LIBERDADE CONTEXTUALIZADA E SENTIDOS NORMATIVOS EM FOUCAULT1


Bruno Sciberras de Carvalho2


Resumo: A questão da liberdade em Foucault torna-se problematizada, quando relacionada com os impedimentos, previstos pelo autor, para os sujeitos se situarem fora das redes de poder. Todavia, Foucault também destaca potencialidades de resistências e uma noção de liberdade envolvida pelas circunstâncias históricas, o que sugere questões normativas originais. De modo a analisar a tensão entre dominação e liberdade em sua obra, e o que se reflete normativamente, notam-se duas direções principais: a ideia de liberdade como algo inerente às relações de poder e como fundamento do exercício crítico do conhecimento. Busca-se argumentar que a valorização de dimensões de liberdade, elaborada por Foucault, gera implicações singulares de avaliação das condições sociais, embasadas em uma temperança normativa.


Palavras-chave: Foucault. Liberdade. Dominação. Teoria Normativa.


Introdução

Devido a impedimentos para os sujeitos terem autonomia, fora das formações epistêmicas que os envolvem, parece haver, a princípio, pouco espaço para dimensões de liberdade, na obra de Foucault. Mesmo em trabalhos da segunda metade dos anos 1970, próximos a seus estudos de ética que se voltam para a antiguidade – os quais mostram potencialidades de resistências e liberdades pontuais –, o autor (2004a, p. 81; 1993, p. 28) mantém, com a temática da governamentalidade, que o sujeito pensado pelas ciências humanas ou pelo humanismo seria, na verdade, uma figura da “população”, resultado dos controles dos aparelhos administrativos, estimativas estatísticas e diferentes conhecimentos técnicos. Não haveria grandes diferenças, salvo de forma, entre o sujeito pensado com base nas ideias de soberania popular e sociedade civil que se manifesta na população e o sujeito que entrega sua liberdade natural e se submete a uma soberania, sugerido pelo pensamento jurídico-filosófico do século XVII.

É conhecida a tese de Foucault que ressalta os vínculos de relações de poder com “efeitos positivos” de criação e reprodução de subjetividades, concebido não apenas como objeto que manifesta obediência, mas também como reprodutor dos discursos de verdade (FOUCAULT, 2014a). Nossas subjetividades seriam estruturadas pelos efeitos de poder dos saberes prevalecentes e pelas obrigações que estes impõem sobre atos e comportamentos (FOUCAULT, 2014b). Foucault sugere, a respeito da anatomia moderna do poder: “[...] o homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele.” (1997b, p. 29). Nos cursos elaborados em meados da década de 1970, Foucault argumenta que dispositivos disciplinares e de segurança convivem na modernidade (1993, 2004a). Enquanto as disciplinas (1997b) se baseiam no entendimento do corpo como máquina, com a ampliação individualizada de sua docilidade e utilidade, a governamentalidade e a biopolítica controlam a “população”, de forma massificada, através de procedimentos abrangentes e quantitativos. Os mecanismos táticos do poder e a formação do Estado moderno envolveriam a dimensão pastoral que se constitui sobre um rebanho sem um local preciso, vinculando-se à busca de obediência integral e cotidiana (2004a).

Entretanto, os apontamentos de Foucault sobre o vigor de instituições modernas se articulam com uma suposição de poder que também porta certa fragilidade e contingência (FOUCAULT, 2014a). Nesse sentido, Foucault entende as relações de poder como instáveis e reversíveis, justamente porque manifestam possibilidades de resistência e algum grau de liberdade (FOUCAULT, 2001f). Tal suposição foi associada por muitos intérpretes às possibilidades éticas dos trabalhos sobre a antiguidade, os quais constituíam um novo campo na teoria de Foucault. Nessas interpretações, a relação entre as suposições de liberdade previstas em seus últimos trabalhos e as análises de suas obras anteriores apontaria para uma relação tensa, por vezes tida por contraditória (cf. TOBIAS, 2005).

A partir dessas tensões entre as suposições de uma forte submissão, por um lado, e das instabilidades do poder, por outro, busco analisar algumas implicações normativas da obra de Foucault, tendo em vista perceber como a conceituação que destaca a contextualidade das ações e a valorização do autor de práticas de liberdade podem gerar bases para a avaliação e/ou justificação de condições sociopolíticas diferentes. Para tal, examino, primeiramente, a relação entre ética e liberdade, manifestada em seus últimos trabalhos. Argumento que a virada para a ética de Foucault não significa um sentido de autocriação de sujeitos desconectados de condições conjunturais, o que limita possibilidades normativas de práticas de liberdade serem reproduzidas em outras realidades sociais. Parece-me que tal direção supõe uma filosofia do sujeito que não observa as contextualizações históricas precisas e relações entre saberes e poder que Foucault assinalava, na antiguidade.

Em seguida, noto reflexões de Foucault sobre a liberdade em trabalhos anteriores aos da ética antiga, nos quais as relações de poder são pressupostas como envolvidas, inexoravelmente, em disputas e limites contrários. Indica-se que Foucault entende a liberdade em duas direções principais: como algo inerente às relações de poder e como fundamento do exercício crítico do conhecimento. Por fim, enfatizando a tese de que toda ação livre seria contextualizada historicamente, argumento sobre implicações normativas das concepções de liberdade de Foucault, com o intuito de perceber a preponderância do que denomino temperança normativa.


1 Liberdade e Práticas de Si: restrições da transposição da ética antiga para outros contextos

Uma das maneiras de pensar a questão da liberdade em Foucault é atentar para como o autor analisa a temática do cuidado ético, em oposição ao complexo de obrigações que veio a se desenvolver em formas de moralidade posteriores às culturas antigas grega e romana. Foucault (2006) assinala que outra moralidade pode ser observada nos padrões de conduta antigos, os quais constituem uma história de “estéticas da existência”, não obstante terem perdido importância, quando integradas à pastoral cristã e a saberes disciplinares. Na moral antiga, haveria uma problematização baseada em “artes da existência” ou “técnicas de si” que fazem com que os sujeitos procurem “[...] se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos.” (FOUCAULT, 2006, p. 15). Dessas práticas, sobressai um ajustamento variado que, em geral, versa sobre a questão do controle dos desejos pessoais.

Foucault analisa uma série de características singulares das condutas antigas, mas nos importa aqui notar, mais precisamente, como sua reflexão sugeria um uso singular do poder sobre si e da liberdade. Como se manifesta na ideia de enkrateia (2006, p. 60-72), buscava-se a dominação de si por si. Nesse caso, a batalha, as resistências e controles são acontecimentos que ocorrem de si para consigo. Segundo Foucault (2006, p. 74), se pensamos em liberdade nesse sentido, ela diz respeito tanto às relações políticas dos cidadãos com suas leis quanto ao domínio que aqueles são capazes de estabelecer consigo mesmos. Consequentemente, definem-se até as relações de autoridade de uma comunidade, constituídas com base na seleção de governantes que detém controle de suas paixões e apetites – o que, por sua vez, regula o poder destes sobre os outros (2001f, p. 1535).

Ponto central é que os aspectos da moralidade antiga, diferentemente dos modelos ulteriores codificados de proibição, são transmitidos de maneira difusa e constituídos por um jogo complexo de elementos que se corrigem e se anulam, em certos pontos, o que permite tanto compromissos quanto escapatórias (FOUCAULT, 2006, p. 26). Por sua vez, a relação com a verdade seria substantivamente diferente, pois se supunha o conhecimento como gerador de princípios dos usos dos prazeres em função das circunstâncias singulares nas quais os agentes se encontram, configurando um “ajustamento variado” (FOUCAULT, 2006, p. 52). Os saberes não implicam nem o reconhecimento minucioso do sujeito ou de seus desejos nem a busca de uma purificação em relação a atos tidos por anormais ou patológicos (2006, p. 82).

Foucault (2014b, p. 33-34) chama atenção para o fato de que as “artes de viver” antigas concernem a reflexões, a fim de transformar o que somos e a abertura de modalidades de experiência. Como Foucault (2001f, p. 1533) sugere, em um de seus últimos escritos, ser livre, nesse sentido, é não ser escravo, não se render aos apetites e paixões, o que significa estabelecer a si mesmo uma relação de domínio e comando, uma archê.

As características da subjetivação e das práticas de si antigas geram consequências específicas às possibilidades de ação e liberdade vigentes, distantes das conjunturas sociopolíticas e morais desenvolvidas posteriormente em que

[...] a importância é dada sobretudo ao código, à sua sistematicidade e riqueza, à sua capacidade de ajustar-se a todos os casos possíveis, e a cobrir todos os campos de comportamento; em tais morais a importância deve ser procurada do lado das instâncias de autoridade que fazem valer esse código, que o impõem à aprendizagem e à observação, que sancionam as infrações; nessas condições, a subjetivação se efetua, no essencial, de uma forma quase jurídica. (Foucault, 2006, p. 29).


Em contraposição aos extensos regimes de codificação ulteriores, moralidades fundamentadas nas práticas de si apresentam um sistema incipiente de regras de comportamento, definindo noções de liberdade voltadas para os próprios sujeitos. Não se trata de uma normalização, pois a principal meta da ética antiga é estética, embasada na escolha de se ter uma existência bela (FOUCAULT, 1982b, p. 230). Segundo Foucault (2006, p. 69), a askesis antiga não apresentava forma articulada ou detalhada, estando distante da austeridade definida por uma legislação universal que trata a todos do mesmo modo. Além disso, mesmo com as exigências morais expressas por filósofos antigos, estas não envolviam a demanda por intervenções do poder público (FOUCAULT, 2005, p. 46).

Portanto, a ideia de controle de si é oposta à individualização da governamentalidade moderna e que Foucault (2004a) relaciona a características desenvolvidas, há séculos, pelas preocupações religiosas da pastoral cristã. Nesta, os sujeitos são definidos pelo exame de seus méritos e deméritos em relação às leis e às verdades difundidas. Diferentemente de um controle sobre si, institui-se uma rede de servidões que configuram uma nova individualização por assujeitamento (FOUCAULT, 2004a). Paralelamente, a moral antiga se diferencia da subjetividade cristã, no sentido de que esta depende da autoridade e validade de uma conversão à verdade, ou seja, da busca da verdade através da confissão, a qual tenta transformar o indivíduo em um outro, distante dos pecados e do mal (2014a).

Se imaginarmos a transposição de características éticas das práticas de si antigas para o contexto moderno, pode-se pensar em elementos normativos que indicam a possibilidade de um tipo de constituição subjetiva fora dos marcos jurídicos e do direito universal. Baseado nas análises da ética antiga, o ponto normativo central poderia ser valorizar um ethos que permitisse um mínimo de dominação, de modo a se ter jogos estratégicos abertos. Entretanto, toda ética, para Foucault, condiz com práticas inscritas historicamente que não podem ser vistas como exemplares de formas de emancipação prescritas para um agente moderno. Segundo Foucault (1982b), não se poderia encontrar exemplos ou soluções de problemas em recursos mobilizados, em outro momento histórico, por outras pessoas.

Importa notar, além disso, que as formas antigas mais difusas e individualizadas de constituição subjetiva não implicavam uma autonomia livre de condicionamentos, pois “[...] havia muito tempo que o cuidado do corpo e da saúde, a relação com a mulher e com o casamento, a relação com os rapazes, tinham sido motivo para a elaboração de uma moral rigorosa.” (2005, p. 233). Assim, Foucault assinala o erro de se supor que as práticas de si antigas indicariam uma liberação ou que poderiam refletir o encontro de uma natureza humana outrora alienada e aprisionada (2001f). Devido a suas características conjunturais, a ética antiga não poderia ter validade para transposição ou avaliação de outras realidades sociais (FOUCAULT, 1982b).

Embora refletissem maior grau de autonomia das práticas em relação às instituições e coerções que surgiriam posteriormente (FOUCAULT, 2001f), as culturas grega e romana não deixaram de codificar transgressões e definir consequências precisas para infrações (FOUCAULT, 2014a). Instituições judiciais, com permissões legais ou impedimentos, já se faziam presentes, e a filosofia era tratada como moralidade da vida cotidiana, com normas de conduta e descrições de bem e mal. Foucault (2005) nota exigências e austeridades prescritas pela moralidade antiga, como, por exemplo, os regimes medicamentosos, a fidelidade conjugal e a preocupação a respeito das relações homossexuais. Além disso, observa uma crescente “economia restritiva dos prazeres”, exemplificada pela desconfiança em relação aos prazeres, assim como a tendência progressiva a ver o casamento como local exclusivo de legitimidade da sexualidade (FOUCAULT, 2014b, p. 150-151). Tais prescrições, sobretudo a partir dos séculos I e II, refletem um quadro mais geral de atenção e vigilância. Foucault (2005, p. 50) chama atenção para o fato de que a “cultura de si” adquire um alcance bastante geral, e se torna, como prática social, não uma escolha, mas um imperativo para os indivíduos, impregnando as formas de viver. Ainda que distante da relação direta entre infração e verdade, criação essencial do cristianismo, havia no mundo greco-romano concepções de responsabilidade e culpa individuais.

Portanto, as práticas de liberdade daquele contexto, assim como em qualquer conjuntura histórica, só ocorrem em tensão com moralidades e com jogos de verdade existentes, mesmo que estes sejam institucionalizados em menor grau e envolvam certo escopo para escolhas pessoais ou de um grupo. Importante enfatizar, desse modo, a observação de Foucault (2001f) de que não há ética sem conhecimento e sem reprodução de verdades. Não seria o caso, portanto, de “[...] buscar atrás do cristianismo, no mito de uma Grécia clássica, uma espécie de era de ouro da liberdade sexual.” (FOUCAULT, 2014b, p. 158, tradução minha)3.

Relevante ressaltar que a concepção de liberdade, vinculada a uma noção de racionalidade, advinda do cuidado de si, é uma construção social e histórica, relacionada a práticas impostas pela cultura que envolve os sujeitos (2001f). O cuidado de si não é sugerido por Foucault como projeto universal de “autoconstrução” do indivíduo, de sorte que o sujeito, livre de amarras, poderia se constituir independentemente de seu contexto, como por vezes se supõe (cf. HOFMEYR, 2006; DOLAN, 2005; PATTON, 1989). No caso do pensamento antigo, a liberdade está associada também com uma prescrição, com uma obrigação, prevista por um saber e dirigida a sujeitos da elite social que devem se distinguir da maior parte da população, vista como incapaz de agir racionalmente nas circunstâncias que lhe são dadas4. Como Foucault mostra, a partir de Epicteto, o cuidado de si é tido por “[...] um privilégio-dever, um dom-obrigação que nos assegura a liberdade obrigando-nos a tomar-nos nós próprios como objeto de toda a nossa aplicação.” (2005, p. 53).

Se não houve, na antiguidade, codificação universal e legislação que determinava obediência ou renúncia dos sujeitos, definiu-se outra forma de normatização, a qual, baseada em saberes específicos, envolvia exames e exercícios predefinidos (FOUCAULT, 2005). Com isso, paulatinamente, em especial a partir do período romano imperial, acentua-se a questão da verdade e a busca de princípios universais da razão no processo de constituição dos sujeitos morais (FOUCAULT, 2005) – no caso da sexualidade, a definição de saberes que possibilitariam o domínio sobre os prazeres e aspectos sensoriais. Tendo em conta tal circunscrição moral, não parece razoável buscar no exame de Foucault da ética antiga uma promessa de liberdade que poderia ser transferida para outros contextos históricos. Além disso, diferentemente do exposto por alguns intérpretes (HOFMEYR, 2006), também não parece consistente supor uma contradição ou incoerência, no autor, entre as formas de dominação ou obediência, de um lado, e possibilidades de ação criativa e autoconstituição pessoal, de outro (cf. TOBIAS, 2005). Como veremos a seguir, as relações entre dominação e liberdade se constituem de maneira complexa e imbricada, e não como dimensões separadas.

Devido ao fato de a ética não poder ser separada de contextos variáveis de conhecimento e construção de subjetividades, parece-me fecundo observar possíveis relações entre liberdade e sentidos normativos em Foucault, não nos limites específicos da ética antiga, mas, sobretudo, em sua tese de uma inexorável conexão das práticas de liberdade com o poder, assim como em seus últimos trabalhos, que versam sobre potencialidades críticas do conhecimento. Dado que, em uma espécie de tensão irresolúvel, não há poder sem alguma dimensão de liberdade – de modo que, segundo Foucault, o poder só pode ser exercido sobre indivíduos livres –, a liberdade não pode ser pensada, ou valorizada normativamente, como domínio destituído de tensões contextuais e, portanto, não pode ser vinculada a uma construção exclusiva e autônoma dos sujeitos.


2 Formas de liberdade: crítica e resistências circunstanciadas

Retomando o caminho das obras de Foucault, desde seus trabalhos genealógicos dos anos 1970, enfocados no exame do poder, duas grandes linhas de reflexão sobre a questão da liberdade sobressaem. A primeira, articulada a preocupações que perpassam grande parte de sua obra, sugere um encadeamento inerente e complexo entre liberdade e poder. A segunda concebe a capacidade do exercício intelectual como meio de crítica e indutor de mudanças.

Diferentemente de noções modernas usuais de liberdade, a concepção de Foucault não condiz com a independência dos indivíduos perante coerções externas. Para o autor, nem as instituições políticas são exteriores aos indivíduos, nem a sociedade civil teria anterioridade em relação à política. O Estado não seria uma ameaça perene ou potencialmente crescente, como faz crer a tradição liberal. Além disso, não faria sentido a ideia de contrato, pelo fato de o poder não se originar de uma cessão de direitos a um poder soberano, o qual, por sua vez, se tornaria opressivo, se não respeitasse o pacto (FOUCAULT, 1997a, p. 17). Ao contrário da suposição de uma área isenta de coerções de instituições ou do Estado, a liberdade acarretaria a existência de relações de poder, e vice-versa. Sempre haveria, no corpo social, nas classes e indivíduos, algo que se evade de algum modo, “[...] um movimento centrífugo, a energia inversa, que escapa.” (FOUCAULT, 2001a, p. 421). “Se há relações de poder através de todo campo social, é porque existe liberdade em todo lugar.” (FOUCAULT, 2001f, p. 1539).

Foucault (2001f, p. 1529) sugere, todavia, uma dimensão temporalmente limitada das “práticas de liberdade”. Se é inegável que há momentos ou práticas de liberação, como quando um povo colonizado conquista sua independência, isso não implica que tais momentos tenham permanência, pois não seria um processo a se manifestar de forma contínua e progressiva. A oposição entre um sentido de liberação final, de um lado, e de opressão, de outro, seria desprovida de sentido, porque, salvo situações-limite de execução ou tortura, sempre haveria possibilidade de resistência e oposição nas relações (FOUCAULT, 2001d). Isso revela por que as ideias de soberania, em que indivíduos transferem seus direitos a um soberano, ou de repressão, que pressupõe uma condição efetivamente não repressiva, seriam inconsistentes (FOUCAULT, 1997a). A liberdade seria uma prática, um exercício, e não uma garantia definida por leis ou instituições (FOUCAULT, 2001d).

A promessa normativa de uma libertação final, um futuro sem impedimentos, tais seriam exemplos de discursos que acabam por reforçar redes de poder presentes (FOUCAULT, 1993). Foucault (1993) exemplifica essa articulação entre liberação e poder com a propagação da confissão, na modernidade. A confissão, em suas diferentes formas, supõe uma verdade que, antes sufocada, poderia ser liberada. Entretanto, o problema de tal definição seria a ausência de percepção de que a verdade é infiltrada pelas relações de poder que pretende desafiar. Não à toa, as lutas políticas desde o século XIX se regem em boa medida dentro dos marcos dos discursos prevalecentes, ou seja, por questões relativas ao corpo, à saúde, à felicidade ou a necessidades, temáticas que seriam reproduzidas em regulações existentes (FOUCAULT, 1993).

A realização de reversões pontuais, por sua vez, liga-se ao fato de a racionalização da sociedade não ser algo unívoco, sendo melhor analisar as racionalidades específicas em diferentes campos das sociedades (FOUCAULT, 1982a). Tal realidade política multifacetada articula-se com relações diversas de poder, as quais indicam várias formas de oposição locais. Foucault (1982a) sugere pensar as relações de poder através do antagonismo de estratégias existentes, como, por exemplo, a insanidade, a partir dos significados de sanidade, ou a ilegalidade, por meio das definições de legalidade. Nesse sentido, propõe o conceito de “lutas imediatas” ou “anárquicas” (FOUCAULT, 1982a, p. 211), em que os sujeitos questionam, ao invés de uma instituição ou inimigo central, situações que lhes são próximas.

A possibilidade de algo escapar ao poder se deve ao fato de que este é concebido, como se assinala várias vezes, não como uma propriedade, mas como uma relação vinculada a um campo de forças específico (FOUCAULT, 1997a). Lutas e resistências vinculam-se antes com a definição e possíveis reversões de limites, pois, “[...] mesmo que não possamos nunca estar ‘fora do poder’ não quer dizer que estamos de todas as formas aprisionados.” (FOUCAULT, 2001a, p. 425). Foucault (1982a) define poder como forma embasada em relações em que o “outro” é reconhecido e mantido como sujeito com capacidade de ação. Por conseguinte, diferentemente da violência, as relações de poder implicam a possibilidade de respostas, reações ou intervenções. Embora consentimento ou violências possam estar presentes, os princípios básicos dessas relações envolvem modos de ação sobre um sujeito atuante, já que “[...] o exercício do poder consiste em guiar a possibilidade de conduta e pôr em ordem os possíveis resultados.” (FOUCAULT, 1982a, p. 221). Nesse sentido específico, liberdade significa ser capaz de agir em uma variedade de sentidos, o que acarreta capacidade de desestabilizar direções e certa imprevisibilidade nas relações.

Já no início dos anos 1970, Foucault (2010, p. 23-25), fazendo referência a Nietzsche, articula noções de poder e liberdade com a definição de “emergência” (Entstehung), de modo que os contextos sociais estariam envolvidos, inexoravelmente, por uma cena variante de forças que se afrontam. Embora possam mudar seus conteúdos (obrigações, procedimentos, regras e direitos), repetem-se indefinidamente confrontos, de sorte que “[...] classes dominam classes e é assim que nasce a ideia de liberdade.” (FOUCAULT, 2010, p. 25). Se o poder se apoia, dependendo da modalidade ou mecanismos específicos, em sujeitos, estes “[...] em sua luta contra esse poder, apoiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança.” (FOUCAULT, 1997b, p. 26). Dada a ausência de uma concepção de libertação final, as práticas de liberdade configuram-se como momentos específicos que prescindem de fundações ou locais seguros (SIMONS, 1995).

Um melhor entendimento dessa noção de liberdade de Foucault pode ser obtido, notando-se a diferenciação entre as concepções de relações de poder e contextos de dominação. Enquanto as primeiras pressupõem tentativas de condução de outros agentes que portam certa liberdade, a dominação se apresenta como estratégia unitária que tende a esvaziar a liberdade (FOUCAULT, 2001a, 2010). Na dominação, os procedimentos, embora locais e dispersos, podem ser reajustados e reforçados por “estratégias globais” que reproduzem mecanismos de estabilização de comportamentos. Nesses casos, a relação passa a ser fundamentada na impotência ou razoável previsibilidade da conduta dos outros. Como Foucault (1982a, p. 225) assinala, “[...] toda intensificação, toda extensão de relações de poder para fazer com que os insubordinados se submetam só pode resultar nos limites do poder.”

No caso das relações de poder, a imprevisibilidade reflete a possibilidade de resistência, ou seja, as relações permanecem tensas e têm de ser refeitas. Nenhuma relação de poder é garantida por si mesma, assim como nenhum poder possui legitimidade intrínseca. Segundo Foucault (2014a), o poder situa-se em um contexto de contingência e de fragilidade, e seus fundamentos em saberes e verdades não podem ser tomados como instâncias dotadas de essência ou universalidade. Mesmo que não exista exercício do poder, sem uma economia dos discursos de verdade, tais regimes estão em contínua luta e rearticulações dependentes das circunstâncias (FOUCAULT, 1997a, 2004b, 2014a). Por conseguinte, resistir não significa um ponto epistemológico superior, mas um ativismo que busca reordenações precisas de alinhamentos epistêmicos presentes.

Outra direção desenvolvida por Foucault quanto às possibilidades de liberdade refere-se ao trabalho crítico do pensamento. Embora a temática da reflexão crítica, em Foucault, seja lembrada, sobretudo, pelos trabalhos de seus últimos anos, é possível perceber considerações do autor sobre o papel do conhecimento como fundamento crítico, em obras anteriores. Como exemplo, pode-se tomar sua análise – de meados da década de 1970 – das “contra-histórias” (1997a), as quais, desde a passagem do século XVI para o XVII, apontariam para desigualdades e injustiças. As contra-histórias, ou “histórias de insurreição” (1997a, p. 68), teriam estimulado ideais de revolução e seriam marcadas pela reivindicação de direitos não previstos pelos arranjos estatais, que, por sua vez, buscam se legitimar pela ideia de uma soberania transferida pelos indivíduos.

Tal concepção de história baseia-se no apontamento da guerra como fato perene das relações sociais, sinalizando poderes que buscam ocultar a condição dessa guerra e envolvem uma estratégia teórica que pode ser usada na luta política: “A história nos traz a ideia de que estamos em guerra, e fazemos a guerra através da história”5 (1997a, p. 153, tradução minha). Esse saber histórico, ou “historicista-político”, se contrapõe a teorias jurídico-contratuais e conta uma história fora dos marcos estatais (FOUCAULT, 1997a). Não é mais uma história do Estado sobre o próprio Estado, mas outro saber que desloca o relato e a memória, revelando novos sujeitos locais e ofensivas dispersas.

Em cursos mais tardios, Foucault (2014a) indica as disputas de conhecimentos presentes nas sociedades, de sorte a se distanciar de uma oposição entre verdade e falsidade, ou entre científico e não científico. Pode-se ter, portanto, uma profusão de saberes que questionam instituições e discursos preponderantes. Foucault retoma, então, a tese do caráter local ou regional dessas críticas, distantes de um regime comum e unificado. Contudo, Foucault (1997a, p. 8) enfatiza que tais questionamentos também não se encontram totalmente desvinculados de ordenamentos funcionais. Nesse caso, as críticas surgem como “retornos de saberes”, quando conhecimentos desqualificados, tidos antes como inferiores ou pouco elaborados – e que são ocultados por ordenamentos sistematizados ou pela “disciplinarização dos saberes” (1997a, p. 154)6 – passam a ser incorporados por juízos contestadores.

Foucault (2004a, p. 5) defende que mesmo sua própria análise nada mais seria, em um dado campo de forças, que apontamentos de pontos-chave ou de bloqueios, ou seja, um tipo de pensamento que visa a indicadores táticos para as lutas. “Saberes das pessoas” (savoir des gens) são incorporados nas críticas especializadas e eruditas, as quais, com base na história e na pesquisa genealógica, poderiam produzir a descoberta ou a memória de lutas ocultadas ou depuradas nos discursos e teorias do conhecimento bem estabelecido. Nesse caso, a genealogia teria a capacidade de ser “[...] uma espécie de empreendimento para desassujeitar os saberes históricos e os tornar livres, ou seja, capaz de se opor e lutar contra a coerção de um discurso teórico unitário, formalizado e científico.”7 (1997a, p. 11, tradução minha). Ao contrário de contrapor conhecimento à ignorância, Foucault (1997a) sugere perceber as disputas entre duas formas de saber, cada qual com sua própria morfologia: de um lado, a história das ciências vinculada ao discurso filosófico-jurídico e, de outro, a historicista, que confronta os poderes formalizados.

Importante observar que o viés crítico de Foucault a formas de saber globais já pode ser visto desde sua “fase” arqueológica (FOUCAULT, 2004c). Embora a temática das relações de poder e da liberdade, tal como concebida em trabalhos ulteriores, não tivesse papel que viria a ter, Foucault já desenvolvia críticas às noções de história ligadas a certos conceitos globalizantes, como “desenvolvimento”, “consciência coletiva”, “espírito” e “evolução”. Problema central dessas formas de fazer histórico seria reagrupar a irredutível dispersão dos acontecimentos a um mesmo princípio organizador, de maneira a controlar os movimentos do tempo, através de jogos de semelhanças ou noções que envolvem origens e futuros predeterminados.

Uma das possibilidades do pensamento crítico seria examinar formas de “contraconduta” (FOUCAULT, 2004a, p. 205), conceito que reflete o caráter ativo das táticas dos movimentos, ao se oporem às conduções comportamentais mais difundidas. Uma das contracondutas de relevância histórica examinada por Foucault (2004a) – que acabou por formar posteriormente novo discurso prevalecente – refere-se ao pensamento econômico nascente do século XVIII, o qual se opunha à razão de Estado da época e passaria a sugerir um equilíbrio natural proveniente dos interesses particulares. Tal movimento seria exemplar para mostrar, porém, como a crítica tem o potencial de gerar mudanças circunstancias, mas também constituir nova formação discursiva e novas relações de poder. Frente ao modelo de soberania então prevalecente, desde o século XVI, baseado na obediência aos imperativos do Estado e no modelo mercantilista, ganha destaque dois séculos depois o ideário de direitos essenciais da sociedade civil, ente que passa a ser concebido como portador de verdade (FOUCAULT, 2004b).

Em um de seus últimos e mais célebres textos, Foucault (2001e) trata da possibilidade de crítica fundamentada em um ethos filosófico. Nesse sentido tardio de sua obra, propõe entender a crítica como fazer prático que pode superar, em parte, condições contextuais dadas. Compreendendo a modernidade como uma atitude ou escolha voluntária de agir e pensar, Foucault sugere ali que essa tarefa seria feita por sujeitos singulares. Referindo-se a Baudelaire, Foucault (2001e, p. 1388-1389) contrapõe a “atitude moderna” – baseada em um olhar crítico, original e criativo sobre o presente, de forma a imaginá-lo de outro modo – à ação do flâneur, que apenas coleta das condições presentes um prazer fugidio das circunstâncias.

Tendo em conta a atitude moderna, e diferentemente da busca kantiana para definir limites do conhecimento e procurar estruturas formais universais, Foucault indica a crítica como superação do que é dado como necessário ou obrigatório. Pode-se configurar, então, um ethos filosófico caracterizado como crítica permanente de nosso ser histórico (FOUCAULT, 2001e). A crítica prática não almejaria uma metafísica, o cerne da racionalidade ou a liberação de uma essência humana, mas o exame dos acontecimentos, de forma que se torne possível não mais ser, fazer e pensar o que circunstancialmente somos, fazemos e pensamos (FOUCAULT, 2001e). Portanto, se há possibilidade de se transformar, essa oportunidade depende do exame estritamente histórico das circunstâncias, que definem limites precisos das direções que podem ou não ser factíveis. De acordo com Foucault (2001c), a noção de experiência-limite com a qual se identificava, fundamentada em Nietzsche, Blanchot e Bataille, não teria relação com o encontro de um sujeito fundador ou com a sua própria experiência, a fim de apreender suas significações. A experiência-limite estaria vinculada a uma intensidade e a uma impossibilidade que encontra demarcações contingentes8.

De toda forma, não reproduzindo verdades, a produção intelectual crítica poderia gerar capacidade de des-subjetivação e o questionamento de certas perspectivas discursivas. É o reconhecimento dos mecanismos de exercício do poder que permite, aos que estão neles imersos, resistência, escape e transformação (2001c). Do ponto de vista normativo, para que não se configure como “exercício vazio de liberdade” (2001e, p. 1393), a crítica deve tanto se pautar na pesquisa histórica – genealógica, em seus fins, e arqueológica, em seus métodos – das contingências que nos constituem quanto se colocar à prova da realidade e do presente.

Assim, seria necessário saber onde há possibilidade de mudança e definir “[...] a forma precisa desta mudança.” (2001e, p. 1393). Na medida em que se insere em limites contingentes, a liberdade se caracteriza como um trabalho indefinido e não pode ser apropriada, tendo um sentido experimental. Por conseguinte, não pode ser entendida como parte de projetos completos e radicais, em que efetivamente se teria um novo modo de pensar ou uma outra sociedade (FOUCAULT, 2001e).

Portanto, se buscarmos associar a reflexão de Foucault sobre a liberdade a possíveis parâmetros normativos de sua obra, percebe-se que a “ontologia crítica de nós mesmos” de seus últimos escritos mantém a suposição da direção da liberdade de trabalhos anteriores, ou seja, como exercício ligado a transformações pontuais das relações de poder e dos modos de pensamento. A liberdade é caracterizada como prova histórico-prática dos limites que podemos superar em determinados contextos, uma posição situada nas fronteiras do presente (2001e). A crítica seria precisamente a análise dos limites, de maneira que se torne possível a travessia destes9.

A questão da liberdade e das potencialidades da crítica na obra do Foucault – circunstanciada contextualmente e envolvida em torno de duas direções situadas para além dos limites de sua análise da ética antiga, como argumentado acima – suscita reflexão sobre questões normativas de sua obra, ou seja, como seus trabalhos refletem sobre a capacidade do conhecimento ou dos sujeitos avaliarem e justificarem alternativas das condições existentes. Na medida em que o autor valoriza ações e conhecimentos parcialmente livres em relação ao ambiente disciplinar-governamental, o qual, a princípio, parece apresentar poucas saídas aos sujeitos, a questão da liberdade implica o exame do próprio exercício filosófico e de seus efeitos normativos. A questão torna-se mais premente, devido ao fato de Foucault (2014b, p. 237) entender os jogos de verdade do conhecimento não como meras representações ou reflexos de um real, mas como geradores de efeitos, que vão desde o deslocamento de relações sociais até a reprodução racionalizada de condições existentes.


Comentários finais: liberdade e temperança normativa

O debate normativo a respeito de Foucault foi lançado por Taylor (1996) e Fraser (1981)10. Em termos gerais, ainda que sinalizem para o valor das análises, ambos asseveram que sua obra se atém à neutralidade e prescinde de sentido normativo. Habermas (2000, p. 343-344) contesta o isolamento monológico dos sujeitos pressupostos por Foucault, sempre tidos como objetos, restritos a uma observação impassível e incapazes de entendimento intersubjetivo. Nesse sentido restrito, não se apresentaria a complexidade dos processos modernos de racionalização, os quais implicariam tanto instrumentalização quanto usos político-práticos da razão. Fraser (1981) argumenta que a tentativa de Foucault de suspender o modelo normativo moderno, baseado na legitimidade ou não do poder, se mantém impreciso, na medida em que não distingue sua crítica das noções liberais de direitos, soberania e contrato do questionamento mais geral de qualquer forma de poder. Segundo Fraser (1981, p. 285-286), tal imprecisão seria resultado da falta de nitidez da noção de poder de Foucault, que frequentemente incorporaria fenômenos distintos, como submissão, dominação e coerção, em um mesmo conceito.

Entretanto, tendo em conta os apontamentos que busquei enfatizar a respeito das questões necessariamente contingenciais da liberdade e das resistências, tais críticas não me parecem dar conta de todas as direções propostas por Foucault. Mesmo que a suposição da difusão de relações de poder em todas as práticas impeça a definição de fundamentos normativos gerais de legitimidade ou validade, sua problematização da liberdade evidencia possíveis critérios para os sujeitos justificarem e avaliarem suas condições pontuais, mesmo que estas estejam, em boa parte, envolvidas por uma realidade discursiva abrangente. Parece-me que Foucault não produz parâmetros normativos sistemáticos justamente porque entende que a dimensão do conhecimento, da qual afinal sua própria reflexão faz parte, deve ser austera, cuidadosa de não postular elementos fundacionais e axiomáticos. Caberia ao próprio movimento agonístico das relações de poder e do conhecimento a tarefa de avaliação crítica de um contexto. Considerando as características de sua concepção de liberdade, isso condiz com o que se pode denominar “temperança normativa”11. Há dois aspectos em sua obra que, a meu ver, embasam essa visão.

O primeiro, condição para o exercício da liberdade e atividade crítica, seria a diferenciação, debatida acima, entre contextos de dominação e conjunturas envolvidas por relações de poder. Sobre os “estados de dominação”, Foucault (2001f) indica a necessidade de separá-los de contextos caracterizados por formas de poder não exaustivas e portadoras de algum grau de liberdade. Dependendo de cada contexto, há a possibilidade de observarmos práticas de liberdade ou “estados de dominação” fixos, os quais não permitem estratégias contrárias (2001f, p. 1530). Foucault (2001f, p. 1546) sugere, portanto, que o questionamento da distância em relação a um estado de dominação, em qualquer área social ou política, é requisito essencial para os sujeitos gerarem avaliações ou justificarem contextos, formas de direito e éticas que possibilitem maior escopo de reversões, resistências e práticas de liberdade. Pode-se definir, então, critérios normativos para avaliar condições com mais ou menos liberdade.

O segundo aspecto da temperança normativa de Foucault seria a defesa intransigente, repetida extensivamente, de que a ação crítica e livre não poderia condizer com suposições de “liberação” final e de reencontro dos sujeitos com sua natureza ou com uma verdade definitiva. Há, nesse fator, a busca de Foucault por circunscrever possíveis teses normativas em limites precisos. Tal direção se deve ao fato de que as ações livres nunca poderiam se desprender das relações de poder que as envolvem. Assim, o sentido normativo da genealogia – conhecimento sobretudo histórico – limita-se a relativizar relações entre saber, poder e verdade preponderantes, tidas a princípio como inescapáveis. A crítica e a genealogia devem contentar-se a indicar a movimentos políticos atuais a percepção de mudanças factíveis de dada realidade. Nesse sentido, Foucault (1982b, p. 232) caracteriza a relação entre suas análises e a prática como uma espécie de “ativismo pessimista”.

Sobre grandes revoltas, como a revolução do Irã, Foucault (2001b) reproduz sua visão da ilusão de uma liberação final. Revoltas ou revoluções podem provocar mudanças efetivas, pois, se os poderes nunca são absolutos, há sempre a possibilidade de que caiam (FOUCAULT, 2001b). Contudo, as relações de poder não estariam “acima” ou desconectadas da sociedade e nem poderiam ser derrubadas permanentemente, já que enraizadas em vínculos sociais (1982a, p. 222). Em geral, a modificação das relações de poder pressupõe limitações e contragolpes, os quais motivam o desenvolvimento de novas redes de poder (2001a, p. 421).

Portanto, tendo em conta essa suposição de movimento ininterrupto dessas relações, que não indica progresso ou direção teleológica, Foucault (2001e) mantém uma postura normativa vinculada a transformações parciais e localizadas até seus últimos escritos, inclusive em sua revisão da crítica kantiana (2001e) e na proposta de um ethos filosófico embasado na análise histórica de nossos limites. Em ambas as análises, conserva a opinião de que programas abrangentes de grandes transformações, de fundações de outras sociedades e culturas reconduziriam a tradições ou a novas formas de poder.

Patton (1989, p. 267) observa a singularidade da concepção de liberdade de Foucault, no sentido de não se tratar da defesa de um aparato institucional que preserve certa área para agentes conscientes de seus desejos e capazes de escolhas autônomas – como se expressa na noção liberal de liberdade negativa e em suas tensões com a dimensão positiva –, mas de uma ação que, articulada ao próprio poder, por vezes gera resistências e possui abertura para diferentes possibilidades. Tendo em vista a variabilidade de direções concebíveis propostas pelos sujeitos, circunstanciados social e historicamente, não pode haver sentido normativo único e predeterminado. Foucault não propõe uma teoria do sujeito ou do conhecimento, e suas noções de agência e crítica se apresentam sempre em tensão com as dimensões conjunturais.

Os dois aspectos aqui destacados sugerem que o exame do exercício intelectual e da liberdade elaborado por Foucault, tanto em sua definição de critérios contrários a situações de dominação quanto a sua observação de limites aos saberes críticos, indicam a necessidade de temperança do sentido normativo do conhecimento. Se o trabalho crítico pode sinalizar enganos ou incoerências de realidades específicas, o movimento de ação caberia, exclusivamente, aos sujeitos e a um coletivo. Todavia, os perigos das vontades de verdade em instituir novas redes de poder se fazem sempre presentes, o que caracteriza, segundo Foucault, o sentido paradoxal do conhecimento ou da liberdade e a necessidade de frugalidade normativa.


Contextualized freedom and normative meanings in Foucault


Abstract: The topic of liberty in Foucault becomes controversial when related to the objections, predicted by the author, for the subjects to be located outside the power networks. However, Foucault also points out potential for resistance and a notion of freedom involved by historical circumstances, which suggests original normative questions. In order to analyze the tension between domination and freedom in his work, and what is normatively reflected, two main directions are noted: the idea of freedom as something inherent in power relations and as the foundation of the critical exercise of knowledge. It is argued that Foucault`s estimation of dimensions of freedom generates singular implications of evaluation of social conditions based on a normative temperance.

Keywords: Foucault; Liberty. Domination. Normative Theory.


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Recebido: 22/08/2022

Aceito: 24/02/2023


1 Este artigo faz parte do âmbito de pesquisa que conta com auxílio concedido pela FAPERJ.

2 Professor Associado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5239-1443. Email: brunosci@msn.com.

3 “[…] chercher derrière le christianisme, dans le mythe d’une Grèce classique, un certain âge d’or de la liberté sexuelle.

4 As práticas de liberdade antigas dependiam de um contexto político que circunscrevia o exercício ético apenas aos homens e aos não escravos (FOUCAULT, 2001f, p. 1533; 1982b, p. 232). A ética e a liberdade antigas envolveriam, por conseguinte, desde seus fundamentos sócio-históricos, questões diretamente políticas.

5L’histoire nous a apporté l’idée que nous sommes en guerre, et nous faisons la guerre à travers l’histoire”.

6 Foucault (1997a, p. 160-164) focaliza processos pelos quais o Estado intervém, de modo a tentar controlar os saberes, especialmente através da desqualificação e normalização de outros conhecimentos tidos por inúteis, além da reprodução de centralização e extensa classificação hierárquica.

7 “[...] une sorte d’entreprise pour désassujettir les savoirs historiques et les rendre libres, c’est-à-dire capables d’opposition et de lutte contre la coercition d’un discours théorique unitaire, formel et scientifique”.

8 Relacionada com essa crítica de nosso ser histórico, baseada no ethos que possa desafiar as circunstâncias, Foucault (2008, p. 22) também propõe o conceito de “ontologia do presente”. A escolha por esse tipo de ontologia e filosofia crítica permitiria observar mais detidamente as condições históricas de nossas experiências e as possibilidades de se transformar e se autoconstituir. Paralelamente, propiciaria notar as limitações conjunturais de tal direção. A ontologia do presente, ou “ontologia de nós mesmos”, evidencia como o exercício da liberdade não pode ocorrer em um vazio, mas inserido nas possibilidades postas historicamente.

9 As potencialidades do pensamento crítico, como atitude-limite, condizem com a análise de Foucault (2008) sobre a parrhēsíā grega. Embora aponte para as tensões, no sentido de o saber filosófico se definir, muitas vezes, em procedimentos de controle dos discursos, Foucault (2008) valoriza o sentido positivo da parrêsia, do ato corajoso, potencialmente custoso, de buscar “dizer a verdade”, o que envolve uma situação aberta e imprevisível. Assim, o dizer a verdade, ainda que comporte riscos, refletiria o “exercício corajoso da liberdade” (FOUCAULT, 2008, p. 64). No plano político, a parrêsia acarreta jogo agonístico em que os que obedecem em certo ponto possuem a liberdade de emitir outras falas.

10 Para análise desse debate, ver Mayes (2015).

11 A escolha do termo “temperança” aqui não é fortuita, pois remete a características das práticas de si ressaltadas por Foucault, em seus estudos da ética antiga.