André J. Abath2
Resumo: Neste artigo, apresenta-se uma posição a que se chama de aprimoramento erotético, segundo a qual devemos avaliar e, eventualmente, aprimorar nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”. O foco será em casos em que x captura uma categoria fortemente social, como o casamento. Tal posição é oferecida enquanto alternativa à ideia — por vezes denominada engenharia conceitual — de acordo com a qual devemos avaliar e, eventualmente, buscar uma melhoria de nossos conceitos. Uma vez introduzida a ideia de aprimoramento erotético, será buscado mostrar como pode ser mobilizada para lidar com o que se chama de desafio da preservação de tópico, e que vantagens possui em relação a uma posição semelhante disponível na literatura, nomeadamente, o Quadro Austero, defendido por Cappelen (2018).
Palavras-chave: Aprimoramento erotético. Engenharia conceitual. Conceitos. Projetos de melhoria.
Introdução
Nos últimos anos, várias pessoas na filosofia voltaram sua atenção para o estudo da avaliação e melhoria de nossos conceitos, à luz de certos objetivos. Haslanger (2000, p. 33) coloca bem a ideia:
Nessa abordagem, a tarefa não é explicar nossos conceitos comuns; nem é investigar o tipo (kind) que podemos ou não estar rastreando com nosso aparato conceitual cotidiano; em vez disso, começamos considerando mais amplamente a pragmática de nosso discurso que emprega os termos em questão. Qual é o sentido de ter esses conceitos? Que tarefa cognitiva ou prática eles nos capacitam (ou deveriam nos capacitar) a realizar? Eles são ferramentas eficazes para cumprir nossos propósitos (legítimos); se não, quais conceitos serviriam melhor a esses propósitos?3
A ideia, então, é que não devemos apenas compreender ou analisar os conceitos que possuímos. Devemos perguntar se esses conceitos são ferramentas eficazes para cumprir metas importantes que temos. Por exemplo, uma de nossas metas é — ou pelo menos deveria ser — a promoção da justiça social. Alguns de nossos conceitos, como o de raça ou o de gênero, devem servir como ferramentas que nos possam ser de auxílio no alcance desse objetivo. Mas, para isso, esses conceitos podem ter que ser melhorados. Assim, Haslanger (2000, 2006, 2012) defende a visão de que o conceito de mulher, por exemplo, deve ser aprimorado, para que possa ser uma ferramenta eficaz na luta contra o sexismo e a opressão.4
O campo de pesquisa em que questões nessa vizinhança vêm sendo debatidas aparece sob diferentes nomes: engenharia conceitual (SCHARP, 2013; EKLUND, 2017; CAPPELEN, 2018; CHALMERS, 2020), projetos de melhoria (HASLANGER, 2006, 2012; DIÁZ-LEON, 2020) ou ética conceitual (BURGESS; PLUNKETT, 2013a, 2013b). Neste artigo, busco introduzir uma nova posição nesse campo, a que chamarei de aprimoramento erotético.5 Grosso modo, a ideia é oferecer uma posição na qual melhorias sejam pensadas não em termos da avaliação e aprimoramento de conceitos, mas em termos da avaliação e busca por aprimoramento de nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”.
Meu foco neste artigo, no entanto, será no aprimoramento de respostas a um tipo específico de questões da forma “O que é x?”. Mais especificamente, meu interesse aqui é no aprimoramento erotético aplicado a questões da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria social e, mais especificamente, uma categoria fortemente social, como o casamento. Por uma categoria, entenderei não um conceito — seja um conceito concebido como uma representação, ou como uma entidade de alguma outra espécie —, mas um tipo de coisa no mundo. Assim, pressuporei que, no mundo, há categorias naturais, como gatos e pérolas, e também categorias sociais, como o casamento e o dinheiro. Em ambos os casos, pressuporei que categorias possuem instâncias específicas, como um gato de nome Belchior, ou um casamento particular, e que diversas instâncias de uma dada categoria c (gatos diversos, casamentos diversos) possuem semelhanças relevantes e suficientes, de maneira a pertencerem a c.
Para os meus propósitos, essa concepção mínima de categorias será o bastante, e permanecerei neutro em relação a inúmeros debates metafísicos (se categorias devem ser compreendidas enquanto universais ou enquanto conjuntos de particulares, por exemplo).6 Ademais, tomarei uma categoria c como fortemente social se, e somente se, o que c é, em grande parte, é determinado pelas atitudes dos sujeitos em relação a c.7 O casamento parece ser uma categoria fortemente social, nesse sentido. O que é o casamento, em um determinado cenário institucional, é amplamente determinado por certas instituições. Particularmente, o que é o casamento, em um determinado ambiente institucional, é amplamente determinado pela lei.8
Por que voltar a nossa atenção, neste artigo, para categorias fortemente sociais? Na verdade, quando se trata de tais categorias, pode ser que as visões oferecidas pelas instituições relevantes sobre o que é uma determinada categoria estejam longe de ser consensuais. Na verdade, pode ser que as opiniões oferecidas pelas instituições relevantes sobre o que é uma determinada categoria nos pareçam simplesmente erradas. Tome-se o caso do casamento.9 Se, em um determinado cenário institucional, o casamento é legalmente entendido em termos conservadores — como, por exemplo, a união legal ou formalmente reconhecida de um homem e uma mulher como parceiros em um relacionamento interpessoal —, tal visão do casamento pode (e deve) nos parecer claramente errada. Em tal caso, respostas à pergunta “O que é o casamento?” podem necessitar de uma urgente melhoria. O mesmo vale para categorias como raça e gênero, que têm sido objeto de intensa discussão na literatura sobre engenharia conceitual e áreas adjacentes. Assim, justifica-se o foco em tais casos.10
Feita essa introdução, a estrutura do artigo será como se segue. Na seção 1, apresento algumas das visões discutidas no campo da engenharia conceitual (projetos de melhoria ou ética conceitual). Na seção 2, enfatizo como essas visões variam em suas suposições básicas sobre o que conceitos são, e sugiro que a discordância aqui pode atrapalhar o progresso nesse campo de pesquisa. Na seção 3, faço uma caracterização inicial do aprimoramento erotético, a partir de ideias encontradas no trabalho de Haslanger (2006, 2012). Na seção 4, discuto como essa visão pode lidar com um desafio frequentemente levantado nesse campo, o da preservação de tópico. Na seção 5, reflito sobre o Quadro Austero de Cappelen (2018) e argumento que a visão exposta neste artigo tem uma vantagem importante em relação a essa posição.
1 Engenharia Conceitual
Um número considerável de filósofas e filósofos vêm desenvolvendo projetos semelhantes ao de Haslanger, mencionado acima, embora com rótulos distintos e, às vezes, com objetivos diferentes que aquele da justiça social em mente. Scharp (2013), por exemplo, argumenta que nosso conceito comum de verdade é defeituoso; envolve inconsistências, as quais, por sua vez, levam a paradoxos, como o paradoxo do mentiroso. Para evitar esses paradoxos e progredir na obtenção de uma semântica para a linguagem natural, devemos substituir o conceito comum de verdade por outros conceitos, de forma que tais inconsistências sejam dissipadas. Scharp considera seu projeto como sendo um de engenharia conceitual. Recentemente, ele apresentou o projeto da seguinte forma:
Acho que a engenharia conceitual está mudando ativamente alguns aspectos de nossos conceitos—eliminando os ruins, decidindo quais devemos usar e qual palavra deve expressá-los ... A ideia de engenharia conceitual é, realmente, a de termos um papel ativo em relação aos nosso esquema conceitual e mudá-lo quando se encontram defeitos nesses conceitos. (SCHARP, 2020, p. 396-397).
A partir desta breve apresentação, deve estar claro que Haslanger e Scharp têm objetivos diferentes em mente — Haslanger está engajada em um trabalho teórico que busca facilitar a justiça social, enquanto Sharp está empenhado em um projeto que visa a pavimentar o caminho de uma semântica para a linguagem natural —, mas há uma preocupação em comum aqui: ambos estão engajados em um projeto de avaliar e melhorar conceitos que são considerados defeituosos, atendendo a determinados objetivos. Essa preocupação envolve uma dimensão normativa: Haslanger e Scharp estão procurando encontrar os conceitos que devemos usar em nossas relações com o mundo. Assim, não é impróprio dizer que estão envolvidos em um projeto de ética conceitual, para usar a expressão introduzida por Burgess e Plunkett (2013a, 2013b).
A terminologia pode ser confusa nessa área, com as expressões "engenharia conceitual", "melhoria" (ou “projetos de melhoria”) e "ética conceitual", muitas vezes usadas de forma intercambiável11; por isso, para os propósitos desta seção, utilizarei apenas engenharia conceitual — mais adiante, ao expor minha própria posição, usarei aprimoramento erotético. Por engenharia conceitual, entenderei, grosso modo, o projeto de avaliação e eventual melhoria de nossos conceitos. Mas isso deve ser tomado de forma ampla, como envolvendo diferentes possibilidades de melhoria: substituir certos conceitos por outros, mudar o conteúdo dos conceitos, eliminar conceitos, e outras formas de “termos um papel ativo em relação ao nosso esquema conceitual”, como colocado por Scharp, na passagem acima. A ideia de engenharia é útil por sugerir que devemos nos preocupar não apenas em avaliar nossos conceitos e apresentar ideias para melhorá-los; como sugerido por pessoas como Cappelen (2018), Burgess e Plunkett (2020) e Chalmers (2020), devemos levar em conta a implementação desses projetos de melhoria — como na engenharia, onde a preocupação não deve ser somente com a elaboração e reelaboração de projetos, mas também com sua implementação no mundo real.12 Conforme ressaltado por Burgess e Plunkett (2020, p. 5), a implementação conceitual
[...] envolve uma categoria da advocacia, na qual se tenta fazer com que algumas pessoas (variando de um indivíduo solitário a uma grande população) realmente adotem e usem os conceitos que alguém defende. Em outras palavras, isso envolve uma tentativa de implementação real das mudanças conceituais que se pensa que devem ser feitas [...]
Assim, se alguém pensa que os conceitos de gênero e raça devem ser aprimorados e propõe uma maneira de fazê-lo, como Haslanger (2000, 2006, 2012), é uma parte relevante do projeto que as pessoas — e aqui podemos pensar em um grande população e, talvez mais importante, em pessoas que ocupam certos papéis institucionais — possam chegar a usar esses conceitos em sua versão melhorada. Como fazer com que as pessoas façam isso é certamente uma questão complicada, mas o sucesso da engenharia conceitual parece depender, pelo menos até certo ponto, do sucesso de seu estágio de implementação. Portanto, as visões sobre como melhorar os conceitos devem abrir espaço para implementações bem-sucedidas.
2 Conceitos
Até o momento, introduzi a ideia de engenharia conceitual sem explicitar que conceitos são. Na verdade, não há consenso no campo da engenharia conceitual sobre o que são essas entidades (se é que conceitos são entidades) que devem ser melhoradas. Isso não é surpreendente. Conceitos são ferramentas filosóficas — e psicológicas — notoriamente elusivas. O desacordo na literatura no que tange à ontologia de conceitos, por exemplo, é generalizado: alguns consideram que conceitos são objetos abstratos (PEACOCKE, 1992; ZALTA, 2001), enquanto outros os tomam como representações mentais (a visão dominante na filosofia da psicologia e na própria psicologia), e outros ainda os tomam como habilidades de algum tipo (DUMMETT, 1993; MILLIKAN, 2000), ou itens linguísticos (JOHNSTON; LESLIE, 2012).13 Em psicologia, onde os conceitos são tidos principalmente como representações mentais, também abunda a discordância sobre qual é a estrutura dessas representações — se são estruturadas, por exemplo, em termos de protótipos, exemplares ou teorias.14
Diante de tal desacordo, era de se esperar que várias posições acerca do que conceitos são estivessem disponíveis na literatura sobre engenharia conceitual. Isso é, de fato, o que ocorre. Ontologicamente, essas visões estão inseridas no leque de opções que acabamos de considerar: em tal literatura, ou conceitos são tomados como objetos abstratos de algum tipo (como significados), ou como representações mentais, ou como habilidades (ou capacidades), ou ainda como itens linguísticos. Mais especificamente, no campo da engenharia conceitual, os conceitos às vezes são tidos como: significados dos termos (PLUNKETT, 2015), representações mentais que são constituintes dos pensamentos (SAWYER, 2020), representações mentais com conteúdos duais (KOCH, 2020), corpos de informações sobre um referente armazenado na memória de longo prazo (ISAAC, 2020), entidades linguísticas (BRUN, 2016), capacidades para acessar partições do espaço lógico (HASLANGER, 2020a), para citar algumas das posições recentemente apresentadas na literatura.
Conforme colocado por Haslanger (2020b), essas diferentes suposições básicas sobre o que os conceitos são tornam o campo da engenharia conceitual confuso.15 Penso que pelo menos parte da confusão decorre do fato de que, dadas essas várias visões sobre conceitos, não há acordo quando se trata do que, afinal, deve ser melhorado. Devemos melhorar significados, representações mentais, itens linguísticos ou capacidades para acessar partições do espaço lógico (para citar algumas das opções disponíveis)? Evidentemente, pode ser necessário melhorar vários desses itens de uma só vez, independentemente de serem chamados de “conceitos”, ou não. Isso significaria que o campo da engenharia conceitual não é unificado — no sentido de que quem trabalha na área não busca melhorar um único item, mas itens diferentes. Isso não precisa ser um problema. Temos um problema, se a falta de acordo quando se trata de suposições básicas — especialmente no que diz respeito ao que conceitos são — venha a impedir o progresso que aqueles que trabalham na engenharia conceitual almejam, seja o progresso na justiça social, seja em fornecer uma semântica para a linguagem natural, seja ainda alguma outra forma de progresso. Uma maneira pela qual a discordância a esse respeito poderia levar a um resultado tão indesejado seria em caso de termos uma dificuldade de comunicação entre as pessoas envolvidas na pesquisa em engenharia conceitual, uma vez que as suas suposições de fundo podem diferir consideravelmente.
Essas são difíceis questões metateóricas, e não tentarei argumentar aqui que o campo da engenharia conceitual está em maus lençóis, devido a divergências sobre a noção de conceito. Com as observações acima, quero apenas enfatizar que essas divergências podem impedir o progresso na área. Se assim for, uma posição que evite se referir a conceitos e que aborde as principais preocupações que aqueles que trabalham na área possuem — e, assim, evite o desacordo generalizado sobre o que conceitos são — pode facilitar a comunicação entre aqueles que nela trabalham e permitir um maior progresso, quando se trata de atingir os objetivos da engenharia conceitual.16 O que proponho fazer a seguir é expor uma tal posição, a que chamo de aprimoramento erotético.
Minha sugestão, por conseguinte, é de que o aprimoramento erotético, ao evitar lidar com as elusivas entidades que são os conceitos, e ao se envolver com preocupações que movem aqueles trabalhando na área da engenharia conceitual — concebida como lidando, por vias que podem ser diversas, com a melhoria de nossos conceitos — pode ser visto como tendo vantagens em relação à engenharia conceitual e, portanto, como um possível substituto a esse programa de investigação. Isso não significa, contudo, que o aprimoramento erotético seja incompatível com a engenharia conceitual. Com efeito, é viável uma posição segundo a qual devemos melhorar tanto conceitos quanto respostas a certas perguntas. Por exemplo, é viável uma posição para a qual devemos melhorar tanto o conceito de casamento (entendido como uma representação mental, digamos), quanto nossas respostas à pergunta “O que é o casamento?”. Assim, aqueles que desejam manter-se comprometidos com conceitos enquanto entidades em suas teorias não precisam, necessariamente, rejeitar o aprimoramento erotético e podem, eventualmente, encontrar elementos, no que se segue, que seja de utilidade para suas próprias investigações.17
Em vista disso, começo discutindo algumas posições de Haslanger, pois a visão que defenderei aqui busca fazer justiça ao que considero ser alguns de seus importantes insights.
3 Aprimoramento Erotético
Haslanger (2000, 2006) distingue três formas diferentes de se responder a questões da forma “O que é x?”. A primeira é o que se toma mais tradicionalmente como sendo um projeto de análise conceitual. Aqui, em um primeiro momento, reformula-se uma questão com essa forma em termos dos nossos conceitos — “Qual é o nosso conceito de conhecimento?”, por exemplo. Em seguida, tenta-se responder à nova pergunta, a partir do uso de métodos a priori. Isso poderia ser uma questão de — verificadas nossas intuições a respeito de vários casos — desvendarmos as condições necessárias e suficientes para algo ser x — para termos um caso de conhecimento, por exemplo. Mas também poderia ser uma questão de buscarmos uma descrição do papel desempenhado pelo conceito em nossas teorias do senso comum sobre o assunto em questão — tal como uma descrição do papel desempenhado pelo conceito de conhecimento, em nossas teorias epistêmicas do senso comum.
A segunda maneira de se responder a perguntas da forma “O que é x?” — denominada por Haslanger como a abordagem descritiva, e exemplificada pelo trabalho de filósofos como Kripke (1980) e Putnam (1975) — sugere que uma resposta a tal questão deve apresentar uma propriedade P que é essencial de x, uma propriedade que x possui em todos os mundos possíveis, e que é identificada não pelo uso de métodos a priori, mas por pesquisas científicas sobre o assunto. Por exemplo, se a pergunta em causa for “O que é água?”, a resposta adequada é “Água é H20”.
A terceira maneira de se responder a perguntas da forma "O que é x?" — nomeada por Haslanger (2006) de projetos de melhoria (ameliorative projects) — é descrita por ela da seguinte forma:
Os projetos de melhoria, ao contrário, começam perguntando: Qual é o sentido de se ter o conceito em questão; por exemplo, por que temos um conceito de conhecimento ou um conceito de crença? Qual conceito (se houver) funcionaria melhor? No caso limite, um conceito teórico é introduzido pela estipulação do significado de um novo termo, e seu conteúdo é determinado inteiramente pelo papel que desempenha na teoria. Se permitirmos que nossos vocabulários cotidianos sirvam a propósitos cognitivos e práticos que podem ser bem servidos por nossa teorização, então aqueles que buscam uma abordagem de melhoria podem razoavelmente se apresentar como fornecendo uma explicação de nosso conceito—ou talvez do conceito que estamos buscando — melhorando nossos recursos conceituais para servir aos nossos propósitos (examinados criticamente) [...] (HASLANGER, 2006, p. 95-96).
Haslanger mudou um pouco sua compreensão dos projetos de melhoria, ao longo dos anos, e a passagem acima revela algumas dessas mudanças. Em um trabalho anterior — “Gender and Race: “(What) Are They? (What) Do We Want Them to Be?” (2000) —, sua abordagem dos projetos de melhoria (então chamada de abordagem analítica) é mais explicitamente revisionista: “Minha prioridade nesta investigação não é capturar o que queremos dizer, mas como podemos revisar de forma útil o que queremos dizer para certos propósitos teóricos e políticos.” (2000, p. 34). Em se tratando do conceito de mulher, por exemplo, a ideia seria que, ao introduzirmos uma definição melhorada do conceito, estaríamos revisando o conceito de mulher; ou, para ser mais preciso, estaríamos mudando o conteúdo do conceito, com o objetivo de combater o sexismo e a opressão.
A posição de Haslanger (2006) sobre a melhoria, no entanto, é menos revisionista, quando concerne ao conteúdo de conceitos como os de gênero e raça.18 A ideia, nesse texto, é que as definições propostas em seus trabalhos anteriores são mais bem vistas como nos permitindo entender melhor o conteúdo de nossos conceitos. Deixe-me examinar essa posição em um pouco mais de detalhe, pois será importante para a visão que estou prestes a apresentar. A base teórica de Haslanger é o externismo semântico aplicado ao conteúdo dos conceitos. É bem sabido que, de acordo com o externismo semântico desenvolvido por Putnam (1975), um termo para uma categoria natural, como “água”, tem seu significado — ou valor semântico — parcialmente determinado por fatos relativos ao nosso ambiente. Dado que água é H20 — uma descoberta científica a respeito da natureza do categoria —, e que a referência de termos para categorias naturais é fixada pela ostensão de um paradigma, “água” se refere a H20. Aplicada a conceitos, a visão é que o conceito de água tem como extensão H2O, de forma que o conteúdo do conceito é, pelo menos parte, determinado por fatos relativos ao nosso meio ambiente.
Burge (1979) estende o externismo semântico ao domínio social, pois, de acordo com sua posição, o conteúdo de nossos conceitos pode ser determinado não apenas por fatos relativos ao nosso ambiente, mas também por fatos referentes à comunidade linguística de que fazemos parte. Mais especificamente, a ideia é que o conteúdo de um conceito, como o de artrite, é parcialmente determinado pelo uso linguístico padrão. Se, em nossa comunidade, “artrite” captura uma enfermidade que atinge apenas as articulações e não os músculos, faz parte do conteúdo expresso pelo termo — o conceito de artrite — que assim seja. O conteúdo dos conceitos é, pois, parcialmente determinado por fatos sobre como nossos termos são caracterizados — ou usados — em uma dada comunidade linguística.
De acordo com o externismo semântico, pode-se possuir o conceito de água, sem que se saiba que água é H2O, ou pode-se possuir o conceito de artrite, sem que se saiba que é uma doença que aflige apenas as articulações — pode-se, portanto, possuir conceitos que são apenas parcialmente compreendidos (BURGE, 1979).19 Suponha-se que Joaquim está nessa posição, sem saber que a água é H2O e que a artrite é uma doença que atinge apenas as articulações — apesar disso, ele pode possuir os conceitos de água e artrite, mas sua compreensão desses será, inevitavelmente, parcial. Quando Joaquim passa a saber que a água é H2O e que a artrite afeta apenas as articulações, ele passa a entender melhor o conteúdo dos conceitos de água e artrite. Ou seja, ele passa a ter um melhor entendimento de conceitos que já possuía.
Haslanger (2006, p.106) acredita que “[...] os insights externistas devem ser aplicados ao nosso pensamento e linguagem sobre o social, bem como o natural.” Teóricos sociais investigam o mundo social, e um tópico central de interesse é o estudo de categorias que podem ser plausivelmente consideradas como sociais, bem como conceitos que capturam essas categorias, como conceitos de gênero e o conceito de raça. Quando os teóricos sociais investigam esses conceitos, podem ajudar a esclarecer seu conteúdo (HASLANGER, 2012, p. 5). Assim como ocorre com conceitos para categorias naturais, podemos não apenas estar inconscientes de aspectos do conteúdo de nossos conceitos para categorias sociais, mas também podemos ter crenças equivocadas a respeito desses conteúdos. Segundo Haslanger, isso é de se esperar: “A falha de compreensão que o teórico social pretende corrigir não é uma falta que apenas alguns de nós temos; trata-se de parte do que é ser um agente comum, vivendo em uma cultura em cujas práticas nos engajamos, muitas vezes ‘sem pensar’, assim como falamos nossa língua nativa.” (HASLANGER, 2012, p. 16).
Portanto, a visão de Haslanger é de que as definições de raça e gênero por ela propostas podem ser vistas como parte de um projeto de teoria social que nos revela melhor o que a raça e os gêneros são. Essa investigação evidenciaria aspectos do conteúdo de nossos conceitos de raça e gênero. O foco aqui, portanto, não é tanto em mudar o conteúdo desses conceitos — como parece ser o caso, em Haslanger (2000) — mas em esclarecer (e assim nos ajudar a ter uma melhor compreensão) desses conteúdos. O paralelo com a investigação sobre categorias naturais e sobre os conceitos que as capturam é claro. Ao descobrir que a água é H2O, a investigação científica revela melhor o que a água é, e, ao fazê-lo, explicita aspectos do conteúdo do nosso conceito de água e, assim, nos ajuda a ter uma melhor compreensão do conteúdo do conceito. Obviamente, existem diferenças substanciais entre esses projetos. Que as categorias naturais sejam reais e as categorias sociais não o sejam, contudo, não é uma delas, pois “[...] as categorias sociais não são menos reais por serem sociais.” (HASLANGER, 2012, p.15). Existem diferenças que decorrem imediatamente de uma investigação ser focada em aspectos naturais do mundo, e outra ser focada em seus aspectos sociais. Essas diferenças não precisam ser listadas. Mas se deve notar que a investigação científica sobre as propriedades químicas subjacentes à água pode ser vista como não tendo nenhum objetivo além de revelar qual é a natureza física da água. A investigação na teoria social procura mostrar o que categorias sociais são, tendo a justiça social em mente (HASLANGER, 2012, p. 15).
Meu objetivo aqui não é discutir se a extensão de Haslanger do externismo semântico para o conteúdo de conceitos para categorias sociais é bem-sucedida ou não. Independentemente das mudanças nas visões de Haslanger, projetos de melhoria, segundo ela, devem ser vistos como uma maneira de responder a perguntas da forma "O que é x?" — uma maneira de fazê-lo que difere da análise conceitual tradicional e das abordagens descritivas. Acredito que ela está certa, nesse ponto, e que esse é um insight importante, o qual deve ser preservado. Suporei que ela também está certa, ao pensar que a teoria social desempenha um papel em relação às categorias sociais que é semelhante ao papel exercido pela ciência natural em relação às categorias naturais: o papel de fornecer uma melhor compreensão do que as categorias em jogo são.
Assim, a teoria social nos ajuda a entender melhor o que são categorias sociais, como categorias de gênero e raça, assim como a química e a física nos ajudam a entender melhor o que a água é. Esse também é um insight importante, o qual deve ser preservado. No entanto, ambos os insights de Haslanger podem ser preservados em uma teoria que não considera a melhoria como uma questão de melhorar conceitos — quer entendamos a melhoria conceitual como sendo mais ou menos revisionista. Uma maneira alternativa e natural de fazer justiça aos insights de Haslanger pode ser introduzida nos seguintes termos: em um projeto de melhoria, devemos avaliar e, eventualmente, buscar melhorar nossas respostas a perguntas da forma "O que é x?". Esse é um primeiro passo na introdução da visão que eu gostaria de chamar de aprimoramento erotético.
Na verdade, o que faz com que uma resposta a uma questão da forma “O que é x?” seja aprimorada em relação a uma resposta anterior? E como devemos proceder, para fornecer respostas aprimoradas a questões com tal forma? No que se segue, buscarei lidar com tais questões, tendo como foco casos em que x, tal como ocorre em perguntas da forma “O que é x?”, captura uma categoria fortemente social.
Haslanger (2012) também está certa, creio, ao insistir que as investigações sobre categorias sociais — ela tem em mente investigações feitas por teóricos sociais — devem visar parcialmente a uma crítica social. Ela descreve a ideia de crítica social do seguinte modo:
A crítica social é um empreendimento interdisciplinar que toma muitas formas. Uma de suas formas centrais visa instituições, leis e práticas sociais existentes, por exemplo, políticas de saúde, distribuição de gênero do trabalho familiar, perfil racial, e argumenta que são ruins ou injustas. Vamos chamar isso de crítica institucional (permitindo que a noção de “instituição” seja muito ampla). É tentador ver essa crítica como envolvendo duas etapas. Um passo envolve descrever a prática social em questão de uma forma que destaque as características que são relevantes para a avaliação normativa. Outra etapa invoca conceitos explicitamente normativos para avaliar a prática como justa, razoável, útil, boa ou não. (HASLANGER, 2012, p. 16, grifos da autora).
Assim, uma investigação de um teórico social sobre uma categoria fortemente social como o casamento deve envolver uma descrição da prática do casamento, uma descrição que destaque características relevantes para a sua avaliação, assim como deve pressupor uma avaliação sobre se a prática – como ocorre em um determinado cenário institucional – é “justa, razoável, útil, boa ou não”. Se a investigação for mais específica, no sentido de que procura responder à questão do que é o casamento, podemos pensar o segundo passo da crítica social como incluindo uma avaliação de se as respostas dadas à pergunta “O que é o casamento?”, em um determinado cenário institucional, são tais que contribuem para a justiça social; se são razoáveis, úteis, boas ou não. Se não o forem, é parte do trabalho do teórico social apresentar uma resposta melhorada à questão em causa, uma que promova a justiça social, que seja razoável etc. De fato, este último passo é fundamental para a crítica social. Afinal, como coloca Haslanger (2012, p. 29), “[...] a tarefa é nos situarmos diferentemente no mundo, e não apenas descrevê-lo com mais precisão.”
Logo, uma resposta melhorada à questão do que é uma categoria fortemente social deve satisfazer três condições: (i) a resposta deve ser apoiada por um descrição da prática, em determinado cenário institucional; (ii) a resposta deve ser apoiada por uma avaliação adequada da prática, cujo resultado seja que respostas anteriores à pergunta são consideradas injustas, irrazoáveis etc.; (iii) a nova resposta proposta para a pergunta em causa deve corrigir as falhas de respostas anteriores, ou seja, deve promover a justiça social, ser razoável etc.
Ilustremos a ideia com o exemplo do casamento. Teóricos sociais empenhados em uma investigação sobre o que é o casamento, em um determinado cenário institucional, devem começar descrevendo a prática tal como ocorre em tal cenário. Suponha-se que estamos diante de um cenário em que a resposta institucionalmente aceita para a pergunta “O que é o casamento?” é a seguinte (ou resposta semelhante):
O casamento é a união legal ou formalmente reconhecida de um homem e uma mulher como parceiros em um relacionamento pessoal.
Se este for o caso, uma descrição da prática deve destacar as características que nos permitem avaliá-la como injusta e irrazoável, por exemplo. Afinal, é uma resposta que, dadas suas implicações institucionais, impede que casais do mesmo sexo20 possam participar da instituição do casamento. Dada tal avaliação, parte do trabalho do teórico social é experimentar “[...] novas respostas ao mundo no lugar das velhas respostas que vieram a parecer problemáticas.” (HASLANGER, 2012, p. 29). O que seria uma resposta melhorada para a questão “O que é o casamento?”, uma resposta que satisfaça as condições (i)-(iii)? Certamente, (2) pode funcionar em muitos cenários:21
O casamento é a união legal ou formalmente reconhecida de duas pessoas como parceiras em um relacionamento pessoal.
Essa é uma resposta que contribui para práticas mais justas, inclusivas e razoáveis. Tal como quero entendê-la, neste artigo, diz respeito não ao conceito de casamento. Diz respeito a uma nova, e melhorada, forma de compreender um tipo de coisa no mundo, um tipo social ou categoria social, a instituição do casamento. De maneira semelhante, respostas melhoradas a uma pergunta sobre o que é uma categoria natural, como respostas melhoradas à pergunta “O que é a luz?”, entendida como sendo acerca da constituição física da luz, dizem respeito a uma nova forma de compreender um tipo de coisa no mundo, um tipo ou categoria natural. Contudo, há uma diferença importante entre esses dois casos. Por certo, que tenhamos chegado a uma resposta melhorada acerca do que é a luz, compreendida como sendo acerca de sua constituição física e, portanto, a uma melhor compreensão da categoria, não implica que o que a luz é tenha sido modificado. Simplesmente, melhor compreendemos a constituição física da luz; constituição essa que, evidentemente, não é alterada por nossas respostas.22
Já quando se trata de respostas melhoradas a perguntas da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria fortemente social, como o casamento, tais respostas podem alterar o que a categoria é. Afinal, o que categorias fortemente sociais são é, em grande parte, determinado por nossas atitudes em relação a tais categorias. Ao modificarmos nossas respostas acerca do que o casamento é, a própria categoria do casamento é modificada. Ou, para colocar o ponto de outra maneira, a própria instituição do casamento é modificada.23
Quando da discussão da engenharia conceitual, salientei a importância da implementação no mundo das alterações conceituais propostas. Naturalmente, o mesmo vale para o aprimoramento erotético. Tais projetos terão sucesso apenas se as novas respostas propostas para perguntas da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria fortemente social, vierem a ser dadas por indivíduos, no cenário ou contexto que for relevante. Ademais, parece claro que só devemos supor que houve uma alteração na categoria ela própria caso um número suficiente de indivíduos e, possivelmente, um número suficiente de indivíduos em posições institucionais estratégicas, venha a adotar tais respostas. Mas de que número estamos tratando? E quais seriam essas posições institucionais estratégias? Sem dúvida, tais perguntas não precisam, e não podem, ser respondidas aqui. Apenas a discussão detalhada de casos particulares de aprimoramento erotético pode relevar as condições para uma implementação exitosa de tais projetos. Em casos como o do casamento, uma instituição regida legalmente, somente a discussão detalhada de tal caso, em suas várias dimensões, pode revelar as condições para uma modificação exitosa da lei, em cenários nos quais essa modificação até o momento não ocorreu.
Esta é uma caracterização inicial de como o aprimoramento erotético poderia ser aplicado a uma pergunta da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria fortemente social.24 O aprimoramento erotético pode ser visto como decorrente de uma crítica social, no sentido de Haslanger. Por ora, discuti o aprimoramento erotético, em linhas bastante gerais, aplicado ao caso do casamento. Mas a lista de categorias fortemente sociais que precisam de respostas aprimoradas em relação ao que são pode ser longa.25
Na sequência, passemos a detalhamentos da posição. Deixe-me começar considerando um desafio que muitas vezes é levantado contra projetos de engenharia conceitual, um desafio que concerne à suposta dificuldade que esses projetos têm — uma vez postos em prática — de preservar o tópico em discussão, de sorte que não haja um desacordo verbal generalizado entre os usuários da língua. Chamarei a esse desafio de desafio da preservação de tópico.
4 O Desafio da Preservação de Tópico
Tal desafio é frequentemente introduzido por meio da apresentação de uma objeção levantada por Strawson (1963, p. 506) ao projeto de explicação de Carnap (1962):26
Oferecer explicações formais de termos-chave de teorias científicas para quem busca iluminação filosófica de conceitos essenciais do discurso não-científico, é fazer algo totalmente irrelevante—é um puro mal-entendido, como oferecer um livro de fisiologia a alguém que diz (com um suspiro) que gostaria de entender o funcionamento do coração humano...problemas filosóficos típicos sobre os conceitos usados no discurso não-científico não podem ser resolvidos estabelecendo as regras de conceitos exatos e frutíferos na ciência. Fazer isso não é resolver o problema filosófico típico, mas sim mudar de assunto.
A preocupação de Strawson é legítima. Conforme posta aqui, a questão é que a substituição de conceitos que têm sido o foco do trabalho filosófico por outros mais cientificamente respeitáveis não resolve os problemas com os quais os filósofos se preocupavam originalmente. Temos, simplesmente, uma mudança do assunto. Uma forma de desenvolver o ponto destacado por Strawson é através da ideia de continuidade da investigação. Cappelen (2018, p.101-102) escreve:
Suponha que alguém tente melhorar o significado de 'crença' ou 'mulher' e, como resultado, mude a extensão da palavra. Agora, suponha que tentemos responder às perguntas que formulamos usando essas palavras pré-melhoramento usando as palavras com novas extensões, ou seja, respondemos com frases como “mulheres são ...” e “crença é ...”. A objeção é que as respostas que empregam termos com as novas extensões não respondem às perguntas originais. Essas respostas dizem respeito a algo novo—não ao que estávamos falando originalmente quando usamos as expressões “mulher” e “crença”. Temos a ilusão de uma resposta, mas é uma ilusão puramente verbal. Há uma falta de continuidade da investigação: as velhas perguntas não estão sendo respondidas. Estamos respondendo a novas perguntas.
Deixe-me ilustrar o ponto que Cappelen está levantando aqui, de modo tal que claramente represente um desafio a projetos de aprimoramento erotético. Considere-se mais uma vez a questão do que é o casamento. A preocupação é que uma resposta a essa questão, em termos de (2) — uma resposta aprimorada — pode ser tomada como não respondendo, de maneira alguma, à questão original. A ideia é que (2) dá ao termo “casamento” um novo significado. Se for assim, então a pergunta original — o que é o casamento? — não está, de forma alguma, sendo respondida, pois, na velha pergunta, “casamento” tem um significado pré-aprimoramento. Com efeito, (2) responde a uma pergunta diferente, que usa a palavra “casamento” com seu novo significado. Há, portanto, a ilusão de que a velha questão está sendo respondida, mas se trata de uma ilusão verbal, conforme colocado por Cappelen. E, dado que a velha questão não está sendo respondida, não há continuidade da investigação. A pergunta “O que é o casamento?”, feita uma vez que o aprimoramento erotético tenha sido posto em ação, na verdade introduz uma nova indagação e um novo tópico ou assunto em discussão.
As respostas ao desafio da preservação de tópico apelam, muitas vezes, à metassemântica, e procuram fornecer posições segundo as quais o conteúdo dos conceitos pode mudar — ou a intensão e extensão das palavras, no caso de Cappelen (2018) — sem que haja uma mudança de tópico, de modo a permitir a continuidade da investigação.27 Não me engajarei com tais posições, neste texto. Gostaria, ao invés, de enfrentar o desafio em termos da pragmática de perguntas e respostas.
Nós fazemos perguntas — sejam ou não da forma “O que é x?” — com certos propósitos em mente. Esses propósitos são o objetivo da investigação do inquisidor. Se meu propósito, ao fazer certas perguntas a João, é saber o paradeiro de José, então, saber o paradeiro de José é o objetivo de minha investigação. Minha sugestão é que o objetivo da investigação nos permite identificar o tópico em discussão. Mais precisamente, o tópico em discussão deve ser identificado com o que as partes engajadas em uma conversação procuram saber — caso ambas estejam buscando conhecimento —, ou com o que uma das partes procura saber, com base no testemunho de outrem. Assim, no presente exemplo, o tópico em discussão entre mim e João é o paradeiro de José.28
Se assim for, temos, pois, uma clara maneira de entender a preservação de tópico: preservar um tópico em discussão é preservar o objetivo da investigação. Contudo, é importante notar que os objetivos da investigação, como aqui entendidos, podem ser preservados em casos de aprimoramento erotético. Considere-se, novamente, o aprimoramento erotético aplicado ao caso do casamento. A resposta melhorada à pergunta “O que é o casamento?” — expressa por (2) — pode ser claramente apresentada, dada uma investigação que possui o mesmo objetivo que aquela na qual (1) é posta como uma resposta à pergunta em causa: ou seja, ambas as investigações podem ter como objetivo a obtenção de conhecimento sobre a natureza de uma categoria social, a categoria do casamento. Assim, ambas as investigações podem ter como tópico em discussão a natureza social do casamento. Da mesma forma, a resposta melhorada proposta por Haslanger à questão do que é a mulher pode ser explicitada a partir de uma investigação que tem o mesmo objetivo de uma na qual uma resposta pré-aprimoramento é fornecida: ambas as investigações podem ter como objetivo a obtenção de conhecimento acerca do que a mulher é. Logo, ambas as investigações podem ter como tema em discussão o que a mulher é.
Mas isso ainda não nos livra completamente do problema da preservação de tópico. Por vezes, as partes envolvidas em discussões veem a si próprias como compartilhando um objetivo de investigação — e, por conseguinte, como discutindo o mesmo tópico — quando, na verdade, não o estão fazendo. Isso certamente pode também ocorrer quando o aprimoramento erotético é posto em prática. Deixe-me ilustrar a ideia, tendo em vista a definição aprimorada de Haslanger (2000, p. 44) para o conceito de raça:
Um grupo é racializado se e somente se seus membros são socialmente posicionados como subordinados ou privilegiados em alguma dimensão (econômica, política, legal, social, etc.), e o grupo é “marcado” como alvo para este tratamento por características corporais observadas ou imaginadas presumidas como sendo evidência de vínculos ancestrais com uma determinada região geográfica.
Agora, imagine-se que, após ler o trabalho de Haslanger, Liana esteja convencida de que essa é a maneira certa de se pensar sobre raças. Ela discute a questão com Marcela, cuja investigação visa a descobrir o que raças são, se biologicamente entendidas, e somente assim entendidas. Marcela imediatamente rejeita a posição fornecida por Haslanger. Mas imagine que, ao fazê-lo, ela ignore o objetivo da investigação de Liana, a qual é descobrir o que raças são se socialmente entendidas, e somente assim entendidas. Apesar das aparências em contrário — pois, se perguntadas sobre o que estão falando, Liana e Marcela diriam que estão falando sobre o que raças são — as investigações de Liana e Marcela possuem objetivos distintos. Portanto, não há um único tópico em discussão. Ou seja, em outras palavras, a conversa aqui sofre de uma descontinuidade de tópico.
Como podemos evitar que disputas de tal tipo ocorram, depois que o aprimoramento erotético for posto em prática? Certamente, há uma tentação neste ponto de introduzir conceitos em nosso arcabouço teórico — poder-se-ia dizer, por exemplo, que é preciso garantir que o aprimoramento erotético preserve o conteúdo dos conceitos. Mas aqui resistirei a essa tentação, pois não precisamos bloquear a possibilidade de que o aprimoramento erotético leve à descontinuidade de tópico. Afinal, a descontinuidade de tópico é um fenômeno comum na linguagem. Se mudarmos um pouco o caso envolvendo a conversa entre mim e João, podemos dar um exemplo cotidiano de descontinuidade de tópico, um caso que não envolve aprimoramento erotético. Posso perguntar a João onde José está, tendo como objetivo descobrir sua localização na cidade de São Paulo. João pode responder que não tem certeza, mas que acha que, ou bem José está em São Paulo, ou bem José está em Salvador, e que tentará descobrir exatamente onde ele está. Naturalmente, João e eu diferimos em nossos objetivos de investigação. O objetivo da investigação de João é descobrir em que cidade está José. Mas isso eu já sei: José está em São Paulo. Meu objetivo é descobrir onde ele está na cidade em que está — São Paulo. Portanto, não há um único tópico em discussão. Ainda assim, tanto eu quanto João podemos erroneamente pensar que nossa conversa tem um único tópico, embora essa confusão tenha vida curta.
Mal-entendidos como esse são muito comuns, e não há necessidade de evitar que aconteçam. O que precisamos são maneiras de identificar e dissipar mal-entendidos — tenham esses origem na descontinuidade de tópico, ou não. Nos campos da engenharia conceitual e da metafilosofia, maneiras de identificar e dissipar mal-entendidos relacionados ao significado linguístico já foram discutidos. Chalmers (2011), por exemplo, apresenta um método para identificar mal-entendidos dessa natureza — disputas verbais —, que podem surgir quando as partes tentam responder a perguntas da forma “O que é x?”.29 Ele chama tal método de “gambito da subscrição” (subscript gambit), e o explica da seguinte forma:
Suponha que duas partes estejam discutindo sobre a resposta para “O que é X?”. Um diz 'X é tal e tal', enquanto a outra diz 'X é assim e assado'. Para aplicar o gambito da subscrição, barramos o termo X e introduzimos dois novos termos, X1 e X2, que são estipulados como equivalentes aos dois lados direitos. Podemos então perguntar: as partes têm desacordos não-verbais envolvendo X1 e X2, de uma categoria tal que a resolução desses desacordos resolverá, pelo menos parcialmente, a disputa original? Se sim, então a disputa original não é verbal e a divergência residual pode servir como o foco de uma disputa esclarecida. Se não, isso sugere que a disputa original foi verbal [...] (CHALMERS, 2011, p. 532).
O gambito da subscrição de Chalmers é, certamente, um bom método para identificar disputas verbais que surgem, quando as partes envolvidas respondem a perguntas da forma “O que é x?” e, possivelmente sem sabê-lo, atribuem significados diferentes ao termo x. Assim, conforme ilustrado pelo próprio Chalmers, uma disputa filosófica sobre como responder a uma pergunta como “O que é liberdade?” pode ser simplesmente verbal. Suponha-se que uma parte diz que "liberdade é tal e tal", enquanto a outra parte diz que "liberdade é assim e assado”. Será verbal a disputa entre as partes? Isso pode ser descoberto pelo uso do gambito da subscrição. Proibimos o termo “liberdade” e, em vez disso, usamos os termos “liberdade1” e “liberdade2”. Esses termos são estipulados de sorte a tomarem como seus significados os dois lados direitos das respostas anteriormente dadas à questão em causa. Em seguida, avaliamos se as partes têm desacordos não verbais envolvendo liberdade1 e liberdade2. Em caso afirmativo, a disputa original era não verbal, e está agora esclarecida. Em caso negativo, isso sugere que a disputa era verbal desde o início.
Neste ponto, tendo em mente o aprimoramento erotético, o que sugiro é que mal-entendidos podem surgir em um estágio anterior, quando, ao fazer perguntas da forma “O que é x?”, as partes envolvidas na conversação — que pode ou não ser uma disputa — possuem objetivos diferentes de investigação. Contudo, como podemos identificar esses diferentes objetivos? Uma maneira de fazê-lo é propor, simplesmente, que, por terem diferentes objetivos de investigação, as partes podem ser consideradas como tendo diferentes questões em mente. Essas questões podem, por conseguinte, ser trazidas à tona e distinguidas, de modo a deixar claro que os objetivos da investigação de fato diferem. Obviamente, podemos assim proceder não apenas no que tange a perguntas da forma “O que é x?” — que são o foco do aprimoramento erotético —, mas no que concerne a perguntas em geral. Veja-se, por exemplo, o caso acima, no qual João e eu estamos interessados em descobrir onde José está, mas em que temos distintas questões em mente. (Q1) abaixo captura o que eu tenho em mente, quando questiono sobre o paradeiro de José, e (Q2) captura o que João tem em mente:
(Q1) Onde está José, na cidade de São Paulo?
(Q2) Em que cidade está José, São Paulo ou Salvador?
Uma vez que distingamos as questões dessa maneira, torna-se claro que as partes têm objetivos diferentes em suas investigações e que, de fato, não há um único tópico em discussão. Caso acreditássemos que estávamos falando sobre a mesma coisa — no sentido de haver um único tópico em discussão —, João e eu estaríamos envolvidos em um mal-entendido linguístico, um mal-entendido que poderia ser remediado a partir da distinção feita em (Q1) e (Q2).
Vejamos como a ideia pode ser aplicada, em um caso de aprimoramento erotético. No caso apresentado acima, Liana e Marcela estão envolvidas em uma disputa sobre o que raças são. Liana está convencida de que a definição do conceito de raça fornecida por Haslanger é correta. Marcela nega tal definição. Contudo, embora ambas estejam interessadas em descobrir o que raças são, o objetivo de Liana é descobrir o que raças são, se entendidas socialmente, e somente assim entendidas, enquanto o objetivo de Marcela é descobrir o que raças são, se biologicamente entendidas, e somente assim entendidas. Logo, Liana e Marcela podem ser consideradas como tendo diferentes questões em mente, a saber:
(Q3) O que são raças, socialmente falando?
(Q4) O que são raças, biologicamente falando?
Novamente, uma vez distinguidas as questões dessa maneira, fica evidente que Liana e Marcela possuem objetivos diferentes, em suas investigações, e que não há um único tópico em discussão. Por acreditarem que estavam falando sobre a mesma coisa, elas estiveram envolvidas em um mal-entendido. A proposta aqui é que esse mal-entendido pode ser remediado, se fizermos a distinção entre (Q3) e (Q4), abrindo caminho para uma disputa mais frutífera. Sem dúvida, Marcela pode não ser convencida pela definição de Haslanger, mesmo que agora compartilhe o objetivo de Liana de descobrir o que raças são, se socialmente compreendidas, e Liana pode pensar que (Q4) não é uma boa pergunta, pois ela pode pensar que há não tal coisa como raças, em um sentido biológico.30 Seja como for, a disputa entre elas não mais será baseada em um mal-entendido.
Devemos, portanto, concluir que, embora haja um risco de descontinuidade de tópico, à medida que o aprimoramento erotético é colocado em prática — um risco que, de fato, está presente, dada qualquer interação linguística, pois as partes envolvidas na interação podem ter diferentes objetivos de investigação —, o importante é que existam maneiras de identificar tais descontinuidades, caso ocorram. Aqui, fiz uma sugestão de uma maneira de fazê-lo, com base em questões distintas que os sujeitos podem ter em mente. Outras maneiras podem estar disponíveis. Minimizar as consequências da descontinuidade de tópico, identificando-a, caso aconteça, é necessário para que possamos aplicar o aprimoramento erotético com sucesso.
5 O Quadro Austero de Cappelen
Os leitores familiarizados com a literatura sobre engenharia conceitual terão notado que o aprimoramento erotético está, até certo ponto, de acordo com o Quadro Austero (Austerity Framework), posição defendida por Cappelen (2018), na medida em que ambas as posições discutem questões de aprimoramento, sem introduzir conceitos em seu arcabouço teórico. Ademais, como salientado acima (nota 18), ambas as posições estão de acordo com a ideia de que melhoramentos direcionados a categorias podem alterar o que as categorias elas próprias são, ao menos em certos casos, ou no que tange a certas categorias. Nesta última seção, compararei brevemente as duas visões, enfatizando que o aprimoramento erotético não sofre de um resultado indesejável da visão de Cappelen, a saber, que a perspectiva de projetos de aprimoramento ou melhoria serem implementados com sucesso não é das melhores.
Conforme o Quadro Austero de Cappelen, a melhoria (ou engenharia) opera no significado das expressões linguísticas; mais especificamente, opera nas intensões e extensões das expressões linguísticas (CAPPELEN, 2018, p.61). Assim, enquanto alguns consideram que a engenharia, tal como concebida nessa área, trata da avaliação e melhoria de conceitos, Cappelen a toma como se referindo, fundamentalmente, à avaliação e à alteração, caso necessário, da intensão e extensão de uma expressão linguística, tal como “casamento”.
O Quadro Austero adota uma visão sobre intensões e extensões de expressões que é amplamente aceita. As intensões são compreendidas em termos de uma função de circunstâncias de avaliação (mundo, ou pares mundo/tempo) para extensões, em que as últimas são entendidas em termos das coisas no mundo que a expressão seleciona em cada circunstância. Além disso, Cappelen adota o externismo semântico enquanto metassemântica — enquanto uma teoria que explica por que as expressões linguísticas têm os significados que têm. Desse modo, as intensões e extensões de expressões linguísticas são consideradas como parcialmente determinadas por aspectos do ambiente externo, sendo que, como colocado por Cappelen (2018, p. 63), “[...] os elementos relevantes do ambiente externo incluem especialistas na comunidade, a história de uso retornando até à introdução de um termo, padrões complexos de uso ao longo tempo, e como o mundo é (independentemente de como os falantes acreditem que o mundo é).”
Se assim for, como a melhoria deve ser posta em ação? Bem, o externismo semântico certamente permite mudanças no que diz respeito à intensão e extensão de uma expressão. Mudanças desse tipo podem ocorrer de diferentes maneiras. Por exemplo, especialistas podem começar a usar um termo T em seu campo de atuação, de uma maneira diferente, e isso pode levar a uma mudança na intensão e extensão de T. Mas, para Cappelen, isso é certamente uma simplificação, pois os mecanismos subjacentes à mudança no significado de uma expressão são, de fato, “[...] muito complexos, confusos, não-sistemáticos, amorfos e instáveis para serem completamente apreendidos ou compreendidos.” (CAPPELEN, 2018, p.72). O problema não é apenas epistêmico, porque temos pouco controle sobre os mecanismos aqui em causa. Mesmo que fossem devidamente compreendidos, isso não significaria que seríamos capazes de controlar o processo de mudança de significado. No entanto, nada disso significa, é claro, que não possamos tentar mudar e melhorar as intensões e extensões das expressões linguísticas. Para Cappelen, devemos, sim, continuar tentando. Se esses projetos terão sucesso, contudo, é algo que não pode ser previsto.
Conforme realçado por Nado (2020, p.7), as implicações do Quadro Austero “[...] para a nossa capacidade de realmente fazer engenharia são, com certeza, deprimentes.” Afinal, os mecanismos de mudança de significado são amplamente desconhecidos, de sorte que não há muito a se fazer para interferir positivamente neles. Isso não significa, evidentemente, que a visão seja um fracasso. Significa apenas que tem um resultado indesejável — pelo menos para aqueles que esperam construir uma sociedade mais justa, com a ajuda (não importa quão pequena) da engenharia conceitual.
Já o aprimoramento erotético possui uma perspectiva menos pessimista, quando se trata do sucesso de seus projetos. Lembre-se de que o aprimoramento erotético concerne à avaliação e eventual busca por melhoria de nossas respostas a questões da forma “O que é x?”. Os mecanismos subjacentes a melhorias desse tipo são muito menos misteriosos do que os envolvidos na mudança da intensão e extensão das expressões linguísticas, dado o externismo semântico. Estamos dispostos a dar certas respostas a perguntas da forma “O que é x?”. Contudo, talvez essas respostas não funcionem mais; talvez não mais sejam boas respostas (ou talvez jamais o tenham sido). Ao colocar o aprimoramento erotético em ação, melhores respostas são propostas, as quais possam combater a injustiça social, por exemplo. Em seguida, temos a fase de implementação. Essas respostas melhoradas são apresentadas de modo a serem fornecidas em contextos de conversação no mundo real.
Evidentemente, se estaremos dispostos a dar essas respostas nos contextos em que se propõe que sejam dadas não é uma questão simples. Todavia, os mecanismos em jogo aqui não são semânticos, mas sim epistêmicos/psicológicos, e não são particularmente misteriosos. Mudar as respostas que as pessoas estão dispostas a dar a certas perguntas requer, no caso típico, convencê-las de que as presentes respostas não mais são boas, ou mesmo que jamais o tenham sido. Sem dúvida, as pessoas podem se recusar a alterar o rumo de suas respostas. Podem, por exemplo, não estar convencidas, devido à ideologia ou preconceito. Ou, então, podem mesmo ser convencidas de que deveriam alterar suas respostas, estar dispostas a fazê-lo, mas, de fato, não chegarem a tal ponto, dado que as velhas respostas ainda são dominantes em sua comunidade, e que novas respostas não são bem-vindas. Todas essas questões são interessantes — e imensamente importantes — e precisam ser discutidas tanto na literatura especializada quanto em fóruns públicos. Porém, novamente, os mecanismos em jogo aqui não são particularmente misteriosos. O que leva as pessoas a alterarem suas respostas a perguntas da forma "O que é x?", ou a deixar de fazê-lo, pode estar ao alcance de nossa compreensão.31
Ao contrário do Quadro Austero, isso significa que, de fato, sabemos como colocar o aprimoramento erotético em prática: devemos operar em pelo menos alguns dos mecanismos conhecidos, por estarem subjacentes às disposições das pessoas para darem certas respostas. Dado que o convencimento é um importante fator para provocar mudanças nessas disposições, convencer as pessoas de que as respostas propostas pelo aprimoramento erotético são, de fato, melhores do que as anteriores é uma parte importante do estágio de implementação de tais projetos. Certamente, não temos completo controle sobre o resultado final dessas tentativas. No entanto, podemos prever que as propostas segundo as quais as pessoas devem mudar suas respostas em relação a uma pergunta da forma “O que é x?” podem ser de mais fácil implementação, em certos contextos do que em outros. Assim, pode ser mais fácil levar as pessoas a alterarem suas respostas a uma pergunta como “O que é raça?” em certos contextos institucionais e políticos, por exemplo, do que em contextos cotidianos. Isso não significa, porém, que uma mudança mais abrangente esteja fora do alcance.
Deixe-me considerar uma última objeção. Ao mudar as nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”, não estamos mudando o significado dos termos, sua intensão e extensão? Por exemplo, ao propor (2) como a melhor resposta à questão do que é o casamento, e supondo que a proposta seja aceita por um número suficientemente grande de pessoas, não estamos mudando o significado do termo “casamento”? Permanecendo o mais neutro possível em questões acerca do significado de expressões linguísticas, podemos dizer que o aprimoramento erotético, se bem-sucedido, pode de fato levar a uma mudança no significado de certas expressões — no presente exemplo, a extensão de “casamento” certamente mudaria. Mas isso não quer dizer que o aprimoramento deva ser entendido como operando em significados de expressões. A mudança nos significados das expressões pode ser uma consequência do aprimoramento erotético. Como sugerido por Cappelen, dado o externismo semântico, há uma série de fatores em ação na produção da mudança de significados. A mudança de nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?” pode ser considerada como sendo um desses fatores.
Considerações Finais
Neste artigo, apresentei a posição a que chamo de aprimoramento erotético, segundo a qual devemos buscar avaliar e, eventualmente, aprimorar nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria fortemente social. Argumentei que a posição tem sucesso em lidar com o desafio da preservação de tópico — que, compreensivelmente, preocupa pessoas engajadas em projetos de engenharia conceitual —, e que possui vantagens em relação ao Quadro Austero de Cappelen (2018), uma posição com a qual compartilha uma rejeição de um aparato teórico que faça apelo a conceitos. Naturalmente, ainda há muito a ser dito. Não discuti o aprimoramento erotético, quando aplicado a perguntas e respostas que dizem respeito a categorias não sociais, por exemplo. E mesmo para categorias fortemente sociais, que foram o foco deste artigo, o trabalho mais árduo está em identificar, para casos específicos de perguntas da forma “O que é x?”, quais são as melhores respostas a serem dadas, e como podem ser implementadas de maneira exitosa. Esse trabalho é, em grande parte, uma crítica social, no sentido de Haslanger, e exige a cuidadosa consideração e avaliação de práticas relacionadas à categoria que estiver em jogo.32
For Old Questions, New and Better Answers: From Conceptual Engineering to Erotetic Amelioration
Abstract: In this paper, I present a position that I call erotetic amelioration, according to which we must evaluate and, eventually, improve our answers to questions of the form “What is x?”. My focus will be on cases where x stands for a strongly social kind, such as marriage. Such a position is offered as an alternative to the idea—sometimes called conceptual engineering—according to which we should evaluate and, eventually, seek to improve our concepts. After introducing the idea of erotetic amelioration, I will show how it can be put into work to deal with what I call the topic preservation challenge, and what advantages it has in relation to a similar position available in the literature, namely, Cappelen’s (2018) Austerity Framework.
Keywords: Erotetic amelioration. Conceptual engineering. Concepts. Projects of amelioration.
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Recebido: 22/08/2022
Aceito: 16/01/2023
1 O presente artigo é resultado de uma pesquisa financiada pelo CNPq, projeto número 311596/2019-3.
2 Docente na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4747-5938. E-mail: ajabath@ufmg.br.
3 Todas as traduções neste artigo são de minha responsabilidade.
4 A definição sugerida por Haslanger para o conceito de mulher, em uma das suas versões, é a seguinte: “S é uma mulher se e somente S é sistematicamente subordinada ao longo de alguma dimensão (econômica, política, legal, social etc.) e S é 'marcada' como um alvo para este tratamento por características corporais observadas ou imaginadas, presumidas como evidências do papel biológico de uma mulher na reprodução.” (HASLANGER, 2000, p. 39).
5 “Erotético” deriva do verbo grego “ἐρωτάω” (erōtaō), que pode ser traduzido por “perguntar” ou “questionar”.
6 Para uma discussão recente sobre categorias naturais e sociais, ver Khalidi (2013a).
7 Para os propósitos deste artigo, assumirei que categorias sociais, ao contrário de categorias naturais, são tais que sua existência é dependente das práticas e/ou estados mentais dos sujeitos (SEARLE, 1995). Porém, há categorias c que são sociais, nesse sentido, sem que sejam fortemente sociais, ou seja, sem que o que c seja, em grande parte, determinado pelas atitudes dos sujeitos em relação a c. Por exemplo, como sugerem Khalidi (2013b) e Ásta (2017), as recessões só podem existir se houver comunidades e práticas comunitárias — os seres humanos precisam se engajar em transações econômicas para que as recessões existam —, mas não são as atitudes dos sujeitos em relação às recessões que fazem as recessões existirem. Além disso, se algo conta como uma recessão, isso é totalmente independente das atitudes dos sujeitos em relação à categoria – por exemplo, um país pode estar em recessão, mesmo que ninguém acredite que esteja. Conforme colocado por Ásta (2017, p. 307), “[...] uma recessão é algo que atende a certas condições matemáticas. É um padrão matemático que se ajusta aos fenômenos sociais. Não pode haver recessões sem pessoas e suas práticas, mas não é a atitude das pessoas em relação a um fenômeno que o torna uma recessão; nem é a atitude das pessoas que faz com que haja recessões. Ser uma recessão é simplesmente encaixar-se em uma certa descrição matemática que contém muitas variáveis, como crescimento econômico e afins. Isso é assim mesmo que nada possa ser uma recessão na ausência de práticas sociais, e não possa haver práticas sociais na ausência de sujeitos engajados uns com os outros.” Se isso estiver certo, então há claramente fatos sobre recessões, fatos independentes de nossas atitudes em relação à categoria. É tarefa dos economistas e outros teóricos descobrir tais fatos, por meio de investigação empírica. Alguns desses fatos são relevantes para a questão do que é uma recessão. Tais fatos também são independentes das atitudes dos sujeitos em relação à categoria. As instituições de um país — por exemplo, o Ministério da Economia de um país — não determinam o que é uma recessão. Assim, uma recessão não é uma categoria fortemente social, tal como essas categorias serão concebidas neste artigo.
8 É importante notar que o que é o casamento pode ser amplamente determinado pela lei — e, portanto, pelas atitudes dos sujeitos em relação à categoria — e, pois, contar como uma categoria fortemente social em nosso sentido, sem que seja completamente determinado pela lei. Afinal, como assevera Epstein (2016, p. 160), “[...] o casamento é maior do que apenas as regulamentações legais. O casamento é uma instituição de longa data e difundida em todo o mundo e permanece ancorada, em parte, por práticas históricas e contínuas. Essas práticas podem atrasar as mudanças na regulamentação legal, ou a lei pode atrasar as mudanças na prática. Isso significa que as definições na lei podem errar sobre o casamento. A lei tem enorme influência sobre o casamento, mas a categoria é um híbrido de direito e sociologia.” O ponto de Epstein segundo o qual as definições oferecidas pela lei podem estar erradas em relação ao que é o casamento será especialmente relevante para a discussão que se segue.
9 Neste artigo, apelarei com frequência ao exemplo do casamento. Trata-se, por um lado, de um caso central — de grande relevância social — em que o aprimoramento erotético poderia ser colocado em prática; por outro, constitui um caso que não foi investigado em detalhe por autoras e autores com cuja obra me engajo aqui, como Haslanger.
10 Obviamente, podemos tentar melhorar nossas respostas para as mais variadas perguntas da forma “O que é x?”, onde x, se captura uma categoria, pode capturar categorias das mais diversas. Por exemplo, por uma razão ou outra, pode, eventualmente, se tornar relevante para nós melhorar respostas a uma pergunta como “O que é um gato?”. Além do mais, não parece implausível a ideia de que a história da filosofia seja, em parte, uma tentativa de aprimorar nossas respostas a perguntas com essa forma, como “O que é conhecimento?”, ou “O que é justiça?”. Tais questões metafilosóficas, contudo, estão além do escopo deste artigo.
11 Para sugestões sobre como usar a terminologia, nesse campo de pesquisa, ver Burgess e Plunkett (2020).
12 Sobre a analogia com a engenharia, afirma Chalmers (2020, p. 3): “Você projeta uma ponte, você implementa uma ponte, você avalia a ponte para ver se está indo bem. Se a avaliação não for positiva, você projeta alguns reparos e os implementa. E assim por diante. Você também vê algo assim na engenharia de software. Você projeta um programa, implementa o programa, avalia o programa e assim por diante, em um círculo contínuo.”
13 Para uma introdução esclarecedora a essas visões, ver Laurence e Margolis (1999).
14 Fodor (1998) é uma voz dissonante aqui, ao defender que conceitos são representações mentais atômicas, desprovidas de estrutura.
15 Em suas palavras, “[...] os debates sobre a possibilidade de engenharia conceitual são confusos, no entanto, porque as partes da discussão começam com posições muito diferentes acerca de conceitos, do significado, do conteúdo e da metodologia filosófica de fundo.” (HASLANGER, 2020b, p. 235).
16 Poder ser argumentado que a noção de categoria, da qual faço uso neste artigo, abre espaço para controvérsias muito semelhantes àquelas que envolvem a noção de conceito. O estatuto metafísico das categorias pode ser claramente objeto de debate, por exemplo (tal como indiquei acima). Assim, haverá vantagens em um abandono da noção de conceito, visto que estamos comprometidos com a noção (também controversa) de categoria? Essa é uma objeção que merece uma resposta mais detalhada do que aquela que posso dar aqui. Por agora, deixe-me apontar, apenas, que, de fato, a noção de conceito recebe as mais diversas caracterizações na literatura sobre engenharia conceitual, as quais são, frequentemente, incompatíveis entre si, o que pode ser um entrave à boa comunicação na área e, consequentemente, um empecilho para que os avanços desejados sejam alcançados. Já a noção de categoria parece encontrar, na área, caracterizações mínimas — tal como a que uso neste artigo —, que buscam uma neutralidade em relação a debates acerca de sua natureza metafísica, por exemplo. Assim, de fato, parece ser a noção de conceito, e não a de categoria, que constitui (ou pode claramente constituir) um obstáculo para a boa comunicação na área. Naturalmente, que assim seja, pode ser uma mera contingência teórica. Agradeço a um dos revisores deste artigo por levantar essa preocupação.
17 Agradeço a um dos revisores deste artigo por alertar-me a propósito da compatibilidade do aprimoramento erotético com a engenharia conceitual, tal como usualmente entendida.
18 Para uma excelente discussão, ver Saul (2006). Para uma contextualização dessas diferentes visões, ver Haslanger (2020a).
19 Em Abath (2020, 2022), defendo que a ideia de Burge de uma compreensão parcial de conceitos é mais bem compreendida em termos do conhecimento parcial do que as coisas são.
20 Como corretamente me foi apontado por um dos revisores deste artigo, o termo “sexo”, o conceito que o expressa, ou mesmo a pergunta “O que é um sexo?”, no sentido em causa aqui, poderiam ser objeto de uma engenharia conceitual ou aprimoramento erotético. Neste ponto do artigo, assumo o uso de tais termos sugerido na própria caracterização do casamento dada em (1).
21 No entanto, pode haver sociedades (reais ou possíveis) nas quais (2) pode falhar em promover a justiça social. Pense-se, por exemplo, em sociedades (reais ou possíveis) nas quais frequentemente mais de duas pessoas são parceiras em um relacionamento pessoal. Em tais sociedades, (2) pode não ser uma resposta boa o suficiente para a questão em causa.
22 Hacking (2000) diria que a luz é uma categoria indiferente, na medida em que não é alterada por nossas classificações e teorizações que a têm como objeto.
23 Esse é um ponto em comum entre o aprimoramento erotético e a engenharia conceitual, em uma de suas versões, aquela defendida por Cappelen (2018) (embora o uso da expressão “engenharia conceitual”, por parte de Cappelen, seja algo enganador, em se tratando de sua própria posição, pois ela não diz respeito a um melhoramento de conceitos, porém, da semântica de termos e do próprio mundo). Destaca ele: “Nesta visão, a engenharia conceitual é sobre o mundo. Trata-se, por exemplo, de casamento, pessoas, tortura ou liberdade. Assim interpretado, o resultado da engenharia conceitual pode ser descrito como uma mudança no nível do objeto: estamos mudando o que o gênero, a liberdade, a salada, o casamento etc. são.” (2018, p. 138). Discutirei a posição de Cappelen e suas relações com o aprimoramento erotético na seção 5. Por ora, deixe-me apenas dizer que a posição de Cappelen não possui uma ênfase em categorias sociais ou fortemente sociais, sendo que o aprimoramento erotético está comprometido com a modificação das categorias sociais elas próprias apenas quando categorias fortemente sociais estão em jogo.
24 Uma resposta aprimorada à pergunta acerca do que é o casamento deve ser considerada como a resposta verdadeira a essa pergunta, enquanto a resposta pré-aprimoramento deve ser considerada como falsa? Quando se trata de respostas a perguntas sobre o que são categorias fortemente sociais, prefiro evitar falar de verdade, no sentido intuitivo de respostas que capturam como as coisas são no mundo, independentemente das atitudes do sujeito em relação à categoria. Basta frisar aqui que (2) é a melhor resposta para a questão do que é o casamento se comparada com (1). Obviamente, pode-se insistir em se referir a verdade, aqui, e sugerir que, quando se trata de tais assuntos, uma resposta é verdadeira na medida em que é razoável, justa, útil etc. Certamente, pensar na verdade em termos pragmáticos é uma opção viável, aqui.
25 Pode-se incluir categorias tais como pais (HASLANGER, 2006), misoginia (MANNE, 2017) e pobreza (WISOR, 2012), para citar algumas.
26 Conforme enfatizado por Brun (2016, p.1214), “[...] a ideia básica de Carnap é que a explicação é um processo que substitui um conceito inexato (o explicandum) por um conceito mais exato (o explicatum); esse processo atende a algum propósito teórico e introduz explicitamente o explicatum no sistema de conceitos de uma teoria-objetivo.”
27 Para diferentes posições sobre o assunto, ver Haslanger (2020b), Ball (2020) e Sawyer (2020).
28 A posição que defendo aqui é, em diversos aspectos, semelhante àquela apresentada por Roberts (2012), sob o título de Questions Under Discussion, ou, simplesmente, QUD. Assim como Roberts, tomarei como modelo casos em que as partes envolvidas em uma conversação aceitam ou reconhecem um dado objetivo de investigação. Abaixo, discutirei casos nos quais as partes envolvidas em uma conversação possuem objetivos de investigação distintos, sem percebê-lo. Neste artigo, não discutirei casos em que uma das partes rejeita o objetivo da investigação de outra parte. Tais casos contêm desafios com os quais não terei espaço para lidar aqui.
29 Para um método semelhante aplicado a discussões no campo da engenharia conceitual, consultar Sawyer (2020).
30 Ao assim pensar, Liana estaria de acordo com Appiah (1993, 1996).
31 Isso não significa, contudo, que uma teoria completa ou detalhada dos mecanismos que subjazem ao preconceito — para ficar com apenas um exemplo de um tipo de atitude que pode levar a uma resistência por parte de sujeitos, no que tange à modificação de suas respostas acerca do que categorias fortemente sociais são —, esteja disponível, ou seja simples de ser obtida. Pelo contrário. A psicologia das últimas décadas revelou-nos que estados mentais pré-conscientes — por meio de vieses implícitos, por exemplo — frequentemente estão subjacentes a atitudes de preconceito, e uma teoria detalhada de tais estados não está ainda disponível, e não devemos supor que estará disponível em um futuro próximo. Ademais, uma teoria detalhada das atitudes de preconceito não será apenas psicológica, mas envolverá, certamente, disciplinas diversas, como a história, a sociologia, a filosofia moral etc. Nesse sentido, há um longo caminho a ser percorrido aqui. O que temos é uma ideia — razoavelmente clara — das perguntas que precisarão ser respondidas em tal empreitada teórica, e dos caminhos para respondê-las. O mesmo não pode ser dito acerca do Quadro Austero de Cappelen, o qual indica obstáculos instransponíveis para a compreensão dos mecanismos que subjazem à mudança de significado dos termos. Assim, enquanto o sucesso do aprimoramento erotético é dependente do avanço de pesquisas em andamento, o sucesso de projetos de melhoria, no Quadro Austero de Cappelen, é entregue à imprevisibilidade. Agradeço a um dos revisores deste artigo por pressionar-me acerca desse ponto.
32 Gostaria de agradecer a alunas e alunos dos cursos de pós-graduação Filosofia e Psicologia dos Conceitos e Melhoria de Conceitos e Realidade Social, ministrados no PPG-Filosofia da UFMG, cujo retorno foi fundamental para a formulação das ideias apresentadas neste artigo. Agradeço a Veronica Campos, Samuel Maia e Vitor Sommavilla, pela leitura de uma versão anterior do texto e sugestões diversas. Por fim, agradeço a dois revisores desta Revista, por inúmeras observações que me ajudaram a redigir a versão definitiva deste texto.