Roberto Horácio de Sá Pereira1
Sérgio Farias de Souza Filho2
Victor Machado Barcellos3
Resumo: Neste ensaio, defendem-se as seguintes teses: 1- o know-how não é uma forma de saber prático destituído de sentido proposicional; 2- a relação entre cada percepção e o corpo próprio é metafisicamente contingente (os organismos e corpos podem variar, como podem inclusive variar os espaços que ocupam em uma mesma experiência), 3- cabe ao cérebro configurar ou moldar um corpo físico (Körper) em um corpo vivo (Leib) e não o inverso; 4- o externismo fenomenal de base enativista, mesmo na sua forma branda, é empiricamente implausível: a correlação entre o caráter consciente da experiência sensorial com padrões neuronais espaço-temporais é muito mais sistemática e regular do que a correlação com qualquer coisa fora do cérebro. Mas sua forma radical é inteiramente implausível: duplicatas fenomenais não são necessariamente duplicatas de agência; em suma, 5- somos o nosso próprio cérebro que possui um corpo, avatares e artefatos, devidamente configurados e moldados pelo cérebro, e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.
Palavras-chave: Enativismo. Externismo Fenomenal Enativista. Know-How.
Introdução
A expressão “enativismo” foi introduzida na ciência cognitiva por Francisco Varela e colegas, em 1991. A fonte de inspiração dos autores é explicitamente a fenomenologia de Maurice Merleu-Ponty:
Gostamos de considerar nossa jornada neste livro como uma continuação moderna de um programa de pesquisa fundado há uma geração pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty. Por continuação, não queremos dizer dar seguimento acadêmico ao pensamento de Merleau-Ponty no contexto da ciência cognitiva contemporânea. Queremos dizer, antes, que os escritos de Merleau-Ponty inspiraram e guiaram nossa orientação aqui. (VARELA et al., 1991, p. XV, tradução nossa).
Mas a doutrina só conhece prestígio uma década mais tarde, com as contribuições decisivas de Alva Noë (2004, 2005), Shaun Gallagher (2005, 2014), Evan Thompson (2007), Matt Bower (2014) e, mais recentemente, de Daniel Hutto e Erik Myin (2013, 2017). Enquanto a fenomenologia de Merleau-Ponty segue sendo uma referência fundamental, não há como negar que o operacionalismo de Ludwig Wittgenstein (2001) também tenha se tornado uma referência obrigatória para certos autores, como Noë, Hutto, Myin e outros.
Gallagher e Bower (2014, p. 233) dividem o movimento enativista em três grandes fases: o enativismo “precoce”, de Varela e colegas, o enativismo “intermediário”, representado por Alva Noë, em 2004, e o enativismo “mais recente” e radical de Hutto e Myin. A primeira fase compreende o compêndio de 1991, de Varella e colegas. As preocupações iniciais eram e ainda são com a crítica ao cognitivismo de Jerry Fodor (1975, 1983), centrado no conceito fundamental de representação mental. A esse cognitivismo, os enativistas propõem como modelo alternativo a ideia de cognição como ação incorporada.
A segunda etapa abarca as contribuições de Nöe. É nessa segunda fase que se introduz a noção de inspiração wittgensteiniana da percepção como um know-how sensório-motor desprovido de sentido cognitivo. Entretanto, Noë ainda oscila entre abandonar o conceito de representação (NÖE, 2005) ou atribuir-lhe um papel apenas secundário (NÖE, 2004). Ademais, Nöe entende o externismo fenomenal enativista em oposição à chamada concepção do estado interno físico. Retomaremos essa questão, na penúltima seção.
A terceira e última fase é marcada por uma ruptura radical com a ideia de conteúdo representacional. As contribuições relevantes aqui são de Hutto e Myin. Eles defendem a chamada versão “radicalizada” do enativismo – “REC”. Não se trata mais apenas de renunciar ao conceito de imagem mental, mas mesmo do que hoje concebemos por conteúdo representacional. Entretanto, enquanto Nöe hesita em abandonar a noção de conteúdo, Hutto e Myin hesitam em estender o REC a uma teoria da consciência. Abarcaria o REC também uma teoria da consciência ou o REC acabaria por assumir uma forma de internismo fenomenal? Caso não abarque, o seguinte problema se coloca. Se é ao menos concebível que experiências não instanciem propriedades representacionais, parece-nos um contrassenso se negar que experiências não sejam essencialmente conscientes. Ora, se REC, com a sua estratégia do going wide, não pretende explicar as propriedades fenomenais das experiências e nega que tais experiências instanciem propriedades representacionais, em que sentido o REC ainda é uma teoria da experiência perceptual?
Mas, para não cometermos nenhuma injustiça, o mais correto, nos parece, é tomar as “três fases” de Gallagher como três versões possíveis do enativismo; nessa perspectiva, bem nos lembram Hutto e Myin (2013, p. 4, tradução nossa):
Nem cognição enativista nem cognição incorporada são rótulos para uma teoria bem definida da mente; ao contrário, a cognição enativista e a cognição incorporada denotam estruturas amplas para entender a natureza básica das mentes e como elas se tornam mais elaboradas.
Em face das diferentes versões ou fases e da afirmação segundo a qual o enativismo não constitui uma teoria definida da percepção, poderíamos ainda falar de uma ou mais teses que constituiriam o enativismo em sua essência? Acreditamos que sim. Genericamente, todos os enativistas sustentam (i) que a percepção seria constituída por forma de agir incorporado de um organismo (NOË, 2004; DI PAOLO et al., 2010/2014, p. 39-40). (ii) Este ou dispensaria por completo a noção de representação, ou a relegaria a um papel secundário, na explicação da percepção. (iii) Todos rejeitam a tese para a qual a percepção consistiria em uma mera recepção passiva do mundo (STEWART, 2010/2014, p. 3). (iii) Todos também estão de acordo quanto ao credo de que a consciência não reside no cérebro. (IV) Por último, sustentam igualmente a tese de que, para se explicar a tal atividade incorporada, teríamos que considerar a interação do organismo com os aspectos ambientais (STEWART, 2010/2014, p. 1-4; THOMPSON, 2007). Como veremos, contudo, essa tese é ambígua, comportando ao menos duas leituras.
Ora, mesmo sem constituir uma teoria acabada, o enativismo suscita logo de início inúmeras controvérsias. Primeiro, o enativismo precoce de Varela e colegas parece abraçar um antirrealismo ingênuo: sujeito e mundo se constituiriam pelas ações incorporadas do primeiro (sujeito). Esse construtivismo epistemológico antirrealista é extraído diretamente de Merleau-Ponty (1945, p. XV, tradução e grifos nossos):
O filósofo tenta conceber o mundo, os outros e a si mesmo e suas inter-relações. Mas o ego meditativo, o “espectador imparcial” (uninteressierte Zuschauer) não redescobre uma racionalidade já dada, eles “se estabelecem”, e a estabelecem, por um ato de iniciativa que não tem garantia de ser, sua justificação repousando inteiramente no poder efetivo que nos confere de levar nossa própria história sobre nós mesmos.
Em segundo lugar, a crítica enativista à teoria da representação é inteiramente insatisfatória. Primeiro, ela toma a noção de representação de forma ambígua. Com efeito, representação é entendida (a) como uma imagem mental que “re-apresentararia o mundo exterior no interior do cérebro”. Nesse caso, (a) ainda pode ser compreendida como registro de informação ou como um dado sensível segundo o modelo ato-objeto. Ora, “representação” é concebida (b) como um conteúdo representacional. A ambiguidade fica patente pelo próprio Varela e colegas (1991, p. 135, tradução e grifos nossos) afirmam:
Esse sentido de representação (Conteúdo representacional) é fraco porque não apresenta compromissos epistemológicos ou ontológicos fortes. Portanto, [...] é perfeitamente aceitável pensar em uma afirmação como representando algum conjunto de condições sem fazer suposições adicionais sobre se a linguagem como um todo funciona dessa maneira ou se realmente há fatos no mundo separados da linguagem que podem ser reapresentados pelo frases da língua.
No primeiro caso, o que a crítica visaria seriam aos “compromissos ontológicos fortes”, supomos nós, a tese cognitivista segundo a qual percepções se explicariam mediante processos internos ao cérebro. Entretanto, ela também objetivaria “compromissos epistemológicos fortes”. Quais seriam esses? Tudo parece nos levar a crer que o enativista estaria assumindo aqui a tradicional teoria dos “dados sensíveis”, conforme o modelo ato-objeto, bem como um construtivismo antirrealista segundo o qual mundo e sujeitos seriam dados e não construídos epistemologicamente pelas ações incorporadas. Nem tais “compromissos epistemológicos” nem a contrapartida enativista merecem ser discutidos.
No segundo caso, o que se realça é a tese segundo a qual experiências possuiriam um conteúdo representacional (análogo ao conteúdo das atitudes proposicionais): a experiência apresentaria o mundo segundo determinadas condições que seriam ou não satisfeitas pelo próprio mundo. Como Varela e colegas reconhecem (citação acima), essa segunda noção como um conteúdo representacional não apresenta “compromissos ontológicos e epistemológicos fortes.” O que temos, ao fim e ao cabo, é que nem (a) implica (b), nem o inverso: (b) não implica (a).
Na nossa crítica ao enativismo, realizaremos uma crítica indireta a (a). Todavia, e quanto ao segundo sentido de representação como um conteúdo? Não compreendemos como poderíamos prescindir do conceito de conteúdo representacional, uma vez que temos de assumir como um fato a possibilidade de erros antipredicativos, se quisermos entender o fracasso das nossas ações. Hutto e Myin (2013) apelam à crítica de Tyler Burge (2010) relativas às tentativas de naturalização de tal conteúdo de Dretske, Millikan e outros. A crítica de Burge, endossada pelos autores, reza que a seleção natural não se preocupa com a verdade, mas com o sucesso reprodutivo. Essa crítica, no entanto, está longe de ser convincente. Com efeito, é trivial que a verdade em nada importa para a seleção inúmeros traços biológicos: possuir um coração, rins, pulmões etc. Todos eles cumprem funções que nada têm a ver com a verdade. Porém, tudo muda de figura, quando consideramos cognições em geral e o nosso sistema perceptivo, em particular (PEREIRA, 2021). Mas o que nos causa espécie é que, após assumir a crítica de Burge às tentativas de naturalização de tal conteúdo, Hutto e Myin abandonam o próprio conceito de conteúdo representacional por ser, segundo Burge, um conceito primitivo e assim irredutível (HUTTO; MYIN, 2013, p. 114).
Terceiro, a tese operacionalista perceptual segundo a qual a percepção seria como um know-how sensório motor (Nöe) é semanticamente insustentável. Stanley e Williamson (2001) desconstroem esse credo operacionalista em geral (ou seja, a tese de que possuir um conceito é saber como operá-lo ou usá-lo corretamente), com uma das análises semânticas mais finas que conhecemos das orações da forma know-how. Segundo Stanley e Williamson, o “saber como” seria irredutível a um saber prático, destituído de sentido cognitivo, dependendo antes de diversas formas de saber proposicional, ou seja, saber que quando, como, onde e por que uma proposição é verdadeira (saber-quem, saber-onde, saber-quando e saber o quê). Dedicamos uma seção inteira para combater tal credo. Entretanto, ao invés de seguirmos com a análise semântica, apelaremos a experimentos empíricos e às nossas intuições pré-teóricas face a tais experimentos.
Por último, o credo enativista inspirado na psicologia ecológica de James J. Gibson (1986), para a qual a percepção seria metafisicamente constituída por “proporcionadores” (affordances), é inteiramente contraintuitivo. Por tudo que sabemos (inference to the best explanation), são representações de objetos e propriedades como constantes perceptuais que constituem objetos e propriedades, como proporcionadores de ações incorporadas, e não o inverso.
Muito já foi expresso acerca desses e outros credos do enativismo perceptual. A lista é infindável: Ned Block (2001, 2005): Piere Jacob (2006), Jesse Prinz (2006). Ainda teríamos muito a acrescentar às críticas já consagradas na literatura, contudo, isso nos levaria para além dos limites de um ensaio no formato proposto. Cada um dos credos exige um artigo em separado, em razão da complexidade e da imensa ambiguidade dos conceitos e, consequentemente, das questões envolvidas. Nós as mencionamos aqui apenas à guisa de ilustração.
Entretanto, uma das inúmeras críticas merece destaque: Book Review do trabalho de Nöe (2004), levada a cabo por Ned Block (2005). Segundo Block, a tese controversa do enativismo reza que a experiência perceptual não sobrevém constitutivamente ao que se passa no cérebro, mas apenas a atividade corporal que seria necessária para o exercício habilidoso do conhecimento sensório-motor (BLOCK 2005, p. 265-266). Todavia, aí se incorre em uma confusão trivial entre causação e constituição metafísica. Nas palavras de Block:
Como Richard Held e Alan Hein mostraram na década de 1960, gatinhos que são ativos na exploração do ambiente têm sistemas visuais normais em comparação com gatinhos que têm a mesma estimulação, mas são passivos. O uso de óculos de inversão resulta em considerável reorganização da percepção. Conectar uma câmera de televisão a um conjunto de pixels apreendidos na boca de uma pessoa cega permite a navegação pelo espaço, provavelmente recrutando áreas “visuais” do cérebro. Esses resultados são impressionantes, mas o que eles mostram é que as contingências sensório-motoras têm um efeito sobre a - experiência, não que a experiência seja parcialmente constituída por – ou sobrevém, constitutivamente à – atividade corporal. (Dizer que, por exemplo, os fatos morais sobrevêm aos fatos físicos é dizer que não pode haver diferença moral sem diferença física). (BLOCK, 2006, p. 263).
Sejamos claros sobre qual é o problema. A questão da base de superveniência constitutiva para a experiência é a questão do que é – e não é – uma parte metafisicamente necessária de uma condição metafisicamente suficiente da experiência perceptiva. Ou seja, é a questão do que é – e não é – parte da condição mínima metafisicamente suficiente para a experiência perceptiva (a base mínima de superveniência). A visão enativista de Nöe reza que o corpo ativo habilidoso faz parte dessa base mínima de superveniência, enquanto a visão, que defendo e que rotulei de visão ortodoxa, é que nada fora do cérebro faz parte dele. (BLOCK, 2006, p. 264).
Em suma, experiências perceptuais não sobrevêm à atividade corporal simplesmente porque é falso que não possa haver diferenças perceptuais (que elas sejam metafisicamente impossíveis), caso não haja diferenças nas atividades sensório-motoras. O ensaio presente encontra nessa crítica lapidar de Block a sua principal fonte de inspiração. Defenderemos as seguintes teses:
1- O know-how não é uma forma de saber prático, destituído de sentido proposicional; 2- a relação entre cada percepção e o corpo próprio é metafisicamente contingente (os corpos envolvidos em uma mesma experiência podem variar, como podem inclusive variar os espaços que ocupam); 3- cabe ao cérebro configurar ou moldar um corpo físico (Körper) em um corpo vivo (Leib), e não o inverso; 4- o externismo fenomenal enativista, mesmo na sua forma branda, é empiricamente implausível: a correlação entre o caráter consciente da experiência sensorial com padrões neuronais espaço-temporais é muito mais sistemática e regular do que com a correlação com qualquer coisa fora do cérebro. No entanto, na sua forma radical, o externismo fenomenal enativista não é apenas completamente contraintuitivo, mas, sobretudo, inteiramente falso: duplicatas fenomenais não são necessariamente duplicatas de agência. A conclusão metafísica fundamental reza, então: 5- somos o nosso próprio cérebro, que possui um corpo físico (um corpo biológico, avatares, ou artefatos devidamente configurados e moldados pelo próprio cérebro etc.) e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.
O ensaio está concebido em mais três seções e uma conclusão sumária. Na próxima seção, buscaremos mostrar que o operacionalismo enativista é um equívoco behaviorista: o know how não pode ser entendido como uma atividade desprovida de sentido proposicional e, a fortiori, a percepção não pode tampouco ser compreendida como um know-how sensório-motor. Na seção seguinte, argumentaremos em favor de duas teses antienativistas: (a) a relação entre cada percepção e corpo próprio não é essencial, mas contingente; (b) cabe ao nosso cérebro moldar ou configurar um corpo físico (biológico, avatar etc.) em um corpo vivo, e não o inverso.
A terceira e penúltima seção antes da conclusão é dedicada à crítica do externismo fenomenal enativista. A suposição controversa é que a experiência consciente se reduz, a suma, aos aspectos da atividade corporificada do sujeito percipiente. Em outras palavras, a natureza da experiência consciente reduziria aos aspectos da atividade incorporada do sujeito percipiente. Como observamos, Nöe, por um lado, Hutto e Myin, por outro, parecem defender teses opostas a respeito. Seja como for, a tese comporta duas interpretações. Sustentaremos que as duas variantes são equivocadas. Assim, nada mais resta do enativismo.
1 Tese Geral: O Know-How como uma Atividade sem Sentido Cognitivo
Segundo Nöe (2014, p. 89), a percepção nada mais seria do que um know-how sensório-motor. Segundo as suas próprias palavras:
Não é preciso pensar ou ter habilidade intelectual para saber que, para trazer o item para a esquerda, você deve virar sua cabeça para a esquerda... [ou] quando você ouve um som como se estivesse à esquerda, não precisa pensar em qual caminho virar sua cabeça para se orientar em direção ao som. Você precisa pensar em como manobrar um sofá para espremê-lo através de uma pequena passagem. Mas você não precisa, da mesma forma, pensar em como manobrar seu corpo para espremê-lo através da porta. Apenas perceber a porta como tendo certos laços de qualidade espacial é percebê-la como exigindo ou permitindo certos tipos de movimentos com relação a ela.
Um agente se tornaria visualmente consciente de um objeto, quando duas condições fossem satisfeitas. A primeira seria que a percepção visual do agente deveria exercer ativamente seu conhecimento das leis sensório-motoras. A percepção visual só ocorreria “[...] quando o organismo dominasse o que chamamos as leis governantes da contingência sensório-motora.” (O'REGAN; NOË, 2001, p. 939). O'Regan e Noë sustentam que a cognição envolvida no exercício de nossas habilidades motoras não é uma forma de conhecimento proposicional (o que eles denominam de “intelectualismo”), mas um conhecimento prático (NOË, 2004, p. 11). De acordo com a segunda condição, deveria haver um item no ambiente que acionaria as reações sensório-motoras do percipiente (NOË, 2005).
Mas podemos, de fato, afirmar que o próprio know-how seria um saber prático destituído de sentido cognitivo ou proposicional? Como mencionamos na introdução deste ensaio, Stanley e Williamson apresentam uma análise semântica do know-how que põe por terra todo esse credo operacionalista ou anti-intelectualista. Nesta seção, consubstanciaremos as conclusões dos autores, com base em exemplos cotidianos.
João Carlos Martins é um conhecido pianista brasileiro, cuja vida foi marcada por uma série de tragédias pessoais que, pouco a pouco, foram impossibilitando a sua carreira como pianista clássico. Em 1965, Martins vivia em Nova Iorque, quando foi convidado para integrar o time amador da Portuguesa Paulista, em um jogo treino realizado no Central Park. Toda felicidade por jogar pelo seu time de coração se transformou em desespero, em apenas um segundo. Uma jogada isolada, uma queda aparentemente boba, resultou em uma perfuração na altura do cotovelo que atingiu o nervo ulna.
Esse “pequeno acidente” provocou atrofia em três dedos de sua mão, impossibilitando-o de tocar por um ano inteiro. A recuperação foi longa e complicada, fazendo com que o maestro tocasse com dificuldade até os 30 anos. Contudo, esse foi apenas um dos muitos percalços que Martins teve que superar, durante sua trajetória. Após longos períodos de fisioterapia, o pianista voltou aos palcos e, mesmo com a dificuldade, as críticas foram bem favoráveis. No entanto, Martins novamente foi impossibilitado de tocar o piano, devido a distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho.
Mesmo com mais uma adversidade, o pianista não desistiu de sua carreira, adaptando-se às restrições que o problema lhe causava. Retomou a sua carreira, voltando a tocar de 1979 a 1985. Realizou 10 gravações de Bach, conseguindo concluir o restante de todas as gravações da obra do compositor. Entretanto, em 1995, mais uma vez, Martins foi vítima do destino. Durante um assalto na cidade de Sofia, o pianista foi golpeado com uma barra de ferro. A pancada comprometeu seriamente o seu braço direito. Depois de alguns processos cirúrgicos, fez-se necessário cortar a conexão neural entre o seu braço direito e o seu córtex sensório-motor, impossibilitando os seus movimentos para sempre.
O que fez o pianista depois disso? Gravou o álbum “Só para Mão Esquerda”. Todas as composições contidas nesse álbum foram compostas em homenagem a Paul Wittgenstein, irmão do célebre filósofo, que perdeu o mesmo membro na Segunda Guerra Mundial. A ideia de Martins era gravar oito álbuns com essa temática. Porém, foi descoberto um tumor em sua mão esquerda. Foi quando ouviu do seu médico que nunca mais tocaria piano. Seccionaram as conexões nervosas entre a sua mão esquerda e o seu córtex sensório-motor.
Nesse momento, morre um pianista e nasce um maestro. No dia seguinte, Martins se inscreveu em aula de regência. Por causa da dificuldade de coordenação dos movimentos de seus dedos, com a incapacidade de segurar a batuta e virar as páginas das partituras dos concertos na velocidade necessária, Martins tinha que memorizar nota por nota. Mas, inegavelmente, Martins se tornou um bom maestro, sobretudo, regendo o compositor que ele mais admirava: Bach.
A pergunta interessante para o nosso debate aqui é a seguinte: o que diríamos intuitivamente? Quando Martins teve conexões nervosas entre seu córtex sensório-motor e as suas duas mãos desconectadas, ele deixou de saber como se toca piano? Quando Martins perdeu as supostas “leis governantes da contingência sensório-motora”, teria ele deixado de saber como se toca piano? Diríamos que Martins sabia como tocar Bach com grande maestria, mas agora ele não sabe mais como tocar, por não poder mais executá-lo? Ele teria simplesmente se esquecido de como se faz para tocar piano, simplesmente por não poder mais fazê-lo?
Nonsense! Isso nos soa completamente contraintuitivo: tudo indica que Martins ainda hoje sabe como tocar piano, a despeito das inúmeras tragédias pessoais que o tenham tornado inepto para tocar o instrumento. Ele ainda sabe exatamente o que tem que ser feito e como deve ser feito, para executar as obras de Bach, Chopin, Beethoven etc. Ele apenas não pode mais fazer o que ainda sabe fazer. No entanto, a pergunta é: o que ele sabe fazer? A resposta será sempre um saber proposicional: ele sabe como, quando e o que é tocar (tese de Stanley e Williamson).
O primeiro ponto a observar é o seguinte: caso Martins não soubesse mais como tocar, a sua queixa teria a forma:
“Bah, se eu ainda soubesse tocar piano!”
Mas essa não é a sua queixa, mas antes:
“Bah, se eu ainda pudesse tocar o Cravo bem temperado de Bach!”
Bah, se eu ainda pudesse executar as polonesas e prelúdios de Chopin!”
Ou ainda:
“Ah, se eu ainda pudesse tocar as sonatas para piano solo de Beethoven!”
Se levarmos a sério essas queixas de Martins (hipotéticas), o que diríamos? Que Martins deixou de saber como (know-how) tocar! Nonsense: Martins simplesmente não pode mais fazer o que ele ainda sabe fazer.
Suponhamos agora que o tumor na sua mão esquerda tivesse sido curado e, ademais, que a neurociência pudesse restabelecer as conexões nervosas rompidas entre o córtex sensório-motor do Martins e as suas mãos. O que ocorreria? Ele seria capaz de tocar piano? Ora, com algum treino, provavelmente ele retomaria o piano como sempre o fez. O que dizer, nesse caso?
Segundo Nöe, deveríamos dizer o seguinte. Com efeito, Martins sabia como tocar piano, mas, devido ao rompimento cirúrgico das conexões nervosas entre as suas mãos e seu córtex sensório-motor, Martins deixou de saber como tocar piano. Todavia, agora refeitas as conexões nervosas rompidas entre as mãos e o córtex sensório-motor, Martins teria voltado a saber como se toca piano!
Com base nessas intuições pré-teóricas ou pré-filosóficas, podemos formular um simples argumento por redução ao absurdo:
Martins sabia como tocar piano, antes que as conexões nervosas entre seu córtex sensório-motor e as suas mãos fossem rompidas por uma intervenção cirúrgica, em razão do tumor ocorrido.
Suposição enativista: o know-how é uma mera forma de saber prático sem sentido cognitivo ou proposicional.
Quando as conexões nervosas entre seu córtex sensório-motor e as suas mãos foram rompidas cirurgicamente, Martins deixou de saber como se toca piano.
Absurdo: Ora, mas depois que as conexões nervosas entre seu córtex sensório-motor e as suas mãos foram restabelecidas por uma nova intervenção cirúrgica, Martins voltou a saber como se toca piano!
Imagino que muitos enativistas iriam considerar a hipótese da recuperação das conexões nervosas entre o córtex sensório-motor e as mãos de Martins fantasiosa como um argumento filosófico! Se assim for, basta considerarmos um exemplo paralelo em todos os detalhes relevantes. Trata-se do caso do paraplégico Juliano Pinto chutando uma bola com o exoesqueleto, no Maracanã, em 2014.
Juliano Pinto (aos seus 29 anos) sabia como chutar uma bola de futebol, como qualquer pessoa adulta, até sofrer um grave acidente que o tornou paraplégico. Rompida a coluna vertebral, romperam-se as ligações nervosas entre o seu córtex sensório-motor e as suas pernas.
Suposição enativista: o saber prático não tem sentido proposicional.
À luz de 1 e 2, quando Juliano Pinto se torna paraplégico, Juliano simplesmente deixou de saber como se chuta uma bola de futebol.
Ora, mas mediante um exoesqueleto, Juliano Pinto, nos EUA, dá o pontapé inicial da Copa do Mundo de 2014 no Maracanã (Brasil). Eis que Juliano Pinto volta a saber como se chuta uma bola de futebol!
Absurdo: como Juliano Pinto uma vez, paraplégico, apenas com um exoesqueleto, volta a saber como chutar uma bola?
Por último, suponhamos o seguinte contrafactual. Martins não teria sido acometido por nenhuma das tragédias pessoais supramencionadas (que, de fato, ocorreram). Ele teria permanecido executando Bach, Chopin e Beethoven, como sempre. Entretanto, com a idade avançada, Martins passa a sofrer do mal de Alzheimer. Este não afeta primariamente o córtex sensório-motor, mas o hipocampo, o qual controla a memória, e o córtex cerebral, essencial para a linguagem e o raciocínio, memória, reconhecimento de estímulos sensoriais e pensamento abstrato.
Suponhamos agora que Martins, logo no início da sua demência (Alzheimer), se sentasse ao piano e iniciasse uma das inúmeras fugas de Bach que ele conhecia de cor. O cenário mais plausível seria o seguinte: já demenciado, após os primeiros compassos, Martins interromperia a execução, mas por quê? Resposta mais plausível: porque não se recordaria mais do resto da fuga.
A pergunta fundamental que agora se coloca é: Martins, demenciado pelo mal de Alzheimer, ainda sabe como tocar piano? Sabe como executar as fugas de Bach? A resposta intuitiva é: não, ele não sabe mais! Com a perda da memória de trabalho e a deterioração do seu córtex pré-frontal, ele não sabe mais o que ele sabia fazer de cor. Todavia, o que agora lhe falta? Resposta: um saber proposicional: ele não sabe mais o que tem que fazer com as mãos, para executar a fuga (uma proposição). E aí temos mais uma redução ao absurdo da tese behaviorista de que know-how é um mero saber prático sem nenhum componente proposicional:
Martins sabia como tocar piano de cor, antes de padecer do mal de Alzheimer.
Suposição enativista: o know-how é uma mera forma de saber prático sem sentido cognitivo ou proposicional.
Quando Martins padece do mal de Alzheimer, ao menos inicialmente, o seu córtex sensório-motor se mantém intacto (fato empírico).
Absurdo: padecendo do mal de Alzheimer, mas ainda possuindo o córtex-sensório-motor intacto, Martins ainda sabe como tocar piano.
Conclusão: ainda que tenha preservado o seu córtex sensório-motor, Martins, acometido pelo mal de Alzheimer, não sabe mais como tocar piano.
Moral da história: em termos gerais, o know-how não se reduz a um saber prático sem sentido proposicional. Ora, como o enativismo perceptual de Nöe e outros se apoia decisivamente na tese geral, segue-se que não podemos reduzir tampouco a percepção a um know-how sensório-motor sem sentido proposicional.
2 O Cérebro e o Corpo
Segundo o enativismo, nas suas diferentes formas, a percepção é essencialmente uma atividade incorporada de um organismo. Nesse sentido, deveria haver uma relação metafísica essencial entre a percepção e o corpo próprio. O pressuposto metafísico fundamental aqui é que somos essencialmente o nosso próprio corpo. Essa nossa suposição encontra amparo na afirmação de Gallagher, segundo a qual caberia ao corpo (próprio) dar a forma à mente (“the body shapes the mind”. Cf. SHAUN GALLAGHER, 2006) e organizar o campo perceptual.
Nesta seção, defenderemos a tese contrária: a relação entre a percepção e o corpo é metafisicamente contingente – mais de um corpo biológico ou mesmo avatares distantes no espaço poderiam estar associados a uma mesma experiência. Mas sustentamos que cabe ao cérebro moldar o corpo biológico ou físico (Körper) como corpo vivo (Leib). O corpo vivo emerge apenas de uma representação subliminar (esquema corporal) do próprio corpo físico. Dito isso, não é o meu corpo biológico que preside o campo perceptual, porém, ao contrário, é a representação de algum corpo como meu próprio pelo meu cérebro. Assim, não é o movimento do corpo que torna a percepção em geral possível, mas o inverso: representações do corpo biológico como corpo vivo é que tornam antes possível o agir corporal. Em suma, não somos um corpo que possui um cérebro, mas, antes, um cérebro que possui um corpo.
Nossos argumentos nesta seção apelam a experimentos e a intuições. Gostaria de iniciar esta seção, enumerando experimentos conduzidos pelo grande neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis. Em um primeiro, foram desenvolvidos sensores que captaram essas atividades nos ratos, decodificaram e transmitiram para outros ratos, onde foram decodificadas e compreendidas. Nicolelis e colegas descrevem o experimento, nos seguintes termos:
Uma interface cérebro-cérebro (BTBI) permitiu uma transferência em tempo real de informações sensório-motoras comportamentais significativas entre os cérebros de dois ratos. Neste BTBI, um rato “codificador” executava tarefas sensório-motoras que exigiam que ele selecionasse duas opções de estímulos táteis ou visuais. Enquanto o rato codificador executava a tarefa, amostras de sua atividade cortical eram transmitidas para áreas corticais correspondentes de um rato "decodificador", usando microestimulação intracortical (ICMS). O rato decodificador aprendeu a fazer seleções comportamentais semelhantes, guiado apenas pelas informações fornecidas pelo cérebro do rato codificador. Esses resultados demonstraram que um sistema complexo foi formado pelo acoplamento dos cérebros dos animais, sugerindo que os BTBIs podem possibilitar que díades ou redes de cérebros dos animais troquem, processem e armazenem informações e, portanto, servir como base para estudos de novos tipos de interação social e para dispositivos de computação biológica. (PAIS-VIEIRA et al., 2013, p. 1, tradução nossa). 4
Um rato recebia comandos mentais de outro (localizado em outro espaço) e acionava uma alavanca. O rato codificador era recompensado, caso o outro realizasse a tarefa de forma correta. Foi esse duplo estímulo que levou à colaboração entre os dois ratos. Quando o segundo rato cometia algum erro, o primeiro tratava de reformular a ordem, sendo mais atento e enviando ordens mais precisas. Desnecessário se dizer que nada disso se passa em um plano reflexivo, conceitual ou proposicional. Ora, mas a pergunta é: o que podemos extrair desse experimento?
Em primeiro lugar, como são dois ou mais corpos em espaços distintos se utilizando de uma mesma rede neuronal, a relação entre cada percepção e corpo não é essencial, mas metafisicamente contingente. Pouco importa qual corpo (qual organismo vivo), ao fim e ao cabo, irá realizar a tarefa. O que importa é aquilo que o enativista quer negar: a rede neuronal intracraniana. Mutatis mutandis, a relação entre cada córtex sensório-motor específico e a ação realizada também é metafisicamente contingente. Na interface cérebro-cérebro, o que importa são as informações sensório-motoras transmitidas de um córtex para outro. Isso nos permite formular dois breves argumentos contra o enativismo:
Primeira tese enativista: “[...] perceber não é uma atividade no cérebro, mas um tipo de atividade habilidosa da parte do animal como um todo.” (NÖE, 2004, p. 2, tradução e grifos nossos).
Ora, segundo a interface cérebro-cérebro (BTBI): um rato percebe a alavanca, sem que ele próprio a mova com o seu próprio corpo, e sem que a alavanca esteja no seu espaço, contudo, ele a move através do corpo de um terceiro rato ao qual transmite informações sensório-motoras.
Assim, primeiro, perceber é, sim, uma atividade no cérebro (rede neuronal), e a ação realizada é contingente para a percepção.
Conclusão: o enativismo é falso.
Segunda tese enativista: “A atividade do organismo - envolvendo-se com as características de seus ambientes de maneiras específicas - é suficiente para os tipos mais básicos de cognição. Tal atividade não depende de indivíduos recuperando conteúdo informativo do mundo.” (HUTTO; MYIN, 2013, p. 4-5, tradução e grifos nossos).
Ora, segundo o BIBT, o rato que aciona a alavanca só o faz, na medida em que “recupera um conteúdo informativo” sensório-motor do primeiro rato.
Conclusão: o enativismo é falso.
Poder-se-ia alegar aqui, em defesa do enativismo, que mesmo o BIBT supõe a tese da corporeidade cognitiva – afinal, ambos os ratos desempenham suas tarefas com os seus diferentes corpos. Na verdade, essa réplica trivial me parece um equívoco. Primeiro, nem mesmo um dualista cartesiano supõe que atividades cognitivas possam ser realizadas sem corpo (menos ainda um cognitivista). No entanto, o essencial é o seguinte: o que é metafisicamente constitutivo da atividade cognitiva não é esse ou aquele corpo que realiza a atividade corporal, mas a rede neural que está sendo transmitida de um corpo para outro. Aqui voltamos à objeção central de Block: enativistas de todas as tribos sucumbem a uma confusão elementar: confundem relações metafísicas constitutivas com relações causais! É óbvio que a execução de atividades perceptuais dependa, em termos causais, de um corpo. Porém, elas não são constituídas por este ou aquele corpo, uma vez que estes podem ser substituídos sem nenhum prejuízo da atividade cognitiva em si.
O segundo experimento digno de nota é aquele que Nicolelis realizou com uma rede neuronal de primatas. Eles aprenderam a utilizar a interface em tarefas bem mais complexas. Dois ou mais primatas passaram a controlar artefatos, mediante um avatar. Nas palavras de Nicolelis e colegas:
Tradicionalmente, as interfaces cérebro-máquina (IMC) extraem comandos motores de um único cérebro para controlar os movimentos de dispositivos artificiais. Aqui, apresentamos um Brainet que utiliza a atividade cerebral em larga escala (VLSBA) de dois (B2) ou três (B3) primatas não humanos para se envolver em um comportamento motor comum. Um B2 gerou movimentos 2D de um braço de avatar, onde cada macaco contribuiu igualmente para as coordenadas X e Y; ou um macaco controlava totalmente a coordenada X e o outro controlava a coordenada Y. Um B3 produzia movimentos de braço no espaço 3D, enquanto cada macaco gerava movimentos em subespaços 2D (X-Y, Y-Z ou X-Z). Com o treinamento de longo prazo, observamos um aumento da coordenação do comportamento, aumento das correlações na atividade neuronal entre diferentes cérebros e modificações na representação neuronal do plano motor. No geral, o desempenho do Brainet melhorou devido ao comportamento coletivo dos macacos. Esses resultados sugerem que os cérebros dos primatas podem ser integrados em um Brainet, que se auto-adapta para atingir um objetivo motor comum. (RAMAKRISHNAN, 2015, p. 1).
Após controlar o avatar com o cérebro, os primatas conseguiram processar um feedback táctil. Assim, com corpos distintos e separados por continentes no espaço, um dos macacos tinha experiência tátil com algum objeto e imediatamente passava a informação para o parceiro. A primeira conclusão que se extrai desse experimento é a mesma do experimento anterior: um mesmo corpo não é necessário para a experiência tátil: os corpos podem variar, como podem inclusive variar os espaços que ocupam, em uma mesma experiência. A relação entre cada percepção e o corpo próprio é metafisicamente contingente. O que é necessário é aquilo que o enativista quer negar: a existência de uma rede neuronal instanciada em uma série indefinida de corpos em espaços distintos.
Todavia, a segunda conclusão nos parece ainda mais importante. Os experimentos revelam a possibilidade de adicionarmos “dispositivos artificiais” ao cérebro, o qual, assim, passa a representá-los tais como membros orgânicos do corpo. É relativamente trivial reconhecermos que dispositivos artificiais estendem a mente para além dos limites do córtex. Mas o mais interessante nos parece ser o seguinte: pelo experimento de Nicolelis e colegas, podemos concluir que é o próprio cérebro que se estende para além dos limites dados pelo corpo biológico. O que é ou deixa de ser parte do meu corpo vivo depende essencialmente das configurações do meu cérebro. Podemos adicionar dispositivos artificiais, ao representá-los como membros do nosso corpo, tal como adicionamos múltiplos acessórios aos nossos computadores, via Bluetooth. Os primatas “incorporam” os dispositivos como partes do seu próprio corpo, tal como adicionamos fones sem fio ao nosso computador, fazendo apenas configurações nas “preferências do sistema”.
Ora – poder-se-ia objetar mais uma vez – na medida em que afirmamos que os cérebros dos primatas “incorporam” dispositivos como partes do seu próprio corpo, não estaríamos a defender a tese do cérebro expandido de Chalmers? A nossa polêmica aqui não é com a tese (hoje para lá de trivial) da mente expandida. A tese que rejeitamos enfaticamente é metafisicamente muito mais substantiva. Ela reza que a cognição e, em particular, a percepção são metafisicamente constituídas pelas chamadas contingências sensório-motoras. Em outras palavras, metafisicamente e cognitivamente, somos todo o nosso corpo.
No entanto, o experimento mais significativo de Nicolelis e colegas é aquele que coloca uma pá de cal em todas as formas de enativismo. O experimento de Nicolelis e colegas suportam teses em que a representação cerebral do próprio corpo, o esquema corporal, antecede e constitui a percepção tátil dos objetos:
A representação cerebral do corpo, chamada de esquema corporal, é suscetível à plasticidade. Por exemplo, sujeitos que experimentam uma ilusão de mão de borracha desenvolvem um senso de propriedade de uma mão de manequim, quando a veem sendo tocada, enquanto estímulos táteis são aplicados simultaneamente em sua própria mão. Aqui, a base cortical de tal modalidade foi investigada através de gravações simultâneas de conjuntos neuronais corticais primários (isto é, S1) e motores (isto é, M1) enquanto dois macacos observaram um braço de avatar sendo tocado por uma bola virtual. Após um período em que os toques virtuais ocorreram sincronizadamente com as escovadas físicas dos braços dos macacos, os neurônios em S1 e M1 começaram a responder aos toques virtuais aplicados sozinhos. As respostas ao toque virtual ocorreram 50 a 70ms mais tarde do que ao toque físico, consistente com o envolvimento de vias polissinápticas que ligam o córtex visual a S1 e M1. Propomos que S1 e M1 contribuam para a ilusão da mão de borracha e que, aproveitando a plasticidade dessas áreas, os pacientes possam assimilar membros neuroprostéticos como partes de seu esquema corporal. (SHOKUR et al., 2013, p. 1, tradução e grifos nossos).
Com efeito, Gallagher replicaria aqui, dizendo que a neurociência estaria confundindo “imagem corporal” com o “esquema corporal”: “O conceito de imagem corporal ajuda a responder à pergunta sobre a aparência do corpo no campo perceptivo; em contraste, o conceito de esquema corporal ajuda a responder a pergunta sobre como o corpo molda o campo perceptivo.” (2006, p. 18, tradução e grifos nossos). A ideia aqui é que o esquema corporal não seria uma representação do próprio corpo (a imagem corporal), mas algo que seria essencialmente constituído por capacidades e hábitos motores.
Entretanto, essa concepção motora do esquema corporal proposta por Gallagher é incompatível com os dados do experimento de Nicolelis e colegas. Nenhuma habilidade motora está envolvida! O que o experimento assinala é um cruzamento de informações visuais de uma mão de borracha com informações táteis da própria mão que conduz o sujeito a representar ilusoriamente a mão de borracha, como sendo parte do seu próprio corpo: “Sujeitos experimentam uma ilusão de mão de borracha desenvolvem um senso de propriedade de uma mão de manequim quando a veem sendo tocada enquanto estímulos táteis são aplicados simultaneamente em sua própria mão.” (SHOKUR et al., 2013, p. 1, tradução nossa).
Não é nenhum hábito motor que constitui o campo perceptual, mas representações subliminares ou não conceituais de um corpo, a partir do cruzamento de informações oriundas de diferentes fontes. Logo, o corpo que importa à cognição não é um “Körper” (corpo físico), mas um “Leib” (corpo vivo). Essa é uma distinção introduzida pelo antropólogo Helmuth Plessner nos anos vinte, em colaboração com o psicólogo behaviorista holandês Frederick J. Buytendijk (cf. STRUYKER BOUDIER, 1993). Essa distinção é incorporada por Merleau-Ponty (cf. MERLEUAU-PONTY, 1945, p. 327).
No entanto, o ponto crucial que os enativistas ignoram é o seguinte: esse corpo vivo é constituído metafisicamente pela representação subliminar e/ou não conceitual de um corpo biológico ou de substitutos, como avatares e membros mecânicos, os quais têm a forma de um esquema corporal gerado pelo próprio cérebro, de forma subpessoal e subliminar. Em suma, não é o corpo que molda a mente, mas, antes, é o cérebro que molda o corpo vivo.
Casos patológicos conhecidos apontam na mesma suposição, como, por exemplo, o da dor no membro-fantasma. Quase todas as pessoas que tiveram um membro amputado ou um nervo removido relatam ter experimentado algum tipo de membro-fantasma, mas apenas algumas relatam dor persistente nesse membro. A primeira pergunta que se coloca ao enativista: como entendermos o tal membro-fantasma, sem supormos um conteúdo representacional? Qual interação incorporada poderia explicar como e por que sinto um membro que não existe e, pior, que dói? Se a função da experiência é nos pôr em contato com o mundo, como ressalta Nöe, onde estaria o contato, no caso do membro-fantasma?
Muitos que realizam a experiência de um membro-fantasma aludem a uma dor muito forte – geralmente não é aliviada por medicamentos ou dispositivos implantados. A interpretação mais plausível é a seguinte: o membro amputado não mais existe, biologicamente. Contudo, ele é ainda sentido pelo cérebro como parte do esquema ou representação corporal. Pessoas nessa condição reportam sentir dor no membro ausente, porque tal membro estaria, de alguma maneira, “preso”. A terapia mais engenhosa é simples e sem custo. Ela foi proposta por Vilayanur S. Ramachandran: utiliza-se um espelho e a pessoa diante do espelho realiza movimentos com o membro restante, projetado de forma inversa no espelho (RAMACHANDRAN; RAMACHANDRAN, 1996).
Em um trabalho recente, Jack Tsao e colegas descrevem uma das melhores tentativas de elucidar o verdadeiro valor da terapia do espelho, para dor em membros-fantasmas. Os pesquisadores escolheram aleatoriamente 22 pessoas com membros inferiores amputados e com dor-fantasma e as classificaram em três grupos:
Movimentos de espelho: os pacientes observavam a imagem refletida de seu pé intacto em um espelho, enquanto moviam os dois pés simultaneamente. (Obviamente, os amputados não podem mover o pé perdido, mas podem mover o pé-fantasma.)
Movimentos do espelho coberto: os pacientes realizavam os mesmos movimentos, mas o espelho estava coberto, para que não vissem um membro em movimento.
Movimentos imaginários: sujeitos eram retratados mentalmente movendo o pé-fantasma, com os olhos fechados.
Todos os pacientes realizaram 15 minutos por dia de sua terapia designada e registraram o número, a duração e a intensidade dos episódios de dor. Após quatro semanas, houve duas descobertas cruciais. Em primeiro lugar, a dor diminuiu significativamente em todos os seis pacientes que fizeram os movimentos do espelho, com a redução média, conforme relatado em uma escala de 100 pontos, sendo de 30/100 para cerca de 5/100. Em segundo lugar, três em cada seis pacientes no grupo de movimentos do espelho coberto, e quatro em cada seis pacientes no grupo de movimentos imaginários pioraram, não melhoraram.
A conclusão mais plausível desses experimentos é que os movimentos do espelho diminuem a dor do membro-fantasma. Por que o tratamento se mostrou exitoso? Na realidade, não há uma resposta clara para isso, uma vez que não sabemos como funciona totalmente o cérebro. Mas uma coisa é certa e é o que importa para a discussão deste ensaio: de uma forma ou de outra, o cérebro, através do espelho, passou a representar o membro-fantasma de forma diferente.
O enativista poderia sugerir, em réplica, que os movimentos do braço refletidos no espelho é que reconfiguram a imagem corporal. Ora, essa réplica não nos parece fazer sentido, por duas razões. Primeiro, muito antes do início do movimento do membro refletido no espelho, já havia uma representação ilusória não conceitual do membro-fantasma e nenhum movimento corporal induziu o sujeito a tal representação. Em segundo lugar, o que está em jogo aqui não é o movimento do membro, porém, antes, o cruzamento de representações visuais com representações proprioceptivas, como no caso anterior. Mais uma vez, quem comanda o espetáculo não é o corpo físico (Körper), mas o corpo vivo (Leib), ou seja, o que quer que seja que o cérebro venha a representar como seu corpo.
Há inúmeros outros exemplos, mas nos limitaremos apenas a mais um: casos de distúrbios alimentares. Todo anoréxico se percebe “obeso”, no espelho, mesmo que ele esteja tal como um sobrevivente de um campo de concentração nazista! Moral da história: não é o corpo biológico (Körper) que constitui a percepção de objetos mundanos e dos estados de terceiros nem a autopercepção, mas, pelo contrário, é a percepção do corpo biológico como próprio (Leib) que torna possível a percepção de objetos e de estados mentais de terceiros.
3 O Paradeiro da Consciência
Nesta última seção, buscaremos eliminar o último dos credos do enativismo, aquele que constitui a sua quintessência: o externismo fenomenal ou consciente enativista. Enativistas de diferentes estirpes sustentam que a experiência consciente (ou a fenomenalidade) poderia ser explicada no seu quadro teórico (HUTTO; MYIN, 2013, p. 155). Dizem-nos que a consciência possui uma “ampla base de superveniência”: ela envolveria constitutivamente parte do ambiente. Ou ainda, segundo Thompson e Varela, a consciência seria um produto do trabalho conjunto entre cérebro, corpo e mundo (THOMPSON; VARELA, 2001). Nöe ainda é mais contundente: “[...] a percepção e a consciência perceptiva dependem das capacidades de ação [...]” (NÖE, 2004, p. Vii, tradução nossa); e, por fim: “[...] o carácter fenomenal é um aspecto dessa atividade” (NÖE, 2009, p. 9, tradução nossa).
Embora concordem que os processos cerebrais sejam necessários para o caráter fenomenal, enativistas sustentam que a consciência “[...] não se encontraria na cabeça” (um dogma segundo Nöe – cf. NÖE 2004, p. 2016). Ela seria, ao menos em parte, individuada metafisicamente pela interação incorporada do organismo com “circunstâncias externas”. Logo, o caráter fenomenal exigiria não apenas a ocorrência de processos cerebrais, mas, sobretudo, de condições extracranianas (cf. HUTTO; MYIN, 2013, p. 158). Mas quais seriam essas condições extracranianas? Quais seriam “compromissos mundanos interativos”? O que significa dizer que a “consciência não estaria na cabeça”?
Ao que tudo indica, o oponente aqui é o internista fenomenal, para quem a consciência seria “interna” ao cérebro. Nöe nos fornece um exemplo sugestivo:
Talvez a única maneira - ou a única forma biologicamente possível - de produzir apenas a sensação de sabor que se desfruta, quando se toma um gole de vinho, é rolando o líquido na língua. Nesse caso, o líquido, a língua e a ação de rolamento seriam parte do substrato físico para a ocorrência da experiência. (NÖE, 2004, p. 227, tradução nossa).
Entretanto, a tese de que a consciência não sobrevém localmente ao cérebro (ou seja, fixadas as propriedades do cérebro, não teríamos fixado o caráter fenomenal das experiências) comporta ao menos duas interpretações, uma menos controversa, ainda assim implausível, enquanto a outra claramente falsa (além de contraintuitiva). A interpretação menos controversa é endossada por Nöe (2004, p. 221, tradução nossa):
Sobre o externismo que estou defendendo aqui, ele não coloca em xeque uma série de verdades internistas. Por exemplo, o externismo enativista que defendo aqui é compatível com o fato de que a única maneira de o mundo produzir mudanças na consciência animal é produzindo mudanças no cérebro; que as mudanças apropriadas no cérebro produzirão mudanças na consciência, mesmo que o ambiente permaneça inalterado. Na verdade, o externismo que defendo aqui é compatível com o fato de que as duplicatas neurais serão duplicatas a respeito da consciência.
À luz dessa leitura, o externismo fenomenal enativista estaria se opondo à chamada concepção do estado interno físico. Proponentes recentes da visão do estado físico interno incluem Ned Block (2019), C. L. Hardin (1988), Geoff Lee (2020), David Papineau (2014), Thomas Polger (2004) e Hilary Putnam e Hilla Jacobson (2014). Não é surpresa para ninguém que tal concepção do estado interno físico seja amplamente endossada (ainda que de maneira tácita) pelos neurocientistas. Por exemplo, Guillermos Tononi e Kristof Koch (2015) propuseram a “teoria da informação integrada” da experiência, a qual é uma das concepções do estado interno físico. A concepção do estado interno físico pode ser definida nos seguintes termos, conforme proposto por Adam Pautz (2021, p. 60):
Concepção do estado interno físico. Toda experiência com um determinado caráter fenomenal é necessariamente idêntica a uma propriedade física “interna”, ou seja, um padrão neural determinado. Essa propriedade é uma propriedade intrínseca do cérebro que não guarda relação alguma com nada fora do cérebro. As diferenças no caráter fenomenal da experiência se reduziriam a diferenças nas propriedades físicas intrínsecas dos sujeitos.
Nesse sentido, O’Regan e Nöe sustentam a própria coerência do caráter fenomenal; por exemplo, a coerência da experiência visual seria impossível, sem a manutenção da interação real com um ambiente atual concreto (O’REGAN; NÖE, 2001). Isso explicaria por que a experiência visual nos sonhos e nas alucinações seria menos coerente do que na vigília.
Com efeito, não restam dúvidas de que inúmeros casos de alucinações são fenomenalmente distintos de percepções genuínas. Entretanto, tal suposição não é universalizável. Por exemplo, existe uma condição chamada “síndrome de Charles Bonnet” (CBS). Ela é muito comum entre aqueles que perderam a visão, muitas vezes devido a uma condição relacionada à idade (por exemplo, degeneração macular). No entanto, devido à atividade neural interna espontânea, eles têm alucinações que são tão vívidas e detalhadas que, na maioria das vezes, eles não conseguem distingui-las da vida real. Em uma página da web sobre a CBS, especificamente sobre “Personal experiences of CBS”), é possível encontrar o seguinte testemunho de um idoso sobre a sua condição:
Tenho degeneração macular há cerca de seis meses, comecei a ver essas formas e figuras supercoloridas. Felizmente, meu oftalmologista me contou sobre a CBS, então, comecei a apreciá-la. Às vezes, eu vejo essas trepadeiras ou plantas de um verde tão rico! Eu adoro ver as cores fortes, mas, às vezes, elas são muito, muito coloridas, como quando você aumenta o controle de cores da TV ao máximo.5
Haveria alguma ação incorporada que os organismos pudessem realizar, a qual tornasse o caráter fenomenal das suas experiências alucinatórias distinto das suas percepções genuínas? Não há nenhuma evidência, na literatura. O idoso está fazendo os mesmos movimentos oculares, quando tem alucinação e quando percebe genuinamente. Ele se aproxima e se distancia das trepadeiras e plantas alucinadas, do mesmo modo como faz em relação a trepadeiras e plantas reais, no seu campo visual. Com efeito, o idoso só se apercebe do caráter alucinatório de suas experiências graças ao relato de seu oftalmologista sobre a sua condição. Isso por si só já seria suficiente para descartarmos de uma vez por todas o externismo fenomenal de O’Regan e Nöe. Mas a posição dos autores ainda se torna mais indefensável, quando consideramos que há fortes evidências empíricas de que a atividade neural subjacente a essas alucinações é amplamente semelhante à atividade subjacente à experiência (PENFIELD; PEROT, 1963; FFYTCHE, 2013).
Com efeito, a suposição de que o caráter consciente da experiência depende de uma forma sistemática e regular do caráter de sua atividade neural interna encontra amplo suporte empírico, atualmente. Enfatiza Pautz (2021, p. 68, tradução e grifos nossos):
Como, em muitos casos, as relações estruturais entre as experiências (semelhança e diferença, intervalos iguais, proporção) não correspondem às relações estruturais entre as propriedades físicas externas complexas às quais nosso cérebro está respondendo, mas correspondem às relações estruturais entre os correlatos neurais internos, então, isso certamente aumenta a probabilidade da visão de que nossas experiências são simplesmente idênticas àqueles correlatos neurais.
Se conhecêssemos o padrão espaço-temporal de atividade em alguma população de neurônios que representam cores, e se conhecêssemos o “código neural” sistemático dessas representações, poderíamos determinar o caráter consciente da experiência de cores. Da mesma forma, se conhecêssemos o padrão de atividade em alguma outra população de neurônios que representam características espaciais, e conhecêssemos o “código neural” sistemático para um formato ou figura, poderíamos determinar, quando alguém realiza uma experiência de algo redondo, ao invés de algo quadrado. Como afirma o neurocientista Stanislas Dehane (2014, p. 143-145, tradução nossa): “[...] o código [neural] contém um registro completo da experiência do sujeito” e, “[...] se pudéssemos ler este código, teríamos acesso total ao mundo interior de uma pessoa.”
No entanto, a interpretação controversa se opõe não apenas à concepção do estado interno físico. Ao que tudo indica, Hutto e Myin (2013, p. 158, tradução e grifos nossos) sustentam que a consciência seria superveniente, de maneira forte e ampla, face ao ambiente:
Alguns enativistas argumentam que a fenomenalidade tem uma ampla base de superveniência - que ela envolve constitutivamente partes do ambiente. Chamamos seus argumentos mais fortes de Argumentos de Envolvimento Essencial. Eles afirmam que os processos cerebrais necessários para a fenomenalidade ocorrem quando, e somente quando, há interação com certas circunstâncias externas. Nessa visão, a fenomenalidade requer não apenas a ocorrência de certos processos cerebrais, mas também de certas condições extracranianas. As condições extracranianas fazem parte da base de superveniência mínima da fenomenalidade. A experiência fenomenal sobrevém fortemente ou é constituída por compromissos mundanos interativos, temporalmente estendidos.
A palavra de ordem do enativista aqui é “ir longe”! (Going wide!) – cf. HUTTO; MYIN, 2013, p. 158). As atividades de um agente interagindo com o seu ambiente seriam metafisicamente constitutivas da própria consciência. Mas aqui estamos de volta com a ambiguidade inicial. Se, por um lado, Hutto e Myin se referem a uma “ampla base de superveniência”, por outro, eles também mencionam uma “base de superveniência mínima”. O que eles querem, afinal? Se nós seguirmos o que parece significar a segunda locução, estamos de volta com a leitura de Nöe: trata-se apenas se rejeitar a “concepção do estado interno físico”. E, como vimos, essa rejeição é implausível, em razão da correlação sistemática e regular entre o caráter consciente das experiências e padrões neuronais e da fraca correlação entre a consciência e o que se passa fora do cérebro, como ações incorporadas.
Mais auspicioso seria supor que se trata de uma versão sui generis do externismo fenomenal de representacionistas reducionistas naturalistas, como Fred Dretske (2003) e Michael Tye (1995). Segundo os representacionistas reducionistas naturalistas, duplicatas cerebrais não seriam necessariamente duplicatas fenomenais, por uma razão muito simples: duplicatas cerebrais não seriam necessariamente duplicatas representacionais. O credo fenomenal externista reza aqui que apenas duplicatas representacionais seriam duplicatas fenomenais. Ora, mas como é notório, os enativistas se afastam do externismo fenomenal representacionista de Dretske e Tye, em ao menos um aspecto fundamental já conhecido. Segundo Hutto e Mying, “[...] devemos abandonar a ideia de que a identidade fenomenal seja uma identidade de conteúdo (amplo).” (HUTTO; MYING, 2013, p. 162).
Desse modo, o credo enativista seria não é apenas “ir longe”, mas, antes, “ir ainda mais longe”! O que está em jogo é o seguinte. Conforme o internista fenomenal, duplicatas cerebrais seriam duplicatas fenomenais, sob a suposição crucial de que os duplos cerebrais envolvidos estejam expostos às mesmas estimulações próximas, independentemente se habitam ambientes diversos e se interagem com particulares propriedades distantes diferentes desse mesmo ou ambiente diferente. O que o internista fenomenal exclui é a contribuição de particulares e de propriedades distantes para a constituição metafísica da consciência. Isso posto, para desbancar o internismo fenomenal, o enativista teria de provar que duplicatas cerebrais, interagindo de forma incorporada com diferentes particulares e diferentes propriedades distantes, realizariam experiências fenomenalmente distintas, ainda que expostas aos mesmos estímulos próximos.
Infelizmente, não é isso o que Hutto e Myin se põem a fazer. Para defender a sua versão enativista do externismo fenomenal, eles se limitam a atacar um espantalho filosófico – a noção idiossincrática dos qualia – e desqualificar os argumentos antifisicistas clássicos, como o hiato explicativo:
Como outros enativistas, rejeitamos as formas-padrão de caracterizar o lado "fenomenal" das identidades fenômeno-físicas. [...] Nesse contexto - e não em uma tentativa de fornecer uma solução direta para o Problema Difícil - a estratégia ativista de “ir longe” mais uma vez se mostra útil. De fato, a plausibilidade das identidades propostas parece inteiramente diferente, e muito menos artificial, se for assumido que o caráter fenomenal das experiências deve, em última análise, ser compreendido, apelando para as interações entre os experimentadores e aspectos de seus ambientes. Isso é verdade, mesmo que no final deva ser descoberto que a fenomenalidade nada mais é do que atividade neural associada a atividades orgânicas mais amplas. (2013, p. 176-177, tradução e grifos nossos).
Essa mesma atitude é bem exemplificada pela contribuição de Cosmelli e Thompson (2010). Estes alegam que a própria ideia, por exemplo, de um cérebro desincorporado em um tanque de nutrientes, em um espaço vazio, efetuando experiências com propriedades fenomenais, carece de credibilidade “[...] devido à presença necessária de processos metabólicos não cerebrais.” Não gostaríamos de nos alongar sobre esse ponto, mas cabe a pergunta: por que temos de supor que cérebros em tanques de nutrientes não possam compartilhar dos mesmos processos metabólicos de cérebros encarnados, quando devidamente estimulados?
A suposição parece ser a seguinte. Não precisamos levar a sério “extravagâncias filosóficas”, tais com o problema difícil de Chalmers, o problema do hiato explicativo de Levine ou o problema dos cérebros suspensos em tanques de nutrientes, no espaço sideral. De acordo com Hutto e Myin, ao deixarmos de lado tais extravagâncias, a versão enativista do externismo fenomenal surge como a tese “mais natural”: o caráter fenomenal ou consciente das nossas experiências sensoriais deve, em última análise, ser compreendido, apelando-se para as interações incorporadas entre os experimentadores e os aspectos relevantes de seus ambientes.
Para início de conversa, a tese de uma superveniência forte da consciência, face aos aspectos das interações incorporadas do agente com o seu ambiente, é completamente contraintuitiva. Supor que a consciência não esteja nas nossas cabeças, mas, antes, “nas atividades orgânicas amplas”, em um ambiente, é difícil de se engolir. O externismo fenomenal representacionista já era completamente contraintuitivo, contudo, é necessário que se diga, a sua versão enativista soa ainda mais wishful thinking. Na literatura, não há um único exemplo que apoie essa suposição!
Seja como for, como poderíamos agora nos contrapor ao enativista? Para não incorremos em nenhuma petição de princípio, devemos seguir a própria estratégia proposta por Hutto e Myin de “ir longe” (going wide). Ora, feito isso, precisamos assumir que as próprias ações orgânicas incorporadas realizadas em um determinado ambiente são tão amplamente individualizadas como o suposto caráter consciente das respectivas experiências, as quais, segundo o enativista, deveriam constituir. Em outras palavras, temos de assumir que essas atividades orgânicas, quando implementadas em ambientes determinados, são individuadas através do apelo tanto aos diferentes particulares quanto às diferentes propriedades distais. Caso o externista fenomenal enativista rejeite tal suposição, ele se verá às voltas com uma petição de princípio, estará negando a sua própria estratégia do “ir longe”. A alternativa seria assumir que a tal estratégia de “ir além” nada mais é do que “ir ali”.
Em decorrência, não precisamos nem desejamos recorrer a “[...] casos extravagantes como manipulações neurais diretas de cérebros entubados ou acidentes quânticos maravilhosos que conseguem replicar a atividade neural relevante.” (2013, p. 161, tradução nossa). Também nós não queremos resolver aqui os tradicionais problemas do hiato explicativo da suposta possibilidade metafísica de zumbis ou de cérebros desencarnados suspensos em tanques de nutrientes, no espaço. Tudo que queremos fazer é assinalar o quanto implausível e contraintuitivo é o externismo fenomenal, na sua suposta versão enativista.
Logo, tudo de que precisamos é apresentar casos reais, nos quais duplicatas fenomenais não são necessariamente duplicatas de agência. Isso acontece quando as duplicatas cerebrais estão situadas em um mesmo ambiente ou em diferentes ambientes, mas interagindo com diferentes particulares e diferentes propriedades distantes (distais). Interagindo com particulares, qualitativamente idênticos, mas numericamente distintos, e com diferentes propriedades distais, diante da mesma estimulação próxima, as duplicatas cerebrais deveriam ser fenomenalmente distintas, caso o externismo fenomenal enativista fosse correto. Em outras palavras, se as duplicatas fenomenais não são necessariamente duplicatas de agência, a conclusão que se impõe é que a consciência não é uma forma de atividade incorporada que esteja essencialmente associada a interações do agente com o ambiente.
Inspirado no exemplo enológico da citação de Nöe, relato agora um acontecimento absolutamente trivial que se passou comigo, Roberto, mas creio que tenha ocorrido e ocorra com inúmeras pessoas, todos os dias. Estava eu em uma festa conversando entretido com colegas sobre política e economia, meus temas prediletos, os quais só me trazem desafetos. Enquanto isso, bebia uma taça de vinho. Entretanto, sem que eu tivesse me apercebido, a cada vez que minha taça se esvaziava, a anfitriã, prima da minha esposa, por cortesia, fazia com que enchessem sempre que eu a esvaziava: tratava-se de um grande “Alma Viva”. A taça estava em uma mesa atrás de mim e eu conversava com colegas à minha frente. Consequência: acabei em um “porre federal” (mal conseguia me pôr de pé). Pior, sem entender o que se passou. Indaguei a minha mulher, que me disse que tomei nada menos do que dez taças (coisa de cinco garrafas), acreditando ter tomado apenas três.
Levemos a sério a estratégia do ir “ainda mais além”. Primeiro, a cada vez que eu levava a taça à boca, repetia a mesma liturgia sugerida por Nöe: movimento típico da língua, movimento tipo das bochechas etc. Individuadas exiguamente, sem menção aos diferentes particulares envolvidos, ou seja, como meros movimentos corporais, as minhas ações seriam idênticas em todos os aspectos relevantes. Entretanto, seguindo a estratégia enativista do “ir ainda mais além”, a cada vez que eu levava o copo à boca, eu estaria executando uma ação distinta, porque meu corpo estaria interagindo com diferentes particulares. Qual é o ponto? Ora, se o enativismo fosse correto, e o caráter fenomenal fosse um aspecto da minha atividade corporificada, a cada diferente taça de vinho que eu bebesse, eu deveria me aperceber da suposta diferença fenomenal das minhas diferentes experiências.
O externismo fenomenal enativista se vê aqui diante de um dilema. Por um lado, ele gostaria de supor que as ações incorporadas que importam são apenas aquelas individuadas exiguamente, no exemplo, os movimentos corporais com a boca, no ritual proposto por Nöe. Mas, se esse for o caso, primeiro, não faz sentido insistirmos na estratégia do “ir mais além”: particulares em nada contribuem para a consciência. Em segundo lugar, a tese apenas contradiz a concepção do estado interno físico: estamos de volta com a primeira das duas leituras do enativismo. E, conforme observamos, mesmo à luz dessa versão fraca, o externismo fenomenal enativista se revela implausível. Segundo notamos, as melhores evidências disponíveis indicam que o caráter fenomenal das experiências é fixado por padrões neuronais e não por aspectos do agir incorporado extracraniano.
A conclusão não poderia ser mais óbvia: não há relação metafisicamente necessária entre cada ação incorporada de um organismo interagindo com diferentes particulares e cada forma correlata de consciência fenomenal, quando a ação é individuada amplamente. O argumento assume a seguinte forma:
Estou em uma festa, tomando dez taças de vinho.
Suposição externista: executando “ações incorporadas”, mas interagindo com dez diferentes particulares, a cada vez que levo o copo à boca e realizo os movimentos corporais típicos, concretizo uma ação diferente, quando o comportamento é individuado amplamente (estratégia do ir longe).
Suposição enativista: os aspectos das ações incorporadas dos organismos com o ambiente constituem metafisicamente o caráter fenomenal das experiências.
Com base em 3 e 4, podemos inferir que, a cada vez que eu levo a taça de vinho à boca e realizo os requeridos movimentos corporais, há algo distinto para mim, que é tal como tomar de cada uma das taças, pois os particulares do ambiente são numericamente distintos.
Entretanto, 4 é empiricamente falsa, tanto assim que fiquei “de porre”. Não fui eu que me apercebi de forma gustativo-fenomenal que eu tinha bebido dez taças, mas minha mulher, e de maneira visual.
Lema: ou bem a suposição externista forte (estratégia do ir além) é falsa ou bem a suposição enativista é falsa.
Se a suposição externista forte for falsa, o enativismo fenomenal enativista resulta na tese trivial e implausível de Nöe.
Conclusão: não há relação metafísica necessária entre cada ação incorporada de um organismo, em um ambiente, quando individuada amplamente pelo apelo aos diferentes particulares envolvidos, e a respectiva consciência.
Consideremos agora o caso das propriedades distantes. Segundo experimentos de Cowart e Rawson (2001, p. 568, tradução e grifos nossos):
As evidências disponíveis indicam que inúmeras características químicas e moleculares (por exemplo, peso molecular, massa e forma molecular, polaridade, estrutura de ressonância, tipos de ligações e grupos laterais) podem influenciar as características odoríferas (fenomenais) de um produto químico. No entanto, nenhuma correlação sistemática se observou entre essas características (químicas) e as qualidades (fenomenais) específicas do odor. Em outras palavras, substâncias químicas que apresentam pouca semelhança estrutural podem cheirar da mesma forma, e substâncias químicas que são quase idênticas estruturalmente podem produzir qualidades experienciais muito diferentes.
Experimentos posteriores vieram respaldar a mesma tese. James D. Howard e colegas (2019) usaram imagens de ressonância magnética funcional (fMRI) para observar padrões neurais espaço-temporais distribuídos, produzidos por diferentes odores, no “córtex piriforme posterior”. Eles analisaram as semelhanças entre esses padrões neurais e descobriram que a similaridade entre padrões neuronais era mais compatível com a similaridade fenomenal do odor do que a similaridade química. A similaridade neuronal, portanto, se apresenta como o único fator que nos permite entender semelhanças fenomenais entre odores.
Como é sabido, a uva Carménère tem origem na famosa região de Bordeaux (região dos vinhos mais caros e apreciados no mundo inteiro). Ela era muito utilizada nos blends (misturas) que resultavam nos famosos vinhos da região. Entretanto, por volta de 1870, uma praga fatal para as videiras (filoxera) assolou as plantações e devastou vinhedos no mundo inteiro.
Nessa época, a Carménère foi dada como extinta e se passaram mais de 100 anos até ser redescoberta por acidente, em 1994, pelo francês Jean Michel Boursiquot. A pergunta que se coloca é: por que a Carménère foi dada como extinta? As uvas eram fenomenalmente indiscerníveis e um mesmo terroir, ou seja, vinhos eram indiscerníveis de forma consciente. Os melhores enólogos, à época, eram incapazes de detectar qualquer diferença ao paladar e ainda hoje enólogos tendem as confundir. Mas como Boursiquot descobriu a diferença? Resposta: ele era um ampelógrafo, especialista em vinhedos, e realizou simplesmente uma descoberta botânica. Ele se apercebeu, pelas características morfológicas das vinhas, de que se tratava de uvas distintas. Com efeito, as uvas Carménère e Merlot são também quimicamente diferentes. A concentração de antocianinas, ácido chiquímico e os principais flavonóis encontrados no vinho permitem diferenciar as uvas. O que é preciso reter, até aqui? Embora as substâncias e propriedade distantes do ambiente fossem distintas, produziam estímulos próximos idênticos.
Estamos agora em 1993. Oscar é um enólogo chileno que se põe a degustar um Carménère e, logo em seguida, um Merlot da famosa vinícola Concha y Toro. A temperatura dos vinhos é a mesma, Oscar se encontra no mesmo ambiente, e a sua temperatura corporal se mantém inalterada. Como manda o figurino de Nöe, Oscar realiza os movimentos corporais rituais com a língua e a bochecha, palato, nariz etc. Entretanto, em 1993, Oscar é incapaz de se aperceber pelo paladar da diferença entre uma taça de Carménère e outra de Merlot (como muitos enólogos ainda hoje são incapazes de se aperceber, em blind tests).
O que devemos concluir, nesse caso? Se devemos seguir a estratégia do “ir mais além”, é forçoso supor que as “ações incorporadas” de Oscar sejam radicalmente distintas (externismo), embora os movimentos corporais sejam idênticos, em todos os aspectos relevantes. Qual seria o comportamento de Oscar? Em um primeiro momento, Oscar estaria degustando um Carménère, enquanto, em um segundo momento, ele estaria degustando um Merlot. No entanto, as uvas apresentam diferentes concentrações de antocianinas, de ácido chiquímico etc. Logo, se o externista fenomenal enativista estivesse correto, deveria haver algo, para Oscar, que é tal como degustar um Carménère e que seria conscientemente diferente do que seria, para Oscar, degustar um Merlot. Em outras palavras, interagindo com propriedades quimicamente distintas em um mesmo terroir, Oscar teria que se aperceber fenomenalmente que estaria a degustar vinhos distintos.
Todavia, isso não aconteceu antes de 1994! Embora as uvas fossem quimicamente distintas, as estimulações próximas nas papilas gustativas de Oscar eram idênticas, em todos os aspectos relevantes (e essa foi a razão pela qual a uva Carménère foi dada como extinta, depois da praga, e assim passou a ser considerada por 100 anos). Pergunta: temos como negar que, ao degustar as duas taças de vinhos distintos, Oscar não seria uma duplicata fenomenal de si mesmo, interagindo, no entanto, com substâncias quimicamente distintas? Passo agora ao argumento:
Oscar é um enólogo degustando, primeiro, uma taça de Carménère e, logo em seguida, uma taça de Merlot.
Suposição externista: executando “ações incorporadas” de um organismo em interação com propriedades distantes distintas, duplicatas cerebrais estariam realizando ações distintas.
Suposição enativista: os aspectos das ações incorporadas em um ambiente constituem metafisicamente o caráter fenomenal das experiências.
Oscar está a degustar substâncias quimicamente diferentes, as quais, no entanto, produzem estímulos próximos idênticos em ambos.
Com base em 3 e 4, podemos inferir que Oscar executa ações incorporadas distintas, apenas superficialmente semelhantes.
Agora, com base em 13, deveríamos poder inferir que há algo, para Oscar, que é como degustar um Carménère que é fenomenalmente e conscientemente do que é, para ele mesmo, degustar um Merlot.
14 é empiricamente e comprovadamente falsa: antes de 1994, enólogos não conseguiam discriminar ao paladar um Carménère de um Merlot. A distinção foi feita com base no conhecimento botânico dos vinhedos e, hoje, em função da química das duas uvas: Carménère e Merlot.
Lema: ou bem a suposição externista forte é falsa ou bem a suposição enativista é falsa.
Se a suposição externista for falsa, o externismo fenomenal enativista se resume à tese de Nöe, também implausível.
Conclusão: não há relação metafísica necessária entre cada ação incorporada por um organismo em um ambiente e cada experiência consciente realizada quando individuada amplamente.
Conclusão
Ao final dessas longas seções, estamos de volta com a questão metafísica fundamental sobre a nossa própria natureza: o que somos, afinal? Qual seria a nossa natureza última? Os enativistas de todos os matizes possuem uma clara resposta. Somos um corpo vivo que possui um cérebro, como qualquer outro órgão essencial Merleau-Ponty (1945, p. 175, tradução e grifos nossos) não poderia ser mais inequívoco a respeito:
Mas não estou diante do meu corpo, estou no meu corpo, ou melhor, sou o meu corpo. Nem suas variações nem seus invariantes podem, portanto, ser expressamente declarados. Não contemplamos apenas as relações dos segmentos do nosso corpo e as correlações do corpo visual e do corpo táctil: somos nós mesmos que mantemos juntos esses braços e essas pernas, quem os vê e os toca.
Nöe (2009, p. XIII, tradução e grifos nossos) também é inequívoco a propósito, pelo próprio subtítulo de um dos seus mais importantes livros, publicado em 2009:
A experiência humana é uma dança que se desenvolve no mundo e com os outros. Você não é seu cérebro. Não estamos trancados na prisão de nossas próprias ideias e sensações. O fenômeno da consciência, como o da própria vida, é um processo dinâmico que envolve o mundo. Já estamos em casa, no meio ambiente. Estamos fora dos nossos cérebros.
Caso eles estivessem corretos, poderíamos, em um futuro próximo, realizar transplantes de cérebros, tal como fazemos transplantes de fígado, rins e até coração, sem alterar a nossa identidade numérica como pessoas.
Suponhamos que tudo o que sustentamos aqui esteja correto. As conclusões são aquelas prometidas na introdução. 1- o know-how não é uma forma de saber prático destituído de sentido proposicional; 2- a relação entre cada percepção e o corpo próprio é metafisicamente contingente; 3- cabe ao cérebro configurar ou moldar um corpo físico (Körper) em um corpo vivo (Leib) e não o inverso; 4- o externismo fenomenal enativista, na sua forma branda, é implausível, e, na sua forma mais radical, completamente contraintuitivo, mas sobretudo falso: duplicatas fenomenais não são necessariamente duplicatas de agência; 5- somos o nosso próprio cérebro e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.
Why we are our brains: challenging enactivism
Abstract: In this essay we will argue for the following theses: 1- know-how is not a form of practical knowledge devoid of propositional sense; 2- the relationship between each perception and the body itself is metaphysically contingent. 3- it is up to the brain to configure or to shape a physical body (Körper) into a living body (Leib) and not the other way around; 4- phenomenal externalism of enactivist nature, even in its mild form, is empirically implausible: the correlation between the conscious character of sensory experience with spatiotemporal neuronal patterns is much more systematic and regular than with anything outside the brain. But in its radical form is entirely implausible and contra-intuitive: phenomenal duplicates are not necessarily duplicates of agency; in short, 5-we are our own brain that has a body, avatars, and artifacts, properly configured and molded by the brain, and not a body that has a brain among other essential organs.
Keywords: Enactivism. Phenomenal Externalist Enactivism. Know-how.
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Recebido: 12/09/2022
Aceito: 16/01/2023
1 Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9117-0755. E-mail: robertohsp@gmail.com.
2 Professor Adjunto A da Área de Filosofia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Recife, PE - Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1831-2515. E-mail: sergiofariasfilho@gmail.com.
3 Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2269-4923. E-mail: victorbarcellos1995@gmail.com.
4 Essas pesquisas foram feitas por um grupo liderado por Miguel Nicolelis, mas nem todas as publicações o têm como primeiro autor. Para uma lista completa das publicações, cf. https://www.nicolelislab.net/?page_id=91. Acesso em: 10 jul. 2022.
5 Disponível em: https://www.charlesbonnetsyndrome.org/index.php/cbs-ii/personal-stories. Acesso em: 20 jul. 2022. Tradução nossa).