entre
qualidades primárias e secundárias, estão sobretudo os realistas (Galileu, Descartes,
Hobbes, Locke, Malebranche etc.), mas também idealistas transcendentais (Kant). Entre
os que não aceitam a distinção entre qualidades primárias e secundárias, estão
principalmente os idealistas fenomênicos (como Bayle) ou “idealistas dogmáticos”, como
Kant (2000, B274) chamava Berkeley (Berkeley chamava sua própria filosofia de
“imaterialismo”), mas também os céticos (Sexto Empírico e Hume), os quais aceitam a
vida cotidiana e a existência de objetos físicos extensos e coloridos (entre outras
qualidades).
Em suma, os céticos, quer antigos, quer modernos, jamais assentiram à proposição
de que as cores são sensações produzidas em nós pelos objetos físicos. Embora se notem
diferenças entre suas posições, resta que, de um modo geral, cores são concebidas por
eles como uma qualidade, entre tantas outras, com que os corpos materiais se apresentam
a nós. Diante das controvérsias entre os dogmáticos, os céticos não podem afirmar que
cores são propriedades intrínsecas dos corpos, e eles dispõem mesmo de argumentos que
parecem estabelecer que não o são, todavia, podem dizer, segundo sua concepção, que os
corpos são coloridos, que lhes aparece que os corpos têm cores, assim como têm forma,
que a maçã, por exemplo, além de ser redonda, também é vermelha. Para o cético,
concebemos e percebemos as cores como qualidades que os objetos têm.
3 Uma investigação do conceito comum de cor
Passemos ao problema das cores, tal como tratado pela filosofia contemporânea.
A questão que nos ocupará é a de saber se, fora do contexto dogmático e dentro do
contexto da vida cotidiana, aceita-se a distinção entre qualidades primárias e secundárias
e, mais especificamente, se as cores são tomadas como qualidades secundárias ou como
primárias, isto é, se, de acordo com a nossa concepção comum de cor, as cores existem
no objeto ou apenas em nossa mente. Claramente, as coisas aparecem como tendo cores.
Não somente percebemos as folhas das árvores como sendo verdes, mas também
efetivamente pensamos que os corpos são coloridos. Mas no que consiste, exatamente,
esse pensamento? Qual é a concepção comum que temos das cores?
O fio condutor de minha reflexão será o debate entre Stroud e McDowell sobre o
status metafísico das cores. Ambos os autores são difíceis e suas posições, complexas. O
debate tem uma dinâmica própria. Antes, porém, eu gostaria de tecer algumas
considerações iniciais, para situar melhor suas divergências e justificar o meu interesse
particular por esse debate. Não entendo o debate entre Stroud e McDowell como um
debate entre dois dogmáticos. A meu ver, Stroud é um neopirrônico e McDowell, embora
um pensador mais obscuro e ambíguo, tem afinidades com o neopirronismo. Vejamos
isso mais de perto.
Stroud (2000) considera três possibilidades de desmascarar as cores, isto é, de
argumentar para provar que as cores não são propriedades intrínsecas ou objetivas dos
corpos materiais: as cores poderiam ser somente entidades mentais subjetivas ou meras
sensações internas, como a dor; as cores poderiam ser uma percepção intencional
produzida por um objeto físico, de modo que elas existiriam nesse objeto como uma
disposição a causar a percepção; as cores poderiam ser propriedades do objeto, que o
objeto físico não teria a propriedade que vemos, mas outra diferente. Se alguma dessas
tentativas de desmascarar a opinião de que os corpos são coloridos for bem-sucedida, os
filósofos se tornariam dogmáticos e diriam: “as cores não existem realmente”, sugerindo
que a opinião inicial de que existiriam foi, após a investigação filosófica, abandonada (“as
cores parecem existir, mas não existem realmente”).
Para cada maneira de tentar desmascarar as cores como propriedades dos corpos
materiais, Stroud esgrime um argumento diferente. Não é o caso de passá-los em revista
aqui. Suponhamos que sua argumentação seja bem-sucedida. O que se segue? De um
lado, que o veredito negativo dos filósofos, segundo o qual “as cores não são propriedades
intrínsecas dos objetos”, não se justifica, pois os argumentos não o sustentam. De outro,
tampouco se seguiria o veredito positivo, “as cores existem realmente”, porque o fracasso
da tentativa filosófica de desmascarar a objetividade das cores não implica que elas sejam
propriedades intrínsecas dos objetos, isto é, não uma argumentação dogmática que
estabeleça a conclusão de que as cores existem. Permanecemos com a crença cotidiana,
dado que não por que abandoná-la, mas isso não significa que a investigação filosófica
descobriu algum argumento que a justifique (STROUD, 2000, p. 192-209).
McDowell (2011, p. 218-219) concorda, em linhas gerais, com essa posição de
Stroud. Também ele pensa que o projeto filosófico de rejeitar ou justificar a crença
cotidiana de que os objetos são coloridos está fadado ao fracasso. O famoso “quietismo”
de McDowell pode ser interpretado desta maneira: permanecer “quieto” é não afirmar,
nem negar nada, é simplesmente não se pronunciar sobre uma questão filosófica
concebida como uma “busca da realidade”, ao mesmo tempo que se preserva a crença
comum. Quando Stroud não emite um juízo negativo, nem um positivo, ele está ipso facto
suspendendo o juízo; quando McDowell adota uma postura quieta, ele também está
retendo o seu juízo. Portanto, McDowell parece aceitar a ideia de que, na busca filosófica
da realidade, não caberia afirmar, nem negar a objetividade das cores. Isso não os impede,
como visto, de continuar a manter a crença comum, sem, no entanto, dar-lhe um peso
dogmático.
O caráter cético dessa posição é reconhecido por McDowell. Com efeito, este “[...]
aplaude o ceticismo de Stroud sobre a ideia de que desmascarar a realidade das cores
como propriedades dos objetos, com o argumento de que cores são subjetivas, pode servir
como um meio para dar substância àquela suposta noção especial de realidade.” (2011, p.
218-9). Para McDowell, o [...] ceticismo de Stroud sobre a adequação dela [distinção
entre qualidades primárias e secundárias] para esse propósito está bem fundamentado.”
O que talvez explique essa afinidade é que, até onde posso ver, esses dois filósofos se
nutrem de Wittgenstein, cuja filosofia exibe uma certa desconfiança das teses dogmáticas.
Stroud e McDowell parecem, ambos, cada um à sua maneira, suspender o juízo no que
diz respeito à pergunta filosófica sobre o status metafísico das cores.
Podemos ver tanto Stroud como McDowell envolvidos num projeto não
dogmático (portanto, cético) de descrever ou explicar nossa concepção comum das cores.
O próprio Stroud (2018a) reconhece uma série de afinidades entre o seu pensamento e o
de McDowell, embora procure ressaltar que essas são somente superficiais. Ambos
aceitam que os objetos causam em nós uma determinada percepção, que, por exemplo,
um tomate produz em nós a percepção de um tomate vermelho. Ambos aceitam que a
percepção da cor de um objeto envolve algum elemento subjetivo, temos uma
experiência. E ambos recusam que se trate de uma “experiência interna” (MCDOWELL,
1996, p. 31, n. 7; 2005, p. 68, n. 7).
Além disso, ambos concordam que os objetos físicos têm a disposição para
produzir em nós essa percepção. Um objeto físico, dadas certas circunstâncias e certos
seres com certos órgãos de percepção, tem a capacidade de produzir nesses seres
percepções de determinado tipo. Stroud admite até que se possa ver que objetos físicos
têm disposições, como podemos verificar, por exemplo, que o açúcar tem a disposição de
se dissolver em água, quando colocamos uma colher de açúcar na água e a mexemos com
uma colher. A meu ver, uma explicação cética do conceito comum de cor tem de admitir
todos esses pontos, sem incorrer em dogmatismo. Por exemplo, um cético não pode
pensar que a cor é “essencialmente perceptível”. A tese neutra de Stroud, de que a cor é
somente visível, parece fazer jus ao conceito comum e, ao mesmo tempo, é perfeitamente
compatível com o ceticismo.
Passemos ao debate e às divergências entre eles. Seguirei a seguinte ordem: (a)
primeiro, apresentarei o que McDowell (1996) diz sobre as cores e, em seguida, como
McDowell (2004, 2011) elabora um subjetivismo com “conexão direta” das cores; (b)
depois, volto-me a Stroud (2000), que antecipa e refuta a posição posterior de
McDowell, sustentando que um subjetivismo com “conexão direta” é incoerente; (c)
cabe, então, retomar McDowell (2004, 2011) para ver em que medida ele pretende ter
afastado as objeções de Stroud (2000), mostrando a coerência de sua posição; (d) Stroud
(2004, 2018a), diante dos argumentos de McDowell (2004, 2011), procura mostrar que
este não conseguiu elaborar uma concepção adequada do subjetivismo; (e) para encerrar
esta seção, proponho uma avaliação desse debate.
(a) Nas três primeiras conferências de seu já clássico Mente e mundo, McDowell
sustenta a tese de que a experiência está impregnada de conceitos. Nesse contexto, ele
trata das cores como possíveis contraexemplos para sua tese, porque, aparentemente, elas
seriam não conceituais. Mas, argumenta McDowell (1996, p. 29-33, 56-60; 2005, p. 66-
71, 93-97), a sua tese vigora até onde pareceria o valer, isto é, mesmo as cores exibiriam
algum elemento conceitual. Frases altamente observacionais também conteriam um
elemento conceitual. Há, para McDowell, uma conexão racional entre “S vê que a maçã
é vermelha” e “S pensa que a maçã é vermelha”, uma vez que ambas compartilham o
mesmo conteúdo, isto é, a mesma frase “a maçã é vermelha”. Nessa obra, portanto,
McDowell não está interessado especificamente nas cores, exceto na medida em que elas
não somente ilustram a sua tese, mas também afastam aquela que poderia ser a objeção
mais forte, que nossos conceitos alcançariam até quando se está o mais próximo
possível do observacional. Ele não está interessado em defender que cores são qualidades
secundárias, mas simplesmente supõe que o são.
É somente quando é instado a criticar o livro de Stroud sobre as cores que
McDowell (2004, 2011) elabora sua concepção do que são as cores. Como se disse,
sua concepção das cores não se insere dentro do projeto tradicional de desmascará-las,
porém, preserva a distinção entre qualidades primárias e secundárias. A seu ver, “[...] para
um objeto ser, por exemplo, amarelo, é para ele ser tal como parecer amarelo...” (2011,
p. 219) Os três pontinhos servem para indicar uma especificação (para quem ou em que
circunstâncias aparece amarelo). Não se deve entender o amarelo como uma sensação,
mas como uma percepção (2011, p. 220). Para McDowell, o que caracteriza o
subjetivismo a respeito das cores é a tese de que os conceitos de cores são distintamente
subjetivos, isto é, cores são propriedades dos objetos que dependem essencialmente de
seres que as percebem. Na frase citada acima, a palavra “amarelo” ocorre duas vezes: “ser
amarelo” e “parecer amarelo”, e McDowell sugere que se deve identificar ser amarelo
com parecer amarelo. Assim, essa frase exprime uma concepção disposicional da cor (“tal
como”) e subjetiva (“parece”).
De maneira um pouco mais precisa, pode-se dizer que o subjetivismo das cores
defendido por McDowell envolve dois elementos: uma formulação e uma explicação da
relação dessa formulação. Eis a formulação subjetivista para a cor amarela:
Um objeto é amarelo se e somente se for tal que é capaz de produzir a
sensação amarela em determinadas pessoas e em determinadas
circunstâncias.
Talvez valha a pena simplificar esse bicondicional para facilitar a discussão:
O é C se e somente se O tem a disposição de produzir C em P nas M.
Nessa rmula, O é um objeto, C é uma cor, P é uma pessoa normal e M são as
melhores circunstâncias de percepção. A formulação tem um lado esquerdo [“O é C”] e
um lado direito [“O tem a disposição de produzir C em P nas M”].
A questão é saber qual a relação entre C do lado esquerdo e C do lado direito dessa
formulação. A ideia que temos de uma cor é igual à cor do objeto ou não? Se vemos uma
maçã vermelha, nossa ideia de vermelho (uma qualidade perceptível) é igual à
propriedade da maçã ou dela difere: a maçã tem a qualidade de ser vermelha ou tudo o
que existe na maçã é a disposição de produzir em nós a cor vermelha?
(b) De acordo com Stroud (2000), o subjetivismo instaura uma “conexão indireta”
entre os dois lados do bicondicional, isto é, a conexão entre a cor como qualidade e a cor
como disposição não é direta. Stroud considera diversas formas de subjetivismo e conclui
que nenhuma é satisfatória. Duas são as razões para essa condenação. Primeira, para
sustentar a conexão indireta, seria preciso tornar a cor percebida inteligível
independentemente da cor do objeto, e isso não seria possível: não se pode identificar a
cor que percebemos independentemente de objetos vermelhos. Segunda, mesmo se fosse
possível, a relação entre cada lado do bicondicional é meramente contingente e, se
houvesse mudança na estrutura perceptiva de P ou nas circunstâncias de percepção, um
objeto amarelo produziria, por exemplo, a sensação de azul. No entanto, como argumenta
Stroud, a relação é contingente, pois, em diferentes circunstâncias ou em diferentes seres,
o objeto físico produziria percepções diferentes e, por conseguinte, os objetos teriam
cores diferentes. Por exemplo, em circunstâncias diferentes, o tomate produziria o azul, e
não o vermelho, de modo que, dada a tese da identidade, o tomate seria azul, e não
vermelho. O tomate, então, seria vermelho e azul, o que é absurdo.
(c) McDowell (2004, 2011) defende uma explicação subjetivista das cores,
combinando-a com uma “conexão direta”. Essa é a sua originalidade. Para isso, ele aceita
uma versão diferente da fórmula bicondicional:
O é C se e somente se O for tal que aparenta (looks) C em P nas M.
A modificação não é irrelevante. A meu ver, a substituição de “é capaz de produzir
C” ou “tem a disposição para produzir C” por “aparenta C” tem a intenção de garantir
que se trata de um subjetivismo sem precisar de uma interpretação redutivista da relação
da cor, em um lado do bicondicional com a cor do outro lado do bicondicional. A tese
redutivista diz que a cor se reduz à disposição, isto é, a cor de um objeto é meramente a
sua disposição a produzir em nós a sensação ou percepção da cor. Mas também McDowell
quer preservar a objetividade das cores, mesmo que isso possa parecer paradoxal, à
primeira vista. A seu ver, é preciso fazer justiça à concepção comum de que os objetos
são coloridos. Para preservar essa concepção comum, McDowell elabora a tese de que a
cor é uma propriedade “essencialmente subjetiva”, que nossa ideia de cor envolveria
“essencialmente” a cor com a qual o objeto aparece para nós: ser vermelho e aparentar
vermelho seriam indissociáveis. O conceito de uma cor é indissociável de como essa cor
aparece para nós e, dessa maneira, não poderia ser reduzido a uma mera disposição.
Portanto, a formulação específica de McDowell seria uma concepção subjetivista
das cores, sem o reducionismo da conexão indireta, o que permitiria a McDowell rejeitar
a conexão indireta, a qual parecia aos olhos de Stroud uma tese indispensável para o
subjetivismo das cores, e aceitar a conexão direta, isto é, a identidade entre a cor de um
lado do bicondicional e a do outro. De seu ponto de vista, trata-se de uma única e mesma
propriedade: a propriedade que pensamos que o objeto tem é a mesma propriedade que o
objeto aparenta ter. Por exemplo, a ideia que temos de um objeto amarelo é idêntica à
sensação de amarelo que temos, quando vemos esse objeto nas melhores condições.
Segundo McDowell (2004, 2011), o erro de Stroud estaria no fato de que ele teria
considerado essa questão somente no contexto de um projeto metafísico (isto é,
dogmático), em que se busca a realidade absoluta, corrigindo nossa visão comum do
mundo. Dentro desse projeto metafísico (a meu ver, dogmático), o argumento de Stroud
seria convincente, porque o subjetivista tentaria “reduzir” a propriedade do objeto (Ce) à
sensação que temos dele (Cd). De fato, concorda McDowell, a redução não funciona. No
entanto, continua McDowell, a motivação para sustentar o subjetivismo não precisa
depender desse projeto metafísico (dogmático): não é preciso defender a redução da
propriedade objetiva a uma propriedade subjetiva e disposicional para manter a distinção
entre qualidade primária e secundária. O subjetivismo implica reducionismo no
contexto dogmático, porque, fora dele, seria possível ser subjetivista sem ser reducionista.
No subjetivismo das cores de McDowell, as cores percebidas são as cores reais e, ainda
assim, são também disposições do objeto.
Terá McDowell descrito adequadamente nossa concepção comum de cor? A visão
comum do mundo é subjetivista a respeito das cores? Pode-se identificar a cor como uma
qualidade do objeto e a cor como uma disposição do objeto?
(d) Stroud (2004, 2018a) não aceita a tese da identidade de McDowell como uma
descrição adequada para o conceito comum de cor. Há, pelo menos, dois problemas
fundamentais na posição de McDowell. Primeiro, mesmo que a tese da identidade tente
preservar a objetividade da cor, o mero fato de pensar a cor como algo subjetivo a
tornaria incorreta. Conforme sua concepção, aceitar que os objetos são coloridos significa
aceitar que a cor é uma qualidade que está no objeto físico e não no ser que o percebe
com tal cor. Segundo, atribuir simultaneamente ao objeto a cor como sua aparência e a
cor como sua disposição a produzir a percepção dessa aparência, o que parece conduzir a
absurdos. Se a cor do objeto é a sua aparência, então, não é a sua disposição para produzir
uma sensação ou percepção em nós; e se a cor é essa disposição, logo, não é a qualidade
que lhe atribuímos. Ou se defende que a cor é a qualidade aparente que vemos, ou se
defende que a cor é uma disposição. Não seria possível defender as duas coisas, ao mesmo
tempo. Em suma, Stroud rejeita tanto que a cor de um objeto seja algo subjetivo quanto
que ela possa ser identificada com uma disposição.
Para Stroud, as condições nas quais uma cor é percebida não fazem parte do
conceito de cor, como argumenta McDowell. Não é porque a percepção de cor se produz
em certos seres com certos órgãos perceptivos e em certas circunstâncias que a cor será
uma propriedade subjetiva ou disposicional. De forma mais específica, Stroud nega que
o conceito de cor inclua esses fatores contingentes.
Stroud substitui a tese subjetivista de McDowell, segundo a qual a cor seria
“essencialmente perceptível”, pela tese neutra, por assim dizer, de que a cor é
“essencialmente visível”. Ser “essencialmente perceptível” significa que a cor depende
essencialmente de um ser que a perceba ou seja capaz de percebê-la em certas
circunstâncias. Para essa tese ser correta, a relação entre o objeto físico que produz a
percepção de cor e a percepção de sua cor deveria ser necessária (“rígida”) e não
contingente. Mas vimos os dois argumentos com base nos quais Stroud rejeitou essa
tese. No seu lugar, Stroud defende a ideia muito mais modesta de que a cor é
“essencialmente visível”. Aqui, o “essencialmente” não tem peso dogmático, porque
significa que a cor é percebida somente pela visão, enquanto a forma de um objeto (por
exemplo, ser redondo) pode ser percebida tanto pela visão como pelo tato. A forma,
portanto, não é “essencialmente visível”, que também é tátil. “Essencialmente”
significa apenas unicamente”: as cores são percebidas unicamente pela visão, não o
percebidas por outros sentidos. Ora, essa é uma descrição do que ocorre, é uma tese
trivialmente correta.
Do mesmo modo, Stroud critica a teoria disposicionalista das cores, tal como
McDowell a defende. Mesmo que sejamos capazes de perceber a disposição dos objetos
físicos para produzir em nós percepções de cores (se o formos), disso não se segue que a
cor de um objeto, do ponto de vista objetivo, seria essa disposição. A cor, entendida como
propriedade de um objeto físico, não é uma propriedade disposicional, mas é uma
propriedade de outro tipo: assim como é redondo, o tomate é vermelho. Ser redondo e ser
vermelho são propriedades do objeto, que este tem independentemente da capacidade de
produzir uma percepção num outro ser. Um tomate tem a disposição de produzir em nós
a percepção do redondo, porém, ser redondo não se identifica com essa disposição. O
mesmo valeria para a disposição de produzir a percepção do vermelho: o tomate tem essa
disposição, mas sua propriedade de ser vermelho não se identifica com essa disposição.
(e) É hora de tomar posição nesse debate. O que queremos saber é qual é o nosso
conceito comum de cor, como elucidá-lo. Confesso que a explicação de McDowell me
parece inadequada à nossa concepção de cor. Ele tenta combinar uma concepção
subjetivista das cores, ao mesmo tempo que sustenta sua objetividade e, para isso, elabora
a tese de que uma identidade entre a aparência colorida de um objeto e a sua disposição
para produzir em nós uma percepção. Essa tese parece gerar uma relação quádrupla, por
assim dizer. Ou seja, a tese da identidade conduz a uma explicação que envolve quatro
elementos: dois no objeto (a aparência e a disposição), dois no sujeito (a percepção da
aparência e a percepção da disposição). É essa explicação das cores com quatro elementos
que me parece estranha, não por ser demasiado complexa, mas também por ir contra
nosso conceito comum de cor. Parece-me que McDowell enfrenta um dilema, no qual
essa consequência estranha da explicação de McDowell desempenha um papel crucial.
No que diz respeito ao objeto, a cor se bifurca em aparência e disposição. Ora, ter
uma aparência colorida não é equivalente a ter uma disposição, pois uma aparência não é
uma disposição. Uma disposição é algo que pode ou não ocorrer; uma aparência é algo
que está ocorrendo. McDowell poderia dizer que ter uma disposição é algo tão
permanente quanto uma aparência e, nesse sentido, um objeto tem permanentemente uma
cor, mesmo que não a esteja produzindo em alguém. Mas não é assim que pensamos o
que as cores são: como uma disposição para produzir uma aparência, e sim a própria
aparência do objeto. Nós distinguimos a aparência e a disposição, e compreendemos que
a cor é somente a aparência do objeto, não sua disposição. Ao negar essa distinção,
McDowell vai contra o que pensamos; se, ao contrário, ele a sustenta (em conformidade
com o que pensamos), então, a cor não seria uma coisa só, mas duas, o que também vai
contra o que pensamos.
Correspondentemente, no que concerne à pessoa que percebe uma cor, essa
percepção se bifurca, ocasionando o mesmo dilema: ou McDowell nega uma distinção
óbvia ou, se a aceita, duplica de maneira incompreensível a percepção que temos ao
perceber uma cor. Ao perceber uma cor, nós teríamos uma única percepção, na qual
perceberíamos tanto a aparência da cor do objeto quanto a sua disposição a produzir em
nós a sua aparência colorida; afinal, haveria uma identidade entre elas. O problema não é
admitir a ideia de que percebemos também uma disposição; por exemplo, pode-se dizer
que percebemos a disposição do açúcar se dissolver em água.
O ponto é que a percepção de uma disposição não é idêntica à percepção de uma
aparência. Nós simplesmente não pensamos assim. Uma coisa é perceber a aparência
colorida de uma coisa, outra coisa é perceber a sua disposição para produzir uma
percepção dessa aparência. Se McDowell distinguir que, na percepção das cores,
percebemos duas coisas (a percepção da aparência e a percepção da disposição), logo,
segundo nossa concepção comum de cor, só a primeira constitui nossa percepção da cor.
De novo, ou McDowell vai contra o que pensamos, ou propõe uma descrição estranha da
percepção da cor.
Poder-se-ia dizer que o ponto da tese da identidade é, justamente, evitar essa
duplicação da cor no objeto e da percepção no sujeito, garantindo que os objetos são
coloridos e que as cores são essencialmente subjetivas, como, no entender de McDowell,
seria a nossa concepção comum. Todavia, essa não me parece ser a concepção comum de
cor e parece ir contra uma distinção que traçamos, na vida cotidiana, entre a aparência de
uma coisa e a disposição de uma coisa. E simplesmente afirmar a tese da identidade
parece um passe de mágica, que, no entanto, não faz desaparecer as dificuldades reais de
tentar combinar a tese de que as cores são “essencialmente perceptíveis” e, contudo, estão
no objeto na forma de uma disposição. Essa tese de McDowell reincide, talvez contra a
expressa intenção de seu autor, no dogmatismo.
4 Uma concepção cética das cores
Resta, agora, descrever nossa concepção comum da cor e elaborar como um cético
explicaria a percepção das cores. O primeiro ponto que eu gostaria de ressaltar é que as
posições de Stroud e McDowell, apesar da grande divergência apontada, no final da seção
anterior, contêm importantes elementos comuns na descrição da cor e da percepção da
cor, como vimos no começo da seção anterior. A meu ver, esses elementos comuns podem
ser incorporados numa visão cética das cores. Além disso, precisarei me posicionar diante
de suas divergências. Tentarei, na sequência, esboçar a minha posição cética.
Em artigos sobre a percepção (SMITH, 2000, 2005, 2014, 2020, cap. 5), defendi,
seguindo Austin, a ideia de que a percepção é um fenômeno complexo, como que um
padrão de eventos. O esquema da percepção pressupõe dois polos, o objeto (ou evento) e
a pessoa, e as relações que se estabelecem entre eles. Simplificadamente, pode-se dizer o
seguinte: a pessoa que percebe um objeto (ou evento) busca informação sobre o mundo;
ao dirigir seu olhar para um objeto (ou evento), este causa uma percepção, nessa ocasião
determinada; produz-se um efeito na pessoa que percebe o objeto, o qual é sua
experiência; e a pessoa age no mundo com base nessa percepção. Eu gostaria de aplicar
esse esquema, ainda que brevemente, ao caso das cores.
Suponha-se que eu queira saber se um tomate está maduro para ser cortado e
posto na salada. Ele estava ainda meio amarelado, até um ou dois dias atrás. Vou aa
cozinha, acendo a luz, pego o tomate na mão e olho para ele, prestando atenção na sua
cor (e também na sua consistência, se ainda está muito duro ou se amoleceu um pouco).
O tomate, nessas circunstâncias, produz em mim a percepção de um tomate vermelho (e
sinto que não está mais tão duro). Então, corto-o em rodelas e ponho na salada. Vejamos
como o esquema se aplica a uma situação corriqueira como essa.
Comecemos pelo lado do objeto, que causa em nós a percepção de uma
determinada cor. O objeto certamente tem a disposição para causar em nós a percepção
da sua cor e só exerce sua capacidade em determinadas situações, as quais são as ocasiões
em que sua disposição se realiza. Se as ocasiões não ocorrerem (haver luz suficiente, não
haver nenhum obstáculo que impeça sua visão etc.), o tomate não produzirá a percepção
do vermelho ou até não produzirá nenhuma percepção. Para que essa disposição se
realize, é preciso também que determinadas coisas ocorram no lado da pessoa, a qual
o perceberá com a aparência do vermelho, se estiver de olhos abertos, se tiver sua cabeça
voltada para o tomate e se estiver prestando atenção ao tomate. Dessa maneira,
estabelecem-se ao menos duas relações entre o objeto físico e a pessoa: uma relação
causal, por meio da qual o objeto atua sobre a pessoa; e uma relação em que a pessoa
dirige seu olhar para ele e presta atenção à sua cor.
Se isso for correto, vemos que, de fato, a disposição do tomate em causar em nós
a experiência perceptiva do vermelho é um elemento componente da percepção. Segue-
se que essa disposição é idêntica à cor? De maneira nenhuma. Ao contrário, a disposição
de causar uma experiência perceptiva é diferente da própria experiência que causa.
Enquanto a disposição está no objeto, a experiência está na pessoa; a disposição para
produzir a experiência do vermelho pode ou não ocorrer e, se não ocorrer, não
experiência do vermelho.
De acordo com o esquema, uma pessoa percebe que o tomate é vermelho, o
tomate vermelho, tem uma sensação de vermelho. Essa experiência (a qual pode ir de
uma percepção mais complexa até uma mera sensação) está na pessoa, é um efeito na
pessoa, isto é, aquilo que o objeto produz, quando produz a experiência perceptiva de cor,
é algo que ocorre num ser percipiente. Segue-se que a cor é subjetiva? De forma nenhuma.
Não se deve supor que se trata de uma experiência interna”, como se o que a pessoa
experiencia é somente o que ocorre nela, uma representação do objeto colorido. O fato de
o objeto produzir um efeito na pessoa não implica que é esse efeito que a pessoa
experiencia. O que é subjetivo é a experiência (a sensação do vermelho ou a percepção
de um tomate vermelho ou de que o tomate é vermelho), mas não a cor. A experiência
que se tem é a de que o tomate se apresenta a nós como sendo vermelho.
Desse modo, temos uma experiência, e essa experiência é a de que o tomate é
vermelho, de que o tomate aparenta ser vermelho, de que ele tem a aparência vermelha.
“Aparência”, aqui, tem um significado objetivo, como quando dizemos que alguém tem
uma aparência elegante ou aparenta estar doente. A “aparência” se distingue da
“experiência”, posto que esta é o efeito produzido pelo objeto na pessoa, enquanto aquela
está no objeto. Não se deve, portanto, identificar a cor a esse elemento subjetivo da
percepção, como se fosse uma representação, mas a cor é uma maneira pela qual o objeto
se apresenta para nós.
No esquema proposto, distingue-se também entre a relação causal, que parte do
objeto e afeta a pessoa, e a relação ativa, a qual parte da pessoa e alcança o objeto. Isso
permite acomodar tanto a disposição para causar determinado tipo de percepção, que é
uma relação causal, quanto a aparência colorida do objeto. De um lado, por meio da
relação causal, o objeto exerce a sua disposição, se as circunstâncias forem apropriadas,
e, de outro, através de uma relação na qual a pessoa exerce suas capacidades perceptivas,
ela dirige a sua atenção a um objeto e o como tendo uma determinada cor. A pessoa
fica sabendo qual é a aparência do tomate (se já está vermelho ou não), por intermédio do
exercício de sua capacidade perceptiva (que é uma capacidade cognitiva).
Assim, uma coisa é a disposição do objeto de causar uma experiência e outra é
sua aparência; cada uma está associada a um tipo de relação entre o objeto e a pessoa, que
se estabelece na relação perceptiva. A propriedade de ter uma certa disposição, portanto,
não é idêntica à propriedade de ter uma certa aparência. A cor é, precisamente, essa
aparência que o objeto tem e que percebemos, quando ele produz em nós uma experiência,
quando sua disposição se exerce sobre nós, nas situações apropriadas.
Cabe às ciências examinar como ocorre esse processo causal. Para isso, o cientista
lança mão de teorias, como a teoria ótica (a fim de explicar como os objetos refletem a
luz, como o cristalino projeta os raios de luz na retina) e nossas teorias sobre a fisiologia
humana (como os cones e bastonetes na retina absorvem a luz e transmitem para o
cérebro). A psicologia pode estudar nossa capacidade perceptiva e descobrir como o ser
humano investiga o mundo, através de sua percepção, como esta se relaciona com a ação,
não somente fornecendo informações sobre o mundo, mas buscando essas informações
como resultado de nossas questões e preocupações. Nessa perspectiva, as ciências
pressuporão nossa concepção comum de percepção e investigarão como esse processo
acontece, propondo hipóteses explicativas mais ou menos bem corroboradas, de modo
que entenderemos cada vez melhor como percebemos e conhecemos o mundo.
Também se pode examinar cientificamente a experiência que se tem, quando
percebemos algo. Por exemplo, se nossas experiências são penetráveis por crenças ou
não, se contêm informações “pobres” ou se incluem conteúdos “ricos”, se têm módulos
ou não, se os módulos têm conteúdo “pobre” ou se têm conteúdo “rico”, qual a sua
relação com as crenças. Cada um dos elementos da percepção pode ser investigado
empiricamente, o que nos possibilitará sua compreensão mais detalhada e exata.
Tudo isso é um campo fértil de investigação científica, da qual os filósofos podem
participar, e está aberto a hipóteses e discussões teóricas, talvez confirmáveis
empiricamente. A meu ver, todo esse campo de investigação científica está condicionado
pelo nosso conceito comum de percepção. As cores são um exemplo disso. Naturalmente,
os resultados científicos podem levar a um refinamento de nossa concepção comum de
percepção e a um entendimento detalhado de como a percepção das cores ocorre e de
como nos orientamos por elas. Não vejo nenhuma oposição entre os resultados alcançados
pelas ciências e nossa concepção comum de percepção. Justamente por isso, não haveria
por que mudá-la fundamentalmente, contudo, somente refiná-la e entender melhor cada
um dos seus elementos e como eles se articulam em nossa concepção comum.
Poder-se-ia afirmar que se, de um lado, argumentos filosóficos são insuficientes
para mudar nossa concepção comum, porque a oposição entre eles leva à suspensão do
juízo, resultados experimentais, de outro, podem nos fazer rever aspectos de nosso
conceito comum. Para avaliar esse impacto das ciências naturais, seria preciso um estudo
específico e detido. A visão cética do mundo, vale a pena repetir, começa com uma
descrição da concepção comum, todavia, deve também investigar os resultados
alcançados pelas ciências e refletir filosoficamente sobre eles.
A concepção que acabo de delinear me parece inteiramente compatível com o que
assevera Sexto Empírico, ao menos na interpretação de Porchat (2013, p. 305-309).
Segundo Porchat (2013, p. 307), “[...] os objetos (phainómena) levam o sujeito a dar
assentimento a afecções (páthe) por eles causadas e que se configuram como phantasía
em sua diánoia [intelecto].” Porchat (2013, p. 308) repete essa ideia, logo em seguida:
“Quando o phainómenon impacta a diánoia e nela dá origem à phantasía, o assentimento
a esta se impõe de necessidade, isto é, o sujeito não pode não reconhecer que está
experienciando a phantasía que corresponde ao phainómenon em questão.” Por
conseguinte, o objeto causa em nossa mente uma phantasia, a qual é uma experiência
perceptiva que temos desse objeto. Espero que esse breve resumo baste para que se
perceba a notável semelhança com o que se frisou acima.
A única diferença com o que propus está na tradução de phantasia. Porchat (2013,
p. 308) propõe traduzir por “representação”. Não me parece boa tradução. Se o tico
entender a phantasía como uma “representação”, seguem-se todos os problemas
denunciados por Sexto, em sua crítica às noções estoicas e acadêmicas de phantasia
(2000, 2.70-79; 2012, 7.370-439; PORCHAT, 2007, p. 101-107). Bury (1983) traduz por
presentation e Porchat, antes de publicar seu artigo, pensou em seguir Bury e traduzir por
“presentação”. Mas argumentei que, segundo um dicionário que consultei, era um
português arcaico e ninguém entenderia o que ele quer dizer. Sugeri “apresentação”, mas
Porchat não gostou e preferiu voltar a “representação”. Entretanto, a meu ver, quando a
mente é afetada por um objeto, o objeto se apresenta à mente, isto é, a mente percebe o
objeto, não sua “representação”. Por isso, não me parece feliz a afirmação de Porchat
(2013, p. 307), segundo a qual “[...] nosso acesso ao mundo, isto é, nosso acesso aos
phainómena, tem lugar em nossa diánoia.
Porchat parece voltar, ao menos em parte, à sua antiga interpretação de um
mentalismo no pirronismo antigo, quando a noção de phainómenon era interpretada como
uma entidade mental e, portanto, como um dogmatismo implícito dos pirrônicos antigos
(PORCHAT, 2007, p. 100, 108-110). Agora, o phainómenon é, decerto, um objeto no
mundo, mas a sua phantasia na diánoia é compreendida como uma representação por
meio da qual a mente teria acesso ao objeto. Ora, se a phantasia fosse uma representação,
o problema do mundo exterior ressurgiria com toda a sua força. Tivesse Porchat entendido
a phantasia como uma apresentação do objeto na mente, então, a impressão de um retorno
àquela velha interpretação se dissiparia e, portanto, a objeção ao pirronismo continuaria
sem nenhuma força. O neopirronismo, concebendo a phantasia meramente como a
apresentação do phainómenon à diánoia, não incide em dogmatismo, nem levanta o
problema do mundo exterior. De fato, para voltar ao nosso tópico, está perfeitamente de
acordo com a ideia de que os objetos se apresentam a nós como coloridos.
THE METAPHYSICAL STATUS OF COLORS
Abstract: My intention, in this paper, is to elaborate a conception of colors as part of a skeptical
view of the world. In order to do that, I examine how some of the major skeptics throughout the
history of philosophy conceived colors, in relation both to other sensible qualities and to the
physical object. Next, in the light of the exchange between Barry Stroud and John McDowell, I
describe what seems to me to be the common conception of color, which the skeptic not only
accepts, but goes even further claiming that he may know the color of objects through sense-
perception.
Keywords: Secondary qualities. Primary qualities. Metaphysics. Skeptical view of the world.
Dogmatism. Perception.
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Recebido: 12/09/2022
Aceito: 21/02/2023