MAQUIAVEL E A ORIGEM DAS COMUNIDADES POLÍTICAS
Resumo: É possível encontrar em Maquiavel uma expressão significativa do consentimento originário para a explicação da origem das comunidades políticas. Investigam-se, assim, as possíveis recepções desse tema, a partir do pensamento político romano. Com Lucrécio e Cícero, torna-se possível compreender os termos do pacto, qual sejam, o primitivismo no contraste entre homens e bestas, o medo e a segurança comuns como elementos fundantes da comunidade política e a liderança de um homem de destaque. Para isso, lateralmente, debatem-se as premissas aristotélicas da natureza política dos homens e apresentam-se exemplos do contexto de Maquiavel, a fim de corroborar a disponibilidade da linguagem do consentimento originário em acordo com o aristotelismo. O artigo conclui que Maquiavel não possui uma teoria substancial da origem dos agremiados humanos, porque o objeto da política, dentro da maneira pela qual ele a entende, existe apenas mediante a fundação das cidades historicamente determinadas. Logo, o emprego de uma linguagem contratualista, em acordo com a aristotélica, estava dentro de um contexto retórico de despertar a atenção de seu leitor.
Palavras-chave: Maquiavel. Origem da Comunidade Política. Consentimento Originário. Medo. Aristotelismo.
INTRODUÇÃO
Os esforços de evidenciar a presença do pensamento político e histórico de Roma antiga na reflexão maquiaveliana sempre encontraram destaques nas interpretações do florentino. Já há algumas décadas, a ênfase dos termos ciceronianos, particularmente em relação à virtude, é empregada sobretudo no intuito de mostrar as linhas de continuidade com o humanismo. Em anos mais recentes, diversos estudos têm realçado o epicurismo de Lucrécio, no quadro teórico do pensamento do florentino. De fato, o impacto do De Rerum Natura, redescoberto em meados do Quattrocento, abriu caminho para uma filosofia natural, cujo fundamento se distanciava do cristianismo, em particular, e de qualquer forma transcendente ou metafísica da condição humana, em geral. A confirmação biográfica de que Maquiavel conhecia bem o texto acentua as interpretações aproximativas. A despeito de todo esse esforço, alguns termos centrais de Lucrécio e Cícero mais propriamente políticos ainda não foram devidamente tratados, particularmente sobre a origem dos agremiados humanos.[2]
A explicação que seria amplamente retomada, a partir do século XVII, sob a insígnia do contrato social, está presente, de certo modo, no pensamento desses romanos, e não era exatamente estranha a tantos autores da Antiguidade em relação ao tema da fundação das cidades. Os humanos se organizariam em sociedade, com base em um consentimento original, a fim de superar uma condição anterior e fundar a Civitas. O consentimento originário[3] parte da noção basilar de que há dois momentos hipotéticos, metafóricos ou históricos, nos quais os homens vivem e diferem, quando da emergência das comunidades políticas, de tal maneira que haja um operador artificial, a fim de se chegar aos agremiados humanos observáveis em qualquer tempo histórico (GOUGH, 1957, p. 2-3). Pode-se encontrar tal esquemática em Lucrécio, Cícero e, em menor medida, Salústio.[4]
Essa perspectiva pode ser reforçada, na medida em que se compreende o sistema contratualista moderno, particularmente a partir de Hobbes, como uma unidade entre direito natural, contrato e soberania, cujas respectivas origens são profundamente diversas. Durante o século XVII, essa síntese se opôs simultaneamente ao direito divino medieval e ao naturalismo antigo, o que é bastante diferente de afirmar que as ideias do consentimento originário não estavam disponíveis antes desse período. Ainda em inícios do século XVI, afirma Terrel (2001, p. 61-62), mesmo Aristóteles (Retórica, 1376 b) era lido à luz do consentimento originário: “[...] somos conduzidos a interpretar as frequentes referências medievais a um contrato por perceber a existência dos governos ou das cidades como sinais de decomposição do naturalismo aristotélico.” (TEREL, 2001, p. 63). Coloca-se em evidência, como retomaremos na sequência da argumentação, que a contrariedade entre o naturalismo aristotélico e o contratualismo ocorreria apenas em meados do século XVII (TUCK, 1979, p. 32-57).
Maquiavel jamais é sistemático quanto à explicação da origem das comunidades humanas, e há casos nos quais a aproximação com a afirmação aristotélica da natureza política dos homens é evidente (cf. LUCCHESE, 2015, p. 48). Contudo, algumas passagens-chave de sua obra tendem a corroborar a interpretação de uma explicação via consentimento originário. Diante desse cenário, o presente artigo visa a perscrutar a hipótese de que Maquiavel refletiu e se posicionou sobre o consentimento originário para a fundação das comunidades políticas, particularmente em diálogo com autores romanos, mas o fez, como concluiremos, de um ponto de vista retórico e não teórico.
1 QUANDO OS HOMENS VIVIAM COMO BESTAS
Logo depois de anunciar as três formas clássicas de governo, no segundo capítulo do primeiro livro dos Discorsi, Maquiavel afirma que as variações dos governos originais ocorrem ao acaso – distanciando-se, portanto, da versão naturalística de Políbio (ION, 2006, p. 98 n. 2; LUCCHESE, 2015, p. 33; SASSO, 1993, v. 1, p. 66). Porém, antes de esmiuçar as causas que fazem girar cada forma em outra, e assim diferir cada governo da fundação da cidade, Maquiavel insere uma explicação lógica e talvez historicamente anterior à existência dos governos: “[...] no princípio do mundo, os habitantes, que eram escassos, viveram durante algum tempo dispersos à semelhança das bestas.”[5] (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 2, 14). A condição bestial à qual os seres humanos estavam submetidos remete, certamente, a um modo de conceber a origem das comunidades de maneira radicalmente distinta da naturalidade política do animal humano de viés aristotélico (cf. BROWN, 2015, p. 109; MANSFIELD, 1996, p. 117).
Não é necessário que se cogite qualquer antecipação teórica ou filosófica das doutrinas contratualistas típicas dos séculos XVII e XVIII, para aceitar a confrontação com a afirmação aristotélica de que um homem que vive só é um deus ou uma besta (ARISTÓTELES, Política, 1253a) e, se o homem for um deus ou uma besta, por definição, não é um homem. A confrontação da racionalidade humana que enseja a teoria do consentimento originário em adequação ao naturalismo aristotélico estava, certamente, disponível a Maquiavel e era, desde Tomás de Aquino até a virada do século XVI, lugar-comum dos debates sobre as origens dos agremiados humanos (cf. LIMA, 2019, p. 28; TUCK, 1979, p. 17-31), conforme veremos com exemplos à frente.
Todavia, o que de fato nos interessa na passagem é a cogitação de que houve época – histórica, hipotética ou metafórica – em que os homens se comportavam e viviam como bestas e, como tais, não se organizavam sob quaisquer formas civis ou de governo. Dentro do quadro de referências às quais se acredita que o florentino teve acesso, algumas chamam a atenção.[6] Em anos recentes, os estudos maquiavelianos têm centrado atenção na presença de Lucrécio, em sua obra (BROWN, 2015; LUCCHESE, 2015; RAHE, 2006; VATTER, 2014; ZUCKERT, 2017). Parece, de fato, bastante convincente que uma filosofia naturalista, sem divindades e estranha a qualquer transcendência ou metafísica, se encaixe com precisão no realismo de Maquiavel (BACCELLI, 2017; LUCCHESE, 2015, p. 26; PEDULLÀ, 2011, p. 94). Muitas controvérsias em torno do tema têm surgido, porém, aqui não é nosso objetivo debatermos os pormenores da querela. Precisamos apenas reconhecer que, sabendo do acesso que Maquiavel teve ao texto, há passagens muito semelhantes e devemos, a partir dessa constatação, confrontar a hipótese de que Maquiavel reconhecia a robustez teórica ao consentimento originário.
A descrição lucreciana do surgimento e desenvolvimento da vida, ao chegar ao Homem, concebe-o fisicamente diferente do homem que conhecemos: são mais fortes, maiores, mais robustos e mais resistentes: “[...] levavam eles [os homens] uma vida errante à maneira das bestas [more ferarum].” (LUCRÉCIO, De Rerum Natura, V, 932). Textualmente, a frase de Maquiavel é quase uma tradução da de Lucrécio. Contudo, o florentino não acompanha o poeta na sequência da narrativa, a qual afirma que naquela situação bestial não havia trabalho nem esforço, pois a natureza provia as necessidades mais básicas de subsistência.[7] É verdade que – do mesmo modo que ocorre com relação ao seu suposto aristotelismo, muitas vezes aceito acriticamente pelos estudiosos – essa passagem em Maquiavel é demasiadamente curta para que se extraia substantiva teoria. Sobre isso, argumentaremos na sequência, mas devemos adiantar que há um motivo para a brevidade da exposição. Cabe destacar, porém, que a descrição de Lucrécio se assemelha bastante ao que futuramente ficaria conhecido como estado de natureza: não há lei, não há costumes, não há arte ou técnica de nenhuma espécie, entretanto, há medo (LUCRÉCIO, 1924, V, 955-980; cf. SASSO, 1993, v. 1, p. 482).
Igualmente conhecido na Renascença italiana, embora a comprovação do acesso de Maquiavel ao texto não seja clara, é o Da Invenção, de Cícero (cf. PEDULLÀ, 2011, p. 302 n. 1; TUCK, 1979, p. 33). Já nas primeiras frases, escreve o orador romano: “Houve um tempo em que os homens vagavam amplamente nos campos como bestas [bestiarum modo] e sobreviviam de alimentos selvagens.” (CÍCERO, De Inventione, I, 2).
Nessa situação, não havia leis, religião, deveres sociais, casamentos legítimos nem educação das crianças. Algo bastante assemelhado escreve o mesmo autor, em Do Orador: “[...] que outra força teria podido reunir em um só lugar os homens dispersos [...] aqui e ali ou conduzi-los de uma existência selvagem e agreste a este viver humano e civil a instituir leis, tribunais, direitos, uma vez formada a comunidade civil?” (CÍCERO, De Oratore, I, 8, 33). E, logo, na sequência: “Quem poderia concordar com você que o gênero humano, inicialmente disperso nos montes e nas florestas [...]” (CÍCERO, De Oratore, I, 9, 35).
Salústio evoca o mesmo tropo, ao descrever os habitantes da África. “Não eram governados nem por costumes nem por lei, nem eram eles submetidos a qualquer comando de quem quer que seja; errantes e dispersos, tinham sua morada onde quer que a noite chegasse.” (SALÚSTIO, Bellum Iugurthinum, XVIII, 2).
Por um lado, é verdade que não há aqui uma descrição sobre as origens dos agremiados humanos em geral, nem mesmo uma preocupação teórica. Por outro, a menção é importante, porque corrobora as demais e certamente se trata de um autor com o qual Maquiavel lida respeitosamente (cf. ADVERSE, 2007). O que nos interessa, na passagem, é a dispersão de habitantes de uma região geograficamente inabitada em um determinado período e que, assim, viviam sem leis, costume nem autoridade, “[...] à maneira das bestas [ferina]” (SALÚSTIO, Bellum Iugurthinum, XVIII, 1).
Parece claro que esses textos, bem difundidos no Renascimento italiano, tiveram algum impacto em Maquiavel. A noção basilar de que o começo da humanidade não pode ser a mera projeção do presente para o passado é, de certo modo, encontrada no pensamento dele. A dispersão de homens, os quais viviam como bestas, se opõe de modo evidente à congregação das “pequenas partes” (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 1, 4) em comunidades e à autossuficiência das cidades – e aqui é necessário nos determos um pouco sobre os possíveis termos de seu aristotelismo.
2 AS PEQUENAS PARTES OU VILAS[8]
Já nas frases iniciais dos Discorsi, Maquiavel afirma que, após relatar a fundação de uma cidade feita por um nativo ou estrangeiro, que seu objeto se debruça na fundação por nativos. “O primeiro caso ocorre quando os habitantes, dispersos em muitas e pequenas partes, não viviam seguros.”[9] (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 1, 4). Uma cidade é fundada a partir de um grupo de pessoas que vivia em muitos pequenos grupos, seja de maneira coletiva, seja espontaneamente, seja por um único fundador. Há, entretanto, uma clara contraposição entre a cidade e os pequenos grupos, os quais certamente seriam partes integrantes daquela. Esses dois agremiados são, na verdade, etapas distintas de um mesmo todo, realizado no segundo, isto é, a cidade.
Trata-se, claramente, do fenômeno do sinecismo (cf. RINALDI, 2010, p. 419 n. 12). Aristóteles (Política, 1252b) anunciou essa agregação humana como sendo o elemento intermediário entre a família e a cidade, isto é, a vila ou clã (kômê): “[...] se as primeiras comunidades [koinonia] existem por natureza, cada cidade [polis] existe por natureza.” Segundo o estagirita, esse agremiado se entende como não sendo nem mera exigência quotidiana, como a família, nem autossuficiente, como o que caracteriza a cidade.
Apesar de a passagem ser muito breve, em Maquiavel, outras passagens e as ausências de explicações ratificam a noção de que aqui o que ele entende por “pequenas partes” é muito similar à vila aristotélica: não é uma família (da qual Maquiavel não trata), nem uma cidade (pois ele acabara de anunciar a origem da cidade e não poderia ser a origem da cidade a própria cidade dita por outro nome). Logo, o mais razoável parece ser aceitar que o conceito aristotélico é o que se enquadra melhor.
Com relação ao próprio texto de Maquiavel, encontramos características fundamentais na cidade que não existem nas “pequenas partes”. Em todas as cidades, existem dois humores, daqueles que querem dominar e daqueles que querem não ser dominados (por exemplo, em Discorsi, I, 37, e em Il Principe, IX); em todas as cidades, existe a diferença de mando, quer dizer, uma relação de verticalidade entre os homens (cf. MACHIAVELLI, Del modo di tratare i popoli della Valdichiana ribellati; 1997, v. 1, p. 22; MACHIAVELLI, Istorie Fiorentine, V, 6; MANSFIELD, 1996, p. 76 e 112). Nenhuma dessas duas características é encontrada nas “pequenas partes”. Porém, a evidência mais robusta de que as “pequenas partes” não são cidades é que elas precisam de algo para se defender, pois não vivem seguras:
[...] não podendo cada um por si resistir ao ímpeto de quem os assaltasse (pelo lugar e pelo pequeno número), e não tendo tempo de unirem-se para sua defesa ao ver o inimigo; quando isso ocorre, lhes convém abandonar muitos desses lugares e assim tornarem-se presas fáceis dos inimigos.[10] (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 1, 4).
Dito de outro modo, elas não cabem em si mesmas, são presas fáceis de qualquer inimigo que seja, supõe-se, uma cidade já constituída.
A partir do momento em que o inimigo invade o lugar de habitação dessas “pequenas partes” ou as encontra vagantes, algumas se dispersam – fragmentando ainda mais o pequeno agremiado –, outras se tornam dominadas pelo invasor. As que fogem vagam errantes até que, eventualmente, encontrem outras partes pequenas e, quando novamente invadidas, a fuga recomeça (LEFORT, 1972, p. 467). Trata-se, afinal, de um processo migratório sem começo nem fim, no qual o desmonte de uma vida dispersa reinicia a migração das partes que conseguiram fugir.
Não há evidências textuais aqui de que houve alguma forma de vida anterior às pequenas partes, uma vez que uma se origina da outra. Há, na verdade, uma análise precisa de quando e como essas “pequenas partes” deixam de ser assim: a fundação da cidade: “[...] começaram entre eles, sem qualquer príncipe em particular que lhes ordenasse, a viver sob aquelas leis que lhes pareciam mais aptas a mantê-los.”[11] (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 1, 6). Nesse sentido, a fundação é a marca fundamental de Maquiavel. para que se possa avaliar os desdobramentos da cidade como um todo e, nesse caso, a ordenação original é feita sem qualquer liderança. Alternativamente, as cidades fundadas por forasteiros são aquelas cujas “pequenas partes” (uma ou muitas) encontram, em seu caminho vagante, um fundador. A fundação da cidade encerra a migração e impõe forma à matéria (cf. MACHIAVELLI, Discursus Florentinarum Rerum, 1997, v. 1, p. 737; LUCCHESE, 2015, p. 28; MANSFIELD, 1996, p. 64).
Portanto, convém perceber que, em ambos os casos, na fundação coletiva por nativos (exemplo de Veneza) ou na individual por forasteiros (exemplo de Israel), trata-se de dois momentos distintos da existência humana: a vida dispersa em pequenas partes e a vida agrupada em cidades. As cidades têm governos, humores, educação, religião, diferença de público e privado e, sobretudo, defesa militar e segurança (cf. MACHIAVELLI, Discorsi, I, 23; MACHIAVELLI, Giribizi d’ordinanza; 1997, v. 1, p. 709). Isso tudo, porém, faz dela autônoma em relação às outras cidades. A raiz aristotélica desse processo é evidente, embora Maquiavel não precise afirmar a natureza política do homem, mas com diferenças importantes.
Logo, seria tentador buscar a solução para esse impasse, entre uma natureza humana política e perene no tempo (cf. LEFORT, 1972, p. 463) e outra bestial e dispersa metamorfoseada pelo consentimento originário, através de um mecanismo demográfico.[12] Os homens, quando raros e dispersos, viveriam à maneira das bestas. Multiplicando-se as gerações e havendo engrandecimento populacional, eles se reuniriam em agremiados para segurança comum e, assim, estabeleceriam um governo (MANSFIELD, 1996, p. 71). É evidente que esse esforço interpretativo só pode ser feito, porque o autor não oferece detalhes nem escritos suficientes para que se constate tal interpretação, todavia, pelo mesmo motivo, também não é possível descartá-lo.
3 MULTIPLICANDO A GERAÇÃO
A superação da condição bestial da vida humana estava, de certo modo, presente no texto de Lucrécio. “Os reis começaram a fundar cidades [urbis] e a levantar fortalezas para sua própria defesa e refúgio, e eles distribuíam animais e campos a bel-prazer entre os indivíduos, segundo a beleza, a força e o intelecto; porque a beleza tinha grande prestígio e a força era tida com muita honra.” (LUCRÉCIO, De Rerum Natura, V, 1105-1110).[13] Apesar de estar aqui descrito o tema da fundação, o qual comentaremos na sequência, é preciso enfatizar que a distribuição das atividades humanas segue a correspondência da força e da inteligência. Em Maquiavel, a força e a coragem também são elementos que conduzem à organização social: “[...] depois, multiplicando a geração, se reuniram, e para poder melhor se defenderem, começaram a respeitar aquele que entre eles fosse mais forte e corajoso e fizeram-no como chefe e o obedeciam.”[14] (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 2, 14; cf. McCORMICK, 2011, p. 25). O fato de os homens “se reunirem”, para poder melhor se defender, indica um movimento de contraposição à situação anteriormente descrita da vida bestial. Ou seja, os homens superam a condição de bestas, quando se reúnem sob o comando do mais forte e corajoso. A rigidez da separação entre essas duas situações caracteriza a teoria do consentimento originário.[15]
Perceba-se que a ordem lógica ou temporal da criação do comando é inversa da de Lucrécio. Para o poeta romano, o rei cria a comunidade para sua própria defesa, ao distribuir as funções de acordo com a força, a beleza e a inteligência de cada um; conforme Maquiavel, os homens criam o comandante (capo), por este ter mais força e coragem para a defesa deles próprios.[16] Embora o sentido da criação e, portanto, o agente central na formação das comunidades, seja oposto, o fato é que os termos basilares são praticamente os mesmos: rei e comandante, força/inteligência/beleza e força/coragem, defesa do rei e defesa dos homens.[17]
De fato, é possível encontrar passagens em Maquiavel que ratificam fortemente a prospectiva do consentimento originário, particularmente em sua poesia. Em Dell’Ingratitudine (171-176; MACHAVELLI, 1997, v. 3, p. 42), escreve o secretário:
Porque, quando um Estado muda,/duvide que te tenhas feito príncipe tu não lhes tiras o que lhes foi dado/ e não reconheça, pois, nem fé nem pacto/porque é mais potente o medo/que eles têm de ti, do que a obrigação de contrato.[18]
É surpreendente que todos esses termos – o medo, o pacto, a obrigação, o contrato – estejam articulados em torno da explicação da emergência de um governo. Além de corroborar que Maquiavel estava familiarizado com a linguagem do consentimento originário, o trecho sobrepõe o medo à obrigação, característica recorrente, no mais das vezes, no contratualismo moderno. É verdade que se deve ter bastante cautela, quando se trata de confrontar seus textos propriamente políticos com suas poesias, por isso, seus versos ratificam a interpretação de um uso retórico do começo dos Discorsi, mas, evidentemente, não sustenta em si mesmo uma teoria da origem dos agremiados humanos filosoficamente orientada. E, com eles, segundo veremos a seguir, encontramos não apenas o momento do pacto, mas aquele que lhe é anterior.
4. NATUREZA HUMANA E TEMPO HISTÓRICO
Em Dell’Ambizione, Maquiavel descreve algo como uma “idade de ouro” (VIVANTI, 1997, v. 3, p. 760, n. 4) ou um “estado de natureza” avant la lettre. Glosando o Antigo Testamento, mas com a atenção de defender a vida política (DIONISOTTI, 1980, p. 70), desde a criação dos elementos até o Homem, Maquiavel afirma que, depois de expulso do paraíso, Adão legou às gerações seguintes uma situação constrangedora aos humanos. Deus concedeu
[...] à natureza humana pouca amizade,/para privar-nos de paz e pôr-nos em guerra/para tomar-nos toda calma e todo bem,/mandou duas fúrias a habitar a terra [ambição e avareza].[19] (MACHIAVELLI, Dell’Ambizione, 27-31; 1997, v. 3, p. 44).
É importante ter claro que, entre os elementos que não mudam, está a natureza humana: “Nesse mundo, como o homem nasceu,/nasce ainda[20] (MACHIAVELLI, Dell’Ambizione, 13-14; 1997, v. 3, p. 43), o que comprova a constância da natureza e a variação de suas condições de existência (cf. MORFINO, 2015, p. 147; VIVANTI, 1997, v. 3, p. 759 n. 6). Em outro texto, ainda ressalta: “[...] o mundo sempre foi de tal modo habitado pelos homens que sempre tiveram as mesmas paixões.”[21] (MACHIAVELLI, Del modo di trattare i popoli della Valdichiana ribellati; 1997, v. 1, p. 24).
Ora, se a natureza humana não muda no tempo (MACHIAVELLI, Discorsi, proemio), parece pouco cabível sustentar que “[...] viveram durante algum tempo dispersos à semelhança das bestas” (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 2, 14), a não ser que as paixões, embora sejam as mesmas, tenham uma dinâmica que quantitativamente as difere entre os homens, no tempo – “[...] mudando os homens, facilmente se transformam de bons em maus”[22] (MACHIAVELLI, Del modo di trattare i popoli della Valdichiana ribellati; 1997, v. 1, p. 24; cf. MACHIAVELLI, Il Principe, 23, 3; MACHIAVELLI, Dell’arte della guerra, 1; 1997, v. 1, p. 538) – e, assim, os rumos das organizações humanas: “[...] não só variam o governo e o príncipe, mas as leis, os costumes o modo de viver, a religião, a língua, as roupas, os nomes.”[23] (MACHIAVELLI, Istorie fiorentine, I, 5; 1997, v. 3, p. 318; cf. DOTTI, 1979, p. 90; SASSO, 1993, v. 2, p. 127). Certamente, a eternidade do mundo e do homem é um preceito aristotélico aqui respeitado.[24]
Há outras passagens maquiavelianas que igualmente se referem a uma situação poética da humanidade. Inspirado em Ovídio, escreve o florentino: “[...] digo como os antigos poetas que afirmam que aqueles homens que existiam na primeira idade eram tão bons que os deuses não se envergonhavam de descer do céu e viverem juntos com os que habitavam a Terra.”[25] (MACHIAVELLI, Allocuzione ad un magistrato; 1997, v. 1, p. 713). Poeticamente, houve época em que os homens eram bons, mas, progressivamente, substituindo a virtude pelo vício, começaram a precisar de leis que contivessem o avanço da maldade.
O poema Dell’Ambizione sofre uma inflexão, ao apresentar as condições da vida humana: “[...] nos primeiros tempos/um peito ambicioso, um peito avaro,/quando os homens viviam nus e destrutíveis/ por qualquer fortuna, e quando ainda não existiam/ocorrências de riquezas e pobrezas.”[26] (MACHIAVELLI, Dell’Ambizione, 50-54; 1997, v. 3, p. 44).
Essa descrição contraria diretamente o enredo de Lucrécio na afirmação de que, em tempos remotos, os homens eram física e mentalmente diferentes do que são hoje, apesar de a inveja e a ambição estarem presentes no poeta romano (LUCRÉCIO, De Rerum Natura, V, 1126 e 1136). Para Maquiavel, o que muda são as relações e quantidades entre os apetites, as paixões, os quais emergem à medida que aumentam em número e se relacionam cada vez mais, gerando uma “vontade infinita”[27] e uma “vontade ambiciosa”[28] (MACHIAVELLI, Dell’Ambizione, 41 e 58; 1997, v. 3, p. 44), e, com isso, fez-se a primeira morte violenta/no mundo, e a primeira erva sanguinosa![29] (MACHIAVELLI, Dell’Ambizione, 59; 1997, v. 3, p. 44).
Segue-se, então, a descrição da disseminação da maldade e se conclui o passo: “Do que nasce que um desce e o outro sobe;/o que depende, sem lei ou pacto,/da variação de cada Estado mortal.[30] (MACHIAVELLI, Dell’Ambizione, 64-66; 1997, v. 3, p. 44; cf. MACHIAVELLI, Discorsi, I, 6).[31]
Se nos permitirmos uma breve reflexão anacrônica, não seria difícil interpretar a passagem como uma resposta ao contratualismo típico do século XVII. As variações dos postos de comando e obediência entre os homens dependem do stato, aqui entendido como posição de destaque, pela coragem e força – se seguirmos a passagem dos Discorsi – e não das leis ou do pacto. Sem a força, as leis não passam de palavras e qualquer pacto é inútil, quando confrontado pelo medo (BROWN, 2015, p. 112). Mas o interessante é menos a crítica ao teor consensual da origem dos governos e mais o reconhecimento de que essa doutrina era conhecida por Maquiavel e presente em seu contexto (GOUGH, 1957, p. 44-48). É digno de nota que quase todas as referências diretas e indiretas com relação à “idade de ouro”, ao “estado de natureza” ou ao “primitivismo” lucreciano são feitas a partir de poetas antigos e, principalmente, em forma de poemas (cf. BROWN, 2015, p. 105), o que talvez não seja surpreendente, se considerarmos que Lucrécio escrevia em versos (cf. MANSFIELD, 1996, p. 59). Antes de desautorizar a seriedade da teoria, os escritos poéticos forçam uma interpretação, no mínimo, mais cautelosa do que se pode fazer com as raras passagens dos Discorsi também aludidas aqui.
Para Maquiavel, a reunião humana, oriunda do desejo comum de segurança, estabelece o governo do mais forte e corajoso. Um exercício de reflexão poderia levar o leitor a crer em certa proximidade dessa síntese maquiaveliana com o contratualismo moderno e, mais especificamente, hobbesiano, pelo medo, ou lockiano, pelo fato de o governante ser parte do pacto fundador e assumir o comando pela escolha do povo, uma vez que o mais forte e corajoso já vivia entre todos eles (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 2, 14). De todo modo, esse exercício anacrônico apenas confirma a precariedade de se sustentar uma interpretação assim, devido à escassez de material textual.[32] Todavia, não é preciso incorrer em nenhuma “mitologia da prolepse” (SKINNER, 2002a, p. 73) da teoria seiscentista do contrato, para se perceber que a linguagem da função governamental pela segurança comum e o estabelecimento do governante pelo consentimento estavam presentes em seu contexto. Assim, precisamos observar, com alguns exemplos de destaque, como essa linguagem do consentimento originário lhe estava disponível mais imediatamente e ter claro que a contradição para com o aristotelismo ainda não havia sido estabelecida.
5 O CONSENTIMENTO ORIGINÁRIO NO CONTEXTO
O florentino Aurelio Lippo Brandolini, num tradicional tratado principesco, provavelmente de 1490, afirma que o príncipe teve início de seu governo pelo “consentimento comum” [communi consenso], pois os seres humanos são racionais (BRANDOLINI, 2009, p. 3; Proemium, 2), sendo o melhor dos homens escolhido para tal cargo (BRANDOLINI, 2009, p. 61; I, 48). Além disso, há diversas passagens nas quais Brandolini (2009, p. 125; II, 33) alude aos “direitos da sociedade humana” e ao “direito das nações” sustentados na “[...] utilidade comum [communem utilitatem], pelo consentimento tácito de todos os povos.” (BRANDOLINI, 2009, p. 127; II, 34). Mais interessante ainda é que essa linguagem contratualista está embutida em teorias fracamente aristotélicas: os interesses comuns se congregam primeiramente em uma casa (domus) onde vive a família (familia), muitas famílias formam uma vizinhança (via) e muitas vizinhanças formam uma cidade (civitas), concluindo que o governo da cidade é de natureza distinta do governo da família (BRANDOLINI, 2009, p. 174; III, 16-17).
Lauro Quirini, veneziano do Quattrocento, em seu De Repubblica (1449), ao contrário do principesco Brandolini, sustenta um republicanismo aristocrático caracteristicamente humanista, baseado “[...] em grande medida na Política de Aristóteles.” (MARTINS, 2017, p. 59). No entanto, na prospectiva tratadística, o autor necessita justificar a origem das sociedades: “[...] os homens antigamente vagavam [vagarentur] como bestas [ferarum] nas florestas, sem lei [lege], sem costume [more], vivendo de ervas e frutas de muitos lugares [...] como animais ferozes, reuniram-se em unidade [unum reduxit] para a utilidade [utilitas].” (QUIRINI, 1954, p. 126; I, 7-8). Por causa do vício humano, tornou-se necessária a criação de encargos e responsabilidades para alguns, pois a vida isolada é incompleta (QUIRINI, 1954, p. 126; I, 10-11).
Portanto, a comunidade política não é, como quer Aristóteles, um ente natural, mas consequência da utilidade individual que se une à coletiva.[33] Marcada, em abstrato, a origem da sociedade, Quirini explica mais detalhadamente como isso ocorre: a utilidade tem início com o encontro do homem com a mulher, “[...] ao constituir uma casa [domum constituit], surge então a vila [villa] e as vilas em uma grande cidade são constituídas, de tal maneira que emerge a primeira sociedade natural [societas naturalis].” (QUIRINI, 1954, p. 127; I, 25-30). A despeito de possíveis críticas sobre a aporia das duas versões acerca da origem da sociedade, Quirini não observa qualquer contradição em seu republicanismo aristotélico e o preceito de um “estado de natureza”, com a formação da sociedade pela utilidade e não pela natureza teleológica do lógos (cf. MARTINS, 2013, p. 75-77).[34]
Uma análise plausível que buscasse unir essas duas teorias, certamente, deveria deixar de lado todas as controvérsias que se seguiram na filosofia política após Maquiavel e jogar luz sobre alguns termos de conciliação, os quais mais refletem posições de antigos, como Cícero e Lucrécio, e mais contemporâneos, como Quirini e Brandolini, do que de posteriores, como Hobbes e Locke (cf. BIGNOTTO, 1991, p. 166). Se for bem observado, um dos pontos mais candentes de sustentação das hipóteses aristotélica e contratualista em Maquiavel reside na já mencionada passagem:
Nascem tais variações de governos ao acaso entre os homens: porque no princípio do mundo os habitantes, que eram escassos, viveram durante algum tempo dispersos à semelhança das bestas. Depois, multiplicando a geração, se reuniram, e para poder melhor se defenderem, começaram a respeitar aquele que entre eles fosse mais forte e corajoso e fizeram-no como chefe e o obedeciam. (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 2, 14).
Encontram-se aqui os termos que melhor caracterizam os fundamentos contratualistas: o princípio do mundo (observe-se que, para Aristóteles, o mundo não teve princípio, mas é eterno), habitantes raros, dispersos e que viviam como bestas, união para a defesa comum; e os aristotélicos: engrandecimento demográfico gerando uma cidade.
Não parece nada fortuito notar que os conceitos são mobilizados na mesma passagem, em clara conotação de sequenciamento lógico-explicativo, no qual o aumento demográfico reside entre o princípio do mundo e a defesa comum. É tentador afirmar, como indicamos, a partir desse sequenciamento, que Maquiavel une aristotelismo com consentimento originário, substituindo, no primeiro, a operação lógica da decomposição em partes por uma orientação temporal e demográfica[35], e, no segundo, as leis da natureza ou a potência da retórica pelo desejo de segurança. Essa solução, apesar de analiticamente plausível, pela inconclusão do texto e ausência de referências autorais e conceituais, é muito difícil de ser sustentada, em toda sua profundidade. Como vimos, para Brandolini e Quirini, não há qualquer contradição nesses termos. Mas não é implausível que Maquiavel, admitindo-se que era informado de ambas as tradições, buscasse apresentá-las em conjunto, a fim de definir seu próprio objeto de análise. Tensionar essas evidências ao limite significaria forçar um Maquiavel mais atento aos termos filosóficos e metafísicos da origem humana e de seus agregados do que ele se propõe fazer. Se era ou não um pensador filosófico dessa estirpe é tema de debate no qual não nos aventuraremos, mas, certamente, ele não se colocava assim (MACHIAVELLI, Discorsi, II, 5; cf. BAUSI, 2005, p. 164; DIONISOTTI, 1980, p. 255; DOTTI, 1979, p. 86; SASSO, 1993, v. 1, p. 439; VATTER, 2013, p. 2).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tarefa à qual Maquiavel se impõe, diferentemente, diz respeito àquilo que ocorre após a fundação das cidades ou, de modo mais claro, aos “novos modos e ordenações”. A posição dele diante de Savonarola ilustra bem esse argumento (cf. MACHIAVELLI, Discorsi, I, 56). Se, segundo Maquiavel, o frade falava ou não com Deus, ele não sabe – “Não quero julgar se era verdade ou não [...] mas digo com certeza que muitos acreditavam nele”[36] (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 11, 25) -, o que importa é que as pessoas que o ouviam acreditavam nisso (cf. SAVONAROLA, 1898, p. 85 e 263). A abdicação de se julgar a veracidade do “fato” remete, em si mesma, ao que ele identifica como a dimensão eminentemente política das ações humanas: a versão pública é mais importante do que o acontecimento em si, a aparência, mais do que a essência (LEFORT, 1972, p. 508; PEDULLÀ, 2011, p. 104).
Em outra passagem dos Discorsi, Maquiavel retorna o frade para tratar das profecias. Afirma Maquiavel que Savonarola previu a chegada de Carlos VIII a Florença, e soma esse evento a outros da antiguidade, referentes aos sinais e previsões de grandes acontecimentos. “A razão dessa crença deve ser discutida e interpretada pelo homem que tenha informações das coisas naturais e sobrenaturais: o que nós não temos.”[37] (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 56, 8). O fato, o acontecimento e a essência, digamos com ele, constituem problema para os filósofos (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 56, 9). Esse paradigma realista do secretário florentino repercute em sua indiferença com relação à veracidade da origem dos agremiados humanos (McCORMICK, 2011, p. 22). A cidade é constatada por ele como uma existência histórica, de tal maneira que, para os novos modos e ordenações, é algo absolutamente inócua a explicação pelo consentimento originário ou pela teleologia (cf. LUCCHESE, 2015, p. 36), do mesmo modo que não importa a veracidade das falas e profecias do frade dominicano. Nesse sentido, o realismo maquiaveliano auxilia no entendimento de que somente é possível se debruçar sobre a política, na medida em os humanos estejam unidos sob a forma de cidade.
Portanto, à luz do entendimento da política como uma atividade exclusivamente humana, historicamente determinada e sem qualquer interferência transcendente nela (cf. ION, 2006, p. 99)[38], a própria resposta à pergunta sobre a origem das sociedades requer investigações que transpassam a própria política. De acordo com Maquiavel, enfim, não importa a origem dos agremiados humanos, se natural, como Aristóteles, se artificial, como Cícero, em alguma medida, e Lucrécio. Importa o momento da fundação da cidade em toda sua peculiaridade histórica e seus desdobramentos (cf. LUCCHESE, 2015, p. 3).
Nessa perspectiva, torna-se bastante coerente que Maquiavel apenas constate a existência de cidades e investigue os diversos “modos” de fundação e as “ordens” que se seguiram, afinal, é disso que trata a política. E, portanto, nem a cidade nem a política existem fora do tempo histórico. O que, enfim, faz Maquiavel, nesse movimento, é definir as formas pelas quais a política pode ser investigada, ao restringi-la às condições históricas e, com isso, ele exclui a investigação a respeito da origem antes da fundação da cidade (cf. ZUCKERT, 2017, p. 121). Isso não quer dizer que o consentimento originário seja irrelevante ou que, por ser basicamente uma peça retórica, seja menos importante. Aliás, é justamente porque era tido como tema central, naquele contexto, e pelo respeito que Maquiavel lhe confere, que ele mostra toda sua relevância como um artifício retórico.
Mas a questão central ainda permanece, com uma ligeira alteração: afinal, se não é objeto da política a explicação da origem dos agremiados humanos, por que ele faz referência a ambas as tradições? Recentemente, tem-se argumentado (BAUSI, 2005, p. 190-191), com muita perspicácia, que o emprego de Políbio no segundo capítulo do livro um dos Discorsi, malgrado a importância teórica, tinha ainda uma função retórica, qual seja, a de cativar o leitor familiarizado com o historiador, para que, na sequência, apresentasse seu argumento propriamente. O caso em tela é análogo a esse. Escrevendo para um público acostumado com a tratadística antiga, na qual o sequenciamento dos temas era vastamente conhecido e esperado, não se poderia construir nenhuma reflexão teórica que se calasse sobre a origem dos agremiados humanos. A “estratégia de sedução do leitor” (BIGNOTTO, 1991, p. 78) para com os temas do humanismo se segue nas citações indiretas de Políbio e pode, inclusive, ser estendida à suposta contradição entre aristotelismo e consentimento originário, nas citações igualmente indiretas de Aristóteles, Lucrécio e Cícero.
Na verdade, Maquiavel, ao indicar ambos os caminhos, deslegitima-os, não por seu conteúdo filosófico, mas por sua irrelevância para a política. De fato, uma vez conquistado o leitor familiarizado com essas autoridades da antiguidade, o florentino passa para seu objeto efetivo, a fundação das cidades (MANSFIELD, 1996, p. 63). Antes disso, qualquer especulação sobre os agremiados humanos é inócua, qualquer explicação é plausível ou nenhuma delas lhe atende, pois a política somente existe porquanto haja cidade em circunstâncias historicamente determináveis. Nesse sentido, o que faz Maquiavel, ao indicar e negar implicitamente aristotelismo e consentimento originário, é definir o objeto sobre o qual a política repousa: a cidade. Desse ponto em diante, seguramente, pode-se desenvolver uma teoria efetivamente política a respeito do momento da fundação e suas consequências.
MACHIAVELLI AND THE ORIGIN OF THE POLITICAL COMMUNITIES
Abstract: It is possible to find in Machiavelli an expression of the original consent to explain the origin of the political communities. This paper investigates this hypothesis in the approach of the roman political thought. With Lucretius and Cicero, it is clear the terms of the pact, covenant, consensus, and the primitivism of the difference between man and beasts, the fear and the common safety to founder the political community under the leadership of one man. The paper also debates the Aristotelian premises of the political nature of man and explores some examples of the Machiavellian time, that aims to confirms the existence of the language of the Aristotelianism within the original consent. It concludes that Machiavelli does not have a substantial theory to explain the origins of the political community, because politics and its study requires the research of the cities in the historical mean. This contractual language in accordance with that Aristotelian is used as a rhetoric strategy in the beginning of the Discourses.
Keywords: Machiavelli. Origin of Political Community. Original Consent. Fear. Aristotelianism.
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Recebido: 17/08/2022
Aprovado: 18/10/2022
[1] Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ – Brasil. orcid: https://orcid.org/0000-0003-3785-626X. E-mail: luis.alves.falcao@gmail.com.
[2] Sobre a presença indireta de Cícero, nos Discorsi, cf. Walker (1950, v. 2, p. 277). Para uma visão geral dos antigos, nos Discorsi, cf. Bausi (2015, p. 182-188). Os Discorsi serão citados de acordo com o livro, capítulo e linha da edição estabelecida por Giorgio Inglese (2010); O Príncipe, conforme o capítulo e paragrafação fixada por Raffaele Ruggiero (2008); as demais obras, pela edição das Opere, realizada por Corrado Vivanti (1997). Todas as traduções são nossas.
[3] Ainda que não seja propriamente errôneo empregar “contrato”, “pacto” e expressões similares para o universo romano, a fim de evitar anacronismos, pelo fato de que esse campo semântico se solidificou posteriormente a Maquiavel, optamos pela expressão “consentimento originário”, mais comum durante o medievo. Uma característica comum do contratualismo, embora seja mais forte em sua versão moderna, é o preceito natural de que todos os homens buscam a própria defesa. É possível encontrar expressões desse gênero em Maquiavel: “[...] e veja como aos homens primeiramente basta poder se defenderem a si mesmos e não serem dominados por outros” [“et vedete come agl’huomini prima basta potere difendere se medesimo et non essere dominato da altri”] (MACHIAVELLI, carta de 10/08/1513; 1997, v. 2, p. 277; cf. MACHIAVELLI, Discorsi, I, 37). Retomaremos esse ponto sob outro ângulo.
[4] Não seria implausível inserir Deodoro da Sicília entre os autores que apontam para esse tipo de reflexão (cf. SASSO, 1993, v. 1, p. 482), mas aqui não exploraremos essa hipótese, por ser uma conjectura mais distante dos termos conceituais de Maquiavel.
[5] “[...] nel principio del mondo, sendo gli abitatori radi, vissono un tempo dispersi a similitudine delle bestie.”
[6] Noções dessa espécie, segundo as quais houve época em que os homens se comportavam como bestas e que se tornariam homens verdadeiros após um contrato social, já se encontram em referências gregas, particularmente, sofistas, descritas por Platão (Político, 272a e Leis, 739 b-d). É bastante improvável que Maquiavel considere essas fontes e, mesmo que se aponte alguma similaridade, elas seriam demasiadamente distantes da versão romana. Mais plausível é que ele tenha extraído essas ideias dos escritores romanos, com a possível exceção de Deodoro da Sicília.
[7] É importante marcar, por exemplo, a glosa de Maquiavel (Il Principe, 18, 2) sobre Cícero (De Officiis, I, 34), na diferenciação dos modos de combate – os homens, com leis; as bestas, com a força – para que fique evidente que os homens diferem das bestas. Além disso, a despeito de afirmações quase idênticas, a comparação mostra que Maquiavel não seguia, geralmente, as afirmações dos autores citados em toda sua completude (BAUSI, 2015, p. 188). Outro exemplo, extraído tanto de O Príncipe quanto de seus escritos de governo, pode ser visto na descrição da virtù em linguagem francamente ciceroniana, com a imprescindível anulação da justiça como uma das virtudes. Sobre isso, cf. Skinner (2002b, p. 160-185).
[8] Sobre a presença de Aristóteles na obra de Maquiavel, cf. ao menos Falzone (2014), Guillemain (1976), Pedullà (2011, p. 293), Sasso (1993, v. 1), Walker (1950, v. 2, p. 273).
[9] “Il primo caso ocorre quando agli abitatori dipersi in molti e piccoli parti non pare vivere sicuri.”
[10] “[...] non potendo ciascuna per sé, e per il sito e per il piccolo numero, resistere a lo impeto di chi le assaltasse; et ad unirsi per loro difensione, venendo il nimico, non sono a tempo; o quando fussono, converrebbe loro lasciare abbandonati molti de’ loro ridotti e così verrebbero ad essere subita preda de’ loro inimici.”
[11] “[...] cominciarono infra loro, sanza altro príncipe particulare che gli ordinasse, a vivere sotto quelle leggi che parevono loro più atte a mantenerli.”
[12] Os estudos sobre natureza humana e naturalismo em Maquiavel têm merecido destaque em anos recentes. Cf., ao menos, a detalhada análise, com perspectivas críticas sobre a regularidade da natureza, de Lucchese (2015, p. 30-41), a interpretação de Lefort (1972, p. 485), a qual opõe o naturalismo clássico ao racionalismo, e a de Dotti (1979, p. 13), que se embasa nos princípios dos movimentos naturais.
[13] A passagem mais evidente de Cícero sobre o consentimento originário fundador da Civitas encontra-se em De Republica (I, 25, 39), obra que, em sua maior parte, foi redescoberta apenas no século XIX. A despeito de esse trecho específico ser comentado por Agostinho (De Civitate Dei, XIX, 21), é bastante implausível que Maquiavel tenha tido acesso e meditado sobre ele. Por isso, optamos por não comentá-lo. Para uma visão geral do tema do consentimento originário durante o Renascimento, cf. Lima (2019, p. 28, n. 1).
[14] “[...] dipoi moltiplicando la generazione si ragunarono insieme, e per potersi meglio difendere cominciarono a riguardare infra loro quello che fusse più robusto e di maggiore cuore, e feccionlo come capo e lo ubedivano.” O início de um novo governo, seja ele o primeiro de um povo, seja a partir do assalto ao governo anterior, necessita da força indistintamente da forma desse governo (cf. RUGGIERO, 2008, p. 74, n. 1). Aliás, essa ideia é uma constante no pensamento de Maquiavel, pois, já em 1503, escreve: “Todas as cidades que nunca foram governadas por determinado tempo por um príncipe absoluto, por optimates, ou pelo povo, como se governa essa [Florença], tiveram sua defesa através da mescla de forças e prudência, porque essa só não é suficiente e as primeiras ou não conduzem as coisas como se devem ou não as mantêm.” (MACHIAVELLI, Parole da dirle sopra...; 1997, v. 1, p. 12). [“Tucte le città le quali mai per alcun tempo si son governate per principe soluto, per optimati, o per populo, come si governa questa, hanno hauto per defensione loro le forze mescolate con la prudentia, perché questa non basta sola et quelle o non conducono le cose o conducte non le mantengano.”] A diferença para com o texto dos Discorsi é sutil, recaindo apenas na separação entre coragem e prudência. Mas é aqui que ele evidencia que todos os regimes são originalmente sustentados nessas duas características, e isso o difere da versão tradicional principesca de que o primeiro e mais natural dos governos é o principado. Cf. Maquiavel (Il Principe, 6, 6).
[15] Maquiavel elimina completamente a família, como instância intermediária entre o indivíduo e a coletividade. Lefort (1972, p. 470-473) afirma que essa omissão aprofunda “[...] a oposição entre estado de natureza e estado político”, contudo, remete-a ao diálogo com Políbio, e não com o aristotelismo ou o epicurismo. Na perspectiva aristotélica, ele passa diretamente para a vila (komê); na perspectiva lucreciana, para comunidade política em forma de Civitas. Isso reforça a prospectiva do consentimento originário, na medida em que se percebe a preponderância individual na formação dos agremiados humanos, de caráter voluntário, consentido, não natural nem espontâneo, mas mediado pela vontade e pelo desejo de segurança. A favor de uma interpretação aristotélica, todavia, pode-se lembrar que as “pequenas partes”, quando não se transmutam em cidades, fenecem e, com elas, qualquer vida humana.
[16] Salústio (Bellum Catilinae, II, 1) ressalta que os primeiros governos são sempre de reis, que exerciam o poder pela inteligência ou pelo corpo, ou seja, por atributos físicos e intelectuais do comandante originário.
[17] Lucrécio já havia exprimido a ideia de que “[...] grande parte [dos homens] conservava plenamente seus acordos [concordia]; caso contrário, todo gênero humano teria sido destruído, nem poderia a descendência ter-se propagado até hoje.” (LUCRÉCIO, De Rerum Natura, V, 1025). É verdade, porém, que, antes de um acordo geral de todos para com todos em razão da fundação das comunidades políticas, trata-se aqui de acordos individuais, nos quais se asseguram as vantagens de cada uma das partes em situações específicas. Nada semelhante ocorre em Maquiavel: seu princípio de união se volta tão somente à formação de um coletivo.
[18] “Perché, quando uno stato mutar fai,/dubita chi tu hai principe fatto,/tu non gli tolga quel che dato gli hai;/e non ti osserva poi fede né patto,/perché gli è più potente la paura/ch’egli ha di te, che l’obligo contratto.”
[19] “[...] alla natura umana poco amica,/per privarci di pace e porne in guerra/ per torci ogni quiete e ogni bene,/mandò duo furie ad abitare in terra.”
[20] “Queste nel mondo, come l’uom fu nato,/nacquoco ancora;”
[21] “[...] il mondo fu sempre ad un modo abitato da uomini che hanno avuto sempre le medesime passioni.”
[22] “[...] mutandosi gli uomini facilmente e diventando di buoni tristi.”
[23] “[...] non solamente variorono il governo e il principe, ma le leggi, i costumi, il modo del vivere, la religione, la lingua, l’abito, i nomi.”
[24] Sobre esse complexo tema, cf. ao menos Sasso (1993, v. 1, 167-399). Cf. Maquiavel (Discorsi, II, 5).
[25] “[...] dico come gli antichi poeti, i quali furono quelli che gli uomini erano nella prima età tanto buoni, che gli Idei non vi vergognorno di discendere di cielo et venire insieme con loro ad habitare la terra.”
[26] “[...] ne’ primi tempi/un petto ambizioso, un petto avaro,/quando gli uomini vivieno e nudi e scempi/d’ogni fortuna, e quando ancor non era/ di povertà e di ricchezze esempi.”
[27] “voglia infinta”
[28] “voglia ambiziosa”
[29] “[...] si fe’ la prima morte violenta/nel mondo, e la prima erba sanguinosa!”
[30] “Di qui nasce ch’un scende e l’altro sale;/di qui dipende, sanza legge o patto,/il variar d’ogni stato mortale.”
[31] Há casos em que “pacto” (patto) é utilizado por Maquiavel (Del modo di tratare i popoli della Valdichiana ribellati, 1997, v. 1, p. 23) com o sentido de conquista ou acordo de submissão entre dois povos, a fim de evitar a guerra (cf. MACHIAVELLI, l Principe, 8, 3) ou para defesa comum (cf. MACHIAVELLI, Dell’arte della guerra, I; 1997, v. 1, p. 556). Savonarola (1898, p. 80), em sua pregação sobre Ageo, de 12 de dezembro de 1494, descreve uma antiguidade de pura graça, mas, passando os tempos, “[...] pela voluptuosidade, os homens se tornaram efeminados e, consequentemente, mais fracos.”
[32] Uma importante evidência disso é a referência de Maquiavel à reunião de diferentes povos pelo medo comum do ataque de outro povo (MACHIAVELLI, carta de 20/06/1513; 1997, v. 2, p. 263). Se, por um lado, o medo pode ser visto como o operador da união de uma cidade, ele também o é para aproximar povos diferentes. Isso oportuniza a compreensão da potência do medo no sistema de Maquiavel (Il Principe, 17), mas, contrariamente, enfraquece a dimensão consensual que origina cidades. Há uma clara inspiração em Salústio (Bellum Iugurthinum, XLI, 4-5), no fato de que o medo une as cidades já formadas.
[33] A respeito da utilidade em Maquiavel, com referência a Cícero, cf. Walker (1950, v. 2, p. 278).
[34] Em 1483, Bartolomeo Scala publica um diálogo no qual apresenta o debate sobre a existência ou não de leis naturais e em quais medidas essas leis são concernentes aos costumes dos diferentes povos. Impactado pelas recentes descobertas geográficas, o texto comenta os “[...] povos desconhecidos que vivem completamente sem leis, como bestas [ferarum] obedecendo a natureza.” (SCALA, 2008, p. 175; On laws and legal judgments, 13). Na sequência dessa passagem, argumenta-se que a lei da natureza se sobrepõe a todas as demais e que é a única forma de se “viver bem”, numa clara alusão à boa vida aristotélica. Como nos outros dois humanistas, Bartolomeo Scala concilia as noções de consentimento originário com aristotelismo. Ainda que se tenha claro que Scala era provavelmente mais conhecido do entorno de Maquiavel, e provavelmente dele próprio, do que, por exemplo, Quirini, os termos do primitivismo e do consentimento originário são menos desenvolvidos por ele.
[35] O desenvolvimento demográfico das cidades é tratado em alguns lugares por Maquiavel, mas devemos remeter à circularidade entre o engrandecimento populacional de Roma com sua expansão (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 4-8; MACHIAVELLI, Discorsi, II, 3). Cf. Pedullà (2001, p. 132).
[36] “Io non voglio giudicare s’egli era vero o no […] ma io dico bene che infiniti lo credevono.”
[37] “La cagione di questo credo sia da essere discorsa e interpretata da uomo che abbi notizia delle cose naturali e sopranaturali: il che non abbiamo noi.”
[38] Para uma leitura diferente, cf. Dotti (1979, p. 71).