UMA VISÃO DE MUNDO FILOSÓFICA
Rodrigo Reis Lastra Cid
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Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar uma visão de mundo filosófica, especificamente
metafísica. A importância disso é justamente obter uma visão generalista da realidade, em um
momento em que as discussões filosóficas se tornam cada vez mais especializadas. A visão de
mundo metafísica apresentada aqui é uma perspectiva geral sobre o tempo, o espaço, a matéria,
as leis da natureza, a mente e a normatividade. Para realizar esse objetivo, (1) falaremos um pouco
sobre a natureza da filosofia e sobre sua relação com a construção de uma visão de mundo, (2)
abordaremos alguns argumentos para tratar da natureza das entidades mencionadas, e (3)
concluiremos, apresentando uma visão de mundo metafísica unificada, que leva em consideração
tais argumentos.
Palavras-Chave: Filosofia. Metafísica. Visão de mundo.
Introdução
Cada pessoa tem a sua visão de mundo: tem certas crenças conjugadas sobre a
realidade que podem ou não estar bem justificadas. O que mais importa para a filosofia,
é o quão bem justificadas estão as crenças que formam essa visão de mundo, dado que ao
menos um dos objetivos da filosofia seria encontrar a visão de mundo verdadeira. Nossa
intenção aqui é justamente mostrar como a reflexão filosófica pode nos levar a ter uma
visão de mundo mais justificada do que a visão de mundo que temos pré-teoricamente.
A primeira coisa a tratar, então, é o que queremos dizer com “filosofia”, quando
falamos dessa forma. Embora possamos adentrar inúmeros problemas sobre a natureza
da filosofia e sua definição, nossa intenção, nesta parte, é meramente esclarecer os termos.
Chamamos de “filosofia” uma disciplina acadêmica (uma investigação sistemática e
supostamente epistemicamente virtuosa sobre uma área), que, tal como as outras, se
dedica a encontrar verdades (se, de fato, encontramos verdades, isso já é outro assunto),
mas em relação aos problemas filosóficos. Os problemas filosóficos são aquelas questões
que só poderiam ser respondidas por argumentação, e não por experimentos ou cálculos.
É claro que há uma dificuldade nessa concepção de filosofia (ver mais sobre isso
em HELVÉCIO; CID, 2020, Introdução). Poderíamos dizer, talvez, que não é possível
fazer uma distinção adequada entre questões solucionadas por argumentos e questões
solucionadas por experimentos ou cálculos. Muitas objeções são construíveis, mas creio
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Professor adjunto da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), Macapá, AP Brasil. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-6060-9828. E-mail: rodrigorlcid@gmail.com.
que ou elas pecam pelo mesmo motivo do logicismo, ao tentar identificar matemática
com lógica, ou elas pecam por não atentar à diferença de papel que os experimentos
empíricos têm, nas ciências empíricas, nas ciências formais e na filosofia. De todo modo,
queria tomar essa noção de filosofia mais como uma caracterização do que como uma
definição, dada a dificuldade que teríamos para estabelecer a definição, frente às inúmeras
concepções existentes sobre a natureza da filosofia.
Muitos problemas já saíram do seio da filosofia para as ciências (como problemas
cosmológicos ou meteorológicos), pois eram problemas que só podiam ser resolvidos por
argumentação contingentemente, i.e., apenas por não termos os meios tecnológicos de
investigar tais questões. Mas questões necessariamente filosóficas, que poderiam
ser respondidas por argumentação, não importando o nosso nível de desenvolvimento
tecnológico. questões tão fundamentais, que uma reflexão sistemática e
argumentativa sobre elas pode nos levar a algum lugar.
Nesse sentido, podemos dizer que a filosofia nos ajuda a construir uma visão de
mundo. A filosofia lida com questões fundamentais para as quais não temos e nem temos
como ter respostas científicas (formais ou empíricas). Uma visão de mundo é um conjunto
de respostas a problemas filosóficos apresentada de uma maneira integrada. Ela nos diz
o que é o mundo e como o ser humano se insere nele. Uma visão de mundo é uma teoria
(conjunto supostamente consistente de crenças) composta de proposições sobre temas
metafísicos, epistêmicos e valorativos. Ela nos diz a natureza da realidade, dizendo-nos
qual é a posição do ser humano em tudo isso: somos consciências imateriais produzidas
por corpos materiais? Ou somos almas imortais? Temos livre-arbítrio para decidir,
independentemente de influências, as nossas ações? Ou somos completamente
determinados? Há valores básicos para além das nossas escolhas pessoais e sociais? Uma
visão de mundo nos fala sobre a natureza do mundo, sobre a natureza do ser humano e
da consciência de modo geral e da sua relação com o mundo e com os outros seres
conscientes.
Agora, embora nossa visão de mundo seja um conjunto de proposições que
pensamos serem consistentes e verdadeiras sobre a realidade, normalmente não
costumamos examiná-las a sério, procurando por boas justificações para elas. Mas se
começamos a procurar justificações para a nossa visão de mundo, algumas questões
poderão ser tratadas pela reflexão filosófica. Ainda assim, é possível que, mesmo com a
filosofia, nossas visões de mundo não tenham uma justificação final. Como a filosofia é
uma disciplina ampla cuja atenção aos detalhes é fundamental, cada visão de mundo
poderá sempre ser desafiada por uma nova objeção. Talvez o máximo que possamos fazer
em filosofia seja apontar vantagens e dificuldades de cada visão, de cada argumento, e
pesar as teorias, para encontrar a mais vantajosa teoricamente. Essa tarefa parece infinita,
mas podemos nos aproximar desse ideal de alcançar a verdade não por meio de
justificações definitivas da verdade de uma proposição, mas de modo negativo, ao mostrar
erros claros de certos argumentos. Podemos acabar não alcançando plenamente a verdade,
mas o movimento de reflexão dedicado a esse objetivo nos aproxima, de modo negativo,
cada vez mais dela.
Dessa forma, o objetivo deste texto é apresentar uma certa visão de mundo. Como
qualquer visão de mundo, ela é incompleta, mas intenciona colocar um quadro de
possíveis questões em aberto, mostrando algumas razões para acreditar numa certa visão.
A visão de mundo que proponho não é garantidamente verdadeira e nem está
completamente justificada neste artigo; na verdade, é cheia de problemas que merecem
ser melhor investigados, que não posso fazer adequadamente em um texto deste tamanho,
mas que gostaria de tratar de modo integrado: problemas, teses e argumentos com relação
ao Espaço, ao Tempo, às Leis da Natureza, à Matéria, à Mente, ao Livre-Arbítrio, à Ética
e à Política. Como essa é uma pretensão por demais generalista e ambiciosa para tão
poucas páginas, o que farei será indicar as melhores razões para crer nessa visão de
mundo, sem entrar em pormenores importantes, sobre os quais o leitor está convidado a
refletir e sobre os quais eu convido a todos a debater em artigos futuros.
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Gostaria de começar este texto, tratando de algumas entidades que penso serem
necessárias, e que respondem, de algum modo, as questões de Leibniz de por que algo,
e não nada, e por que há as coisas que existem em vez de outras. A ideia de fundo é que
se espaço, tempo e leis o necessários (e eu penso que eles são), então eles não poderiam
não existir, explicando assim por que há algo, e não nada. Se, então, matéria é governada
pelas leis da natureza, então também explicamos por que existem as coisas que existem,
e não outras. Se dessa matéria e leis, temos mentes e estados mentais como consequências
necessárias, pareceria que nossas acoes também são necessárias, dados os estados
materiais e as leis. Com a ausência de responsabilidade moral, advinda de um
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Eu vejo a filosofia como uma área composta de forças especialistas e generalistas. Uma filosofia completa
toma como relevante ambos os movimentos, para construir a totalidade do conhecimento filosófico. Os
especialistas nos permitem adentrar nas teorias, em suas mais vastas consequências, para sermos aptos a
pesá-las entre si e, por meio do generalista, integrá-las racionalmente numa concepção geral de mundo.
Queremos a compreensão mais geral e mais total da realidade, com todas as justificações que nos permitem
saber cada parte de nosso conhecimento. Essa é uma tarefa hercúlea, a qual creio que conseguiremos, como
uma comunidade.
determinismo e incompatibilismo assumidos, e com a ausência de valores morais,
pareceria que o único caminho da ética seria ser anti-realista e da política seria se fundar
no interesse racional ao invés de em inexistentes valores. Pretendemos agora apresentar
nossas razões para tal visão de mundo.
1 Espaço e Tempo
certas entidades que parecem responder muito bem à questão de Leibniz sobre
por que algo, e não nada (ver os argumentos em CID, 2012). Em nossa visão de mundo,
certas entidades que são necessárias; e, se a existência dessas entidades é necessária,
isso mostra que é impossível haver nada. Uma dessas entidades é o espaço. O espaço é
determinado por ter dimensões espaciais. Se algo, como uma faca, não tem dimensões
espaciais, ou seja, se pensamos em uma faca de 0x0x0cm, então não pensamos em uma
faca. A mesma coisa é o caso quando pensamos no universo. Um universo sem espaço é
um universo sem dimensões espaciais, isto é, um universo de 0x0x0cm. Tal como uma
faca sem dimensões espaciais não pode existir, o mesmo é o caso para o universo: para
qualquer universo, se ele existe, ele tem dimensões espaciais. Assim, se pensarmos em
um mundo possível sem espaço, pensamos em um universo sem dimensões espaciais, o
que de fato não seria um universo. Ou seja, qualquer mundo sem espaço não é um mundo.
Dessa forma, para qualquer mundo realmente possível, o espaço é essencial.
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O mesmo argumento, mutatis mutandis, é aplicável ao tempo: um evento ou uma
entidade pode durar 1 segundo, 10 segundos, mais ou até menos tempo, mas ela não pode
durar 0 segundos. Um evento ou entidade que dura por 0 segundos é simplesmente um
evento ou entidade que não existe ou não ocorre, pois toda entidade existente existe por
mais de 0 segundos. Se dizemos que choveu por 0 segundo, isso significa que não choveu.
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Pode-se argumentar aqui que estamos confundindo espaço com universo/mundo. A princípio poderia
haver um mundo sem espaço, ainda que não possa haver espaço sem dimensões espaciais, tal como um
mundo de formas ou conceitos platônicos. Eu posso concordar com isso e dizer que não poderia haver um
mundo físico sem espaço, de modo que se um mundo físico existe, ele tem espaço, isto é, se algo não tem
espaço, isso não é um mundo fisicamente possível. Então, se o mundo físico existe, ter dimensões espaciais
é necessário. Assim, se existe um mundo físico, o espaço lhe é essencial. Poder-se-ia argumentar contra
nós, dizendo que nós não fazemos adequadamente a distinção entre 1) haver algo e não nada e 2) o que é
necessário assumindo-se que que algo. Poder-se-ia dizer que ainda que seja plausível que não tal coisa
como um universo sem dimensões espaciais (e temporais, logo a seguir), o que realmente precisamos é de
um argumento cuja conclusão seja a impossibilidade do completo nada, isto é, a impossibilidade do mundo
possível em que nada há. Para responder a isso, eu diria daria o seguinte argumento por redução ao absurdo
com relação à existência do nada implicar a existência do tempo: Suponha que há nada. Se há nada, então
há nada por mais de zero segundo, pois se houver nada por mais de zero segundo, então não é o caso que
não há nada. O problema então é que se há nada por mais de zero segundo, então há também um intervalo
de tempo e, consequentemente, tempo. Então se há nada, também tempo, o que implica que não há nada.
Logo, a suposição de que há nada e de que é possível haver nada é falsa. Logo, não é possível haver nada.
Assim, um universo que exista por 0 segundos simplesmente não existe, tal como uma
faca que existe somente por 0 segundos. O que isso nos diz? Se a duração por mais de 0
segundos envolve pelo menos dois instantes, e a existência de dois instantes envolve a
existência de tempo, então para qualquer mundo existente (que dure mais de 0 segundos),
o tempo existe nesse mundo, isto é, o tempo é essencial para cada mundo possível
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. Se,
ao invés disso, o mundo existe somente por 0 segundos, isso quer dizer que ele não existe.
A ideia aqui é que a única forma de um mundo não ter tempo é se esse mundo estivesse
existindo a 0 segundo. Como existir por 0 segundo é o mesmo que não existir, então um
mundo sem tempo é um mundo que não existe, isto é, um mundo sem tempo não é um
mundo.
É argumentável que alguma forma de idealismo possa prescindir da existência do
espaço na descrição de seu mundo e ter apenas mentes cartesianas imateriais num mundo
meramente temporal. Eu creio que seja difícil dizer que, num mundo meramente
temporal, haja mais do que uma coisa. As coisas são normalmente separadas pela sua
posição espacial. Se não posições espaciais, as diferentes coisas o podem estar em
diferentes lugares, mas antes no mesmo lugar ou em lugar nenhum. Se estão no mesmo
lugar ou se estão em lugar nenhum, não consigo compreender como esse seria um mundo
com várias mentes cartesianas. Talvez o objetor esteja disposto a aceitar um mundo aonde
tudo seja uma coisa só. Ainda que aceitássemos esse cenário extremamente extravagante
de realidade, o poderíamos escapar da necessidade do tempo, dado que tal mundo, ou
existe a 0 segundos, ou há mais de 0 segundos; se existe há mais de 0 segundos, então o
tempo existe nesse mundo; e se existe há 0 segundos, então não existe de fato.
Tendo em vista, então, que nossa visão de mundo aceita tanto um espaço quanto
um tempo absolutos como entidades necessárias e essenciais para qualquer mundo
possível, temos uma explicação de por que há algo, e não nada. algo, e não nada, por
que tem de haver espaço e tempo. Suponha, para iniciarmos a redução ao absurdo, que há
um mundo que é nada. Se esse mundo existe, ele existe 0 segundos ou mais de 0
segundos (o mundo não pode existir menos de 0 segundos). Se ele existe 0
segundos, então, tal como mostramos, ele não existe, isto é, não haveria um mundo que é
o nada. Se ele existe mais de 0 segundos, então existe junto com esse nada um intervalo
de tempo; portanto, junto com o nada existiria o tempo. Como se algo existe junto com o
nada, o nada não é nada, então também não é possível existir o nada junto com o tempo.
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Embora este argumento esteja presente em Cid, 2012, vale a pena ler mais sobre o tempo em Mctaggart,
1908, e em Cid, 2011.
Se, assim, ao supormos que um mundo é nada, somos levados à conclusão de que tal
mundo não existe ou que ele não é nada, temos de concluir que a suposição de que um
mundo é nada é falsa necessariamente. Nossa teoria diz que algo, pois espaço e
tempo como entidades necessárias; e como entidades necessárias não poderiam não
existir, elas têm de existir, não podendo haver nada, i.e., não podendo não haver algo.
Mas ainda falta explicar por que há as coisas que há, e não outras.
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2 Leis da Natureza
Para explicarmos por que há as coisas que há, e não outras, devemos dividir essa
questão em duas: (1) saber por que as coisas que existem se comportam da forma que se
comportam e (2) saber por que existem exatamente as coisas que existem. Uma questão
parece se relacionar com outra, na medida em que as coisas complexas que existem
parecem advir do comportamento de coisas mais simples em relação. Assim, saber da
existência das coisas envolve saber sobre as propriedades das coisas mais simples que as
compõem. Mas saber o que são ultimamente as coisas mais simples possíveis que
compõem todas as outras talvez envolva falar das propriedades não de coisas mais simples
ainda, que não haveria nada mais simples, mas da própria coisa simples. Minha resposta
para a primeira questão é que as coisas se comportam da forma como se comportam, pois
uma necessidade em elas se comportarem assim, dado que existe uma relação de
necessidade metafísica conectando as propriedades que elas instanciam. Com relação à
segunda questão, ela se divide em duas: (a) por que existem as leis que existem e (b) por
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Ainda fica por debater se tais concepções absolutistas do espaço e do tempo são compatíveis com o espaço-
tempo relacional da relatividade, coisa que não devo fazer neste texto, por falta de espaço, mas que é
relevante para a avaliação das vantagens e desvantagens de tal visão (como consistência interna e externa).
Uma dificuldade seria que a física, na relatividade, pensa o espaço de modo relacional, surgindo apenas a
partir da existência de distâncias relativas entre as coisas e sendo dependente do referencial, e parece que
meu argumento pressupõe um espaço absoluto (ver HUGGETT, 2022; HOEFER, 2022, para compreender
melhor os conceitos envolvidos). Se houvesse apenas uma coisa, na relatividade, não haveria espaço, e é
justamente isto que o surgimento a partir de uma singularidade nos diz: que o espaço surge a partir do
surgimento das coisas para além da singularidade. Mas algo que temos de nos perguntar é se essa
singularidade deve possuir algum tipo de estrutura interna. Se ela não possui, é difícil entender como ela
pode ter mudado do estado singular para o múltiplo. Se ela possui, então devemos descrever essa estrutura
como um sistema de partes, o que envolveria a presença do espaço, interno à singularidade. Mas talvez seja
difícil emular essa objeção com relação ao tempo. Se o tempo for pensado como completamente relacional,
teremos de dizer que um mundo com apenas um estado de coisas imutável seria um mundo sem tempo. O
tempo relacional é a medida da causalidade entre as coisas. Sem causalidade, sem tempo. O problema,
nesse mundo possível vazio de causalidade, seria responder à pergunta sobre se tal mundo existe há mais
de 0 segundos ou não. Essa pergunta é difícil, pois o relacionista deve dizer que tal mundo existe por 0
segundos, o que, pelo nosso argumento anterior, implica que o mundo não existe. E se ele aceitar o oposto,
estará aceitando simultaneamente uma concepção substantivista (ou substantivalista) do tempo, de um
tempo absoluto. Tal assunto é por demais complexo para um pequeno artigo como este, e deixo sua resposta
como dependente dessa discussão.
que existem as partes fundamentais materiais que existem? A segunda questão, iremos
postergar um pouco a resposta.
Mas o que é a necessidade metafísica, o que são as propriedades e o que tudo isso
tem a ver com o comportamento das coisas simples e complexas? Vamos aos poucos. O
mundo é composto de estados de coisas, que entram em relações causais. Os estados de
coisas (de primeira ordem) são compostos de objetos particulares tendo propriedades, por
exemplo, Rodrigo sendo filósofo, este sal sendo colocado nesta água etc. Parece que
um certo tipo de relação regular entre os estados de coisas, de modo que sempre que eu
tenho o estado de coisas de água sendo misturada com sal em certa proporção e certas
condições externas, eu tenho também o estado de coisas do sal sendo dissolvido na água.
Essa explicação dessa regularidade normalmente é dita como fundada na existência da lei
natural de que o sal se dissolve em água, dada certas condições.
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Parece que as leis
naturais seriam relões de invariância entre as propriedades gerais envolvidas na
causalidade. Poder-se-ia perguntar qual é o fundamento da invariância entre essas
entidades platônicas, e responderíamos que é o fato de essa relação de invariância ser
fundada na relação de necessitação metafísica forte que conecta as propriedades da
relação de invariância. Se a pergunta sobre o fundamento da invariância, por sua vez,
estiver esperando que respondamos dizendo que o fundamento das relações de invariância
está na causalidade singular, não poderíamos fazer isso, por defendermos uma forma de
platonismo heterodoxo no qual são as leis universais que explicam as relações de
causalidade singular, e não o inverso. Sao as leis - portanto as relações universais de
necessitação entre universais - que são o fundamento da causalidade, por explicar uma
parte relevante da mesma, que é por que uma coisa ocorreu em vez de outra, dado as
propriedades envolvidas. Não é a causalidade singular que é o fundamento das leis, mas
as leis universais que são o fundamento da causalidade, pois cada propriedade universal
da lei se instancia em cada propriedade particular envolvida na causalidade singular e a
própria lei universal se instancia na causalidade singular. O que seria a instanciação nesse
caso? Essa é uma discussão complexa, que precisaremos de muitos outros artigos, para
termos completamente, mas que você pode começar a ler sobre em meu livro Leis da
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É claro que a lei de fundo é a lei de Coulomb, da qual podemos derivar que sal se dissolve em água, por
causa de suas relações eletrostáticas. Mas falaremos dessa derivação como se fosse a lei, para finalidades
meramente pedagógicas. A ideia de que, de estados de coisas iniciais e leis, podemos derivar estados de
coisas finais é bem expressa no modelo nomológico-dedutivo.
Natureza, de 2019, no qual tento começar a reduzir a relação de governança das leis para
com a causalidade singular à relação de instanciação.
Mas o que são essas propriedades gerais e o que são essas relações de invariância?
Isso permanece um debate filosófico quente, e minha posição particular defendida em
CID, 2011, 2016, 2019 é de que as propriedades gerais são, na verdade, universais
platônicos, transcendentes, de propriedades descobertas pelas ciências. Essas
propriedades universais se instanciam nos estados de coisas particulares, e a relação entre
as propriedades é a necessidade metafísica que liga as propriedades numa lei natural, e
que se instancia na causalidade singular entre estados de coisas. A lei natural seria um
universal transcendente de ordem superior que conecta os universais básicos ou de ordem
inferior. Minhas maiores razões para preferir essa teoria frente a outras é que ela dá conta
adequadamente do problema da contrafactualidade (ver em CID, 2013) e da explicação
das relações entre as coisas básicas, além de não cair nos problemas que atribuo às teorias
regularista de Lewis (1973, 1983, 1986), disposicionalista de Mumford (2000, 2004),
governista aristotélica de Armstrong (1983) e a governista platônica ortodoxa de Tooley
(1977), nas referências aos meus textos acima mencionados.
As leis são universais conectados pela necessitação, que é a necessidade
metafísica forte, sendo o papel de governar os estados de coisas particulares explicado
pela instanciação. As leis não governam os universais. As leis são uma relação universal
entre universais que governa a causalidade singular, por meio da instanciação das suas
propriedades e da relação entre elas nos estados de coisas particulares e suas relações
causais singulares.
Você pode pensar que talvez aceitar poderes de particulares seja uma melhor
solução, mas essa teoria talvez seja uma das mais problemáticas, tal como você pode ver
nos argumentos do meu livro sobre leis naturais, anteriormente citado. Além disso, aceitar
um governismo transcendente realmente necessitarista, como o meu, tem a vantagem de
nos livrar do realismo dos mundos possíveis, que toda modalidade real, metafísica,
seria explicada pelas leis da natureza: é possível o que as leis da natureza não proíbem.
A existência de qualquer lei, por exemplo a lei de que sal se dissolve em água, proíbe que
ocorra outra coisa que não o que diz a lei. A lei implica necessidade, e a possibilidade
advém daquilo que não é proibido por lei. Não há realmente outros mundos possíveis.
o nosso mundo e as nossas leis naturais, e toda possibilidade advém disso. Não
precisamos também das misteriosas propriedades disposicionais: toda disposição, para
nós, advém de propriedades categóricas governadas por leis naturais, que não passam de
relações necessárias entre propriedades universais.
Aceitando-se a visão platonista heterodoxa das leis que defendo (heterodoxa por
ser platônica e fortemente necessitarista metafisicamente), temos um mundo de estados
de coisas, compostos de objetos concretos e suas propriedades, em causalidade particular
no espaço e no tempo, governado por leis transcendentes (CID, 2019). Mas a dúvida que
imagino é a seguinte: ainda que a relação entre as propriedades seja necessária,
seria a própria lei necessária, num sentido que explicaria a questão de Leibniz de por que
algo, e não nada? alguma razão para pensarmos que ao menos alguma lei tem de
existir? Se aceitamos que as leis governam toda a causalidade singular, então se leis
existem, as sicas não poderiam surgir, pois o surgimento é uma causalidade singular a
partir da relação entre certas propriedades, e teria de ser explicada por meio de alguma
lei mais básica que explica o surgimento de leis. Da mesma forma como as leis sicas
não podem surgir, elas também não podem ser destruídas, pois sua destruição é uma
causalidade singular, que exigiria a existência de uma lei básica sobre a destruição de leis,
esta indestrutível. Assim, ao menos alguma lei tem de existir. E ainda que não saibamos
quais leis são as leis básicas que têm de existir, seja lá quais elas forem atualmente, são
essas que elas têm de ser, dado não haver surgimento ou destruição possíveis para uma
lei básica, de modo que ela não poderia ter sido diferente (para ver esse argumento mais
aprofundado, ler CID, 2019).
Mas poderia o mundo não ter lei alguma ou ainda ter outras leis? Num sentido
lógico, até poderia; mas num sentido real, metafísico, parece que não, dado que para ter
outras leis, seria necessário que pudessem ter surgido outras leis, mas como elas não
podem surgir ou se destruir, o poderiam ter surgido outras leis. Por outro lado, se não
houvesse lei alguma, não haveria algo que teria de acontecer a partir da relação, por
exemplo, de duas partículas elementares, i.e., poderia ocorrer qualquer coisa. Um mundo
como esse seria um mundo completamente aleatório. Se rejeitamos os mundos
completamente aleatórios e os tomamos como logicamente possíveis, mas
metafisicamente impossíveis, teríamos mundos com leis como realmente possíveis,
que, ao menos as básicas, não poderiam o existir (CID, 2019, p. 168-182). Daí
chegamos ao outro ponto: como as leis são um sistema de derivação em que as menos
básicas são derivadas das mais básicas, se as leis básicas forem necessárias, parece se
seguir que as menos básicas também o são. Então, se temos certas leis de surgimento ou
destruição de leis que são necessárias, então as leis deriváveis delas serão também
necessárias. Mas e as leis com relação às coisas concretas e materiais? Seriam essas leis
deriváveis das leis básicas necessárias? Essa pergunta talvez seja uma das mais difíceis,
e sua resposta depende de quais são as leis que pensamos serem básicas e as razões pelas
quais pensamos que elas são básicas. De todo modo, ao menos algumas leis têm de existir,
tal como o espaço e o tempo, e isso explica ao menos a primeira questão de Leibniz. Com
relação à segunda, se as leis básicas contiverem também as leis com relação às entidades
materiais básicas, então poderemos também responder por que existem as coisas que
existem, e não outras. Essa questão é difícil e creio não conseguir abordá-la
completamente aqui, mas queria, de todo modo, fornecer uma razão para pensarmos que
as leis básicas contém as leis com relação ao funcionamento básico do espaço e do tempo,
que tempo e espaço seriam necessários e não podem ocorrer caoticamente sem
deixarem de ser o que são. Se leis sobre o espaço e suas pontos existem de modo básico,
analogamente podemos pensar que as leis sobre a partícula fundamental também o é. Isso
fica ainda mais aceitável, se mostrarmos que a partícula fundamental não poderia deixar
de ser da forma que é (não poderia deixar de ter as propriedades categóricas que tem).
Se leis básicas da matéria, essas leis seriam leis com relação às propriedades
das partes mais básicas e simples da matéria. Mas o que seria a matéria e o que seriam
essas partes ontologicamente básicas e simples?
3 Matéria
Talvez um dos maiores problemas, para além das entidades que são supostamente
necessárias para o mundo como espaço, tempo e leis naturais, que são para mim
entidades concretas imateriais é que algumas entidades que não parecem ser
necessárias e que estão em contato com o mundo da causalidade e da mudança de modo
mais direto, que são as entidades concretas e materiais. Mas o que é a matéria e como
pensar ontologicamente sobre ela? Nossa hipótese é a de que a matéria é
fundamentalmente constituída de pontos materiais em relação. Quando pensamos
realmente sobre a matéria e sobre o que precisa haver no mundo para que tenhamos essa
experiência da matéria, chegamos em resultados filosoficamente interessantes.
A primeira coisa que podemos pensar é que temos de rejeitar o monismo e aceitar
o pluralismo, para explicarmos as coisas. Se há diferentes coisas manifestadas para nós,
isso pode se explicar pela existência de pelo menos duas coisas diferentes (nós e a
coisa, ou pelo menos duas partes da coisa), com manifestações diferentes. Uma única
coisa não manifestaria diversas, a não ser que tivesse uma constituição interna, que
permitisse múltiplas manifestações e, portanto, não fosse uma única coisa, mas algo
composto de coisas mais fundamentais em relação. Assim, aceitando o pluralismo, i.e., a
tese de que existe mais do que uma coisa, perguntamo-nos sobre o que são essas coisas
que existem. falamos um pouco sobre o espaço, o tempo e as leis. Queríamos agora
falar sobre esse outro existente que é a matéria.
O que chamamos de “matéria” aqui são as entidades que ocupam o espaço. As
entidades que ocupam o espaço, nós percebemos terem uma característica muito
interessante, que é a de serem contínuas, i.e., de ocuparem um intervalo do espaço. Por
exemplo, uma pessoa não é um ponto, mas um intervalo de pontos, quando a pensamos
representada no gráfico cartesiano. Mas como explicar que os objetos materiais são
contínuos no espaço? Normalmente dizemos que o que constitui a continuidade das
entidades materiais é a relação entre as entidades materiais mais básicas que são suas
partes próprias. Mas não podemos explicar fundamentalmente a continuidade da matéria
sem cairmos ou num infinitismo de sua constituição, ou numa entidade fundamental sem
partes (ver CID, 2011c). A história dessa questão (e talvez de outras) se funda na
divergência entre atomistas (como Leucipo e Demócrito) e sinequistas (como Aristóteles)
(ver mais sobre o atomismo em CHALMERS, 2005; BARRYMAN, 2005). Os atomistas
acreditavam na existência de entidades fundamentais indivisíveis, enquanto os sinequistas
creem que certas entidades são infinitamente divisíveis, sendo assim ontologicamente
contínuas. Os infinitistas, como teóricos contemporâneos do continuísmo (sinequismo),
trouxeram-nos a noção de infinitesimal, mas esse conceito ainda é ontologicamente
problemático e não sabemos bem o que seria uma entidade com uma extensão que seja
maior que 0 e menor do que qualquer outra (BELL, 2005; VARZI, 2009). Esses
infinitesimais teriam um tamanho constante ou variável, de acordo com a teoria metafísica
aceita. Qualquer resposta é problemática. Se é variável, então poderia ser menor do que
é, de modo que a diferença de tamanho implica diferença de extensão e, portanto, implica
continuidade, que precisaria ser explicada. Se, por outro lado, esse infinitesimal é
constante, então tem uma magnitude específica e, assim, poderia ser dividida. Como
entender, então, a continuidade dos objetos materiais?
Nossa solução, conforme dissemos, é que quando apelamos para pontos,
discretos, que podemos fundamentar de modo basilar a continuidade. Por outro lado,
uma série de argumentos antigos, da época de Zenão e de Aristóteles, no aristotélico
Concerning Indivisible Lines, contra a possibilidade de as coisas serem formadas por
pontos e contra a ideia de que existe uma pluralidade determinada de coisas. O argumento
de Zenão que nos diz respeito aqui é o seguinte (CID, 2011c, p. 5):
(1) Suponha que as coisas são completamente divisíveis. (2) Se as coisas
são completamente divisíveis, então da divisão completa não pode restar
alguma magnitude, pois esta seria divisível. (3) Se da divisão completa de
uma coisa não resta magnitude alguma, então tal coisa é constituída de nada
ou de pontos. (4) Se uma coisa é constituída de nada, cabe explicar como algo
(como a aparência de uma coisa extensa) pode advir do nada, pois prima facie
algo não pode advir do nada. (5) Se uma coisa é constituída de pontos, ela
não possui magnitude, que uma soma de coisas sem magnitude não pode
resultar em alguma coisa com magnitude. Logo, (6) Como o nada não poderia
constituir algo e como as coisas m magnitudes, elas não poderiam ser
constituídas de nada e nem de pontos. (7) Contradição encontrada em (3) e
(6). (8) Reductio ad absurdum: As coisas não são completamente divisíveis.
A ideia desse argumento que levaremos em conta e que discutiremos é que se as
coisas são formadas de pontos, elas não teriam extensão, pois os pontos não têm extensão.
Minha objeção a esse argumento é que é bastante óbvio que os pontos modificam a
extensão das coisas, fornecendo-as mais extensão. Repare que aqui não negarei
simplesmente a tese, mas mostrarei um contra-exemplo, que indica que, ainda que pontos
sejam conceitualmente sem extensão, eles modificam no tamanho das formas em que se
inserem. Por exemplo, se temos um intervalo com uma quantidade de pontos n e
adicionamos mais um ponto ao intervalo, então temos um intervalo de n+1 pontos. Neste
sentido, n+1 é maior que n, pois n está contido em n+1, mas n+1 não está contido em n.
Se, dessa forma, a adição de um ponto em dois intervalos de mesmo tamanho torna um
intervalo maior, então a adição de pontos interfere na extensão dos intervalos. Se as coisas
materiais são como intervalos, então a adição de um ponto de matéria interfere em sua
extensão. Mas disso não precisamos concluir que os pontos têm magnitude, pois disso se
seguiria que eles são ao menos conceitualmente divisíveis - algo que não podemos aceitar
e que a definição de ponto não aceita. Seria adequado, antes, dizer que os pontos de
matéria são o fundamento da magnitude e da extensão material, tal como os pontos do
espaço são o fundamento da extensão do espaço, mas não têm eles mesmos extensão.
Poderíamos perguntar ainda por que dizer que pontos não possuem extensão em vez de
dizer que possuem extensão metafisicamente indivisível? Minha resposta a essa pergunta
é que dizer que “uma extensão é metafisicamente indivisível” é dizer que não é possível
metafisicamente (dada a totalidade dos mundos metafisicamente possíveis, tomando-os
anti-realisticamente) dividir aquela extensão, o que pode ser o caso por dois motivos: (1)
pela coisa ser o fundamento da extensão e, portanto, indivisível, ou (2) por não ser
possível metafisicamente criar um aparato capaz de dividir tal objeto básico. Como eu
penso que apenas 1 responderia a questão sobre qual o fundamento da continuidade dos
objetos, eu tentei dizer a razão pela qual eu penso que pontos são metafisicamente
indivisíveis: por serem conceitualmente indivisíveis, dado serem o fundamento da
extensão. E ainda que não tenham uma magnitude específica, eles fazem diferença nas
coisas que constituem, tal como mostrei com o contra-exemplo dos pontos nos intervalos
e sua analogia com os objetos materiais. Os pontos do espaço não têm eles mesmos
extensão, mas fundam toda a extensão espacial e fundam também a diferença de tamanho
entre intervalos pensados como conjuntos de pontos, que podem conter uns aos outros.
7
Ter extensão, nesse sentido, é ser formado por blocos básicos de extensão, i.e.,
pontos. Imagine um objeto material tangenciando uma reta. O ponto em que esse objeto
tangencia a reta é exatamente um ponto de matéria desse objeto. Mas não precisamos
defender que podemos dividir a matéria praticamente até chegar aos seus pontos
constituintes. Pode ser que as coisas não sejam praticamente divisíveis a pontos, mas são
ao menos conceitualmente divisíveis a eles. Mas é isso consistente com nossa melhor
ciência para a investigação das menores entidades concretas e materiais, a física? A física
nos diz que as coisas são feitas de quarks e outras partículas fundamentais, que têm um
comportamento diferente entre si (por exemplo, um elétron e um neutrino se comportam
diferentemente) e bastante estranho (como a existência de estados de superposição e
comportamento ondulatório-particular). Com relação a isso, talvez nossa teoria diga que
se diferentes comportamentos para diferentes partículas fundamentais, parece que
nossa investigação não chegou no final, pois a diferença de comportamento, se não for
explicada pela diferença de constituição interna, acaba ficando como um fato bruto, sem
explicação. Temos diferentes átomos na tabela periódica, pois eles são diferentes
composições dos mesmos tipos de partículas. Mas e essas “partículas” mais
fundamentais, como elas poderiam ser diferentes? A explicação tem de ser a mesma. Elas
são diferentes por serem formadas diferentemente de partes mais fundamentais. Em
última instância, não poderia haver diferença entre as partículas mais fundamentais da
realidade, dado que elas seriam simples, não podendo ter diferentes composições internas.
Os pontos, pela sua simplicidade, teriam todos as mesmas características e, portanto, as
mesmas propriedades, sendo a diversidade criada a partir somente das leis naturais que
7
É claro que poderíamos ainda perguntar como pontos de matéria sem extensão poderiam formar coisas
com extensão. Se essa pergunta é meramente filosófica, espero já ter respondido, dando um exemplo claro
de como pontos sem extensão interferem na extensão de objetos matemáticos com extensão. Agora se a
pergunta é saber exatamente como o processo ocorre, então essa já seria uma pergunta talvez para o físico
responder, por meio de suas experimentações e teorizações, e não o filósofo, penso eu.
governam a relação entre as propriedades básicas desses pontos. Se o fundamento da
matéria mais básico tem de ser os pontos, e os pontos são todos iguais, então todos têm
as mesmas propriedades e, assim, as leis sobre eles seriam sempre as mesmas. Assim, se
os pontos são essenciais para que exista matéria, sendo portanto necessários num mundo
material, suas leis seriam igualmente necessárias por existirem em qualquer mundo em
que um mundo material é acessível.
Ainda que aceitemos essa teoria da matéria como composta de pontos, ainda
muitas outras coisas por explicar, como: como a matéria surgiu, se é que surgiu, e como
o movimento que a relaciona se iniciou, se é que se iniciou. As próprias leis poderiam
gerar matéria a partir da passagem do tempo no espaço, se tomarmos a passagem do
tempo como causalmente eficaz (algo que defendo em CID, 2011b, a partir do famoso
argumento do Shoemaker pela possibilidade de passagem de tempo sem movimento).
Essa é uma pergunta bastante difícil, e não podemos respondê-la sem uma extensa
investigação filosófica. Nossa visão de mundo, por enquanto, nos diz o que
fundamentalmente é a matéria, mas não como ela surge ou se sempre existiu. Deixamos
em aberto a resposta a tal pergunta, mas não sem indicar que precisamos respondê-la para
completarmos nossa visão de mundo e que temos os meios de respondê-la, por exemplo,
pelas leis transcendentes atuando na passagem do tempo no espaço.
4 Mente e Livre-Arbítrio
Independentemente de se a matéria é ou não formada de pontos de matéria, alguns
compostos materiais parecem ter mente. E isso é intrigante, pois não sabemos direito o
que seria a mente: se seriam ou não compostos materiais, ou como se relacionariam com
os compostos materiais. Talvez a maior dificuldade com a mente é que existem estados
qualitativos que temos acesso internamente, de modo privativo. Por exemplo, ter fome,
sentir dor, imaginar uma bicicleta são todos estados mentais, puramente compostos de
sensações e imagens mentais. A dificuldade em explicar tais estados é que eles não
parecem ser plenamente redutíveis a estados concretos materiais. Uma pessoa imagina
uma bicicleta verde, mas se estudarmos fisicamente o corpo dessa pessoa, não
encontramos bicicleta verde alguma em seu corpo material. Encontramos apenas células
em relação. Como não pensamos que essas características mentais possam ser
adequadamente reduzidas a características materiais, temos de postular na realidade um
outro tipo propriedade para a matéria: algo de imaterial e consciente surge a partir dela.
Aceitar a existência de propriedades mentais de um modo forte significa aceitar
que existem propriedades (pensamentos, sentimentos) ou entidades (mentes individuais)
concretas, porém imateriais. Assim, aceitar tal coisa é se comprometer com alguma forma
de dualismo. Mas não defendemos o dualismo interacionista do estilo cartesiano (mas
antes um epifenomenalismo de superveniência, como indico num manuscrito do
Philpapers
8
), pois é difícil explicar como algo meramente mental e imaterial poderia ter
efeito no mundo material, já que a causalidade tem um aspecto cinemático difícil de ser
explicado por algo imaterial. São duas principais dificuldades: algo imaterial, por ser
imaterial, não teria efeito com relação ao movimento das coisas, caso o movimento tenha
sua origem nas forças físicas conhecidas; não podendo, assim, explicar, a origem dos
nossos movimentos corpóreos. Além disso, um problema de sobredeterminação, a
saber, qualquer estado concreto material é completamente explicado pelo estado concreto
material anterior, de modo que se a mente tivesse algum efeito na matéria, esse efeito
seria uma sobredeterminação, que a matéria é completamente determinada pela
matéria. Isso tem uma implicação estranha, que é a de que não são os nossos estados
mentais que movem nosso corpo e, assim, não é a nossa fome que nos move para comer,
mas é o nosso próprio corpo material, de modo que parece que os estados mentais são
supérfluos. Dessa forma, para lidar simultaneamente com o problema da
sobredeterminação e da natureza dos estados mentais, preferimos aceitar o
epifenomenalismo ao invés do interacionismo.
Ainda que seja o corpo material que cause os efeitos do corpo material, parece
claramente que uma relação entre o corpo material e a mente, de modo que ações no
corpo causam efeitos na mente, como, por exemplo, furar o causa dor. Dessa forma,
ainda que não consigamos compreender a relação do mental para o material, a relação do
material para o mental parece menos problemática.
Assim, a teoria que aceitamos para dar conta desses estados mentais e da relação
necessária do cérebro para a mente é um dualismo, mas não um dualismo interacionista
nem espiritualista. Para nós, não é provável que haja alma, mas sim uma mente imaterial
superveniente ao corpo material.
9
Essa é uma forma de epifenomenalismo, pois é dualista
e rejeita a interação do mental para o físico. E isso parece ter uma relação direta com
nosso livre-arbítrio, pois nos como epifenômenos de corpos completamente
determinados pelos processos físicos materiais ocorrendo nesses corpos. Dessa forma,
8
Disponível em: https://philpapers.org/rec/CIDFSP. Acesso em: 25 ago. 2022.
essa visão, embora nos uma mente, parece não nos dar livre-arbítrio algum. Outras
visões são possíveis e defensáveis, mas preferimos manter o determinismo
incompatibilista junto com o epifenomenalismo, e deixamos a defesa mais substantiva
dessas teses para outros textos já referidos ou por ainda escrever.
Realmente eu não vejo muito espaço, ontologicamente, para a existência do livre-
arbítrio, se não aceitarmos deus e a alma. Ainda que o mundo não fosse completamente
determinístico e houvesse partes que fossem decisões indeterminísticas, isso não salvaria
o livre-arbítrio (como nos lembra SOBER, 2008), pois realizar decisões de modo
indeterminístico é decidir aleatoriamente, e decisões aleatórias estão longe de serem
livres. Como decisões determinadas e indeterminadas não salvariam o livre-arbítrio,
parece que apenas apelar para uma causalidade livre incausada poderia salvá-lo. E
podemos aceitar tal coisa, parece-me, se aceitarmos uma alma imaterial com poderes
causais, ação e movimento no mundo físico. E não temos ideia de como isso se daria,
dada a imaterialidade e a sobredeterminação.
10
Como não pretendemos esgotar os
argumentos pela nossa posição e nem contra o livre-arbítrio, nossa intenção foi apenas
motivá-la por meio da apresentação de algumas razoes que preservam nosso quadro
conceitual em que todos os estados de coisas de primeira ordem são particulares tendo
propriedades governadas por leis da natureza, que determinam o que ocorre a seguir. Mas
essa visão natural e epifenomenal da realidade nos leva a caminhos intrigantes em nossa
teoria do valor.
5 Ética e Política
O que toda essa visão traz para nossa moralidade? Se, tal como em nossa visão de
mundo, somos apenas quinas biológicas com consciências epifenomênicas, imateriais,
determinadas pelas nossas partes materiais, submetidas a governança pelas leis naturais
no espaço e no tempo, e se não temos controle último sobre as relações materiais que
determinam nossas propriedades mentais imateriais, não temos controle sobre nossas
decisões e nem mesmo sobre nossas ações, de modo que não é possível traçar
responsabilidade moral alguma aos sujeitos, e isso exterminaria nossa moralidade e, em
10
É argumentável aqui que esse problema também acometeria nossas leis imateriais transcendentes que
governam a causalidade singular. Eu responderia a essa objeção, dizendo que a ação de governança ocorre
por meio da instanciação de propriedades, e não por meio de alguma movimentação que uma entidade
imaterial teria de causar. Uma escolha e ação livres seriam completamente causadas por uma consciência
imaterial livre que controla talvez misticamente os movimentos do corpo. Essa dificuldade com a
imaterialidade não afeta a governança das leis imateriais transcendentes.
última instância, nossa sociedade. Essa é uma das ideias mais comuns como colocadas
como consequência de uma visão de mundo determinística e incompatibilista como a que
estamos aqui apresentando.
Eu penso que essas últimas conclusões são um pouco alarmistas. Realmente
perdemos a responsabilidade moral num mundo em que mentes são epifenômenos; tudo
que poderemos fazer é traçar a relação de causalidade de atos considerados negativos a
certas pessoas, e afastar tais pessoas do convívio, pelo perigo que representam para o
corpo social. Isso nada tem a ver com as pessoas serem seres autônomos e moralmente
responsáveis por suas ações. Segundo a nossa visão de mundo nomológico-determinista
e epifenomenalista, não somos responsáveis por nossas ações, mas isso o impede a
sociedade de afastar do convívio as pessoas que estão causando problemas para o trato
social, sejam essas pessoas moralmente responsáveis ou não. Podemos rejeitar a
responsabilidade moral e, mesmo assim, fundar nossas ações sociais de aprisionamento,
expulsão, tratamento etc.
Um problema aqui é que se rejeitamos a responsabilidade moral, pareceria para
alguns que rejeitamos a própria ética. Eu diria aqui que não rejeitamos a ética, mas
podemos estar rejeitando o realismo moral. Pois se somos deterministas e
incompatibilistas, tal como aqui nos mostramos, e se não somos senhores de nossas ações,
i.e., se não há sujeito autônomo e responsabilizável, então não pode haver certo e errado,
dever e proibição moral.
11
Entretanto, a razão que nos levou a rejeitar o realismo moral a
princípio não foi essa, mas foi nossa concepção metafísica de quais são as propriedades
realmente existentes. As propriedades morais e a verdade moral para o realismo parecem
se fundar em fatos morais (existência de valores ou de ações com propriedades morais),
porém rejeitamos essa forma de realismo mais ingênua, por aceitarmos os argumentos
metaéticos de Mackie (1990) de que (1) os fatos morais seriam fatos muito estranhos, que
(2) exigiriam uma faculdade própria de intuição cheia de divergência entre as pessoas e
que (3) demandariam uma realidade moral que servisse de veridador para tais fatos. Fatos
morais seriam estranhos, pois teriam um caráter avaliativo que nenhum fato natural
possui. Além disso, a propriedade atribuída pelos fatos morais “ser bom” ou “ser correto”
são todas propriedades sujeitas à questão em aberto de Moore.
11
Há, é claro, defesas articuladas de que é possível haver responsabilidade moral mesmo sem livre-arbítrio.
Para fins de construção da visão de mundo proposta, tomo o mundo como não tendo livre-arbítrio e nem
responsabilidade moral, que seria o caso mais difícil para essa visão, e tento dar uma resposta a ele.
Embora uma posição compatibilista ou uma posição realista sofisticada pudessem
ser defendidas, mesmo tendo em vista os argumentos de Mackie, nossa posição ética é
ontologicamente antirrealista, teórica do erro, como Mackie (1990): todos os juízos
morais são falsos, pois tentam descrever uma realidade moral que não existe. Nossa ideia
é a de que as leis da natureza governam as propriedades dos estados de coisas submetidos
à causalidade singular, e só existem as propriedades governadas pelas leis naturais. Como
as propriedades morais e suas relações não implicam nenhuma ocorrência na causalidade
singular (não são causa e nem efeito), não está claro para nós que deveríamos considerá-
las como propriedades metafisicamente existentes. É claro que tais predicados morais
terão algum significado em nossa teoria, mas não referirão entidades metafisicamente
existentes.
Tal posição nos exige então explicar a prática moral, nosso uso dos predicados
morais, que estaríamos constantemente falando falsidades. Para essa função a de
explicar a prática moral eu não tenho nada melhor que o quase realismo do Blackburn
(1993; e In: COPP, 2006; e mais em MILLER, 2003, cap. 4), que pensa a prática moral
de modo expressivista, como antes tentando influenciar o comportamento das pessoas do
que tentando descrever uma realidade moral. Isso se adequaria bastante a uma realidade
de seres conscientes e não livres, vivendo deterministicamente uma realidade mental que
é fruto da causalidade física, tentando influenciar uns aos outros. Assim, embora eu pense
que a ética é uma tentativa falha de descrever uma realidade moral inexistente, o que eu
acho que as pessoas realmente estão fazendo quando moralizam é influenciar o
comportamento das pessoas, por meio da expressão das suas atitudes com relação às
várias ações moralmente avaliáveis, tendo em vista a consistência ou inconsistência de
suas sensibilidades morais. De fato, essa visão não mantém a realidade da normatividade,
mas apenas a sua aparência, entretanto nos permite falar ao menos da consistência ou
inconsistência das sensibilidades morais (conjuntos supostamente integrados de juízos
morais), a partir de uma noção ampliada de bivalência, sem aceitar a existência de uma
realidade moral para além da nossa realidade natural e sem aceitar que a moralidade trata
realmente de verdades metafísicas.
Assim, a ideia é que a ética é parte de nossas relações sociais, que é
complementada por nossos acordos políticos. Como não há realidade moral, o como
nenhuma concepção moral ou concepção de bem se mostrar como verdadeira; elas apenas
podem influenciar umas às outras. E nessa sociedade moralmente plural e não livre em
que vivemos, que tipo de justificação para a política pode haver?
Como não haveria realidade moral, portanto também não haveria valores básicos.
Se não há valores básicos, não há uma concepção objetivista da política que a funde num
certo valor. Assim, o que pode haver é apenas o interesse de cada um. Assim, creio que
em nossa visão de mundo, a fundamentação do Estado e da política poderia se dar bastante
adequadamente em termos de auto-interesse racional. Queremos a política, pois não
queremos ser dominados por outras pessoas e porque queremos sair desse estado de
perigo e de medo, que parece ser natural a um grupo de pessoas não organizado, pensando
hobesianamente. Uma sociedade que politicamente justifique nosso autointeresse,
levando em consideração uma tentativa de paz entre as diversas concepções morais, é
uma sociedade aonde as diversas concepções de bem não são restritas umas pelas outras,
i.e., são todas razoáveis (no estilo de RAWLS, 2001, e CID, 2010, In: MACIEL et al,
2020, p. 65-96), ou, ao menos, obrigadas a serem razoáveis pelo leviatã, dado que se não
forem, serão punidas pela violência que cometem. Apenas vale a pena racionalmente
entrar num Estado quando ele não é mínimo e nem máximo, e quando ele leva em
consideração o interesse dos mais fracos e dos mais fortes (por favor, leia CID, 2020a,
para uma justificação mais completa dessa concepção política, que faz a razoabilidade
fazer parte do nosso interesse racional).
Mas qual a forma política que deveríamos seguir? Isso é difícil, mas as pessoas se
reúnem numa sociedade, pois, além de escapar do estado de natureza social, querem viver
bem, com tranquilidade e, na medida do possível, com uma ampliação progressiva da sua
qualidade de vida (i.e., o desenvolvimento), medida em termos de uma ampliação
progressiva do conjunto capacitatório das pessoas (conjunto de capacidades para realizar
funcionamentos que temos razões para realizar para uma melhor compreensão dos
termos técnicos, ver o trabalho de SEN, 2000 e 2001). Assim, uma sociedade
preocupada com o aumento da qualidade de vida é uma sociedade política que realmente
satisfaz o nosso autointeresse, por evitar as inseguranças sociais, econômicas e políticas,
com mecanismos de prevenção de desastres nessas áreas (SEN, 2000a, 2001a; CID,
2020a). Isso é importante, pois é do nosso autointeresse ter uma sociedade que se afaste
do estado de natureza em qualquer uma dessas áreas. Portanto, ainda que nossa ética seja
ontologicamente antirrealista e de prática moral expressivista, tentamos fundar a política
não numa ética realista, a qual não temos, mas no autointeresse e contratualismo, que
prescinde de uma realidade moral. Sabemos que talvez nossa concepção política seja a
mais frágil desse texto, pois não está claro o caminho do auto-interesse racional. ainda
muito que se discutir, para que tenhamos uma visão de mundo completa e sistemática.
Esperamos ter começado um caminho para discussões ainda mais profundas, as quais não
podemos ter com profundidade neste texto, dado o tamanho do objetivo que nos demos
para o número de páginas que dispomos.
Considerações finais: uma visão de mundo
Dessa forma, em nossa visão de mundo, somos máquinas biológicas, com uma
consciência concreta e imaterial, epifenomenal, superveniente às relações entre os pontos
da matéria que ela focupa, que são governados por leis da natureza que ocupam o espaço-
tempo. Tais pontos são o fundamento de toda a extensão e têm suas propriedades
categóricas de modo necessário (sua forma pontual, sua simplicidade interna, seu
tamanho de ser o fundamento da extensão). As leis da natureza necessárias determinam
as relações entre as propriedades desses pontos e, de modo derivado, das propriedades
dos conglomerados desses pontos, pontos que existem num espaço e num tempo
absolutos e necessários. Não existem propriedades disposicionais: as aparências de
disposições são somente propriedades categóricas governadas por leis naturais. E nem
existem realmente mundos possíveis: [algumas] necessidades metafísicas são
determinadas por leis naturais e possibilidades são determinadas pelo que não viola as
necessidades do mundo atual, o único que nos parece realmente possível. Mas saber como
surgiram esses pontos de matéria ou se eles sempre existiram, isso foi algo que, embora
importante, não respondemos e deixamos como uma questão em aberta, a ser respondida,
talvez pela eficácia causal da passagem do tempo submetida a leis. Seja qual for a
resposta, ela vai ser problemática.
De toda forma, parece que seres humanos não têm livre-arbítrio, dado nosso
determinismo nomológico e epifenomenalismo; mas, mesmo assim, ainda que não
tenhamos a responsabilidade moral, podemos justificar nossa prática punitiva, por meio
da proteção contra pessoas às quais se pode traçar um ato de causalidade politicamente
proibida. Sem livre-arbítrio, numa sociedade anárquica, vivemos em medo, terror e
domínio dos mais fortes. Usamos nossos juízos morais para influenciar o comportamento
uns dos outros nesse cenário; no entanto eles não têm normatividade real e o conseguem
descrever a irreal realidade moral que intencionam. Acaba que a prática moral serve para
interferir nos sentimentos, pensamentos, atitudes e comportamentos das pessoas, a fim de
fazermos fazê-las o que gostaríamos que elas fizessem. Mas o que gostaríamos que elas
fizessem, disso não temos controle, dado os nossos desejos serem determinados pelas leis
naturais governando nosso corpo.
Como não realidade moral, uma persistente e provavelmente não
solucionável divergência moral na sociedade entre diversos grupos de pessoas. Tal
divergência pode ser solucionadanum domínio político em que criamos normas para
regulamentar as relações entre as pessoas e as diferentes concepções de bem. E esse
domínio político é justificado não por questões morais, sobre as quais somos
antirrealistas, mas por meio do autointeresse. Como já defendi antes (CID, 2010, 2020b),
uma sociedade do nosso autointeresse é uma na qual o Estado não é mínimo nem máximo,
mas aprimora progressivamente nossa qualidade de vida, sendo razoável com todas as
concepções de bem razveis, dando-nos o direito de mudar de concepção de bem
razoável sem problemas legais. Uma sociedade do nosso autointeresse racional é uma
sociedade na qual temos segurança, e uma segurança pensada de modo abrangente (como
SEN, 2001a, 2002), envolvendo a nossa proteção social, mas também proteção
econômica e política fatores essenciais para a manutenção de uma sociedade que seja
do nosso autointeresse.
Ainda que a nossa visão de mundo não seja completa e precise sempre de alguma
reformulação, quando em contato, por equilíbrio reflexivo, com as ciências, apresentamos
um modo de ver a realidade que parte dos seus constituintes mais fundamentais, os pontos
de matéria, até os seus conglomerados mais intrigantes, que são os seres humanos e os
grupos sociais, e como eles se inserem nesse mundo.
Muitas questões são ainda formuláveis sobre os tópicos abordados (veja-se um
pouco mais em CID, 2020a, e em IMAGUIRE; CID, 2020), que puderam, neste texto,
apenas ser tocados de modo breve e um tanto superficial. Muitos dos pontos aqui
apresentados foram discutidos em outros lugares, porém o que é mais valioso desse artigo
é antes a tentativa de uma visão geral da realidade, uma visão de mundo possível, com
algumas razões a seu favor. Longe de ser definitivo, esse artigo pretende abrir espaço para
discussões mais amplas e tentativas de integrar detalhes teóricos numa visão mais geral
de mundo. Por exemplo, nada falamos sobre como as mentes obtêm conhecimento e sobre
o que é o conhecimento sobre o mundo; não discutimos a verdade do nominalismo, nem
avaliamos as versões realistas não intuicionistas mais contemporâneas da ética. O que
tentamos fazer foi integrar nossas melhores conclusões de vários problemas que
discutimos anteriormente, para construir uma visão de mundo unificada e logicamente
aceitável. O que temos que fazer agora é (a) ou integrar nossas respostas de outras
questões filosóficas a tal visão de mundo e nos perguntar sobre sua consistência,
mantendo um equilíbrio reflexivo entre mudar nossa visão de mundo ou nossas melhores
respostas filosóficas e científicas disponíveis para cada área específica, (b) ou construir
uma nova visão filosófica de mundo.
A PHILOSOPHICAL WORLDVIEW
Abstract: The purpose of this paper is to present a philosophical worldview, specifically
metaphysical. This is important precisely to obtain a generalist view of reality, at a time when
philosophical discussions are becoming increasingly specialized. The metaphysical worldview
presented here is a general perspective on time, space, matter, laws of nature, the mind and the
normativity. In order to achieve such goal, (1) we will talk about the nature of philosophy and its
relation to the construction of a worldview, (2) we will discuss some arguments to talk about the
nature of the aforementioned entities, and (3) we will conclude by presenting a unified
metaphysical worldview that takes these arguments into account.
Keywords: Philosophy. Metaphysics. Worldview.
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Acesso em: 24 set. 2010.
Recebido: 12/09/2023
Aceito: 16/01/2023