Leis de ponte na Filosofia da Mente e nas Ciências Físicas


Osvaldo Pessoa Jr.1


Resumo: No debate sobre a redutibilidade da mente ao corpo, argumenta-se que não é plausível supor que tal redução possa se dar apenas a partir das condições físicas basais, mas que é necessário levar em conta também as leis de ponte psicofisiológicas. Essa posição é geralmente considerada antirreducionista, na Filosofia da Mente, mas se prefere aqui chamá-la de “reducionismo indutivo”, devido à analogia com duas outras formas de determinação nas Ciências Físicas: o determinismo causal e o reducionismo escalar espacial. A discussão é feita com base em “sondas epistemológicas” abstratas, como o demônio de Laplace, o demônio escalar e o demônio psicofisiológico. Critica-se também a noção de causalidade sincrônica usada por Searle.

Palavras-chave: Problema mente-corpo. Reducionismo. Emergência. Leis de ponte. Lacuna explicativa. Causalidade sincrônica.


Introdução

A discussão sobre reducionismo, na Filosofia da Mente, versa principalmente sobre a questão de se os estados mentais podem ser explicados somente a partir da base física (chamado por Kim de “reducionismo teórico”), ou se são necessárias leis de ponte psicofisiológicas, a serem descobertas de maneira empírica (“reducionismo indutivo” ou emergentismo fraco). Por outro lado, na discussão sobre reducionismo entre escalas das Ciências Físicas, a ênfase não está no caráter empírico das leis de ponte, mas em questões mais pragmáticas de dedutibilidade matemática em face de não linearidades.

Após fazermos essa comparação, apresentamos a analogia entre a relação de determinação na dimensão temporal (a causalidade e o determinismo) e a relação de determinação na dimensão escalar espacial (reducionismo). No caso da determinação temporal, o análogo das leis de ponte são as leis de evolução temporal da mecânica, cujo estabelecimento é claramente independente do estado inicial. Examinando o caso da determinação na escala espacial, argumentamos que, nesse caso, é essencial levar em conta as leis de escala, as quais funcionam como leis de ponte. Assim, levando adiante a analogia com as duas situações das Ciências Físicas, conclui-se a favor da tese do reducionismo indutivo na relação mente-corpo.


1 Materialismo e superveniência

Consideremos o experimento mental da duplicação material humana perfeita (PESSOA, 2010), em que uma cópia material perfeita é feita de uma determinada pessoa em um certo instante, juntamente com o ambiente à sua volta. A primeira questão a ser colocada é se a cópia teria consciência ou não. A resposta afirmativa define a posição “materialista”, e a negativa, a posição “espiritualista” (ou o dualismo de substância). Tendo em vista a resposta materialista, uma segunda questão pode ser colocada: no instante da criação, quando os estados materiais têm identidade de propriedades, os estados mentais dos dois também teriam todas as propriedades mentais idênticas? A resposta positiva define a posição que aceita a tese da superveniência da mente ao corpo.

Aceitando essa posição, a terceira pergunta a ser feita é: qual é a natureza da relação de superveniência entre o mental e o fisiológico? Será que a consciência pode ser “reduzida” ao estado físico-químico do corpo? Será que, em tal redução, devemos associar um protopsiquismo às partes do encéfalo? Ou será que a mente possui algum tipo de autonomia irredutível, de maneira que se falaria que a mente “emerge” do corpo material, sem ser redutível a este? Para analisar essa questão e definir mais precisamente o que significa “redução” e “emergência”, apresentaremos um outro experimento mental, envolvendo o “demônio psicofisiológico”.


2 O demônio psicofisiológico

Em sua discussão sobre a tese da superveniência da mente ao corpo, a qual chamou de “paralelismo psicofisiológico”, Henri Bergson ([1904] 1974, p. 163) a caracteriza de diversas maneiras.

Para fixar as ideias, formularíamos a tese da seguinte maneira: “Sendo dado um estado cerebral, segue-se um estado psíquico determinado”. Ou ainda: “Uma inteligência sobre-humana, que assistisse ao movimento dos átomos de que é feito o cérebro humano e que tivesse a chave da psicofisiologia, poderia ler, num cérebro trabalhando, tudo o que se passa na consciência correspondente”. Ou enfim: “A consciência não diz nada mais do que se passa no cérebro; ela apenas o exprime numa outra língua”.


A primeira formulação se ajusta à definição que demos de superveniência, desde que o termo “segue-se” seja entendido em um sentido ontológico, no qual um domínio “fixa” o outro. Já a segunda caracterização vai mais além, pois ela exprime a possibilidade de que a passagem de um domínio para outro possa ser traçada racionalmente.

O recurso a uma “inteligência sobre-humana” já tinha precedentes, na filosofia da ciência, quando o físico Pierre-Simon de Laplace caracterizou um universo determinista como aquele no qual, para uma inteligência superior, “[...] nada seria incerto e o próprio futuro, assim como o passado, estariam evidentes a seus olhos.” (Laplace, [1814] 2010, p. 43).

Podemos caracterizar o “demônio de Laplace” como um ser abstrato que possuiria pelo menos quatro atributos: (i) Onisciência instantânea: conheceria o estado de todo o Universo em um instante do tempo, em todas as escalas (micro, macro etc.), com resolução e acurácia perfeitas; (ii) Erudição nomológica: conheceria com exatidão todas as leis que regem o Universo; (iii) Supercomputação: seria capaz de realizar o cálculo mais complicado em um intervalo de tempo insignificante; (iv) Não distúrbio: a atuação do demônio não afetaria em nada o funcionamento do Universo. Com essas quatro propriedades, pode-se definir o “determinismo estrito” da seguinte maneira: se o demônio de Laplace partir do conhecimento do estado atual do Universo e fizer uma previsão sobre qual será o estado exato do Universo, depois de um certo tempo t, então, se ele sempre acertar 100% de suas previsões, o Universo será determinista, se não, será tiquista (indeterminista) (PESSOA, 2012).

O demônio psicofisiológico pode ser caracterizado de maneira semelhante. Ele atuaria sem provocar distúrbio (iv) e teria a capacidade de supercomputação (iii). Porém, no item (ii), não é preciso incluir o conhecimento das leis causais do Universo, pois o demônio psicofisiológico atuaria de maneira sincrônica, em um instante temporal ou em um intervalo muito pequeno de tempo. Ele conheceria todas as leis psicofísicas (às vezes, chamadas de “leis de ponte”, que Bergson descreve como “a chave da psicofisiologia”, leis das quais temos ainda um conhecimento muito parco), ou seja, as leis que correlacionariam uma configuração material do corpo vivo (tomada em todas as suas escalas físicas, indo do mais micro para a escala macro do corpo) com um estado mental. Podemos chamar a esse item de “erudição nomológica psicofísica”.

Por fim, o item (i) poderia ser mantido, correspondendo a uma base de superveniência igual a todo o universo; por outro lado, se escolhermos restringir a base de superveniência ao corpo, então o item (i) poderia ser simplificado, de sorte que o demônio teria conhecimento exato apenas de todo o corpo material orgânico (em todas as suas escalas físicas). Uma simplificação adicional seria interessante de investigar: será que a base de superveniência física poderia ser restrita a uma dada escala (molecular, celular ou tecidual)?

A aplicação do demônio de Laplace ao problema mente-corpo já era comum, na época de Bergson, sendo sugerida, por exemplo, por Emil du Bois-Reymond (1874, p. 26-27):

Em nossa incapacidade para compreender matéria e força, o conhecimento astronômico de um sistema material é o conhecimento mais completo que podemos esperar adquirir dele. Com isso, nosso instinto de causalidade está acostumado a ser satisfeito, e este é o tipo de conhecimento que seria possuído mesmo pela Inteligência imaginada por Laplace, se ela fizesse uso de sua fórmula universal. [...] Seria profundamente interessante se pudéssemos assim, com os olhos da mente, [...] dizer que jogo de carbono, hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, fósforo e outros átomos corresponde ao prazer que vivenciamos ao ouvir sons musicais; [...] Mesmo assim, no que tange às próprias operações mentais, está claro que mesmo com o conhecimento astronômico do órgão mental, elas seriam tão ininteligíveis quanto são agora.


Nota-se que a citação termina com a admissão de uma “lacuna explicativa” (LEVINE, 1983).2 Tal posição violaria um reducionismo mais forte, a ser chamado REDUCIONISMO-1, mas é consistente com uma forma mais branda, REDUCIONISMO-2, na qual a lacuna é coberta por princípios não explicados a serem descobertos empiricamente. Esta última posição não é geralmente chamada de “reducionismo”, na discussão contemporânea de Filosofia da Mente (ver, por exemplo, Howell; Alter, 2009), mas argumentaremos que esse termo é apropriado, a partir das analogias com a situação nas Ciências Físicas, utilizando experimentos mentais envolvendo “sondas epistemológicas” (PESSOA, 2012), ou seja, diferentes “demônios”, como o laplaciano, o psicofisiológico e o escalar.


3 Três posições a respeito do reducionismo psicofisiológico

Caracterizado o demônio psicofisiológico, podemos fazer a seguinte pergunta: se o demônio conhecer o estado material exato de um corpo orgânico, ele “poderia ler tudo o que se passa na consciência correspondente”?

Uma resposta positiva pode ser classificada de reducionista, ou seja, um mundo no qual o demônio psicofisiológico seria capaz de “prever” o estado detalhado da mente (no mesmo instante), com base no conhecimento completo do corpo. No exemplo de Bergson, tal demônio teria também “a chave da psicofisiologia”, ou seja, conheceria todas as “leis de ponte” que ligariam estados materiais e estados mentais. Supondo um mundo em que isso ocorre, se de fato o demônio previsse corretamente tudo a respeito dos estados mentais, teríamos um mundo com redução às condições basais mais leis de ponte, que iremos chamar de REDUCIONISMO-2 ou “reducionismo indutivo” (seguindo Kim, 1999, p. 8, que usa os termos “previsibilidade indutiva” e “previsibilidade teórica”; ver citação abaixo).

Suponha-se agora que o demônio não tenha posse do conhecimento das leis de ponte (ou seja, não satisfaça o item ii da sua definição): conseguiria ele prever os estados mentais apenas a partir das condições basais (sem leis psicofisiológicas adicionais)? Um mundo onde isso ocorresse teria REDUCIONISMO-1, ou “reducionismo teórico”. Para que essa forma mais forte de reducionismo valesse, seria preciso que as leis de ponte estivessem, de alguma forma, contidas nas condições basais.

Jaegwon Kim (2006, p. 553) considera essa possibilidade e sugere que uma “redução funcionalista” poderia satisfazer a redução a apenas as condições basais (Reducionismo-1), pois o que se busca num projeto de redução funcionalista é caracterizar um estado mental, como dor, em termos de comportamento e de causas que regem a base de realizadores da mente (independentemente da natureza do substrato).

Kim não concebe que o REDUCIONISMO-2 seja de fato “reducionismo”, atribuindo essa concepção (de que o REDUCIONISMO-2 não é reducionismo) a emergentistas, como C. D. Broad:

O que se exige de uma explicação e previsão que vai além da mera superveniência ou determinação? Emergentistas estavam bastante cientes de que há um sentido em que a ocorrência de um fenômeno emergente pode ser prevista. Considere uma inferência como a seguinte:

As fibras C de Jones serão estimuladas em t.

Qualquer um cujas fibras C são estimuladas terá a experiência de dor.

Portanto, Jones terá a experiência de dor em t.

Isso pode ser chamada de previsão “indutiva” de dor – baseada em nosso conhecimento indutivo da correlação entre dor e estimulação de dor/fibra C. Deve ficar claro por que uma previsão de dor desta espécie não irá impressionar um emergentista que pergunta: “Pode um fenômeno emergente ser previsto com base no conhecimento de suas condições basais?” O que está errado com a mencionada previsão de dor é que a base de evidência, na segunda premissa da inferência, faz uso de conhecimento de fatos que vão além daqueles no nível basal; ela supõe conhecimento da “lei de emergência” que liga dor e estimulação da fibra C. (KIM, 2006, p. 551).3


Uma terceira posição negaria que o demônio pudesse prever o estado detalhado da mente, mesmo com conhecimento das leis de ponte disponíveis na natureza. Se tal concepção aceitar a tese da superveniência da mente ao corpo, teríamos um materialismo com “emergentismo forte”. Por fim, haveria posições que negam a tese da superveniência da mente ao corpo, as quais podem ser ainda materialistas ou então espiritualistas (dualistas de substância), como a posição de Bergson.


4 Analogia com a determinação causal

A definição do demônio psicofisiológico, para a relação de determinação sincrônica entre o domínio físico e o mental, foi feita por analogia à definição do demônio de Laplace, para a relação de determinação temporal entre estados do Universo, em dois instantes diferentes. Há também uma terceira situação de interesse, a qual é a determinação sincrônica entre diferentes escalas espaciais do domínio físico, explorada em Pessoa (2012). A Tabela 1 faz um resumo dessa situação para os três “quadros-gerais” (frameworks, ou dimensões) mencionados: temporal, escala espacial e corpo-mente. Deixamos de lado aqui a dimensão espacial e a escala temporal, discutidas em Pessoa (2012).


Tabela 1 – Analogias entre três quadros-gerais com respeito à relação de determinação e leis de ponte

Quadro-geral

Tempo

Escala espacial

Corpo-mente


Quadros (fatias)

Instantes ou intervalos temporais arranjados continuamente.

Fatias de escala espacial arranjadas continuamente.

Dois quadros discretos:

corpo e mente.

Relação de determinação

Causalidade.

Redutibilidade.

Relação mente-corpo.

Correlação estrita

Determinismo estrito.

Superveniência do macro ao micro.

Superveniência da mente ao corpo.


Leis de ponte

Leis dinâmicas

(2ª lei de Newton,

eq. de Schrödinger etc.)

Leis de transição de escala espacial.


Leis psicofisiológicas.

Fonte: Elaboração nossa


Na seção anterior, distinguimos duas posições reducionistas no problema mente-corpo, dependendo de se o demônio psicofisiológico poderia prever o estado mental (1) apenas a partir do conhecimento completo das condições físicas basais, sem necessidade de conhecer as leis de ponte psicofisiológicas (reducionismo teórico), ou (2) se ele necessitaria também conhecer as leis de ponte (reducionismo indutivo).

Fazendo a analogia com o quadro-geral temporal, a relação de determinação temporal entre um certo instante e um instante posterior é claramente dada pelas equações dinâmicas das teorias físicas relevantes. O demônio de Laplace só pode acertar suas previsões sobre o futuro, se ele conhecer essas leis dinâmicas. Assim, se a analogia com o quadro-geral corpo-mente se mantiver, seria necessário para o demônio psicofisiológico conhecer as leis de ponte, a fim de acertar suas previsões.


5 Determinação na escala espacial

No caso do quadro-geral da escala espacial, a questão análoga é se um demônio escalar, que conhece o estado nanoscópico do Universo, consegue prever o comportamento de qualquer coisa macroscópica. Ele é definido de maneira análoga ao demônio psicofisiológico. Ele atuaria sem provocar distúrbio (iv) e teria a capacidade de supercomputação (iii). No item (ii), novamente, não é preciso incluir o conhecimento das leis causais do Universo, pois o demônio escalar também atuaria de forma sincrônica, em um instante temporal ou em um intervalo muito pequeno de tempo (como o demônio psicofisiológico). Mas ele conheceria todas as leis de transição de escala espacial, ou seja, as leis do Universo que correlacionam uma descrição nanoscópica (por exemplo) com a correspondente descrição macroscópica. Podemos chamar a esse item de “erudição nomológica escalar espacial”. Por fim, o item (i) de onisciência instantânea seria análogo ao do demônio de Laplace, cobrindo o conhecimento de todo o Universo, em um instante, mas tal conhecimento seria restrito apenas a uma única escala espacial (a nanoscópica). Com isso, o demônio seria capaz de descrever o comportamento do Universo, em uma escala macroscópica?

Para exemplificar a discussão sobre o debate “redução vs. emergência”, nas Ciências Físicas, consideremos uma barra metálica alongada em pé (cf. GATTI; PESSOA, 2012). Supondo que uma carga é adicionada ao topo da barra, exercendo uma força vertical e apontada para baixo, e que a intensidade da força vai lentamente aumentando, de início, a barra permanece imóvel, contudo, a partir de um certo valor crítico da carga, a barra irá “flambar”, ou seja, irá se dobrar, ou para a esquerda ou para a direita. A questão é explicar para qual lado se dará a flambagem.

A teoria dos fenômenos críticos irá ignorar os detalhes microscópicos do sistema e simplesmente estipular qual é o ponto crítico e qual é a probabilidade de o sistema seguir diferentes caminhos possíveis. Esta é uma abordagem emergentista, e a flambagem para cada sentido (esquerda ou direita) pode ser considerada uma propriedade emergente. A explicação reducionista apresenta um outro relato para essa situação. Ela precisa levar em conta as posições de todos os átomos da barra metálica, todas as imperfeições microscópicas da barra e também as posições e velocidades de todas as moléculas do gás que circunda a barra. Se a barra for perfeitamente simétrica, pode-se talvez identificar qual foi a molécula individual de oxigênio (ou de outro tipo) que forneceu, num determinado instante, o impulso que foi determinante para o início da flambagem. Esta seria, então, a análise mecânico-causal feita pela abordagem reducionista.

O filósofo Robert Batterman (2002, p. 11) argumenta que a explicação emergentista é superior, por ser mais econômica, por desprezar detalhes inacessíveis para nós e por fornecer uma explicação de por que outras barras se comportam de modo semelhante. O reducionista concede que sua explicação é mais complicada, mas salienta que o que as diferentes barras têm em comum (formando uma “classe de universalidade”) é sua estrutura microscópica global, ou seja, sua organização. Se aceitarmos essa análise, vemos que a grande vantagem da abordagem emergentista é ser pragmática: ela ignora o que é irrelevante e inobservável, descrevendo um fenômeno imprevisível, com base em uma teoria indeterminista. O relato reducionista é realista, podendo ser concatenado em uma versão consistente com a mecânica clássica, ou em uma versão consistente com uma versão realista da mecânica quântica.

Na discussão acima, nos Fundamentos da Física, não se colocou a questão de se as leis de ponte entre o mundo nanoscópico e o macroscópico são deriváveis da Física que descreve as condições basais nanoscópicas, ou se são “empíricas”, no sentido de serem conhecidas apenas pela experiência (como foi feito na discussão em Filosofia da Mente). Aceita-se que haja um formalismo matemático o qual descreva a passagem do nanoscópico para o macroscópico, mesmo sendo “[...] quase impossível deduzir a complexidade e a novidade que podem emergir a partir da composição [de partículas]” (SCHWEBER, 1993, p. 36), devido à presença de não linearidades.

O que se aproxima do argumento que vimos em favor do Reducionismo-2, na Filosofia da Mente (de que as leis de ponte psicofisológicas só podem ser obtidas empiricamente) é o argumento emergentista de que os esquemas para realizar cálculos aproximados não são deduções de primeiros princípios, mas requerem dados experimentais e detalhes locais: “[...] os esquemas de aproximação não são deduções de primeiros princípios, mas são criações encaixadas [art keyed] aos experimentos, e assim tendem a ser pouco confiáveis, exatamente onde a confiabilidade é mais necessária.” (LAUGHLIN; PINES, 2000, p. 28).

Nesse caso, o reducionista na Física aceita que há dados desconhecidos sobre as propriedades dos materiais que, na prática, só podem ser conhecidos empiricamente. Mas, no experimento mental do demônio escalar, este teria conhecimento não só das leis fundamentais da Física (na escala em que ele atua), mas também conheceria as variáveis dinâmicas (posições, velocidades etc.) de todos os entes físicos (naquela escala), em um dado instante. Além disso, o item (ii) da definição do demônio escalar lhe dá conhecimento das “leis de transição de escala”, as quais permitem a passagem da descrição nanoscópica para macroscópica.

Assim, parece razoável que ele seria capaz de inferir o comportamento coletivo das partículas, “fazendo uma média” das variáveis e desprezando aquelas que se tornam irrelevantes, na descrição macroscópica. Uma boa descrição desse procedimento de “granulação grossa” (coarse graining) de variáveis é aquela dada por Schweber (1993, p. 37-38):

[...] para sistemas de muitos corpos, pode-se, integrando e eliminando os modos de comprimento de onda curto e frequência alta (que estão associados com a constituição atômica e molecular), chegar em uma descrição hidrodinâmica que é válida para uma ampla classe de fluidos, e que é insensível aos detalhes da composição atômica do fluido.


Se o demônio escalar não conseguisse fazer sua previsão com 100% de acerto, teríamos de supor que as leis de transição de escala não são suficientes para fixar univocamente o mundo macroscópico, a partir do nanoscópico. Isso seria análogo ao caso do tiquismo (indeterminismo), no quadro-geral temporal em que atua o demônio de Laplace. Diríamos, por conseguinte, que o mundo macroscópico não supervém perfeitamente ao mundo nanoscópico, uma situação contraintuitiva, mas talvez racionalmente aceitável.

Todavia, voltando à situação em que o demônio escalar tem sucesso em descrever o mundo macroscópico, em função do nanoscópico, será que ele teria sucesso sem o item (ii) de sua definição, ou seja, sem conhecer ou aplicar os procedimentos de granulação grossa? É difícil imaginar como ele poderia fazer isso, pois a onisciência instantânea que ele possui (item i) não envolve nenhuma lei física, mas apenas o registro das variáveis dinâmicas de todos os entes nanoscópicos. Sem um algoritmo de cálculo de médias, como ele poderia inferir a situação macroscópica?

Concluímos, assim, que a erudição nomológica (item ii) é tão importante para o demônio de Laplace quanto para o demônio escalar, o que sugere que deva ser igualmente importante para o demônio psicofisiológico, favorecendo o reducionismo indutivo (reducionismo-2), no problema mente-corpo. Por outro lado, pode-se argumentar que o algoritmo de cálculo de médias, necessário para o demônio escalar fazer suas previsões, pode ser estabelecido a priori (sendo puramente matemático), sugerindo o reducionismo-1 para a escala espacial. Porém, argumentaremos contra essa possibilidade, na seção 7.

Em nossa discussão, geralmente consideramos o caso no qual o demônio escalar analisa a escala nanoscópica e faz uma previsão para a escala macroscópica. Mas é claro que diferentes escalas podem ser levadas em conta, e que as conclusões poderiam diferir. Por exemplo, talvez a análise de uma escala subquântica possa levar a conclusões distintas, se houver uma fronteira escalar especial associada ao quantum de ação h. Entretanto, não iremos investigar aqui essa possibilidade.


6 Leis alométricas de escala

Mencionamos, como lei de transição de escala, o procedimento de granulação grossa da Mecânica Estatística. Porém, há uma outra acepção de “lei de escala”, na Ciência e na Engenharia, que é interessante de investigar, sendo que o pioneiro dessa tradição foi Galileo.

As leis de escala, nesse sentido mais usual, exprimem a relação entre duas grandezas, à medida que seu tamanho se altera. Por exemplo, a razão entre o peso da estrutura óssea e o peso total de animais varia com o tamanho do animal, exibindo “alometria”, ou seja, o desvio da isometria (razão constante entre as duas grandezas). Outro exemplo vem da engenharia estrutural, em que se constroem modelos em pequena escala de grandes estruturas, nas quais os parâmetros definidores dos materiais utilizados devem levar em conta as leis de escala (GHOSH, 2011). Para distinguir das “leis de transição de escala”, discutidas na seção anterior, chamarei estas de “leis alométricas de escala” e, quando estivermos nos referindo aos dois, usarei simplesmente “leis de escala”.

Uma questão interessante é se essas leis alométricas de escala podem ser derivadas a partir de princípios geométricos e primeiros princípios físicos, ou não. Na prática, muitas leis alométricas de escala, por exemplo na biologia, são determinadas empiricamente, mas deixamos em aberto se tais relações poderiam ser determinadas em função de um conhecimento mais detalhado da estrutura e composição dos tecidos biológicos.

Outra questão é se o demônio escalar precisaria conhecer as leis alométricas de escala, para fazer suas previsões. Aparentemente não, pois ele não faz previsões para o futuro; dada uma certa estrutura animal em uma certa escala, não interessa para ele o que acontecerá, quando surgir uma versão maior desse animal, ou seja, se este conseguirá sustentar sua estrutura eficientemente ou não. A tarefa do demônio seria apenas analisar a escala nanoscópica do animal; se ele tiver colapsado ou não, isso estará patente na distribuição espacial nanoscópica das moléculas do bicho.


7 Leis de escala em diferentes geometrias

Na Geometria Euclidiana, um aumento de escala isotrópico leva a uma figura semelhante à original, só que maior. Por outro lado, em geometrias não euclidianas, o resultado de um aumento de escala isotrópico resulta em uma figura que não é semelhante à original, por exemplo, a soma dos ângulos internos de um triângulo irá variar.

Podemos supor que a geometria do espaço-tempo na região em que habitamos possa ser euclidiana ou não euclidiana, e que esta é uma questão a ser decidida empiricamente. Qualquer que seja a situação, o demônio escalar, conhecendo as leis de transição de escala (que seriam distintas no caso euclidiano e não euclidiano), poderá prever o estado macroscópico a partir do nanoscópico.

Por outro lado, se o demônio não tem acesso às leis de transição de escala (item ii da definição), ele não terá como saber qual delas (euclidiana ou não euclidiana) é a correta. Assim, concluímos que, também no caso escalar espacial, a erudição nomológica (item ii) é essencial para o demônio escalar, favorecendo o reducionismo-2, o que sugere que deva ser igualmente importante para o demônio psicofisiológico, o que favorece o reducionismo indutivo no problema mente-corpo.


8 Discussão sobre causalidade sincrônica

Nesta seção, queremos justificar por que a relação de redução escalar, a qual ocorre em um único instante de tempo, não deve ser entendida como uma relação causal, que tomamos como sendo uma relação entre situações em dois instantes distintos do tempo.

John Searle (2004, p. 123) defende a tese de que “microfenômenos de nível mais baixo causam macrocaracterísticas de nível mais alto” em um sentido sincrônico, ou seja, no mesmo instante de tempo. Essa afirmação é usada para justificar sua tese de que encéfalos causam mentes. Searle defende que “[...] em muitos casos de causação a causa é simultânea ao efeito” (p. 124), e dá exemplos cotidianos envolvendo a força da gravidade, por exemplo, uma mesa que causa um objeto a permanecer em cima dela. Esta afirmação remete a exemplos dados por Immanuel Kant ([1781] 2001, A203), o qual também defendeu que a causa pode ser simultânea ao efeito. Um de seus exemplos é de uma bola de chumbo em repouso, em uma almofada, de maneira que a bola é a causa da deformação da almofada.

Tais afirmações entram em conflito com a Teoria da Relatividade Restrita, a qual estipula que processos causais não podem se propagar a uma velocidade maior do que a velocidade da luz. Pode-se talvez raciocinar que a bola de chumbo está em contato com a almofada, e que a distância entre elas é nula, de sorte que a causa poderia ser simultânea ao efeito. Mas, olhando em uma escala nanoscópica, há uma separação espacial não nula entre os átomos da superfície do chumbo e as moléculas da almofada que se encontram mais próximas à bola, uma separação talvez da ordem de 1 nanômetro.

Não há dúvidas de que a bola causa a deformação. Contudo, para avaliar a relação causal, basta um pequeno truque: removamos rapidamente a bola da almofada. Após um tempo curtíssimo, por exemplo, 1 milissegundo, a almofada continuará deformada, mesmo sem a presença da bola! Nesse caso, está claro que a causa da deformação da almofada é a presença da bola em um instante anterior (no passado), já que, no presente, a bola já não está mais lá. Ou seja, a causa é temporalmente anterior ao efeito. O mesmo raciocínio se aplica à situação em que a bola está presente: a deformação atual da almofada é causada pela presença da bola, em um instante anterior. (Uma avaliação de qual é esse intervalo temporal entre causa e efeito vai depender das propriedades elásticas da almofada.)

No caso da relação mente-encéfalo, pode-se argumentar que os processos encefálico e mental que estariam (segundo Searle) em uma relação causal sincrônica ocupam o mesmo ponto do espaço e, portanto, não estão sujeitos à restrição imposta pela Teoria da Relatividade. Tal possibilidade pode ser explorada, mas parece mais razoável chamar tal relação por um outro nome, não “causalidade”, mas “redutibilidade”.


Considerações finais

Exploramos a analogia entre diferentes relações de determinação em diferentes quadros-gerais, em especial a causalidade no tempo, a relação de determinação entre escalas espaciais físicas e a relação entre estados do corpo e da mente. A discussão foi feita com base em “sondas epistemológicas” abstratas, como o demônio de Laplace, o demônio escalar e o demônio psicofisiológico. Nosso foco principal foi argumentar que, no caso do debate sobre a redutibilidade da mente ao corpo, não é plausível supor que tal redução possa se dar apenas a partir das condições físicas basais, mas que é necessário levar em conta também as leis de ponte psicofisiológicas. Isso constitui, assim, uma defesa da redutibilidade “indutiva” no problema mente-corpo, o que pode ser considerado uma forma fraca de emergência. Argumentamos também contra a noção de causalidade sincrônica.


Agradecimentos

A ideia para este artigo surgiu em discussões com Vitor Sholl Lima. O argumento contra a causalidade sincrônica surgiu a partir de discussões com André Noara.


Bridge laws in the Philosophy of Mind and in the Physical Sciences


Abstract: In the debate on the reducibility of mind over body, we argue that it is not plausible to assume that such a reduction can be made only over the basal physical conditions, but rather that one must also take into account the psychophysiological bridge laws. This position is usually considered in the Philosophy of Mind to be antireductionist, but we prefer to call it “inductive reductionism”, due to the analogy with two other forms of determination in the Physical Sciences: causal determinism and spatial scalar reductionism. The discussion is made with the use of abstract “epistemological probes”, such as Laplace’s demon, the scalar demon, and the psychophysiological demon. We also criticize the notion of synchronical causality used by Searle.


Keywords: Mind-body problem. Reductionism. Emergence. Bridge laws. Explanatory gap. Synchonical causality.



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Recebido: 20/08/2022

Aceito: 16/01/2023



1 Docente no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4191-1719. E-mail: opessoa@usp.br.

2 Um dos pareceristas sugeriu que os temas das leis de ponte e da lacuna explicativa fossem mais bem desenvolvidos, levantando duas questões principais: (1) o estabelecimento empírico das leis de ponte como meras correlações existentes entre estados mentais e corporais não seria muito pouco para superar a lacuna explicativa? Minha resposta seria afirmativa: a lacuna explicativa existe, e não há como capturar estados qualitativos, a partir de uma linguagem que exprime relações quantitativas (ver PESSOA, 2019); (2) o estabelecimento das leis de ponte não poderia dar ensejo a um materialismo eliminativista? Creio que não, justamente pela existência da lacuna explicativa. Em um artigo a ser submetido, neste ano, para a revista Lampião, explorarei essas questões, ao examinar a tese da identidade mente-encéfalo, no contexto de um fisicismo qualitativo reducionista.

3 Para um resumo histórico do emergentismo, ver Pessoa (2013) e as referências ali indicadas.