Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira


José Crisóstomo de Souza1


Resumo: O texto apresenta os elementos básicos de um novo paradigma poético-pragmático e destranscendentalizado para a filosofia, situado entre o pragmatismo e a filosofia da práxis, como uma posição não fundacionista, não representacionista, anti-relativista, essencialmente oposta às formas linguocêntricas ou simplesmente intersubjetivistas dominantes, hoje em dia, na cena filosófica não-mentalista. Como parte dessa apresentação, o texto recapitula a metodologia, de trabalho coletivo, plural e concertado, que corresponde, no plano do fazer filosofia, ao espírito do paradigma, e a plataforma geral por trás do seu desenvolvimento progressivo.


Palavras-chave: Trabalho em grupo. Trabalho em progresso. Compreensão geral das coisas. Pragmatismo aprimorado. Paradigma de produção reconstruído.


No começo era o ato, e, logo, o artefato.


Introdução

Filosofia para nós tem a ver com compreensão geral das coisas, envolvendo a discussão bem- articulada de nossas noções mais abrangentes, tais como realidade, atividade, condição humana, conhecimento, linguagem, normatividade, propósitos, criação, valores, etc. Apenas agora não mais como discurso transcendental, mas como ponto de vista situado, praticamente justificado, em todo caso refletido, informado, elaborado. Não apartado, porém, do diálogo com o senso comum e o mundo da vida, com a conversação social e as inquietações privadas, com a cultura e com nossas misturas de fato e valor.

De um modo que – é o que este texto propõe –, a produção de filosofia, no fim das contas, supõe uma indagação a propósito de pressupostos e paradigmas, modos gerais de entender as coisas e de agir em meio a elas. Fazer filosofia sendo, então, ter um paradigma para oferecer, a ser discutido e testado, a se medir com outros, e a ser, por essa razão, não só sistemática mas também dialeticamente constituído, ou pelo menos exposto. Tudo isso considerado, entendemos que filosofia envolve um trabalho em progresso e supõe uma comunidade de investigação e discussão. Deve envolver uma exploração grupal, de círculo ou escola, e oferecer uma pauta de estudo e pesquisa para mais gente, uma que responda a desafios de um certo tempo e contexto. Desse modo, introduzindo – ou inserindo-se em – um diálogo e em uma certa concertação, abertos, para que a elaboração de pensamento não se torne uma coisa atomizada, desconectada e, daí, possivelmente, estéril.

Nessa linha, reunimos aqui, abreviadamente, alguns dos contornos e dos elementos de uma proposta dessas, um ponto de vista que chamamos de prático-poiético, materialista, de uma filosofia da práxis como poiésis, produção, de algo como um pragmatismo melhorado, materialista e histórico, não linguocêntrico. Apresentamos, também abreviadamente, a forma de trabalho e cooperação que tem sustentado sua elaboração, como um trabalho em desenvolvimento. Começando – é a primeira parte do texto - pela denominação do grupo, Poética Pragmática, depois seu percurso, seu modo de funcionamento e, por fim, sua plataforma. Em seguida, expomos, numa segunda parte do texto, alguns de seus resultados. Quanto a esses, eles aparecem primeiro na forma de uma sugestão de reconstrução de Marx, de seu paradigma da produção, dispensado de seus supostos vícios, com algumas referências a expressões da filosofia contemporânea. Depois, eles são apresentados na forma de uma sugestão de superação do que denominamos criticamente de paradigma linguocêntrico (aos quais Habermas e Rorty estão presos), que é, para nós, a fôrma geral, limitada, da maior parte da filosofia contemporânea metropolitana, quer dizer, europeia e americana, aquela que, o mais das vezes, apenas repetimos no Brasil.

A primeira parte do texto (I – O Poética-Pragmática, seu Percurso, sua Plataforma) retoma, com modificações, uma parte da introdução da recente coletânea Filosofia, Ação, Criação: Poética Pragmática em Movimento, do GT Poética Pragmática e de companheiros de viagem, do Brasil e de mais meia dúzia de países. Uma Coletânea que é uma espécie de jam session filosófica, como uma série de desdobramentos e interações possíveis do paradigma prático-poiético proposto. A segunda parte do texto (II – O Materialismo Prático-Poético como Alternativa...”), sobre os resultados do trabalho do grupo Poética Pragmática, sobre os contornos de seu ponto de vista ou posição, é composta por trechos revistos e modificados das duas peças até aqui mais fundamentais de apresentação daquele paradigma, materiais publicados, em versões diferentes, no Brasil, no México e na Alemanha. São coisas minhas, mas que, como mostraremos, encontram desdobramento nos trabalhos de vários outros membros do Poética, como a referida Coletânea mostra. As referências desses trabalhos todos, e mais alguns através dos quais o paradigma foi se construindo, ao longo de muitos anos, estão apresentadas ao final deste texto. O leitor pode preferir começar logo pela segunda seção do texto, sobre o materialismo poético-pragmático, para depois passar à primeira, sobre o grupo, seu percurso, seu modo de trabalho e sua plataforma.


I O grupo poética pragmática. seu percurso, sua plataforma, seu convite

1 O que há no nome Poética Pragmática. Interlocuções e Convergências. Fontes Nacionais e Internacionais

Não por acaso, Poética e Pragmática são duas expressões adjetivas; não quisemos começar por algum “-ismo” fechado, nem tampouco queremos terminar por um deles. Quando, por fim, recorremos a um ou alguns, é como abreviatura para um modo instrumental, contextualmente justificado, de compreensão das coisas; um modo conceitualmente articulado, o qual,que entretanto, se quer apenas prático, não um novo vocabulário último ou excludente. Poética, como adjetivo substantivado, tem a ver com um conjunto de produções aparentadas, textos ou não, de alguma maneira expressivos, tomados por qualidades que as definem, que podem marcar um autor, escola, elementos de uma cultura ou época inteira. No nosso caso, trata-se de uma Poética que se quer ensaística, prática, “não-escolástica” e mais coisas que iremos mostrando. Uma Poética marcada também por um modus operandi, grupal, de criação livre e concertada, de um círculo em que todos tocam uma parte ou mais de uma, embora com uma posição razoavelmente compartilhada, da qual vários trabalhos querem ser expressão.

Poética, então, tem a ver com um modo de elaboração em filosofia, tanto quanto com uma compreensão das coisas, que põe no seu centro a prática enquanto produção, isto é, introdução de “coisas” no mundo. Pois é também um adjetivo que remete, tanto quanto sua variante poiética, ao substantivo grego Poiésis (em português, poiese), que quer dizer, indistintamente, tanto produção como criação. Tanto “espiritual” (daí poesia, que é o que o adjetivo primeiro evoca), quanto “material” (objetual, artesanal, técnica) – uma indistinção que nos agrada sustentar. Poiésis vem do verbo poieín, produzir/criar, fazer coisas (para nós, filosofia, inclusive), pôr no mundo o que não está lá -– como o setzen (pôr) do idealismo alemão, de Hegel na Fenomenologia do Espírito. Com ênfase, no nosso caso, na dimensão sempre em última análise sensível (sinnliche), material, desse pôr/fazer/criar humano, junto com o que para nós necessariamente lhe acompanha de imaginação e experimentação. Daí que uma filosofia poético-pragmática é um fazer e um modo de fazer, tanto quanto é uma filosofia do fazer, da criação e do ato (“no começo era o ato”) – e, logo, do objeto ou artefato, no sentido mais amplo do termo. É uma outra filosofia da práxis, da práxis como poiésis, ou ainda, vá lá, um outro pragmatismo, aquele de uma agência produtiva, material, social, histórica. Um ponto de vista a um só tempo, e de maneira articulada, sobre realidade, ação, conhecimento, normatividade, linguagem, criação, mudança social e mais.

Para quem andou lendo Jürgen Habermas, pode ser destacado um outro “paradigma da produção” (o de Marx é outro) – mais bem reconstruído do que na sua transfiguração discursiva, intersubjetiva, sem mundo, proposta por Habermas. Como um outro paradigma da produção, porém, o nosso não quer ser mais uma “filosofia do sujeito” ou “da consciência” – classicamente moderna. Embora tampouco queira ser, do outro lado, uma filosofia linguocêntrica, essencialmente do discurso, como têm sido, desde a chamada virada linguística, as alternativas filosóficas pós-cartesianas de nossos dias, inclusive as de pretensão crítica. Em vez de um ponto de vista linguocêntrico, apenas intersubjetivista, embora prático/pragmático, não logocêntrico, trata-se, no nosso caso, de um ponto de vista prático-material, corpóreo e objetual.

Para completar uma apresentação a partir do nome: o termo Pragmática procede do grego pragma (no plural, pragmata), que se refere a atos e negócios humanos comuns – não a algo de “interesseiro” e “picareta”, que os mais ignorantes supõem ser o significado de pragmatismo. Pragmático refere-se ao que é mundano, destranscendentalizado, junto com social, compartilhado; diz respeito ao que é prudencial, tanto quanto ao que tem a ver com conduta e ao que, portanto, não se quer intelectualista ou academicista. Por aí, Poética, junto com Pragmática, sugere uma combinação entre o que é romântico, artístico, ideal, e o que é prático, operativo, instrumental. Isso, porém, enquanto duas coisas de antemão um tanto entrelaçadas, não opostas, ambas envolvidas com ação, experimentação e criação – como sintetizadas, por exemplo, no que concebemos como Modernismo. Um casamento que está compreendido no diálogo crítico, reconstrutor, que a posição poético-pragmática mantém com o pragmatismo clássico, também ele um modernismo, a propósito de alguns de seus pressupostos, como a chamada sentença de Alexander Bain, a máxima de Charles Peirce, o ponto de vista do agente, de John Dewey, a ênfase em experimentação e falibilismo, de todos eles. Tanto quanto está compreendido no diálogo com a chamada filosofia da práxis, também reconstrutor, sobre o qual logo mencionaremos mais alguma coisa.

Filosofia é conversação, e nosso trabalho quer ser bem isso: parte de uma conversação. Daí que gostamos de apresentar, não de esconder, nossos cruzamentos e convergências com outras posições, de explorar aproximações e favorecer interlocuções, embora nada ecleticamente, sempre a partir de uma posição própria, bem articulada e delineada. Nosso ponto de vista prático-poiético dialoga criticamente tanto com Habermas, pragmatista kantiano frankfurtiano, como com Richard Rorty, neo-pragmatista hegeliano, americano. Tanto com o pragmatismo clássico de Peirce, James e Dewey, quanto com aquele mais romântico e criativo, de Nietzsche. Tanto com o “pragmatismo” de Heidegger (da Zunhandenheit), quanto com o positivismo (sic) do nacionalizado Augusto Comte. De outro lado, dialoga com um hegelianismo interativo, transformativamente mobilizado, pós-metafísico, pós-darwiniano, no seio do qual Marx é apenas uma vertente, ao lado de outras como as de Bauer, Feuerbach ou Max Stirner. Do mesmo modo que dialoga com o hegelianismo brasileiro, marxiano-fenomenológico, contextualista, anticolonialista, do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1955-1964). Pode dialogar ainda com as teorias críticas razoavelmente pragmáticas de Nancy Fraser e Rahel Jaeggi e, de novo do lado nacional, com o ensaísmo crítico de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e outros, que já deveriam ter entrado no radar da filosofia que se faz na universidade brasileira.

Pois “o Poética” – como nos apelidaram, com insinuações de escola – interessa-se por um diálogo nacional, com expressões brasileiras de espírito, filosóficas ou nem tanto, com o propósito de nos colocarmos na esteira de seus desenvolvimentos, os mais progressistas, descolonizados, transformativos. Quanto a esse lado nacional, registre-se que Sílvio Romero e Cruz Costa encontraram, para a disposição brasileira de pensamento – de outra sorte, frequentemente escolástica e bacharelesca – uma inclinação prática, não metafísica, oxalá, se poderia desejar, de “filosofia em mangas de camisa” (Tobias Barreto). Quem sabe uma inclinação deflacionista, como em Francisco Sanches, Matias Aires, Nísia Floresta, Machado de Assis ou Oswaldo Porchat (o da “visão comum do mundo”). Uma inclinação também naturalista, conciliada com os sentidos, “franciscana” como para Gilberto Freyre, junto com descolonizada, como em Vieira Pinto e Guerreiro Ramos. Muito disso já sugestivamente misturado, em viés estetizante, no nosso Modernismo cultural, apropriador (Oswald de Andrade), e, mais sobriamente, do lado político, no nosso construtivismo institucional (v.g. Anísio Teixeira, Celso Furtado, Roberto Mangabeira Unger). Queremos esses parentescos com expressões brasileiras de pensamento mesmo quando em algumas delas haja um déficit de elaboração e interlocução filosófico a ser deixado para trás.


2 O Percurso do Poética: Filosofia Civil, Hegelianismo, Pragmatismo. Neo-Pragmatismo e Marx Reconstruído. O Mundo Bem Nosso

Quanto aos marcos da produção do próprio Poética Pragmática, isto é, de sua construção como ponto de vista, podemos dizer que começamos, lá atrás, de modo polêmico, meta-filosófico, pela busca de uma certa ideia de filosofia, inicialmente esboçada num trabalho nada convencional, “A Filosofia como Coisa Civil” (de Crisóstomo), um trabalho que interessou a vários estudantes mais inquietos e a diversos colegas professores-pesquisadores mais jovens. Publicado primeiro como um opúsculo, o Filosofia Civil, um convite a se fazer filosofia no Brasil, integrou depois a coletânea A Filosofia entre Nós (2005), junto com outras contribuições semelhantes, também não-escolásticas, não-comentaristas, de Oswaldo Porchat, Ernst Tugendhat e Renato Janine. Foi um trabalho lido com aprovação por Tugendhat e por Richard Rorty, numa versão em inglês depois ampliada e publicada na Amazon, como Philosophy as a Civil & Worldly Thing, from a Brazilian Critical-Historical Perspective.

Formulado como “uma narrativa e uma tarefa para a filosofia no Brasil”, o Filosofia Civil esboça uma perspectiva histórica do caminho brasileiro de pensamento, enquanto um percurso que vai da colonial Ratio Studiorum à regra goldschmidtiana de hoje, dita uspiana, da “leitura interna” do autor canônico. Um percurso que procede, assim, de uma sujeição Magister dixit, lá atrás, a outra, Magistri dixerunt, dos nossos dias, enquanto filosofia de exegese e comentário de texto canônico, na nossa opinião um ancien régime da filosofia, nada estranho aos tradicionais bacharelismo e colonialismo mental que nos afligem. Tal caminho histórico, porém, foi, de outro lado, marcado também por esforços de apropriação e uso do pensamento filosófico metropolitano da época, até de elaboração de alternativas a ele, esforços na esteira dos quais, já dissemos, valeria a pena nos colocarmos. O que faríamos agora por uma superação daquela oposição “repetição comentarista” vs. “apropriação usuária”, ou seja, por uma síntese dialética do melhor das duas coisas: 1) ensaísmo filosófico apropriador, até criador, ainda que às vezes amadorista, mais 2) método e sofisticação técnica, finalmente conquistados (mesmo que em versão inicialmente escolástica) com a implantação, mais do que tardia, da universidade brasileira e de seus programas de pós-graduação.

Nessa mesma linha, isto é, de um esforço crítico-produtivo, prosseguimos empenhados, em vários outros textos, mais breves, em manter vivo o desafio de maioridade, ou seja, de alguma autonomia e contextualização, para a filosofia nacional. Um desafio finalmente posto pela própria Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia, por ocasião da criação da Coluna Anpof, em 2016 – o de finalmente estabelecermos um diálogo do que fazemos, como filosofia, com nosso tempo e contexto. Quanto a isso, seguimos defendendo que fazer filosofia brasileira é, em primeiro lugar, simplesmente fazer filosofia; é não fazer apenas história da filosofia ou comentário interno, acrítico, de textos de filósofos canonizados. De outro lado, para nós, fazer filosofia brasileira tampouco é fazer uma filosofia de posição única, praticamente em torno de tema único (v.g. filosofia da libertação,” decolonial”, o que seja), nem muito menos uma filosofia roots, de buana, tupiniquim ou coisa parecida. Nem é tampouco fazer uma pseudofilosofia militante, de diretório estudantil, cheia de chavões “críticos” importados – pois não foi para isso que estudamos tanto, nem que o País tanto gastou com nossas pós-graduações.

Nossos textos posteriores sobre essas coisas seguem aí, em colunas Anpof, vídeos, livros e artigos, para quem quiser reagir a eles. Aos quais, aliás, se acrescentam hoje contribuições comparáveis, de tantos colegas, de várias partes do País, no que pode sugerir o começo de uma auspiciosa mudança na filosofia acadêmica brasileira. Algo que pode chegar a ter uma relevância mundial, já que, para um olhar mais autônomo e viajado, os modos metropolitanos de fazer filosofia, analítica ou continental, na Europa ou nos EUA, tampouco têm andado lá muito bem. Nesse empenho crítico por uma filosofia nossa, porém, como em qualquer outro, a prova do bolo está em comê-lo. Não haveríamos de ficar só promovendo um clamor ou mesmo apenas sugerindo uma receita qualquer, como no Filosofia como Coisa Civil, sem buscar realizá-la na prática. Quanto a isso, isto é, quanto ao caminho de desenvolvimento do nosso ponto de vista prático-poiético em filosofia, começamos lá atrás, nos anos 1980, pelo hegelianismo e por Marx, ainda sem saber bem onde iríamos parar. Começamos por uma extensa tese de doutorado sobre o debate e elaboração filosóficos jovem-hegelianos, para, por essa via, driblar o já referido modelo comentarista interno, mono-autoral, da nossa comunidade filosófica, tendo ao mesmo tempo como professores parte representativa da nata da filosofia universitária brasileira da época, entre Unicamp, USP e Rio Grande do Sul.

Na verdade, começamos bem antes disso, fora da academia, com algo em certa medida aparentado: as narrativas críticas de formação histórica deste país (que, na ocasião, sustentavam o que publicávamos de crítico nos Cadernos do CEAS, do Centro de Estudos e Ação Social, durante o regime militar, e o que, em outro espaço, tratávamos de levar à prática política). Eram nNarrativas que, bem-entendidas, são discursos compreensivos de uma modernidade particular, subalterna, da qual os discursos metropolitanos da modernidade, mesmo críticos, não tomam conhecimento. Em comum entre uma coisa e outra, entre a narrativa alemã e a narrativa brasileira, está que se trata de elaborações históricas compreensivas, doadoras de sentido, que se oferecem como suporte de políticas radicais para o presente.

Todo esse trabalho, depois do referido doutorado, levou-nos a publicar dois livros – e, adiante, muitos artigos – sobre aqueles filósofos histórico-críticos alemães. Um deles, sobre o debate Marx vs. Stirner, a propósito do “humano” como medida e ser supremo; o outro sobre a ascensão e queda da figura do sujeito, no movimento jovem hegeliano geral. Por fim, já na docência do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da UFBA, tudo isso deu na orientação de monografias críticas afins, mais contemporâneas, na área de filosofia política e teoria social, que resultaram muito relevantes para o projeto do GT Poética Pragmática, produzidas por futuros membros, muito talentosos. Deu também, como já dissemos, na participação de colegas já professores-pesquisadores, colegas cujos trabalhos passaram também a dialogar com o nosso (vide a Coletânea Filosofia Ação, Criação, a sair ainda este ano, pela EDUFBA).

Assim, antes que Habermas o propusesse, partimos, nos anos 80, da ideia de que ainda somos contemporâneos dos jovens (anti-)hegelianos, incluindo entre eles, contra Habermas, o próprio Nietzsche, do mesmo modo que Marx, como dois entre tantos perfis de crítica histórico-dialética da Modernidade, do ponto de vista de um futuro diferente. Uma crítica feita sempre na forma de narrativas epocais, filosofias do futuro, as quais seguem até nossos dias competindo entre si pelo título de superação mais completa e verdadeira e radical de todo o anterior. A própria teoria crítica alemã, do nosso tempo, eterna herdeira de Hegel e Marx, visivelmente sem saber muito o que está dizendo, passou a se apresentar, ela própria, como filiada a essa esquerda hegeliana.

Do nosso lado, desse esforço de escarafunchar o debate do movimento jovem-hegeliano, resultou uma crítica do essencialismo (feuerbachiano) e do substancialismo (espinosano) de Marx, coisas que, no nosso entender, teorias críticas e posições filosóficas assemelhadas à nossa até hoje não diagnosticaram direito. No mesmo trânsito, por afinidade, apropriamo-nos de elementos do naturalismo-sensualismo de Feuerbach (também de G. Freyre), da pegada usuária-corpórea, ironista, de Max Stirner, e do deflacionismo filosófico, radicalmente destranscendentalizante, de ambos, em parte também de Marx, como aliás, contemporaneamente, também, por ex., de Porchat, Rorty ou Habermas. Mas tratamos de fazer tudo isso de um ponto de vista que não aquele do sujeito concebido como autoconsciência, do idealismo alemão e da ala idealista da esquerda hegeliana, nem tampouco aquele da dialética negativa, antitética, predominante naquele movimento como também na posterior Teoria Crítica de Frankfurt. Como muito menos quisemos, mais adiante, desenvolver nosso paradigma de crítica no rumo da virada, francesa mas não só, para a linguagem e o discurso, mesmo em sua feição pragmática, alemã ou americana, como virada para uma intersubjetividade linguistificada, sem mundo, como no caso de teóricos críticos mais recentes, começando pelo próprio Habermas.

Mas é também verdade que tratamos de acompanhar o percurso, desde o jovem hegelianismo e de Marx até o nosso tempo, principalmente na companhia de Habermas, como um ecumênico e produtivo interlocutor, embora sempre criticamente tomado. Considerado, em todo caso, como alguém que se empenhava em discussões que nos interessavam, envolvendo narrativas da modernidade, desenvolvimentos filosóficos diversos, uma reconstrução do materialismo histórico, a passagem a um certo pragmatismo intersubjetivo-kantiano (que não é a nossa), o debate com o (neo)pragmatismo livremente historicista-hegeliano de Richard Rorty (que depois, apresentamos no nosso Filosofia, Racionalidade, Democracia: Os Debates Rorty-Habermas, 2005) etc. etc. Nesse trânsito, que nos levou a passar também pela “Teoria Francesa” (em conversação, num pós-doutrorado, com Hubert Dreyfus), da qual se aproveita um ou outro ponto mas nada de sua pegada geral, organizamos o GEFIM (Grupo de Estudos de Filosofia e Modernidade), que depois deu lugar ao Poética Pragmática (2008). Um grupo que, mesmo de breve existência, foi, como o nome sugere, parte do nosso caminho para fazer filosofia não mono-autoral, não sempiterna e exegética, mas tentativamente temática, contemporânea e debatedora – onde alguma coisa de Brasil se pudesse enfiar e, por fim, de certo modo, prevalecer, como perspectiva.

Quanto à fórmula prática de trabalho, isto é, com relação a nosso interesse por uma “enturmação” viva e produtiva, para um trabalho de elaboração em grupo e dialógico, o movimento jovem hegeliano nos interessou também por sua produtiva dinâmica de discussão, começada pelo Clube dos Doutores e, logo, Os Livres, de Berlim, com Marx pelo meio. Do mesmo modo, as origens do pragmatismo americano, posição pela qual viemos na sequência a nos interessar (como veio também a interessar, de outra maneira, parte da teoria crítica e da filosofia analítica mais recente), configuram para nós um interessante processo criativo grupal, começado no Clube Metafísico (anos 1870), com Peirce e James, e na sequência, como movimento, desenvolvido por Dewey, Mead e outros, já como corrente.

Além desses, interessaram-nos outros grupos e cadeias (sequências) de elaboração e desenvolvimento filosóficos, como as dos espiritualistas franceses, filósofos da ação e da criação, de Maine de Biran a Bergson, Blondel e além. Como também, na Itália, os politicamente atrapalhados, mas filosoficamente criativos, Leonardinos (de Leonardo Da Vinci, um dos nossos heróis), nos começos do século XX. Do Brasil, inspirou-nos o Movimento Modernista de 1922, particularmente o grupo que depois prosperou em torno da revista Antropofagia e dos Manifestos Antropófago e Pau-Brasil, tendo em Oswald de Andrade sua principal expressão. E ainda o ISEB, nos anos 1960, com a sua filosofia mais ou menos hegeliano-marxiana, combinada com fenomenologia e existencialismo, além de historicismo. Sem falar no referido Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) e seus Cadernos, onde por uns doze anos elaborei e publiquei trabalhos sobre Brasil e teoria social, e no semanário Movimento, por outros tantos anos, sobre coisas mais políticas do que filosóficas.

Voltando à filosofia: em seguida ao hegelianismo, nosso envolvimento crítico e reconstrutor, com o pragmatismo, deu-se na perspectiva de algo como uma relação interna, historicamente corroborada, entre ele e o hegelianismo/marxismo. Digamos, entre as possibilidades de um hegelianismo pragmático e de um pragmatismo hegeliano, histórico, materialista. Afinal de contas, Peirce partiu de uma significativa formação idealista alemã, embora incialmente mais kantiana, para depois convergir com Schelling como idealista objetivo, enquanto o experimentalista/instrumentalista John Dewey e o interacionista simbólico Herbert Mead partiram de uma formação marcadamente hegeliana. Os próprios desenvolvimentos filosóficos neo-pragmatistas, linguísticos, de hoje, de Habermas, Rorty ou Brandom, incluem uma relação positiva com Hegel. E esse mesmo empenho reconstrutor foi estendido por nós à exploração de uma relação “interna” entre o primeiro pragmatismo e o ponto de vista de Marx, que tratamos de recuperar pelo lado de seu “materialismo prático” (um dos rótulos que Marx mesmo deu a seu pensamento) – como pode ser verificado em nosso “Para uma Crítica ao (Não-)Pragmatismo de Marx” (Cognitio, 2012). Daí prosseguimos por um diálogo crítico com os neo-pragmatistas Habermas e Rorty, enquanto dois filósofos contemporâneos dialógicos e mobilizadores, já agora a partir de um paradigma próprio, nosso, que se afastava do intersubjetivismo linguístico “sem mundo” de ambos (cf. nossos artigos de 2019 e 2020, na alemã Transcience).

É basicamente nesse terreno de interlocução e elaboração – que envolve uma reconstrução de Marx e uma reconsideração do modernismo, do ensaísmo historicista e do hegeliano-marxismo brasileiros, que finalmente nos situamos. Por um desenvolvimento do qual participaram ativamente, de modo muito democrática, razoavelmente horizontal, mais uns, menos outros, o Grupo Poética Pragmática inteiro, incluindo orientandos, ex-orientandos, colegas professores jovens, e mais parceiros de fora, por um arranjo concertado coletivo e um work-in-progress.

Para concluir, sobre nossa produção, isto é, sobre alguns dos nossos textos mais centrais ou fundantes para aquele ponto de vista próprio, prático-poiético, depois do “Filosofia Civil”, lá atrás, chegamos, no outro extremo, nos nossos dias, ao “O Mundo Bem Nosso” (Cognitio, 2015), em inglês “A Pragmatic-Poietic Transformative Perspective” (Transcience, 2020). Texto que encontra um complemento no “Nem Habermas, nem Rorty, nem Marx” (Ideação, 2020), que saiu em espanhol no México (como “Pragmatismo Brasileño”) e em inglês na Alemanha (“Towards a Practical-Poietic, Materialist Point of View”). São ambos textos cujos títulos e subtítulos sugerem o desenvolvimento de uma posição não-fundacionista, não-representacionista, materialista-sensível. São textos que deram lugar a discussões publicadas, réplicas e tréplicas, um procedimento nada costumeiro na comunidade filosófica brasileira: os debates com os colegas Waldomiro da Silva Filho, Paulo Margutti Pinto, Leonel Pereira, por ex., em Cognitio e Ideação, e ainda outros, em encontros e eventos gravados.

Retrospectivamente, entre aqueles dois pontos extremos (o “Filosofia Civil” e o “Mundo Bem Nosso”), estão textos que dialogam com diversos pontos de vista da esquerda hegeliana, também Nietzsche e Marx, alguns mais recentes, como “A Teologia de Marx Explicada às Crianças” (2017), alguns também publicados no exterior, como o “Marx and Feuerbachian Essence” (Cambridge University Press, 2006), de transição para o ponto de vista próprio que hoje sustentamos. E os inúmeros textos breves sobre fazer filosofia e fazer filosofia no Brasil. A essas publicações agregam-se depois livros de mais participantes do Poética, como Pragmatismo Romântico e Democracia (2016), de Tiago Medeiros, Direito como Imaginação Institucional (2020), de Pedro Lino, A Política Cultural de Rorty (2018), de Hilton da Cruz, brevemente o Raízes da Institucionalidade: uma tipologia Filosófica, de Tiago, e mais outros tantos por sair. Além de vídeos, colunas Anpof, revistas nacionais de filosofia, artigos de conjuntura na grande impressa etc. É o ponto de vista prático-poiético de várias maneiras se desdobrando; como agora, de uma outra maneira, nova, na conversação/concertação entre os textos da referida Coletânea Filosofia, Ação, Criação: Poética Pragmática em Movimento.


3 Poética Pragmática. Construção Prática. Produções, Intercâmbios, Eventos. Concertação, Instituição, Plataforma

No plano dos eventos e realizações, fazem parte do percurso do Poética Pragmática alguns estágios pós-doutorais, como as oportunidades de interlocução e elaboração, na UC-Berkeley (com Hubert Dreyfus), na New School (com Dick Bernstein), na Humboldt-Berlim (com Rahel Jaeggi), de Crisóstomo, e as visitas-sanduíche de Laiz Fraga a Penn-State e de Tiago Medeiros a Harvard. Do lado dos eventos em sentido estrito, quase realizamos no Brasil um debate com Rorty e Habermas, com quem mantivemos contato epistolar, um debate que acompanharia o lançamento do nosso livro com os dois (Filosofia, Racionalidade, Democracia, 2005). Foi durante os contatos iniciais, conjunção com a Unesp, que fazia 30 anos em 2006, que Dick Rorty soube da grave enfermidade que o levaria à morte, no ano seguinte – uma tremenda e dolorosa perda, em meio à chatice de boa parte da filosofia dos nossos dias. Em compensação, fizemos depois acontecer, na Bahia (2013), o primeiro encontro de internacionalização do Poética, em conjunto com o VII Congresso da Sociedade Interamericana de Filosofia, com a participação de parceiros internacionais e nacionais, como Goyo Pappas, Cristina di Gregori, Ivo Ibri, Larry Hickman, Douglas Moggach, Paul Thomas e Jean-Pierre Cometti (outra enorme perda, que depois tivemos).

Isso, além de mais eventos, como o grande Seminário Filosofia e Democracia (jul./out. 2016), e dos colóquios de outros aos quais nos associamos, regionais, nacionais e internacionais, na UEFS, na UFRB, na Universidad de La Plata, na PUC-SP (Centro de Estudos de Pragmatismo). E, na Faculdade de Direito da USP, na sua mais recente edição (2019) do “Homenagem Largo do São Francisco”, coordenado por Alessandro Octaviani, dedicado dessa vez ao pensamento de Roberto Mangabeira Unger. Em que o Poética participou com três representantes e onde o pessoal, pela primeira vez, publicamente nos batizou de “Escola Baiana de Filosofia” (embora eu próprio seja mineiro de nascimento).

A tanto devemos acrescentar que, institucionalmente, o Poética Pragmática se construiu em vinculação com o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFBA, no qual se deu boa parte de nosso trabalho de orientação, discussão e produção. Que resultou num punhado de teses razoavelmente heterodoxas, de doutorandos e mestrandos muito talentosos, como Hilton, Tiago, Laíz, Matheus, Rodrigo, Pedro Lino, Gracione, Margareth, que deram em artigos e livros publicados ou por publicar, como os já mencionados acima. São teses críticas que recorrem, temática e em alguma medida reconstrutivamente, a gente como Stirner, Feuerbach, Habermas, Rawls, Rorty, Chantal Mouffe, Nancy Fraser, Mangabeira Unger, Oswald de Andrade, Guerreiro Ramos e mais.

Nesses casos, não se trata de tomar os autores como mestres inquestionáveis, orixás de cabeça, cercados de comentadores apologéticos, em leituras apenas internas. Mas de tomá-los pelas suas contribuições temáticas, em confronto com seus críticos e com posições alternativas. Autores apreendidos, junto com isso, em seus próprios percursos de pensamento, como buscas do esclarecimento de questões, temas e argumentos, e tudo tendo como horizonte a constituição de posições próprias a esse respeito, de parte dos que os estudam. Disso resultou uma primeira coletânea dos integrantes do Poética, em 2012, discutida entre eles: a Virada Prático-Histórica da Filosofia: Hegelianismo, Pragmatismo, Democracia, que incluiu contribuições de, além dos já citados, também Christine Leboucher, Edineide Santos e Line Lobo.

A turma do Poética é assim tentativamente lançada não apenas ao comentário, mas ao debate, desenvolvimento e recepção crítica do pensamento dos autores, o que compreende seu contexto de discussão e elaboração. Do lado do grupo, envolvendo consulta e discussão com os demais membros, envolvendo referências aos trabalhos uns dos outros, e depois um contato continuado entre todos. Em discussões abertas, seminários permanentes, presenciais ou remotos, com a participação de professores, associados, como André Itaparica, Genildo Ferreira da Silva, Frederik dos Santos, Cristina Di Gregori e Erick Lima.

Pois o mais interessante do Poética Pragmática talvez seja esse seu modus operandi, seus modos de interação, discussão e cooperação, como um fazer associado razoavelmente horizontal e livre, em que todo mundo em alguma medida também orienta todo mundo e troca ideias com todo mundo. Vejamos se a nossa segunda Coletânea, agora no prelo, realiza um novo passo dessa experimentação, além de representar, finalmente admito, por insistência da turma, algo de um Festschrift do grupo para o autor dessas linhas. Mas, nesse caso, tinha de ser mesmo um Festschrift produtivo e interativo, uma jam session com participação do homenageado, em parte em torno do seu pequeno pensamento.

Depois de tudo isso, aonde foi mesmo que chegamos, filosoficamente? Antes de ver isso mais articuladamente na Parte II, vejamos algumas opiniões. Se você perguntar informalmente a um membro qualquer do Poética Pragmática qual a nossa plataforma – é o que fizemos, e aqui agora reportamos – poderá ouvir, desculpada alguma redundância, que nosso Ponto de Vista Prático-Poiético, sensível, integra uma vertente filosófica mais abrangente que descarta uma concepção transcendentalizada de conhecimento. O que implica, entre outras coisas, que se contrapõe aos fundamentos tradicionais da epistemologia moderna, diferindo desta (desculpem tantos ismos e negações) – pela defesa de um não-dualismo, um não-mentalismo, um não-representacionismo, um não-correspondentismo. O que significa que sua dimensão prática essencial pode estar numa radicalização da concepção, de Alexander Bain, de que uma crença é um hábito de ação.

Também, o que singulariza sua posição em relação ao pragmatismo clássico, e mesmo ao neo-pragmatismo, é o fato de que leva mais a sério do que esses dois as consequências da máxima pragmatista de Peirce, por inserir a ação e o conhecimento humanos no âmbito do sensível, material e social. E por pôr o conhecimento numa espécie de interação e contexto práticos que não se reduzem ao campo linguístico ou intersubjetivo, mas devem ser estendidos ao tecido de relações sociais e materiais, como ampliadas em verdadeiras formas de vida. Como parte relevante desse contexto, os objetos são aí tomados como “determinados” pelas nossas ações, mas também como condicionando as relações sociais que vigem nessas práticas, tanto quanto, por aí, importando para a constituição de nossas subjetividades e de nossa forma apropriação da realidade.

Poderia ainda ouvir que o Poética Pragmática procura “radicalizar” Marx, retirando dele seus elementos dualistas, essencialistas e substancialistas, e sublinhando o aspecto dinâmico e contextual da cognição, tanto quanto da criação humanas, nem sempre contemplado por Marx. Essa ideia holista, de um emaranhamento prático-sensível, produtivo, com o mundo, introduz no nosso ponto de vista tanto o elemento poiético quanto o elemento poético-estético, enquanto compreende a ação humana como sensível e plástica, em sentido nietzschiano: criadora de formas e moldadora da realidade. Essa ênfase na criação e na interação abre espaço, no âmbito da política, para a sugestão de um construtivismo institucional, imaginoso, e para uma aposta no aprimoramento da democracia como via de florescimento do indivíduo e da sociedade. Nisso tudo, o Poética exibe uma vocação experimentalista, alimentada por uma visão meliorista da sociedade, da cultura, etc., e esboça uma ideia própria de democracia como forma de vida, que compreende a própria cidadania como coisa também material e produtiva.

Sempre assim, espontaneamente, em termos de plataforma ou programa, você poderia ouvir que se trata, no caso da Poética Pragmática, de uma posição prática propositiva, modernista e historicista. De uma pegada que compreende 1) uma ideia metafilosófica: a filosofia como coisa civil, citerior, dialética; mais 2) um conjunto de temas clássicos de filosofia geral, como realidade, atividade, normatividade, conhecimento, linguagem., mas também de filosofia política e social; mais 3) uma articulação conceitual particular, teórica, de filosofia geral, da qual decorreriam “logicamente” os dois pontos anteriores, embora, genealogicamente, lhes seja posterior. Do outro lado, há no grupo uma certa ideia de indivíduo-pessoa, corpóreo, pulsivo, irredutível a linguagem e a identidades essencializadas, a descrições fixas e a enquadramentos genéricos substancializados. Não se trata, porém, do indivíduo de um subjetivismo solipsista, mas, ao contrário, do reconhecimento de um grau de envolvimento social, histórico, cultural, nacional, do sujeito; tanto quanto se trata de uma certa transcendência, em sua relação com isso tudo. Donde o enredamento do mundo comum apareceria também como contingente e como uma interação entre pessoas, práticas materiais e experiências abertas de mundo.

Duas coisas básicas se encontrariam nessa compreensão poético-pragmática: Primeiro, uma ideia de filosofia como desinflada, como um ponto de vista comum, mundano, particular – social mas também nacional. De uma filosofia em contiguidade/ continuidade com a conversação do mundo da vida e com as discussões da esfera pública; com os interesses de seres humanos comuns, tomados como referência e como contexto onde se trata de pôr-se. Essa pode ser considerada uma posição filosófica crítica, mas de uma crítica nem intelectualista nem negativista, em vez disso interessada em pontos de vista de maiorias, além de orientada para mudanças e soluções práticas e efetivas – cumulativas. Orientada por uma perspectiva sem fundacionismos tradicionais, mas também sem relativismos, implicando, em vez disso, num novo realismo prático-criativo, o da prática sensível e do enfrentamento prático do mundo real. Uma compreensão das coisas entre outras compreensões possíveis, mas nem por isso não conceitual e argumentativamente articulada, multiplamente justificada, praticamente respaldada e dialeticamente constituída. Tendo como pressuposto o reconhecimento de uma multiplicidade de vozes possíveis, já no interior do próprio Poética mas também, em escala maior, no mundo em torno. Uma perspectiva envolvida com narrativas que projetem desinfladas redenções, tanto quanto infinitas também, como uma posição esperançosa, melhorista, até mesmo como um humanismo não-essencialista, popular, interessado em iniciativa pessoal e social tanto quanto em coisas e de meios materiais.

Segundo, essa é, portanto, uma posição que se faz, por recurso à prática enquanto reveladora de mundo e atribuidora de significado, o que a filosofia linguocêntrica faz por recurso à linguagem; sem cair, desse modo, no que se pode entender como o ascetismo, idealismo, abstração dos corpos e dos sentidos, que marcam tacitamente boa parte da filosofia metropolitana dos nossos dias. Isso é o nosso materialismo e é nosso realismo, práticos, desde um ponto de vista que entrelaça, e por aí reconcebe, realidade, atividade, experiência, criação, conhecimento, normatividade, intencionalidade, fruição, etc. Por um “emaranhamento” que pode ser visto como uma reconstrução do famoso fio condutor ontológico-antropológico de Marx (cf. a Contribuição à Crítica da Economia Política), despojado de seu lado dualista (infraestrutura-superestrutura) e determinista (histórico), naturalista primário. O que pode ser considerado como uma reconstrução também do fio condutor do pragmatismo; no caso deste, despojado de seus traços cientificistas, de seu naturalismo reducionista, e de um consequente adaptacionismo prático menos interessante, de inspiração biológica e darwiniana. O que, por fim, envolve uma reformulação crítica dos “fios condutores” normativos de ambos; no caso de Marx, de seu humanismo essencialista genérico (sic), comunista (sic), deduzido feuerbachianamente do Cristianismo e do suposto caráter absolutamente social dos seres humanos, fundado no caráter absolutamente social do trabalho como seu (dos seres humanos) ser-um-para-o-outro.

Por fim, ainda em rápidas pinceladas, sempre a propósito da plataforma filosófica do Poética, você ouviria falar da ideia de que o real é atividade material-sensível (mais ou menos como em Marx), e de que nós próprios também somos isso – e não em primeiro lugar linguagem. No plano do conhecimento, ouviria falar da ideia de que não resta assim espaço para dogmatismo, mas tampouco para ceticismo, agnosticismo ou relativismo, pois uma crença é em primeiro lugar a sinalização de uma conduta e de um lidar com o mundo e com as pessoas, do que decorrem, então, consequências deflacionistas pra o conhecimento, como experimentalismo e falibilismo. Isso tudo com a conclusão de que a Poética Pragmática é um ponto de vista intrinsecamente histórico, contextualista, interacionista, não dualista nem determinista, neste último caso porque inclui uma noção de intencionalidade sensível, corpórea, em oposição tanto a mentalismos e idealismos, quanto a determinismos e naturalismos causais-reducionistas.


II O materialismo prático-poético. nem essencialista-dogmático, nem relativista-linguocêntrico

1 Um Retorno ao Paradigma da Produção, em diálogo com Marx, sem seus Problemas Originais

Vejamos, então, como reconstruir Marx, a propósito de um ponto de vista materialista prático, contemplando ao mesmo tempo recuperar, em versão sensível, materialista, o melhor de intuições filosóficas mais recentes, p. ex. de Habermas e Rorty, i.e., de seus pontos de vista supostamente pragmáticos, não-logocêntricos, pós-metafísicos, históricos, contextualistas, anti-dogmáticos, anti-positivistas. Agora, no interior de outro paradigma, justamente do que chamo de ponto de vista poético-pragmático, ou de materialismo pragmático-poiético, não linguocêntrico. E justamente por um diálogo não apenas com o pragmatismo clássico, de onde podemos colher elementos não-linguocêntricos, não-idealistas, sem cair em seus aspectos reducionistas-naturalistas. Mas agora por um diálogo com Marx e, por aí, também com a Fenomenologia do Espírito de Hegel, ou seja, um diálogo crítico com o melhor de Marx como filósofo que tenta uma conversão materialista de Hegel. Isso para um melhor retorno ao paradigma da produção, para além tanto do neo-pragmatismo linguístico e kantiano, quanto do realismo correspondentista e fundacionista do que podemos chamar de empirismo dogmático, hoje analítico.

Trata-se, em primeiro lugar, de abrir mão do que seriam dogmas teóricos de Marx, bem pouco prático-pragmáticos, mas em vez disso teoricistas, a-prioristas, transcendentalistas. Em benefício de um Marx reconstruído, materialista prático, despido de seus essencialismos e substancialismos, fundacionismos e determinismos.2 Bem como liberto dos dualismos e dicotomias, clássicos e modernos, platônicos e cartesianos, que, apesar de tudo, Marx reitera com muita força: sensível vs. inteligível, essência vs. aparência, essência vs. existência, fundo vs. superfície, infraestrutura vs. superestrutura, ciência vs. consciência/ideologia, sujeito vs. objeto, ideal vs. real.

Isso pela retomada do seu viés mais consequentemente materialista prático, através da noção de práxis como produção sensível (poiesis), de nós e do social como atividade sensível, de um interesse pelo papel – relevante – dos meios/objetos materiais, e de seus usos, na constituição de nossas relações e, portanto, de nós próprios. “O homem põe objetos porque é posto por objetos” – afirma Marx, nos Manuscritos de 1844, pretendendo corrigir o suposto elemento idealista subjetivo de Hegel, a propósito da Fenomenologia do Espírito como história da construção, pelos seres humanos, de si mesmos e do mundo.3 Com aquele “porque” marxiano deixando entrever, entretanto, um questionável apassivamento ou determinação causal, exterior, que Marx apesar de tudo propõe para a ação humana.

O que chamo de embrião de um materialismo prático-normativo, poiético, não teoricista nem essencialista, em Marx, pode ser lido como compreendendo uns tantos “momentos” que se interpenetram, encontrados no conjunto de sua obra, porém, aqui extraídos, por simplificação, sobretudo das Teses ad Feuerbach (mas não só), por mais abreviadas que essas sejam.4

Tais momentos são:

1) A recusa de um “empirismo dogmático”, intuicionista-passivo, mentalista-cartesiano, contemplativo, que Marx chama de materialismo anterior, não constitutivamente prático, assim como uma rejeição do idealismo subjetivo que desconhece a verdadeira atividade humana enquanto sensível, trabalho (Teses ad Feuerbach, n. 1 e 5);

2) Logo, uma superação da concepção – dualista -– do mundo e do sujeito humanos como estáticos, exteriores um ao outro, tanto quanto do segundo apenas como pensamento. Logo, possivelmente, um abandono do ponto-de-vista do espectador e da fixação objetivista-representacionista do real;

3) Uma desqualificação do indivíduo abstrato da percepção empirista, do indivíduo pré-social; uma rejeição da ficção do indivíduo como dissociado do conjunto das -– suas -– relações sociais e de uma forma de vida social determinada (Tese 6). Isso, não obstante sua (de Marx) essencialização/redução (visível em mais de seus textos) daquelas relações todas a um tipo único e determinante, as suas “relações de produção”, viés que não queremos adotar;

4) A já mencionada concepção de nós como seres que põem objetos e são postos por objetos (dos Manuscritos de 1844 até O Capital). Para nós, dispensada do elemento determinista, causal, expresso na fórmula: “põem objetos porque são postos por objetos”. Uma formulação em certa medida contraditória no próprio Marx, que, no seu materialismo histórico, tem problemas com a ideia de criação do novo como não causalmente inscrita num largo condicionamento precedente. Isso, não obstante, no Capital, na caracterização do trabalho humano em geral, Marx pareça reservar para ele um elemento de imaginação e de transcendência.5

5) Tudo isso atravessado por uma sugestão de “epistemologia” social e política – i.e., por uma ideia de congruência de pontos-de-vista filosóficos (epistemológicos, ontológicos, políticos) com posições sociais (Standpunkten), enquanto situações práticas materiais, “lugares” no interior da sociedade (Teses 9 e 10). Atravessado, assim, por um contextualismo e um perspectivismo materiais sensíveis, a que Marx, entretanto, não é fiel ele próprio, no que diz respeito a suas concepções do real, em geral correspondentistas (Ideologia Alemã, seção I), ainda que com um elemento de “construtivista” hegeliano (“Introdução de 1857”).

6) Ao final, entretanto, para além desses elementos pragmatistas-poiéticos, Marx, especulativamente, apresenta sua crítica do real social como ao mesmo tempo essencialmente (sic) cindido e atomizado, pelas “más” relações e práticas sociais imperantes (desiguais e conflitivas, em vez de cooperativas e comunistas), o que, para ele, acarretaria o desdobramento/duplicação do mundo na religião – pela alienação (Tese 4) e pelo fetichismo (O Capital).

7) Para sustentar tal posição normativa, Marx se compromete com uma dedução do “homem” (genérico), a partir do Cristianismo (enquanto idealismo), como premissa de sua posição crítica. Ou seja, compromete-se com a “tradução” feuerbachiana do Cristianismo no humanismo comunitarista, anti-individualista do Ser-Genérico – seu fundamento para a crítica da sociedade, da economia política e da cultura (Tese 4). O “homem” como Ser-Genérico, como tal um valor, um fundamento normativo mundano mas essencializado, o homem como essência-genérica, nesses termos o novo – o verdadeiro -– Ser Supremo para os homens.

8) É esse homem social-social que, introduzido na economia política pela noção do trabalho (nosso ser-um-para-o-outro) como inteiramente social, determinará, por necessidade, o rumo da supressão prática da contradição social e a restauração (reconciliação) da unidade-solidariedade social, com o fim da suposta auto-alienação, de novo, do “homem”. Isso, então, abrindo caminho, para além do ponto-de-vista “egoísta” da Sociedade Civil de hoje, para o da Sociedade Humana de amanhã, o Socialismo e o Comunismo, para a necessidade e o imperativo de sua realização.

9) Do lado de seus elementos menos práticos, registremos ainda que Marx: a) distingue e hierarquiza dois níveis de prática: aquela, diz ele, egoísta, judaica suja, a prática comum dos homens comuns na vida civil vs. a prática virtuosa, revolucionária, teoricamente iluminada, crítica (ver Tese 1); b) se envolve-se, contraditoriamente, com uma variação da posição mentalista-correspondentista, quando, após afirmar que é a existência (prática, relacional, ativa) que determina a consciência, invoca a metáfora da câmara escura (correspondentista/inversora do Real) na sua crítica ao idealismo e à ideologia (na Ideologia Alemã), e sobretudo defende seu conhecimento como científico, no sentido inteiramente correspondentista, de um espelhar/reproduzir na mente individual nada menos do que o inteiro movimento totalizante do real, por via da rearticulação dos dados objetivos sensíveis, factuais, pelas categorias da lógica hegeliana, em versão alegadamente materialista (Introdução de 57).

10) Finalmente, c) como indicado, Marx sustenta um normativismo transcendentalista dogmático para fundamento de seu ponto de vista social crítico, seja 1) a partir da tradução feuerbachiana, humanista-comunitarista, naturalista, dos predicados/valores do Cristianismo (do Ser Supremo alienado), infinitizados, seja 2) pela alegada demonstração do caráter, de fundo, essencial, determinante, inescapavelmente social, do trabalho (sentido estrito), na sua crítica da economia política. Um caráter alegadamente invisível, para seus próprios atores e para todos nós, homens comuns, ao nível da enganadora superfície enquanto aparência real, que apenas sua teoria desvela (cf. O Capital, vol. I).

O que pode resultar dialeticamente de uma boa correção crítica e prática de Marx, e prático-sensível, do linguocentrismo idealista-criativo de Rorty e normativo-universalista (com um grão de realismo) de Habermas, é, para mim, então, uma compreensão que deve partir, ao modo de primeiro, de nosso emaranhamento com o mundo, na direção de um pragmatismo poiético-sensível, de um holismo prático-material e de uma consideração da criadora contingência da existência. Tomando como ponto de partida o que chamo de nosso emaranhamento prático sensível criativo com o mundo, um emaranhamento produtivo – também enquanto cognitivo, estético, ético, político etc.

Isso como base para um materialismo prático-poiético, o qualque põe em estreita relação, de maneira renovada, prático-sensível, a gente, a realidade, a ação, o conhecimento, a normatividade etc. De um modo que deve distinguir-se tanto de certo realismo empirista representacionista, entendido por nós como pouco interessante para a realização das disposições livres, prático-criadoras dos seres humanos. Quanto deve, ao mesmo tempo, distinguir-se de um anti-representacionismo meramente linguístico, o qual tem preocupações semelhantes às nossas, mas é compreendido por nós como insuficientemente aberto à criação material sensível, embora disposto à crítica anti-positivista e antiautoritária, e ao reconhecimento da dimensão social, não-fundacionista (ao modo tradicional), de nossa relação com o mundo.

Trato de alcançar esse ponto de vista, que considero mais fecundo para certos propósitos, pela via de uma combinação de não-representacionismo prático e materialismo poiético, sugerida como possivelmente mais apropriada às nossas circunstâncias e necessidades. E busco isso por recurso à utilização de algumas noções principais:

a) uma noção de intencionalidade prático-sensível, significadora, como parte de nosso modo básico de envolvimento com o mundo, por nossa iniciativa deliberada de dirigirmo-nos ativamente às coisas, tomá-las assim ou assado, dando-lhes, dessa maneira, seu significado. E assim, por esse trato com o mundo, formando delas noções (práticas) “antes” de qualquer recurso à linguagem, ainda que se trate de noções socialmente sustentadas, sedimentadas e compartilhadas – por práticas das quais faz parte a linguagem;

b) essa noção de intencionalidade se constitui numa recuperação, aqui no seu nível mais elementar, de uma noção não-metafísica, não-dualista, de autoconsciência (da filosofia clássica alemã), como sua dimensão eminentemente ativa, criadora, transcendedora, para os seres humanos, que é o que Marx, contraditoriamente, se empenha em praticamente aniquilar por sua onipresente crítica da noção de consciência e por seu fundacionismo do Ser-Genérico enquanto passividade (leidend-sein);

c) uma noção de nós e do mundo como essencialmente atividade, da ação humana como ubíqua e eminentemente poiésis, fazer criador que introduz coisas e modos no mundo, que põe o próprio mundo humano e que nos faz históricos;

d) a noção de objetivação de conhecimento e imaginação, na ação, pelo homem, no mundo e nas coisas, algo como o espírito objetivo de Hegel, que também encontra eco na posterior noção marxiana de “inteligência geral”;

e) assim, uma noção de realidade humana como “subjetiva” (Tese 1), não objetiva em sentido tradicional, independente, separada, cartesiana; uma noção de realidade e de nós próprios como atividade sensível e como artefato;

f) as noções de normatividade e de significação como constituídas, não em primeiro lugar, pela linguagem, por uma subjetividade monádica, por uma atomizada intuição sensível. Ou uma intersubjetividade-sem-mundo, eminentemente linguística. Mas pela nossa própria prática, social, de lidar experimentalmente com mundo, as pessoas e coisas, orientada por nossos propósitos e interesses, e apoiada e permanentemente modificada pela introdução de objetos;

g) isso em oposição à ideia de uma normatividade 1) deduzida, de modo fundacionista, dogmática, da religião, 2) lida dogmaticamente para dentro da realidade, por uma teoria da história e uma filosofia crítica da economia, ou mesmo 3) postulada finalmente por um universalismo abstrato, de tipo kantiano, ainda que semi-destranscendentalizado, socializado.

Por essa via, chegamos a uma concepção prática, holista-materialista, objetual, do mundo, da cultura e de nós mesmos, segundo a qual os seres humanos permanentemente põem/criam novos objetos e objetivações (artefatos no sentido mais amplo), . Ssendo, por sua vez – eles, indivíduos humanos em sociedade –, postos/constituídos/criados por tais objetos/objetivações e pelas práticas/relações que tais coisas tanto pressupõem quanto permanentemente engendram e às quais dão suporte. Chegamos assim à concepção da sociedade como um conjunto de práticas, envolvidas com o uso e a criação de objetos e objetivações, e assim como uma própria forma de produção e de vida. Tornando-se tais práticas, como sugerimos, igualmente nossas objetivações, que têm em objetos seu suporte e que envolvem relações nas quais esses têm papel constitutivo. Tais práticas estão envolvidas, tanto na reposição/reprodução da sociedade quanto no desenvolvimento de novas coisas, novas relações e mesmo outras práticas, novas. Portanto, na modificação do mundo e de nós próprios. Práticas que possivelmente se podem constituir em espaços privilegiados de ação transformadora do mundo, mais do que apenas alguma Super-Prática, concebida como inteiramente transcendente, exterior a tudo isso.

Parafraseando Marx, a dialética desse novo materialismo poderia ficar assim: no uso e criação de objetos, os seres humanos desenvolvem entre si relações múltiplas e cambiantes, que têm a ver com aqueles, enquanto desenvolvem novas práticas e produzem novos objetos, artefatos, coisas. A criação de novas práticas, objetos e usos enseja – ou força – novas relações e novas formas de subjetividade entre os seres humanos, constituindo um mundo nosso, histórico, constituindo-nos a nós próprios como pertencentes a tal mundo e constituindo, assim, o que chamamos de uma forma de vida e de mundo. Não há por que supor que tal dialética só se dê na produção de objetos/bens ditos materiais, sem espírito, de consumo, “na base” da sociedade, pelo uso aí de grandes Objetos/Meios de produção. E não se dê na prática geral dos seres humanos de criar, usar e reproduzir, como inevitavelmente entrelaçados entre si, objetos, ideias, vocabulários, instituições – todos eles, enfim, artefatos. E de, dessa maneira, produzirem-se a si próprios como artefatos.

Sendo assimNesse sentido, deve cair o tradicional dualismo infraestrutura-superestrutura, não havendo por que entender que “só” há pensamento privilegiadamente (embora irrelevantemente) no nível da superestrutura, mas não no da infraestrutura e das práticas consideradas produtoras, em sentido estrito. Quer dizer, não há por que entender que sejam, nos dois casos, pensamentos de ordens inteiramente diferentes (compreensivo vs instrumental), acrescidos e contrastados, ademais, de uma terceira forma, absolutamente distinta, de pensamento, a Ciência ou Teoria-Verdade, de ordem absolutamente superior, transcendental, como a própria Teoria de Marx. Ao contrário, o pensamento sempre seria, em todos esses casos, o que se produz na e para a ação, como aquilo que orienta a conduta ou corresponde a ela e a acompanha, que corresponde aos nossos propósitos e contribui para a solução de nossos problemas.

Pois, tanto em Marx, contraditoriamente, como no pragmatismo, tacitamente, haveria uma congruência, como já registramos, entre pontos de vista filosóficos gerais (como o pragmatismo e o materialismo histórico eles próprios) e seu contexto, suas consequências políticas e sociais, as práticas de que brotam. São pontos de vista, em última análise, práticos e envolvidos com idealizações. No primeiro caso (o materialismo histórico), o comunismo como sociedade verdadeiramente humana e como desenvolvimento do novo homem, plenamente social. No segundo (o pragmatismo), a democracia como forma de vida e de florescimento humano. Para o nosso caso, nosso ponto de vista poético-pragmático poderia dar suporte a uma noção materialista prática de cidadania como empoderamento criativo por capacidades e meios, sem que isso implique necessariamente consequências nem coletivistas nem liberais individualistas, digamos clássicas. Nem implique uma sociedade achatada, estatizada ou absolutamente atomizada – em todo caso, no fim de contas, oligopolizada. No nosso caso, trata-se do que eu chamaria de um ponto de vista eminentemente civil, democrático, cidadão, material.

A sociedade como forma de vida, segundo vimos, pode ser entendida como um agregado de práticas reprodutoras e produtoras, suportadas por objetos e constituindo objetivações, nas quais as relações entre pessoas e com o mundo decorrem de sua introdução, por nós mesmos, por nossa imaginação e cálculo, e nos faz quem somos – em permanente mudança. Numa sociedade assim compreendida, podemos entender de um modo novo a relevância e o papel de chamadas forças produtivas, das relações que essas propiciam, cobram ou condicionam, do poder que promovem, que as possam favorecer ou limitar, ou com elas entrar em conflito – em benefício de relações e práticas novas. Forças produtivas que compreendem, em primeiro lugar, os indivíduos e grupos humanos como criadores, com suas potências, competências e recursos. E vale sublinhar que as relações com os objetos e os recursos e competências podem refletir ou determinar dissimetrias, como relações desequilibradas de poder, propriedade e competência – mas disso não nos podemos ocupar aqui, de forma estendida.

Por via dessa compreensão das coisas, enfim, pode-se constituir e sustentar uma noção de cidadania material, produtiva, econômica, não passiva, protagonista, realizadora, f. Ficando a democracia como uma forma de vida também material e produtiva, econômica, envolvendo um empoderamento (ou “soberanização”) de todos, tanto de maneira individual quanto grupal, por competências e meios. Aí onde estão as práticas – sociais – de reposição da sociedade, numa forma de vida como conjunto de práticas de sua reprodução, podem-se cotidianamente desenvolver, e efetivamente se desenvolvem, práticas de sua transformação. Estamos, assim, de volta à associação de progresso e democracia ao avanço, difusão e democratização, de competências, recursos e capacidades (ou forças) produtivas, também objetivadas em práticas, artefatos e instituições, p. Pelo que eu chamaria de uma proposta de democratização econômica, material, produtiva, da sociedade. Menos inclinada a admitir certas práticas – intelectuais, políticas ou científicas – como transcendentais, superiores, de uma natureza totalmente outra, em detrimento das comuns, usualmente tomadas, em visões filosóficas superiores, como de natureza degrada ou alienada. Essa, sim, a favor do comum dos homens, seria mesmo um ponto de vista eminentemente civil, autonomista, livre e criativo. Isso, sim, a filosofia poderia favorecer.


2 Anti-Representacionismo Prático-Sensível, Poiético-Pragmático, Não-Linguístico, Não-Fundacionista, Não-Relativista

Vejamos agora mais de perto outro de nossos concorrentes, o anti-representacionismo linguístico e seus desdobramentos não correspondentistas, não-mentalistas e não-fundacionistas (v.g. Rorty e Habermas, mas não só), além de outros desdobramentos possíveis não explicitamente explorados aqui, de segundo grau, culturais, políticos, estéticos, científicos, técnicos etc. Parece-nos que disso tudo podemos ficar com alguma coisa, mas, novamente, apenas por sua reconstrução sobre outras bases, mais amplas e compreensivas. Em confronto com esse panlinguisticismo pós-metafísica, neo-pragmatista, nossa pretensão é de que as práticas, a ação, a criação, a invenção, sensíveis, não apenas aquelas linguísticas, são o que “primeiro” nos põe em relação estreita, porém, não representacionista, cognitiva, mas não só, com o mundo, num marco igualmente não fundacionista. O que eEntretanto, isso deixa para trás eventuais traços malsuperados de idealismo, dualismo, ceticismo e mesmo ascetismo, contraintuitivos, na nossa opinião ainda remanescentes no linguocentrismo.6

Pois Ora, é em relação ao nosso agir e ao nosso fazer que o mundo sensível não é exterior nem independente, e são eles que permanentemente o significam e ressignificam, constituem e reconstituem, segundo nossos propósitos e interesses. Não, por suposto, à sua (do mundo) completa revelia, mas, mesmo assim, pelos modos de uso e apropriação, criação e recriação que dele pudermos ou precisarmos fazer, ao encontro dos quais a significação linguística, comunicacional, se constitui, se soma e se adéqua – até, de certo modo e para certos casos, diríamos, a esse mundo “co-respondendo”. Isso num trato com o mundo que é sempre de algum modo social, que inclui nele os outros seres humanos, tanto quanto as coisas sensíveis enquanto não “exteriores” a nós e à cultura, com as quais nos pomos em relação, coloca pondo-as em relação conosco, de determinados modos, no interior de práticas sensíveis entre si articuladas. Entre as quais coisas estão destacadamente aquelas inteiramente humanas, como instituições, construções, associações, artefatos outros, sempre em permanente transformação. Coisas certamente impregnadas de significado humano, de linguagem e de pensamento, coisas justamente resultantes de nossa própria ação significadora e manipuladora, culturalmente orientada por propósitos e usos, sendo mesmo, elas, a materialização sensível destes últimos, ademais, por fim, de seu suporte.

Com efeito, o mundo, do outro lado, não é, como para um fisicalista ou pós-fisicalista extremo, basicamente um além da linguagem puramente físico, por isso, um além de nós, lá para as tantas perdido para nós por um modo pós-empirista e pós-metafísico de ver as coisas, ou de jamais vê-las. Mundo “em si” que só se nos apresentaria, enigmaticamente, como uma sucessão desinteressante de empurrões e puxões causais, crus, brutos, cegos, como no máximo uma porção de obstáculos duros, inflexíveis, que nos afetam ou mesmo atrapalham, como uma indesejável e desinteressante resistência no nosso caminho. Em vez disso, o mundo seria, para nós e para começo de conversa, coisa material-sensível como nós próprios somos, quer dizer, como nossos corpos são, como um conjunto de qualidades, recursos e apelos, tanto quanto de riscos, resistências e ameaças, mas também de possibilidades. O mundo seria, mesmo no seu nível mais primário, básico, natural, um conjunto de sensações qualitativas, gostos, cores e mais, a que reagimos, que buscamos ou evitamos dessa ou daquela maneira, segundo nossos interesses, necessidades e propósitos. Um mundo de coisas sensíveis que tomamos, usamos, consumimos, fruímos e transformamos, e, em tantos casos, inventamos e fazemos por completo, e aí inteiramente conforme nossos gostos, necessidades, fantasias – mas ainda assim também conforme “suas” (do mundo) propriedades e características.

É, na verdade, um mundo que se compõe – no caso de nós, organismos humanos, e a essa altura da história – de práticas humanas holisticamente articuladas e de artefatos, em última análise, humanos que encontram nelas o seu lugar e que lhes dão, como já dissemos, suporte. Práticas que incluem simultaneamente a interação dos homens entre si e com as coisas, num contato compreendido agora de maneira bem mais prática, concreta, rica, sensível, material e aberta, do que no realismo sensista, abstrato e estático, do empirismo, ou do que no panlinguismo, embora este tentativamente historicista e hermenêutico – ou até (neo)pragmatista. É através de nossa interação com o mundo que as coisas resultam significadas por nós e para nós, além de serem, em tantos casos, segundo já frisamos, simplesmente inventadas e feitas e refeitas por nós, para esse ou aquele uso, isto é, com esse ou aquele significado – imposto, sensível, materialmente, por nós, segundo nossas forças, habilidades, invenção, mas também experimentação e criação, ao mundo dito exterior. Assim, não teríamos, como para o linguisticismo teríamos, uma esfera propriamente humana, essencialmente linguística, simbólica, histórica, social, do lado de cá, e, do outro lado, um lá fora material, físico, “não humano” – como um mundo fixado, não histórico e sem qualquer significado “objetivo”, como algo enfim indizível, obscuro e não nosso.

Certamente, para quem começa por um empirismo dogmático abstrato, por uma abordagem representacionista-correspondentista do conhecimento e do mundo, e por um tratamento apenas lógico-analítico da linguagem, é uma grande descoberta e um passo auspicioso chegar a uma concepção hermenêutica e pragmatista, behaviorista, da mesma linguagem, e ultrapassar assim o estreito e dogmático epistemologismo positivista, dualista cartesiano, a que aquela abordagem e aquele tratamento deveriam originalmente servir. Não há por que desprezar a contribuição, digamos, emancipadora, que pode advir daí, isto é, de uma descrição renovada do papel da linguagem como “mediação” com o mundo, com ênfase na dimensão prática, intersubjetiva, social, logo histórica, de pensamento e conhecimento, e dela própria, a linguagem.

Certamente, devemos celebrar que por essa via se tenha chegado inclusive a uma imagem pós-metafísica melhor, desinflada, não epistemologicamente-centrada, do papel do filósofo e da filosofia. Quer seja aquela do filósofo como “linguista de campo”, em vez de mero analista linguístico apriorista, de cadeira de balanço, quer seja, muito melhor, do filósofo como intérprete e mediador na cultura. Quer seja, por fim, do filósofo como artífice, já agora deliberada e conscientemente, de novos vocabulários formatadores, os quais criariam novas realidades, dando forma a novas práticas – ou seja, em todos esses casos, do filósofo não mais à imagem de um superteórico do mundo e superjuiz da cultura.

Pois eEfetivamente, em sociedades modernas, mais ou menos desenvolvidas e democráticas, todas aquelas poderiam ser contribuições do filósofo e da filosofia, hermenêuticas e criadoras, e isso poderia ser o mais cabível e defensável para eles, embora, para mim, fosse preferível que um papel transformador para a filosofia pudesse, nesse caso, ser concebido não como operando em “roda livre”, numa suposta esfera apenas ou em primeiro lugar linguística, desencarnada, num contexto “imaterial” também a isso reduzido, basicamente à intersubjetividade discursiva e intelectual, mesmo que, em certa medida, um contexto normativamente regrado. Mas que fosse concebido, em vez disso, como um papel (o do filósofo) de partícipe do mesmo conjunto a que pertencem práticas materiais-sensíveis, no mais amplo sentido, ao fim e ao cabo em interação com o mundo material-sensível, como naquelas práticas o apreendemos e também como por elas o produzimos, em qualquer que seja nossa esfera de atividade.

É fato que o interesse positivista-lógico pela linguagem, enquanto possivelmente neutra, como elemento do projeto inicial do neoempirismo, foi dando lugar, no próprio desenvolvimento do movimento analítico, a uma abordagem progressivamente mais pragmatista e hermenêutica, prática e contextualista, da linguagem, liberada de vícios dogmáticos originários. Isso, porém, não teria necessariamente de desembocar e fixar-se em um absolutização da linguagem e da prática linguística, uma vez autocriticados os mitos do dado, da separação analítico-sintéticao, e outros correlatos, passando elas a reinarem com exclusividade. Dando-se então, por isso, o mundo por perdido, na verdade perdidas apenas as intuições sensíveis supostamente primárias, imediatas, do positivismo, desbancadas junto com qualquer coisa que, de outro lado, pertencesse a um a priori puro, também por ele e algumas de suas variantes dogmaticamente pressuposto. O desenvolvimento epistemológico gradualmente mais comportamentista, hermenêutico e pragmatistizante da filosofia analítica da linguagem, desde o empirismo lógico inicial, para além de si mesma, compõe, se se quiser, uma narrativa razoavelmente dialética, i.e., um desenvolvimento plausivelmente imanente e necessário, realizado por uma recuperável lógica interna, a partir de suas próprias contradições, até desembocar no seu extremo contrário antipositivista.

Contudo, isso por si só não excluiria que tal desenvolvimento ainda possa por aí manter, na sua suposta radicalidade, desavisadamente, algumas das limitações do seu paradigma cartesiano-humiano originário, as quais marcaram tão decisiva e indelevelmente seu ponto de partida. Ou seja, como sugerimos, o resultado final a que tal desenvolvimento chega pode não ter deixado inteiramente para trás o que é negado, ainda que negado com suposta radicalidade, mas, em vez disso, pode ter até aqui se resolvido nos limites de seus pressupostos fundantes mais profundos. Isso por ter-se detido aquém de um salto para fora e para além deles, i.e., um salto para a prática sensível, que incluísse, como defendemos, uma assimilação mais decisiva de sugestões do pragmatismo anterior e da filosofia continental “pós-darwiniana” (v.g. Nietzsche e Marx), de diferentes maneiras também anti-representacionistas, porém mais efetivamente prático-sensíveis e não linguocêntricas, c. Cujo naturalismo anti-metafísico, sob certos aspectos, soube melhor distanciar-se de dualismos e dogmatismos classicamente modernos, os quais ainda se refletiriam, infelizmente, na mania norte-atlântica, do século XX, e já agora no século XXI, de linguistificação da filosofia, como por uma nova versão moderno-platonista de ascetismo anti-sensualista.

Tentando, de nosso lado, contribuir para que deixe para trás o que entendemos como seus vícios de origem, podemos interpelar o novo linguisticismo hermenêutico-neopragmatista, em boa medida também o pós-estruturalista, através de algumas questões preliminares, começando por aquela central, seguida de outras acessórias. Com efeito, será mesmo preciso deter-se numa concepção filosófica ascética e idealistamente linguocêntrica, que cremos empobrece nossa relação sensível e criadora com o mundo também tomado como sensível, para, por essa via, sustentar e aprofundar o abandono das limitações representacionistas-correspondentistas do mentalismo solipsista e do fundacionismo dogmático, para daí então assegurar maiores ganhos antiautoritários e pluralistas, além de supostamente romântico-criativos, para um possível florescimento da cultura e da política democrática, enfim, para uma efetiva virada radical, prático-poiética, pós-cartesiana e pós-platônica, não logocêntrica, da filosofia?

Pois para nós, é em primeiro lugar uma ênfase na prática sensível que melhor deixaria para trás tudo isso, sendo sobretudo através de uma compreensão pragmática e também holística, anti-teoricista, da “precedência” e “onipresença” dessa prática, que podemos chegar de maneira melhor às consequências mais desejáveis de tal superação do dualismo e abstracionismo modernos, da qual uma concepção pragmatista ou não-representacionista da linguagem seria apenas um dos elementos. Isso, ao tempo em que nos afastamos das sombras remanescentes de idealismo e dualismo, de agnosticismo e ceticismo, do linguocentrismo, bem como nos libertamos de uma descrição abstrata e ascética do mundo, isto é, de uma representação da nossa relação com ele como empobrecida, mantida abstrata, em última análise, apenas cognitiva, como no positivismo cartesiano originário. A interação prático-sensível, como “mediação” incontornável com o mundo e os outros, na nossa opinião, faria tudo isso mais e melhor do que a linguagem dominantemente verbal e cognitiva, sem aqueles prejuízos, sendo essa, para nós humanos, apenas um dos elementos da prática, por muito presente e relevante que eventualmente seja.

Como usuários de linguagem verbal que, entre outras coisas, também somos, movemo-nos já sempre e inevitavelmente, no que diz respeito às nossas descrições do mundo, e certamente também a uma parte de nossa comunicação, com ela e dentro dela – esse relevante componente da maior parte das práticas e interações humanas. Logo, movemo-nos assim, embora de modo algum só por isso, num contexto intersubjetivo, cultural, social, com o qual necessariamente negociamos, o mundo a essa altura já dito e redito, além de objetivamente povoado por uma infinita riqueza de signos, não apenas linguísticos, com nossas interações potenciadas e variadas com o suporte da linguagem nas suas diversas formas, mas não só por ele. Pode-se, então, perguntar: isso é dizer que não nos movemos também já sempre como seres prático-sensíveis dentro do mundo enquanto sensível e prático, de um mundo nosso, nós e ele como sensíveis, e isso como particulares criaturas físicas, corpóreas, prático-ativas etc.? E não o fazemos dentro de um mundo sensível criado por nós (que nos cria também, certamente), que tem mais e mais a marca de nossa atividade, não enquanto povoado de coisas “estranhas” que nada dizem nem significam ou expressam, porém, como corporificação, expressão e suporte de nossos propósitos e significações, logo também de nossa racionalidade, sendo ele a essa altura exatamente isso: um mundo constituído e composto por nossas práticas e, dentro delas e para elas, por nossas próteses, criadas por nós, os objetos tomados, produzidos ou postos, como dissemos no começo do texto, como isso ou aquilo, para isso ou aquilo, justamente por nós, sensível e corporeamente?

Infinitamente mais – e mais literalmente – do que na velha tirada pragmatista-humanista-protagoriana (invocada por William James), de que “os rastros da serpente humana estão em toda parte”, o mundo é ele próprio radicalmente e de diversas maneiras feito e mapeado por nós, assim como é para nós sensível e concretamente fazedor e mapeador. Nessa perspectiva, entre a linguagem como o humano, de um lado, e as abstratas empobrecidas intuições sensíveis, como o inumano supostamente hard, do outro, os dois como no fim de contas dissociados como gostariam de entender justamente os positivistas abstratos e fisicalistas, podemos ficar agora com uma outra posição: aquela da prática sensível, social, significadora, criadora e holística. E, por essa via, a do integral enredamento entre um mundo progressivamente mais humano e nós enquanto seres humanos mundanos que a ele “correspondem” (em sentido bem mais completo e interessante) e que são junto com ele modelados, p. Pois, para nós, são as práticas sensíveis, as artísticas também, que põem e repõem e reinventam o mundo, e que assim primeiro o significam, que são a um só tempo o que somos e quanto é o mundo.

No meio disso, uma crença sobre o mundo é apenas uma disposição de ação prática, ou igualmente de fruição, nascida da e testada na prática sensível, pela interação sensível com o mundo prático, crença que se torna, portanto, um hábito na e pela ação, e não por certo apenas e primeiramente um hábito linguístico, nem mesmo necessariamente um hábito cognitivo. Dando a essa questão (que visivelmente remete a Peirce e Alexander Bain) uma volta inteira: um hábito de ação já é em boa medida uma crença significadora do mundo mesmo que – imaginemos – ainda não linguisticamente formulada. Do mesmo modo, e apelando ainda aos primeiros esteios do pragmatismo americano clássico, mas nem de longe só a eles, nossa noção apropriada, também apropriadora, de alguma coisa, é aquela dos efeitos sensíveis que podemos esperar dela (e que podem nos orientar para ela) no quadro de uma interação sensível com ela. Ou seja, é seu comportamento (não só o nosso), na nossa atividade de lidar com ela e por fim de usá-la ou transformá-la, e isso com base na experiência anterior, sensível e prática, que dela tivemos. Tal noção é uma projeção de uma experiência anterior com ela, orientada por propósitos, como antecipação de um comportamento posterior e uma aptidão para modificá-la e à nossa relação com ela.

Por que, podemos perguntar, o sensível não-linguístico não poderia ser tomado de um modo não empirista abstrato, além de não-fundacionista, não mais como fonte de suposta representação pictórica em nossas mentes, nem como algo originário, imediato, dado, mas como mediado em primeiro lugar pela prática, por uma significadora interação sensível com ele, envolvida assim por nossos propósitos, interesses, gostos, fantasias e caprichos? A linguagem não pôde ser separada do paradigma empirista lógico-analítico, para afirmar-se como “primeira” – e como coisa prática e não representadora – sem por isso ser assumida de modo fundacionista? Se a linguagem poderia ter toda uma centralidade, ser alegadamente esse primeiro inarredável e incontornável (como antes as intuições sensíveis), sem aparecer por isso como nova fundação, salvo se como fundação de um certo antifundacionismo, por que não a prática e o comportamento enquanto não reduzidos/redutíveis a simplesmente linguísticos? Por que, enquanto “correlato” de práticas e experiências, o sensível mundano só poderia ser acolhido de uma forma fundacionista dogmática, anti-historicista, além de apenas cognitiva, e não como algo plástico e aberto, embora também material e resistente, posto e reposto na/pela atividade intencional humana sensível, histórica, criadora, ou, quanto a isso, posto mesmo pela atividade “não histórica” de qualquer outro organismo vivo, sem necessariamente competências comunicativas especificamente verbais, isto é, sem linguagem?

É verdade que, para tudo isso, poderia haver uma resposta simples: porque o sensível como prática ou atividade, como interação sensível, uso ou o que seja, por si só não significa, não dá significado a coisa alguma, nem se constitui tampouco em significação corporificada. Por isso, ela, a prática sensível humana, por si só poderia ser apenas um lidar com as coisas que vem depois da linguagem verbal, já que só a linguagem verbal significaria. Caso contrário, ela necessariamente se reduz a um lidar animal ou maquinal, totalmente desprovido de semelhança com o nosso lidar propriamente humano, cultural, histórico. Ora, estamos dispostos a afirmar que, muito pelo contrário, são os seres humanos e suas práticas, enquanto contexto e sociedade, que significam o mundo pelo seu constante e renovado uso, criação e fruição sensíveis, o que não quer dizer necessariamente apenas e em primeiro lugar os seres humanos como linguagem, nem, de outro lado, quer dizer significado enquanto estritamente linguístico. Mas quer dizer os seres humanos essencialmente como prática social e pessoal sensível, e essa sua prática como uso no sentido mais amplo do termo, que inclui apropriação, fruição, cognição, criação e, finalmente, a própria produção material de coisas, também no sentido mais amplo do termo.

São nossas práticas, nossos usos, incluindo o nosso fazer e a nossa invenção, não enquanto meramente linguísticos nem primariamente linguísticos, que efetivamente significam e ressignificam o mundo (e a nós mesmos) – e, como dizíamos lá no começo, que o recortam e compõem assim ou assado, que o tomam como isso ou aquilo, ou seja, como tendo esse ou aquele significado, para nosso proveito, deleite, potenciação ou o que seja. Como para qualquer outro organismo vivo, de onde viria a significação do mundo, do seu mundo próprio, senão da sua atividade prático-sensível “nele” e “sobre” ele? – algo ser bom ou ruim, proveitoso ou danoso, ser isso ou aquilo, ser meio de vida ou ameaça, gratificação ou aversão, alimento ou abrigo, sólido ou líquido? Dessa maneira,e modo poderíamos finalmente concluir que significado é uso não somente no caso de palavras, como na famosa máxima da virada linguística (v.g. Wittgenstein), mas também e primeiramente uso sensível, do mundo e das coisas.

Assim, descrever e redescrever o mundo, e testar novos vocabulários sobre ele, para um antirrepresentacionista, não poderiam significar apenas dizer o que ele é para nós, interpretá-lo e reinterpretá-lo de novos modos, para com isso fazê-lo, então, ser assim ou assado, para assim torná-lo isso ou aquilo, com novos e melhores resultados. Pois Ora, esse próprio descrever e redescrever, pelo menos no caso dos seres humanos, é apenas parte de nossas práticas de – em sentido muito material e sensível – efetivamente criá-lo, constituí-lo e reconstituí-lo praticamente. O correlato de uma “redescrição”, não sendo o mundo, pictoricamente falando, será antes de mais nada um curso de conduta, um novo comportamento que uma redescrição promove ou patrocina, ou ao qual reciprocamente corresponde a posteriori.

Dessa maneira, entretanto, justamente porque não se trata de tomar a nova descrição ou vocabulário como reflexo melhorado do mundo, isto é, como representação mental correspondentista, quem for não-representacionista se vê na injunção de apreender as coisas “do jeito certo”, e de lidar com elas, praticamente, da melhor forma. Inclusive para conduzi-las a uma outra figuração, fazê-las mais radicalmente assim ou assado, fazê-las isso ou aquilo – de um modo que só a experiência, de novo a própria conduta, poderá depois testar, verificar e estabelecer. Um novo vocabulário, não querendo ser uma imagem mental do que é o mundo, mas seguramente do que este pode ser e do que nos pode conduzir até isso, remete ou responde em primeiro lugar a uma conduta, mais do que a uma imagem envolvida em algum tipo de dissociação com respeito ao mundo enquanto sensível. Como já temos sugerido, seria ingênuo imaginar que um vocabulário faz muita coisa antecipadamente e de modo forma completamente independente com respeito à ação, concebida então equivocadamente como algo que apenas se lhe sucede.

Não compreendo, por conseguinte, como o “linguocentrismo redescritivo” pode pretender impor uma perda do mundo, quando qualquer descrição que dele tenhamos faz apenas parte de nosso encontro com ele e do nosso “pô-lo” e agir nele e sobre ele. É para a visão anterior, positivista, que o mundo foi perdido, aquele mundo em si e de ninguém, reduzido a intuições sensíveis atomizadas. O que não impede, aliás, que também de uma boa imagem “redescritora” ele venha a escapar de novo, pois o mundo, tal como as pessoas, é mutável e mutante – muda, digamos, em e por si mesmo, sem que o faça apenas nem necessariamente por uma desencarnada e dessituada logopoiese fundante. Não 7entendemos, portanto, como pode, a discursos que devem lidar com o mundo, deixar de interessar ir ao encontro do que ele “realmente” é, de como ele “realmente” se comporta, ao encontro de como efetivamente não o perdermos de vista, mas de como mantermos – na verdade, melhorarmos e potenciarmos – nosso contato prático com ele, no mais amplo e variado sentido.

O que fica faltando sublinhar é que já sempre vivemos em interação fazedora com o mundo, e que é em boa medida por nossa causa que ele não cessa de mudar, de nos mudar e de “se reinterpretar” materialmente – por nossas ações e iniciativas, naturalmente. Bem como por isso mesmo não cessa de “cobrar” e “permitir” novas redescrições, mesmo que seguramente não de prescrevê-las, se é isso que uma visão anti-representacionista linguística mais teme. Mas é preciso assumir que, para uma superação do empirismo dogmático e positivista, não se trata apenas de historicizar e poetizar o lado do sujeito, e sim decididamente também o lado do objeto e do mundo material, desses enquanto prático-sensíveis, como dois lados separados e distinguíveis apenas de modo muito parcial, em sentido apenas muito relativo e circunscrito.


Poetic-Pragmatic Materialism: Another Paradigm for Contemporary and Brazilian Philosophy

Abstract: The text presents the basic elements for a new, detranscendentalized, poetic-pragmatic paradigm in philosophy, situated between pragmatism and praxis philosophy, a non-foundationalist, non-representationalist, anti-relativistic position essentially opposed to the dominant linguocentric or simply intersubjectivistic ways nowadays generalized in the non-mentalist philosophical scene, as well as it recapitulates the ways of concerted, plural team work and the platform behind the new paradigm's progressive development.

Key-words: Group work. Work in progress. General understanding of things. Improved pragmatism. Reconstructed production paradigm.



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Recebido: 17/08/2022

Aceito: 16/01/2023



1 Professor aposentado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2370-4727. E-mail: josecrisostomodesouza@gmail.com.

2 Ver, sobre isso, p. ex. meu texto Marx and Feuerbachian Essence. In: MOGGACH, D. (org.). The New Hegelians. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

3 Sobre isso, ver, de Marx, Crítica da Dialética e da Filosofia de Hegel em Geral, seção 11 do 3º. dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, ou Manuscritos de 1844, de Marx.

4 As Teses ad Feuerbach, de Marx, ou Teses sobre Feuerbach, de 1845, são geralmente publicadas em conjunto com a Ideologia Alemã, obra de Marx e Engels, do mesmo período. Elas foram consideradas por Engels como o genial embrião (em cerca de duas páginas) da genial concepção materialista histórica e econômica inteira de Marx.

5 Isso no volume I de O Capital, no conhecido trecho em que Marx alega que o pior arquiteto é melhor do que a melhor abelha, porque é capaz de conceber antecipadamente, na sua cabeça, a casa que quer construir.

6 Em seu lado mais epistemológico, as concepções que apresento nesta parte mostram algumas convergências e semelhanças, embora também notáveis diferenças, com relação a outros programas de pesquisa contemporâneos, como o naturalismo filosófico, não reducionista e, em especial, o enativismo. É algo que merece ser explorado, que pode ampliar o esclarecimento e o desenvolvimento do que proponho, pondo também à prova suas pretensões. É o que sugere, de modo maneira muito pertinente e perspicaz, um colega, parecerista anônimo, sobre nosso texto, que indica, quanto ao enativismo, como um possível ponto de partida dessa exploração, o texto de Ralph Ings Bannell, na coletânea do Poética já mencionada, e, a propósito da ideia de uma intencionalidade social e de inferencionismo, os trabalhos de Michael Tomasello, A Natural History of Human Thinking e A Natural History of Human Morality. Outros textos, neste número de Transformação, não são alheios ao nosso assunto, como, em especial, o do colega Giovanni Rolla.

7

8 Estas não são “Referências” usuais. Dado o tipo de texto aqui desenvolvido, ela traz uma lista dos materiais que melhor apresentam e discutem o materialismo prático poiético de que o texto fala, mais alguns que desenvolvem os seus usos ou que estão associados, de modo relevante, ao seu percurso de construção. Esses textos não aparecem em ordem alfabética, nem propriamente cronológica, mas, grosso modo, na sequência de sua centralidade para o projeto, segundo os referidos critérios, ao mesmo tempo que aproximados em blocos por afinidade de assunto ou tipo de publicação.