A CULTURA PODE EVOLUIR?


Paulo C. Abrantes1


Resumo: O artigo parte de uma distinção entre tipos de descrição que podem ser propostos para uma dinâmica populacional, incluindo uma descrição “darwiniana”, em termos de variação, herança e aptidão diferencial, envolvendo as entidades que compõem a população relevante. Em seguida, propõe-se uma categorização de tipos de populações culturais e investigam-se as condições mais gerais que precisam ser satisfeitas, para que as dinâmicas dessas populações tenham um caráter evolutivo e darwiniano, com ênfase na população composta pelos próprios traços culturais. Destacam-se algumas abordagens da evolução na linhagem hominínea, como a teoria da dupla herança e a memética, que concedem à evolução cultural um lugar privilegiado nos seus cenários. Essas abordagens contribuem, desse modo, para o desenvolvimento de uma teoria geral da evolução cultural, e aqui se comparam, nesse tocante, com outras abordagens. Esses confrontos também permitem ilustrar analogias entre a evolução biológica e a evolução cultural, bem como falhas na analogia.


Palavras-chave: Evolução cultural. Populações darwinianas. Populações culturais. Seleção cultural. Teoria da dupla herança. Memética.



Introdução2

Este ano comemoramos o sesquicentenário da publicação de A Origem do Homem. Nada mais apropriado, portanto, do que começar este artigo mencionando que o próprio Darwin traçou, nessa obra, alguns paralelos entre a evolução biológica e a dinâmica cultural.3 Até hoje perduram, contudo, controvérsias sobre a pertinência e a fertilidade desse paralelismo entre os mecanismos que atuam na evolução biológica e os implicados na “evolução” cultural (e colocamos esse termo entre aspas, para não cometer petição de princípio supondo, justamente, o que está em questão).

A pesquisa sobre a evolução cultural só foi retomada, de modo regular e mais difundido, a partir dos anos 1970, com a construção de modelos importados da genética de populações por Cavalli-Sforza, Feldman, Richerson e Boyd, entre outros (ABRANTES, no prelo).

Na primeira e na segunda partes do artigo, apresentamos vários tipos de explicações populacionais, incluindo uma explicação “darwiniana”, e indicamos como podem aplicar-se a populações culturais, de modo a deixar claro o sentido preciso que damos à expressão “evolução cultural”. Na terceira parte do artigo, a mais central e longa, colocamos o foco em uma dessas populações – a população composta pelos traços culturais dos agentes – e explicitamos as condições mínimas que devem ser satisfeitas para que essa população, em particular, seja tomada como “darwiniana”. Sublinhamos, também, as analogias e desanalogias com os parâmetros que descrevem, minimamente, a evolução das populações biológicas. Na quarta parte, discutimos se haveria algo como uma “seleção cultural”, por analogia com a seleção natural, e comparamos diferentes entendimentos daquela expressão, conforme a abordagem adotada para a evolução na linhagem hominínea e o papel que atribuem à cultura, nesse processo.

Nas seções finais do artigo, apontamos para outras causas que podem afetar a dinâmica cultural, como a deriva, e distinguimos fenômenos culturais micro e macroevolutivos. Por último, indicamos como se pode ampliar o foco inicial do artigo, para se investigar as populações culturais situadas no nível dos grupos culturais, e a forma como suas dinâmicas podem contribuir para a evolução cultural como um todo, isto é, envolvendo o conjunto das populações culturais. No fechamento do artigo, voltamos a circunscrever o presente estudo, indo além do que é focalizado na primeira seção, chamando a atenção para as diferenças entre o tópico das origens evolutivas da cultura, o da coevolução gene-cultura e o da evolução cultural, propriamente entendida, a despeito de serem intimamente relacionados.


I. Evolução e Cultura

A expressão “evolução cultural” é duplamente ambígua, pois incorpora a polissemia de cada um dos termos que a compõem. Neste artigo, empregamos o termo “evolução”, no sentido que adquiriu a partir de Darwin e que veio sofrendo modificações, dentro desse quadro teórico geral, como veremos. O naturalista inglês não conhecia os mecanismos que estão na base do processo de seleção natural – como os responsáveis pelo surgimento da variação e pela herança –, o que, posteriormente, facilitou e abriu espaço para formulações mais abstratas desse processo, as quais se mostraram convenientes para aplicações da sua teoria em âmbitos não biológicos, como o da cultura.

O termo “cultura” não é menos ambíguo, comportando dezenas de definições (ABRANTES, 2014a, 2020c). Para os nossos fins, neste artigo, não precisamos adotar uma definição particular. Se emprestarmos à biologia o conceito de “fenótipo” – como o conjunto de traços (ou características) apresentados pelo indivíduo (organismo ou agente) –, é legítimo incluir no fenótipo, quando pertinente, os traços culturais, ao lado de outros tipos de traços: anatômicos, fisiológicos etc. O que é distintivo de um traço cultural é o fato de que a aprendizagem social está envolvida na sua expressão fenotípica (ao longo da ontogenia do seu portador). Variantes culturais (VCs) incluem tipos tão diversos, como estados mentais, comportamentos, narrativas, religiões, línguas, formas de organização social, instituições, artefatos materiais etc. (GODFREY-SMITH, 2009, p.150-151; MAMELI; STERELNY, 2009; LEAL-TOLEDO, 2013, p. 192).4

Há diversas modalidades de aprendizagem social, o que permite afirmar que certos animais não humanos também possuem cultura (ver ABRANTES; DE ALMEIDA, 2018, p. 355; LEÓN et al., 2021). É importante frisar que a aprendizagem individual não é capaz, por si só, de explicar o comportamento humano e o dessas outras espécies, bem como sua variação em um mesmo grupo, ou entre grupos diferentes.


I.1 - Tipos de descrição de dinâmicas populacionais

É apropriado adotar uma abordagem populacional, quando temos um sistema composto por elementos suficientemente discretos e autônomos, os quais compartilham propriedades e alteram sua frequência (ou distribuição), ao longo do tempo, nesse sistema (que pode ser tratado, então, como uma população). A abordagem populacional aplica-se, de modo especial, a indivíduos biológicos que expressam certos traços fenotípicos, pois o que ocorre no ciclo de vida de um indivíduo tem efeitos na distribuição dos traços na população que ele integra. Por sua vez, essa distribuição afeta, potencialmente, o que se passa nos diversos ciclos de vida dos indivíduos que compõem a população, isto é, nos traços que eles expressam, no decorrer do seu desenvolvimento.

Uma descrição populacional é dita “evolutiva”, quando a distribuição, em um determinado momento, de certos traços (ou características) em uma população de indivíduos é função da sua distribuição, em um momento anterior.

Para ser considerada “darwiniano” requer-se que a dinâmica evolutiva de uma população possa ser descrita em termos de variação, herança e aptidão (fitness) diferencial. Esta seria uma “descrição mínima” de uma dinâmica populacional darwiniana (GODFREY-SMITH, 2009).

A síntese da genética com a versão da teoria originalmente proposta por Darwin – o chamado “neodarwinismo” –, possibilitou conhecer os mecanismos envolvidos na geração da variação, na herança das características dos organismos e na sua reprodução. A introdução de mais parâmetros, associados a esses mecanismos, enseja refinar e complementar aquela descrição mínima, de sorte a descrever-se a enorme diversidade de formas e ciclos de vida, bem como diferentes modalidades de dinâmicas evolutivas. Godfrey-Smith (2009) propõe, nessa linha, uma descrição multidimensional dos processos evolutivos, o que permite distinguir populações darwinianas “paradigmáticas” de “marginais”, abrindo espaço para um gradualismo na descrição desses processos em vários âmbitos, incluindo o cultural (cf. ABRANTES, 2011, 2013).

Uma característica da herança e da reprodução de organismos biológicos é que se baseiam em genes que se copiam com alta fidelidade. Estes podem, então, ser descritos, de modo mais abstrato, como “replicadores” (DAWKINS, 1989; HULL, 2001).

A partir dessas considerações, uma dinâmica populacional é passível de ser descrita, em ordem decrescente de generalidade, como populacional, evolutiva, darwiniana ou em termos de replicadores (GODFREY-SMITH, 2009, p. 148). Esses tipos de descrição estão representados na figura seguinte:


Figura 1: Tipos de descrição populacional5

Shape1

Shape2 Shape3

Shape5 Shape4

replicadores



Shape7 Shape8 Shape6

darwiniana

evolutiva

populacional












Fonte: Adaptada de Godfrey-Smith (2009, p. 148, fig. 8.1)


A descrição de tipo evolutivo seria intermediária, em grau de generalidade, às descrições de tipo populacional e de tipo darwiniano. O tipo mais restrito de descrição é adequado, quando replicadores são identificados nos mecanismos subjacentes aos padrões detectados nas descrições mais gerais. Claidière et al. (2014, p.1) distinguem modelos populacionais evolutivos, selecionistas e “replicativos”. O que chamam de modelos selecionistas corresponde, fundamentalmente, à descrição darwiniana, conforme exposta acima.


I.2 - O caso de traços e populações culturais

Podemos aplicar esses tipos de descrição, mais ou menos gerais e abstratos, aos fenômenos culturais?

Independentemente da fertilidade em se ampliar o escopo dessas descrições – o que somente os resultados do trabalho científico permitem avaliar –, acreditamos que esse empreendimento rende, ao menos, frutos conceituais. Ele nos força a tornar explícitas as condições mais gerais que devem ser atendidas, para que um certo fenômeno seja descrito segundo as várias categorias acima apresentadas, sem necessariamente nos atermos às especificidades do caso biológico. Essa é uma tarefa filosófica, além de científica (ABRANTES, 2020a, 2020b). Em um segundo momento, especificam-se os parâmetros relevantes para se distinguir as dinâmicas de tipos particulares de fenômenos, como os culturais, e os mecanismos que respondem por eles.

Comecemos, então, por indagar as condições para que o pensamento populacional possa ser aplicado à cultura, comparando esse procedimento com o caso biológico. Os traços culturais são passíveis, efetivamente, de uma descrição em termos populacionais: alguns deles aumentam de frequência e outros diminuem, ao longo do tempo; há traços culturais que persistem em uma certa população e outros que desaparecem completamente, podendo-se estabelecer relações entre os estados sucessivos dessas dinâmicas. Os traços culturais que um indivíduo exibe, no decorrer do seu desenvolvimento (ciclo de vida), são condicionados pelos traços que se encontram distribuídos nas várias populações em que ele se insere e, por sua vez, afetam essa distribuição.

As mudanças nas crenças e rituais religiosos da população de escravos negros, após serem traficados para o Brasil, é um exemplo de fenômeno populacional – no caso, especialmente marcado por múltiplas formas de violência, indicando a importância, nesse fenômeno, dos fatores sociais e ambientais em um sentido amplo, além dos psicológicos.

A descrição populacional pressupõe, entretanto, que as VCs, além de terem propriedades em comum, sejam razoavelmente discretas, não por demais coesas ou integradas, o que tem sido alvo de questionamento, pois é adequada para alguns fenômenos culturais mas não para outros (GODFREY-SMITH, 2009, p. 148-149).

Pode-se distinguir diferentes tipos de populações culturais, e cabe investigar as descrições a que cada uma delas se presta. Este será o objeto das próximas seções.


II. Populações culturais

Há quatro tipos de população no domínio cultural, envolvendo agentes humanos e os grupos que integram. O quadro abaixo permite visualizar essas populações, as entidades que as compõem (se biológicas ou culturais) e os níveis em que se situam (se do indivíduo, ou do grupo).



Quadro 1 – Populações no domínio cultural6

Nível

Entidade

Indivíduo

Grupo

Biológica

(reprodução biológica e herança cultural vertical)

PoBi - população composta por agentes com traços culturais

PoBg - população composta por grupos com traços culturais

Cultural

(reprodução não biológica e herança cultural horizontal e oblíqua)

PoCi - população composta pelos traços culturais dos agentes

PoCg - população composta pelos traços culturais dos grupos

Fonte: Inspirado em Godfrey-Smith (2009, p. 150).


O primeiro tipo de população cultural, PoBi, é composto por agentes com fenótipos culturais. Os traços culturais afetam a taxa de reprodução dos seus portadores e são passíveis de transmissão à sua descendência, durante o ciclo de vida desses agentes. Nessa população, os “filhos” culturais são, ao mesmo tempo, filhos biológicos.

Embora não estejamos, aqui, considerando as características fenotípicas propriamente biológicas (anatômicas, fisiológicas etc.), a população PoBi admite uma descrição biológico-evolutiva convencional, porque a reprodução que a caracteriza é biológica (já que os agentes em tela são entidades biológicas), embora a herança seja cultural (e, não, genética), o que tipifica essa população como propriamente cultural (GODFREY-SMITH, 2009, p. 150). Nessa população, a herança cultural dá-se pelo mesmo canal da herança genética, ou seja, por um canal vertical: os filhos herdam dos seus pais não só genes, mas também VCs. Invocando a expressão de Wilson e Sober usada, contudo, em contexto diferente, genes e VCs “[...] compartilham o mesmo destino.” (they share the same fate... WILSON; SOBER, 1994, p. 591-592).

Nesse tipo de população, exclui-se a possibilidade de que também haja reprodução cultural, o que será a característica distintiva da outra população, PoCi, e suscitará vários problemas, conforme veremos. Uma das limitações, portanto, de nos restringirmos a PoBi é que, ao excluir-se a reprodução cultural, essa população não admite um tratamento darwiniano dos canais horizontal e oblíquio (incluindo, também, indivíduos de diferentes gerações) de herança cultural, que funcionam em populações culturais reais, em especial nas humanas.

Temos, por conseguinte, que partir para um segundo tipo de população, composta agora por entidades culturais: os traços culturais dos agentes (PoCi). Cogita-se, em princípio, uma reprodução dos próprios traços culturais e não mais, simplesmente, a dos seus portadores. Mais adiante veremos, contudo, que essa reprodução tem um caráter formal, e não material.

A população PoCi é composta, portanto, pelos próprios traços culturais. A transmissão de traços culturais (a herança) pode ser, também, horizontal e oblíqua: os “pais” culturais não são, necessariamente, os pais biológicos.

Mesmo na população PoCi, os agentes portadores das VCs não podem, evidentemente, ser dispensados. A população de VCs não é “desencarnada” e tem que ser implementada em cérebros ou, talvez, em outros meios, como redes de computadores (BLACKMORE, 2000). Nesse tocante, a diferença fundamental entre as populações PoBi e PoCi é que, nesta última, se admite como portadores não só os pais biológicos, mas também os pais culturais.

As duas populações descritas até aqui se situam no nível do indivíduo. Se passarmos ao nível do grupo, temos duas populações congêneres: PoBg, uma população composta por grupos com traços culturais, e PoCg, uma população constituída pelos traços culturais desses grupos. Chamamos a atenção para o fato de que, agora, os traços culturais não são os traços dos indivíduos-membros desses grupos, mas os traços de cada grupo, tomados como um todo.

Abrantes (2011, 2013) explora a dinâmica evolutiva em PoBg para investigar as condições nas quais poderia ter ocorrido alguma transição em individualidade (MAYNARD SMITH; SZATHMÁRY, 1997), nessa população, em especial no âmbito de grupos de caçadores-coletores do Pleistoceno. A hipótese investigada é que esses grupos podem ter funcionado como indivíduos, no sentido propriamente biológico-evolutivo do termo.7 O caráter biológico de PoBg não é evidente, todavia, pois envolve a difícil questão do que seria uma reprodução de grupos.8

Exemplos de traços em uma população do tipo PoCg seriam línguas, instituições, sistemas jurídicos, formas de governo etc. que caracterizem o grupo em tela.9 Esses traços não têm maior ou menor representação dentro de um grupo, como ocorre com outras VCs, pois são, em princípio, compartilhados por todos os membros do grupo. O conjunto desses traços constitui algo como o “fenótipo” do grupo. Frequentemente, esses traços diferem de um grupo para outro e, nesse caso, estamos diante de uma (meta)população de fenótipos culturais de grupos. Essa população não deve ser confundida com a população de traços culturais dos membros de cada um desses grupos, o que define a população PoCi.

A população PoCi será especialmente enfocada no presente artigo. Em algumas oportunidades, faremos menções, pontuais, às populações no nível do grupo. A questão que nos interessa, sobretudo, é se PoCi evolui em um sentido genuinamente darwiniano, a saber: se há variação nas entidades que compõem a população, se há herança, e em que medida essas entidades apresentam diferenças em sua aptidão.

Veremos que esses parâmetros têm que ser definidos de diferentes modos, segundo a população considerada, o que talvez comprometa a construção de uma teoria darwiniana geral para a cultura, abrangendo as quatro populações.

Pode-se objetar que as várias populações representadas no Quadro 1 estão sendo demarcadas de forma artificial. Trata-se, sem dúvida, de uma idealização, mas esperamos mostrar que essa categorização tem valor heurístico, ao permitir analisar as especificidades de cada uma das populações culturais, bem como sua dinâmica evolutiva particular, em função de um conjunto de parâmetros (GODFREY-SMITH, 2009; ABRANTES, 2011). Além disso, condições de vários tipos, psicológicas, sociais, ambientais, entre outras, afetam de diferentes modos as dinâmicas dessas populações.

Claro está que a dinâmica cultural “agregada”, digamos assim, será a resultante das dinâmicas evolutivas que ocorrem, simultaneamente, nessas diversas populações. Mas essas dinâmicas podem ser muito diferentes umas das outras, assim como a contribuição de cada uma delas para o que ocorre no agregado cultural. É provável, também, que haja uma interação complexa entre as dinâmicas dessas quatro populações e, nesse caso, não seria correto adicionar, simplesmente, os efeitos desses processos como se fossem independentes.


III. A população composta pelos traços culturais dos agentes é darwiniana?

Para responder a essa pergunta, temos que ter em vista cada um dos subprocessos envolvidos na evolução por seleção natural, de maneira a avaliar em que medida PoCi evolui de modo análogo às populações de seres vivos.

Não há espaço, neste artigo, para nos determos nas condições, sejam elas psicológicas, sejam sociais, para que emerja uma dinâmica evolutiva relativamente autônoma na população PoCi (GODFREY-SMITH, 2009, p. 164). Vamos nos restringir à questão de se essa dinâmica é passível de ser descrita e, eventualmente, explicada em termos darwinianos.

Nesta altura, mantém-se em aberto, portanto, a questão de se uma evolução cultural (EC), caso ocorra, apresenta tantas desanalogias com a evolução biológica (EB) que nos leve a questionar a pertinência de se falar em uma EC, e a fertilidade em se aplicar, no domínio da cultura, os instrumentos conceituais que a teoria darwiniana, em alguma das suas versões, nos oferece.


III.1 - Variação

Há duas questões, bastante diferentes, as quais podem ser levantadas com respeito à variação cultural, por analogia com a variação biológica:

i) Como é gerada a variação cultural?

ii) Como a variação cultural é preservada, ao longo do tempo?

A segunda questão será abordada mais adiante, quando tratarmos das modalidades de herança cultural em PoCi.

Com respeito à primeira questão, a da geração de traços ou VCs, há uma desanalogia patente com a EB: a geração de VCs não é, em geral, “cega” (isto é, desacoplada das condições ambientais), como no caso da variação genética, mas sim “guiada” ou “direcionada”.10

Entenda-se por “variação guiada” que um agente é capaz de gerar intencionalmente variações (culturais, no caso; por exemplo, de gerar novos comportamentos), para responder a um problema colocado pelo ambiente físico e/ou social do qual ele obtém informação. A depender do ambiente, as variações culturais guiadas tendem a aumentar, com maior probabilidade, a aptidão dos agentes, quando comparada a uma geração cega de VCs.11 Claidière et al. (2014, p. 4) exemplificam com os tipos de anzóis usados pelos pescadores, que estes modificam em função do tipo de peixe existente na região onde vivem.

A variação cultural guiada pressupõe capacidades de aprendizagem individual e social (além de intencionalidade, racionalidade etc., capacidades que outras espécies animais não possuem, ou as têm em menor grau). Um agente pode gerar uma nova VC, por tê-la aprendido individualmente, mas também é dita “guiada” alguma modificação que o agente introduza em uma VC que tenha assimilado de outros agentes. Caso tenha sucesso em transmitir essas VCs, em ambos os casos, a composição cultural da população será alterada.12

A partir nessa desanalogia com a EB, é comum afirmar-se que a EC é “lamarckiana” (ou “instrucionista”), em vez de “darwiniana” (ou “selecionista”), embora o uso desses qualificativos possa confundir, mais do que esclarecer (TOSCANO; ABRANTES, 2011; TOSCANO, 2009). Em uma evolução lamarckiana, a variação gerada não é cega mas, sim, guiada pelo ambiente, o que, em princípio, aumenta a probabilidade de que seja adaptativa neste ambiente. Na EC ocorre, portanto, algo desse gênero, devido às capacidades cognitivas dos agentes que integram a população.13


III.2 - Herança

A herança é, indiscutivelmente, um dos requisitos para que tenhamos uma evolução de tipo darwiniano. A questão que se coloca é se existem diferentes sistemas de herança e se podem, ao mesmo título, ser inscritos nesse tipo de dinâmica populacional. Há toda uma literatura dedicada à existência de sistemas de herança (LAMM, 2014; JABLONKA; LAMB, 2006) e sobre como interagem, especialmente no caso da linhagem hominínea. Nesta seção, estamos interessados em saber se existe um sistema de herança cultural, e se ele é darwiniano.

Diferentemente de PoBi, na população PoCi, a transmissão cultural pode ser horizontal e oblíqua. No caso da população PoBi o indivíduo herda os traços culturais somente dos seus pais biológicos; em PoCi, pode também herdar de qualquer outro indivíduo na população, que seriam os seus “pais culturais”.14

Uma outra desanalogia entre a EC e a EB é que a herança cultural não tem a mesma fidelidade da herança genética. Genes são ditos “replicadores” por terem a propriedade de se copiarem muito fielmente (embora erros de cópia também ocorram, o que é, aliás, necessário para que surjam variações e se dê uma evolução por seleção natural). Essa desanalogia pode, efetivamente, comprometer a exportação, para o domínio da cultura, dos instrumentos conceituais disponíveis na teoria da evolução biológica.

A evolução de tipo darwiniana não requer, contudo, replicação com alta fidelidade. Replicadores constituem o mecanismo reprodutivo que está na base de um sistema particular de herança. Um processo evolutivo é passível de acontecer, mesmo se o sistema de herança não é genético (BOYD; RICHERSON, 2005; GODFREY-SMITH, 2012, p. 2161; GODFREY-SMITH, 2009, p. 155; TURCHIN, 2007; 2013). Basta que haja “herdabilidade”, isto é, uma estabilidade nos padrões de similaridade fenotípica entre as gerações que se sucedem.

A memética é uma abordagem da evolução humana que pressupõe que as VCs sejam replicadores, à imagem dos genes. Essa abordagem alinha-se, portanto, com uma descrição mais circunscrita de um fenômeno cultural-populacional, dentre as várias que distinguimos anteriormente (ver a figura “Tipos de descrição populacional”).

Hull (2001) acreditava que a existência de replicadores é necessária para que se tenha uma evolução acumulativa, mas essa é uma outra questão. Não há espaço, neste artigo, para tratarmos da acumulação cultural e, tampouco, do surgimento de novidades culturais em consequência, eventualmente, de uma evolução por seleção natural (SN) ou por seleção cultural (SC).15

Uma distinção conceitual que fazemos, a bem da clareza, é entre “reprodução cultural” e “herança cultural”: a herança é a correlação entre os traços culturais de pais e de filhos (quer pais biológicos, em PoBi, quer pais culturais, em PoCi), devido à reprodução de VCs. Essa reprodução pode dar-se por imitação ou por outros mecanismos de aprendizagem social. Em outras palavras, a reprodução refere-se ao mecanismo causal que promove a herança, com seus efeitos fenotípicos.

A reprodução biológica pode ser assexuada ou sexuada, e a evolução por SN é passível de ocorrer em ambos os casos. A “reprodução cultural” pode, analogamente, ser tanto “assexuada” quanto “sexuada”: neste último caso, o agente combina VCs que assimila de diferentes pais culturais.


III.2.1 - Imitação na evolução cultural humana e vieses psicológicos

A imitação (enquanto modalidade de aprendizagem social) é o mecanismo psicológico por excelência que subjaz à herança ou transmissão cultural no caso humano e, talvez, em menor grau, em algumas outras espécies biológicas, especialmente entre macacos e símios.

Como frisamos anteriormente, a herança não precisa ter alta fidelidade, como no caso da replicação genética, para que uma população seja considerada darwiniana. Mutatis mutandis, a reprodução cultural por imitação não necessita garantir alta fidelidade para termos uma população cultural darwiniana. Além disso, conforme já ressaltamos, uma VC pode ser imitada de um pai biológico ou de um pai cultural com o qual não se tem qualquer relação de parentesco (GODFREY-SMITH, 2012, p. 2164). 

Por outro lado, um agente não assimila indiscriminadamente as VCs que se apresentam a ele. Segundo a teoria da dupla herança, a qual apresentaremos abaixo, pelo menos três tipos de vieses afetam a transmissão cultural: i) o viés de conteúdo (ou direto), (ii) vieses dependentes da frequência e (iii) o viés de seguir modelos, isto é, de assimilar preferencialmente traços culturais de pessoas de prestígio ou que são vistas pelo agente como tendo tido sucesso e que são, consequentemente, tomadas como modelos pelo agente.

(i) O viés de conteúdo atua no sentido de fazer com que o agente assimile preferencialmente uma VC, dentre as alternativas disponíveis, em função do seu conteúdo. Este pode, por exemplo, facilitar ou dificultar a memorização da VC pelo agente;

(ii) os vieses dependentes da frequência estão envolvidos na adoção de uma VC com base em quão disseminada está na população. Quando, por exemplo, o agente tem uma tendência a adotar as características culturais mais comumente exibidas em seu grupo, temos um viés dito “conformista”;

(iii) o viés de seguir modelos atua quando são copiadas, preferencialmente, as VCs adotadas por pessoas com alguma posição destacada na população; ou, ainda, aquelas variantes associadas a pessoas mais assemelhadas àquela que copia a VC.

Esses vieses psicológicos podem ser produtos da própria EB, da EC (BIRCH; HEYES, 2021), ou resultarem do desenvolvimento do agente em um determinado ambiente social e cultural – dos seus hábitos, mais ou menos automatizados ou conscientes.16


III.2.2 - Memética e teoria da dupla herança

Acreditamos ser esclarecedor ampliar o foco desta discussão sobre herança cultural e comparar duas abordagens da evolução na linhagem hominínea: a memética e a teoria da dupla herança.17

A memética adota o “ponto de vista do meme”, por analogia com “o ponto de vista do gene”. Os memes seriam discretos, replicar-se-iam com bastante fidelidade, e sua frequência na população dependeria, exclusivamente, das propriedades que lhes são inerentes (como o seu conteúdo). Isso pode ocorrer em detrimento da aptidão biológica dos portadores: os cérebros destes funcionariam como meros veículos para a replicação dos memes, como se fossem “robôs desajeitados” (lumbering robots) culturais, parafraseando a famosa expressão de Dawkins (1989), que assim qualifica os organismos portadores de “genes egoístas”. Além de ter alta fidelidade, um sistema de herança baseado em replicadores também pressupõe que estes sejam como partículas bem definidas – propriedade que as VCs dificilmente possuem, ou a têm em menor grau –, e que a reprodução seja assexuada, no sentido de que cada VC do agente é herdada de um único “pai” cultural.

Além do conceito de replicação de memes, dois outros são fundamentais para a memética: o de aptidão de memes e o de competição entre memes. Há problemas, contudo, em defini-los, de modo a se aplicarem a VCs, como apontamos neste artigo, em várias oportunidades.

Segundo a teoria da dupla herança, proposta por Richerson e Boyd, a cultura tornou-se um novo sistema de herança a partir de um certo ponto da linhagem hominínea, passando a funcionar paralelamente à herança genética e interagindo com esta última, com enormes consequências para a espécie humana, de forma particular (ABRANTES; DE ALMEIDA, 2018). Nesse sentido, essa teoria pode ser classificada como um tipo de teoria de coevolução gene-cultura. O que nos interessa, neste artigo, é, de modo mais circunscrito, o conjunto de hipóteses e modelos relativos à evolução cultural, estritamente falando, e que estão embutidos na teoria mais ampla (voltaremos a enfatizar isso, na Conclusão deste artigo).18

No que concerne à evolução cultural, a teoria da dupla herança explica, em contraste com a memética, a maior ou menor transmissibilidade de uma VC em função da psicologia dos agentes culturais, quando estes aprendem socialmente e, depois, transmitem uma VC, eventualmente a modificando (o que seria um caso de variação guiada, como vimos).

Um último ponto a ser destacado nesta comparação é que a memética coloca ênfase no conteúdo de um meme, para explicar a sua maior ou menor disseminação em PoCi. A teoria da dupla herança, por seu lado, mostra que, além do viés de conteúdo, outros vieses psicológicos dos agentes culturais, referidos na seção anterior, são relevantes para explicar a dinâmica evolutiva dessa população, e não somente as propriedades supostamente inerentes às VCs. Os articuladores da teoria da dupla herança não aceitam que a evolução em PoCi possa ser abordada de forma “desencarnada”, sem levar em conta a psicologia dos agentes culturais, além das condições sociais e ecológicas em que vivem.


III.2.3 - Herdabilidade

Recapitulemos que a SN só atua, mudando a frequência dos traços fenotípicos na população, se a variação se mantiver estável por muitas gerações, ou seja, se houver herdabilidade.19 A visão mais comum é que somente a herança genética vertical é capaz de garantir a herdabilidade. Entretanto, mesmo se a herança não for genética, pode haver herdabilidade (MAMELI, 2004, p. 36). Para que se possa aplicar o conceito a modalidades não genéticas de herança, como a herança cultural, esse filósofo destaca a necessidade de respondermos às seguintes questões:

(i) quais são os processos responsáveis pela geração de variação fenotípica em aptidão?;

(ii) quão estável intergeracionalmente é essa variação?20

Lembramos que a questão (i) foi levantada na subseção sobre “Variação” em PoCi, nos seguintes termos: “Como é gerada a variação cultural?”

A questão (ii), relativa à herdabilidade cultural, é a que importa abordar agora, pois da resposta a ela depende a possibilidade de uma seleção atuando no domínio da cultura.

A condição de herdabilidade cultural não parece, contudo, ser satisfeita em PoCi, pelo fato de aí ocorrer herança cultural horizontal, o que embaralha, por assim dizer, as linhagens de VCs, incluindo as linhagens de artefatos (GODFREY-SMITH, 2009, p. 155). Ter muitos pais culturais pode comprometer a herdabilidade. Como consequência, se a seleção atua sobre a variação cultural em PoCi, isso seria, em princípio, com pouca intensidade.21 Além da questão da herança horizontal, Godfrey-Smith argumenta que o conformismo e a “inteligência” também destroem as linhagens culturais. A variação guiada depende de “inteligência”, o que compromete a simples imitação e, portanto, a herança fidedigna entre pais culturais e sua descendência.22 No que diz respeito ao conformismo, os pais culturais constituiriam, no caso, a maioria da população, e, se esse viés predominar, a variação se estiola. Se a variação guiada, o conformismo e a herança horizontal predominarem em PoCi, as diferentes linhagens de traços culturais tenderão a desaparecer, mesmo que inicialmente se formem (GODFREY-SMITH, 2012, p. 2165). Nessas condições, não haveria base estável de variação sobre a qual a seleção possa atuar.23

Portanto, saltam aos olhos, também na dimensão “herdabilidade”, as desanalogias entre a EC e a EB. Passemos à análise do terceiro pilar de uma teoria darwiniana da evolução, segundo a descrição mínima: a aptidão diferencial.


III.3 - Aptidão

Embora o conceito de aptidão seja um dos mais centrais, na teoria da evolução biológica – por estar intimamente relacionado com o conceito de seleção natural –, tem sido alvo de muitas controvérsias e admitido várias definições. As discussões tornam-se ainda mais acirradas, quando o conceito de aptidão é mobilizado na construção de uma teoria da evolução cultural. Apontaremos somente alguns dos problemas que são gerados nessa frente, sem a pretensão de os explicitarmos todos, ou de resolvê-los conclusivamente.

Uma definição de aptidão biológica implica, tipicamente, o conceito de reprodução: diferenças em aptidão são diferenças na taxa de reprodução das entidades (e.g. organismos), ou seja, no número de descendentes que geram. Outra maneira de colocar isso seria dizer que a aptidão biológica é um indicador do sucesso de um ser vivo em se reproduzir. A aptidão cultural seria, por analogia, a “taxa de reprodução” de uma VC.24

Henrich et al. (2008) argumentam, entretanto, que o simples sucesso na difusão de uma VC não é uma medida adequada de aptidão. É necessário buscar as causas do sucesso, sob pena de circularidade e de o conceito tornar-se inócuo, sem poder explicativo, no corpo da teoria. A previsão das diferenças no sucesso em difundirem-se, sejam genes, sejam memes, deve ser feita com base em fatores causais investigados de modo independente. No caso da aptidão cultural, há múltiplos fatores que influenciam o aumento na frequência de uma VC na população pertinente como, por exemplo, os vieses psicológicos dos agentes-portadores ou, então, fatores sociais, e ecológicos de forma geral. Henrich et al. rejeitam a ideia de que esse aumento seja pura consequência de alguma propriedade inerente à VC, como o seu conteúdo, segundo pretendem os memeticistas. Vimos que, de acordo com o ponto de vista adotado pela memética, o portador seria, simplesmente, um meio do qual se servem os memes para se reproduzir.

Há outros problemas em se definir aptidão cultural em termos do número de cópias que uma VC “gera”. Bastaria contabilizar o número de cópias – por exemplo, o número de cópias de uma fotografia que tenhamos gravado em um disco rígido? Ramsey e De Block (2017) argumentam que isso seria mero “crescimento” (growth) e deve ser distinguido de uma genuína reprodução cultural, como uma medida da probabilidade de uma VC, como a fotografia, no exemplo, ser transmitida a um outro agente e o afetar de algum modo. Eles propõem, ademais, que se contabilize somente uma única VC por agente influenciado por ela, para efeito de medir a aptidão cultural.

Ramsey e De Block diferenciam conceitos de aptidão baseados no agente-portador do meme e aqueles baseados na VC, ou no meme. Eles defendem a primeira opção como a mais adequada, na grande maioria dos casos, para efeito de se construir uma teoria da EC. Mas admitem que conceitos de aptidão baseados no meme, ou baseados no grupo, possam ser úteis.

Um outro aspecto interessante da posição defendida por esses autores é que associam esses vários conceitos de aptidão a níveis de seleção. Para cada nível de seleção biológica (do gene, do organismo, do grupo etc.) se aplicaria uma noção de aptidão. No caso de uma SC, os níveis seriam os do meme, do seu agente portador e do grupo cultural, os quais teriam seus correspondentes conceitos de aptidão.

Se partirmos da distinção que fizemos entre diferentes populações culturais e aplicarmos o que propõem Ramsey e De Block, a aptidão cultural em PoBi deveria tomar como base o sucesso do pai biológico em transmitir, para a sua descendência, uma VC – na medida em que esta afete, de alguma maneira, as representações e o comportamento dos seus filhos/filhas e, como consequência disso, a aptidão biológica destas últimas.

Mutatis mutandis, no caso de PoCi, a aptidão cultural seria função do sucesso do pai cultural, que é o agente-portador de uma VC, em ser imitado por um outro agente – na medida em que a VC assimilada afete as representações e o comportamento deste último, com impacto na sua aptidão biológica. Ainda com respeito à população PoCi, é concebível uma aptidão da própria VC, conforme pretendem os memeticistas, independentemente de como afete a aptidão biológica dos agentes-portadores dessa VC? Essa noção de aptidão cultural enfrenta, contudo, os problemas levantados acima, mas não deve ser descartada de antemão.

Como no caso dos parâmetros investigados anteriormente, a aptidão tem que ser definida de distintas maneiras, conforme a população cultural em foco e o seu nível, na categorização que adotamos (ver o quadro do início deste artigo). No que diz respeito às populações no nível do grupo, a proposta de Ramsey e De Block se traduziria, em nosso entendimento, pelo sucesso de um grupo cultural – que é o portador de um conjunto de VCs –, de transmitir um subconjunto destas a um outro grupo cultural, afetando a distribuição das VCs que caracterizam esse outro grupo, na medida em que elas impactem a sobrevivência e a capacidade de reprodução desse grupo.

O caso de PoBg é especialmente problemático, pois a noção de reprodução não se aplica de forma óbvia a grupos (ABRANTES, 2013). No caso de PoCg, os problemas que levantamos para se usar a noção de aptidão cultural em PoCi se agravam ainda mais. Voltaremos em outra seção aos casos dessas populações no nível do grupo.

Um outro aspecto relevante para uma análise do conceito de aptidão é que a reprodução biológica pode ter um caráter tanto material quanto formal. Mesmo sendo excepcionais, há casos na biologia (como os retrovírus) que servem de modelo para a idéia de uma reprodução formal, na qual não há transmissão de matéria, além de o ser “vivo” não ter autonomia para fazê-lo, porque depende da maquinaria de uma outra entidade (e.g. a célula do organismo infectado). Se visamos PoCi, a reprodução de VCs é claramente do tipo formal, pois não se dá de modo autônomo, mas depende da “maquinaria” cognitiva dos agentes biopsicológicos envolvidos no processo (GODFREY-SMITH, 2009, p. 133-137; p. 152-155). Em outras palavras, o portador de um traço cultural dispõe de, pelo menos, parte do papel causal envolvido na reprodução cultural. Não obstante, o simples fato de a reprodução ser formal não retiraria o caráter darwiniano da evolução em PoCi, ao menos no que tange à aptidão (GODFREY-SMITH, 2009, p. 79 et seq.).

Todavia, Sperber et al. rejeitam, pura e simplesmente, a noção de reprodução cultural (CLAIDIÈRE et al., 2014). Para eles, não ocorre propriamente reprodução de VCs (por exemplo, quando um agente imita o outro), mas sim a reconstrução dessas variantes pelos agentes que as adotam.

Heinz e Claidière (2011) distinguem a imitação de outros mecanismos de “re-produção” ou “recorrência”. Em biologia, o mecanismo de reprodução favorece a fidelidade, ou a preservação (no caso, do material genético), e, em cultura, há vários mecanismos, tanto os que tendem a preservar, mais ou menos intactas, as VCs, quanto os que são “construtivos”. Trata-se de uma crítica à memética, na medida em que a reprodução de VCs depende do agente que as reconstrói, com os seus vieses, capacidades cognitivas, crenças, interesses etc. Os memes não se transmitem autonomamente, e os seus portadores não são meros lumbering robots culturais.

Voltando à questão inicial: a população PoCi é, afinal, darwiniana? Daríamos uma resposta afirmativa a essa questão, mas, para tanto, teríamos que aceitar uma gradação, proposta por Godfrey-Smith (2009), a qual leva de populações darwinianas paradigmáticas a marginais. Ao nosso ver, a população PoCi seria darwiniana somente a título marginal, já que os parâmetros “variação”, “herança” e “aptidão” têm especificidades, ou desanalogias, se preferirem, se comparados aos que se aplicam a populações darwinianas paradigmáticas, em especial a de muitas espécies de seres vivos.25 Além disso, a reprodução de VCs é, como vimos, de tipo formal, embora também existam casos desse tipo de reprodução no domínio biológico, conforme já mencionado. No caso das populações culturais no nível do grupo, essas desanalogias são ainda mais salientes.

O caráter darwiniano de uma dinâmica populacional, por outro lado, é passível de sofrer alterações substanciais, ao longo do tempo. Na linhagem hominínea, por exemplo, as populações culturais e, em especial, PoCi, podem ter-se aproximado e, eventualmente, distanciado do modelo de uma população darwiniana paradigmática, em função de múltiplos fatores: da evolução da psicologia dos agentes culturais hominíneos, bem como das circunstâncias sociais e ecológicas em que viviam (GODFREY-SMITH, 2009, p. 164). Em períodos mais recentes da evolução do Homo sapiens, as diversas formas de organização social e sua base institucional condicionaram a dinâmica cultural e seu caráter, mesmo que mantenhamos como referência um quadro evolutivo-darwiniano (DE ALMEIDA, 2020).


III.4 - Competição

O termo “competição” aplica-se, normalmente, a uma situação em que há superprodução de descendência combinada com escassez de recursos. Ao menos no caso biológico, muitos consideram que a competição é uma condição necessária, para além de uma descrição mínima, a fim de que tenhamos evolução por SN. Em algumas formulações, a competição substitui, inclusive, a aptidão diferencial como condição para que se dê aquele processo (MESOUDI, 2011, p. 26; cf. GODFREY-SMITH, 2009).

Há que se distinguir, contudo, competição direta e indireta. A situação extrema de uma competição direta seria a luta física entre dois animais. Entretanto, dois indivíduos podem ter diferenças em suas aptidões, em um certo ambiente, sem que haja interação entre eles (por exemplo, sem terem um enfrentamento belicoso). A “luta pela existência” (struggle for life) pode dar-se na simples lida com as condições ambientais em um sentido restrito – por exemplo, se os recursos alimentares forem escassos e/ou o clima muito inóspito. Um indivíduo pode sair-se melhor do que o outro e ter maior aptidão, mesmo no quadro de uma “competição indireta” (e.g. MESOUDI, 2011, p. 29-30). Darwin também admitiu essa possibilidade (ABRANTES; BERNAL, 2020).

Godfrey-Smith (2009, p. 51) faz uma distinção, com mais nuances, entre um cenário no qual o aumento na aptidão de um indivíduo acarreta, como consequência, o decréscimo na aptidão de um outro – dadas as interações que estabelecem entre si e/ou a disponibilidade de recursos –, e um outro cenário no qual isso não acontece. Essa distinção não corresponde exatamente, ao nosso ver, à distinção entre competição direta e indireta que fazem autores como Mesoudi, entre outros (ver ABRANTES; BERNAL, 2020, p. 68, nota 17).

Por analogia com o caso biológico, na população PoCi, é concebível uma “competição” entre VCs em consequência das limitações cognitivas do agente que é o portador dessas variantes, no tocante à memória e à atenção, assim como ao tempo despendido para assimilá-las, entre outros fatores.26 Richerson e Boyd (2005, p. 69 et seq.) distinguem dois tipos de competição entre VCs: pela atenção do agente e pelo controle do comportamento. Os recursos cognitivos do agente condicionariam a medida na qual uma dada VC afeta o seu comportamento. Esses recursos escassos (cognitivos, no caso) favoreceriam o aumento ou a diminuição da frequência de uma dada VC na população PoCi, em competição com outras variantes.27

Darwin empregou a expressão struggle for life, metaforicamente, para referir-se a uma competição entre palavras e elementos gramaticais em uma linguagem. Ele invocou, nesse contexto, as preferências dos falantes e suas limitações de memória:

We see variability in every tongue, and new words are continually cropping up; but as there is a limit to the powers of the memory, single words, like whole languages, gradually become extinct. As Max Müller has well remarked:- “A struggle for life is constantly going on amongst the words and grammatical forms in each language. The better, the shorter, the easier forms are constantly gaining the upper hand, and they owe their success to their own inherent virtue.” To these more important causes of the survival of certain words, mere novelty and fashion may be added; for there is in the mind of man a strong love for slight changes in all things. The survival or preservation of certain favoured words in the struggle for existence is natural selection. (DARWIN, 2004, p. 113).


Mesoudi (2011, p. 31) menciona a competição que teria ocorrido entre tipos de ferramentas líticas, na pré-história, situando-a no contexto das limitações cognitivas dos seus usuários hominíneos.

Não acreditamos que faça muito sentido falar de uma competição direta entre memes, se a entendemos literalmente por referência à competição que se dá entre os seres vivos, mas tampouco parece aplicar-se à cultura a ideia de uma competição indireta. Uma “competição” entre VCs deve ser concebida como um epifenômeno de processos cognitivos complexos que ocorrem nos agentes seus portadores e no contexto das interações sociais que esses agentes estabelecem entre si.


IV. Seleção natural e seleção cultural

Haveria uma causa específica atuando no domínio cultural que poderíamos denominar “seleção cultural” (SC), por analogia com a SN? Não excluímos a possibilidade de que atuem duas modalidades de seleção no domínio cultural: uma SN no sentido biológico, clássico, do termo, e uma SC a ser definida.

Nessa discussão, também nos parece frutífero distinguir entre as várias populações culturais. O que está em foco, nesta seção, são as populações no nível do indivíduo e, especialmente, PoCi. A SN aplica-se diretamente a PoBi, pois, nessa população, a reprodução é biológica, a aptidão é igualmente biológica, embora a herança relevante seja cultural. A SN não atua sobre as próprias VCs, mas sobre os agentes-portadores dessas variantes.28

É uma questão altamente controversa se haveria uma modalidade de seleção que atuasse diretamente sobre as VCs (ao menos em PoCi) e que não se confundisse com a SN. A teoria da dupla herança diverge, nesse tocante, da sociobiologia e da psicologia evolucionista. Estas últimas abordagens assumem que a SN atua sobre a psicologia dos indivíduos, produzindo os vieses que condicionam a transmissão cultural (e que, como vimos, condicionam a aprendizagem social).29 Por esse intermédio, a SN atuaria sobre a cultura, mas só indiretamente. Também nesse aspecto a teoria da dupla herança difere dessas abordagens.

Cavalli-Sforza, Feldman e Durham entendem, por sua vez, a transmissão enviesada como um tipo de “seleção cultural”. Richerson e Boyd rejeitam, contudo, essa expressão, por escamotear, segundo eles, a diferença entre a influência, inegável, dos vieses na transmissão cultural e o papel de um tipo sui generis de seleção que atuaria no domínio da cultura (cf. BARAVALLE, 2021, p. 444). Os proponentes da teoria da dupla herança defendem que há fatores externos aos agentes-portadores das VCs, os quais afetam a SC, para além do seu processamento cognitivo.30

Qual seria esse novo conceito de SC? Para a teoria da dupla herança, se o sucesso de um agente em ser um modelo (um “pai cultural”) para outros agentes estiver correlacionado com a adoção, por esse “pai”, de uma determinada VC, a participação relativa desta última no pool cultural tende a aumentar (RICHERSON; BOYD, 2005, p.79, p. 400; ABRANTES; DE ALMEIDA, 2018). Um exemplo do tipo de VC que Richerson e Boyd têm em vista seria: para se obter um doutorado e seguir uma carreira acadêmica de prestígio, não se deve ter filhos muito cedo. Se os que adotam essa VC atingem, com maior probabilidade, um doutorado e se tornam professores, passam a ser, consequentemente, modelos para os seus estudantes, aumentando a difusão dessa VC em detrimento das “competidoras” (RICHERSON; BOYD, 2005, p. 152-154).

A aproximação com algumas das teses da memética nos parece, aqui, sugestiva, pois a VC afeta, no caso, o comportamento do agente (o seu engajamento profissional e suas relações sociais, no exemplo dado), de sorte a torná-lo um “pai cultural” eficiente, ou seja, capaz de transmitir essa variante para um grande número de outros agentes (cf. BIRCH; HEYES, 2021).

Nos casos em que a variação guiada e a transmissão enviesada, as quais dependem de processos psicológicos, sejam suficientemente fortes, os efeitos dessa SC em PoCi poderiam ser desconsiderados. Por isso, Claidière et al. (2014, p. 2) acreditam ser dispensável se falar de seleção, no caso da cultura, argumentando que os vieses na transmissão cultural bastam para explicar por que determinadas VCs aumentam sua frequência relativa na população. Isso seria resultado do que chamam de “atração cultural”. Os “atratores” (atractors) são tipos culturais para os quais convergem os indivíduos em função dos seus vieses psicológicos e de fatores ambientais, como os demográficos. A SC seria um caso especial de “atração”.31 Mesoudi (2021) defende que a seleção e a atração são, ambos, fatores relevantes para explicar a EC, empregando modelos matemáticos que colocam isso em evidência. Dependendo do tipo de traço cultural e das condições mais gerais nas quais se tem a EC, a seleção ou a atração podem ter mais peso relativo.

Os que advogam a teoria da dupla herança argumentam, entretanto, que vieses e uma seleção agindo sobre as VCs são, ambos, fatores relevantes e irredutíveis. Pressupõem, para tanto, que a dinâmica cultural teria uma autonomia relativa e não estaria atrelada aos genes, como acreditam os sociobiólogos (RICHERSON; BOYD, 2005, p. 18-9; RICHERSON; BOYD; HENRICH, 2003).

Os memeticistas descreveriam de outra maneira a proposta de SC, como a entendem Richerson e Boyd: o meme tem uma capacidade inerente de replicação e o faz, muitas vezes, em detrimento da aptidão biológica dos seus portadores. Os memes “pegam carona”, por assim dizer, nos agentes, e se servem desses robôs desajeitados para se replicarem.32

Para a memética, a aptidão de memes é um conceito central, conforme já destacamos, ao lado dos conceitos de replicação de memes e de competição entre memes. Os memes estariam, portanto, sujeitos a um crivo análogo à SN, mas que seria distinto do crivo ao qual estão submetidos os seus agentes-portadores. Um descompasso entre a aptidão de uma VC e a do seu portador estaria, por conseguinte, na origem de mal-adaptações biológicas. A despeito das suas divergências com os memeticistas, Richerson e Boyd concordam com esse argumento (2005, p. 154-156). Indo nessa direção, Mameli e Sterelny (2009) consideram a memética, fundamentalmente, como uma explicação para mal-adaptações (cf. LEÓN et al., 2021, p. 30-31).

Viemos usando a expressão “mal-adaptação biológica”, no contexto cultural, para nos referir a VCs que reduzem a aptidão biológica dos seus agentes-portadores. Existiriam, contudo, mal-adaptações propriamente culturais, no sentido de VCs (por exemplo, artefatos) que não se mostram funcionais em um determinado ambiente (incluindo ambientes culturais)? O teclado QWERTY exemplifica esse tipo de mal-adaptação cultural, no contexto dos teclados que utilizamos em nossos computadores atuais. Esse teclado foi funcional à época em que as máquinas de escrever emperravam, quando se datilografava muito rapidamente: o teclado QWERTY reduzia a ocorrência disso. Esse desenho de teclado deixou, entretanto, de ser vantajoso nos computadores que usamos atualmente. Há, portanto, uma analogia entre esse conceito de mal-adaptação cultural e as mal-adaptações biológicas causadas por órgãos vestigiais, como o apêndice do intestino humano (MESOUDI, 2011, p. 35-6).33


V. Deriva cultural

A SN é o mecanismo mais importante em uma explicação darwiniana da evolução dos seres vivos, mas atua em conjunto com outras causas, como a deriva genética, a migração e causas aleatórias, de modo geral. A deriva refere-se a mudanças que ocorrem na frequência de determinados alelos em função da amostragem, o que é tanto mais significativo quanto menor for a população.

Uma “deriva cultural” é concebível por analogia. Por exemplo, em pequenos grupos, certas habilidades, ou técnicas, se perdem completamente, se aqueles poucos indivíduos que as dominam não as transmitem a outros, seja por morrerem antes de fazê-lo, seja por não terem aprendizes, seja ainda por existirem obstáculos que impeçam a herança dessa bagagem cultural.

Pode haver um efeito de deriva pela diminuição da população como um todo, o que afeta não só o surgimento de novidades culturais, mas também a manutenção da cultura acumulada pelas gerações anteriores. Richerson e Boyd (2005, p. 138) exemplificam a deriva cultural com o caso da Tasmânia. Quando os colonizadores ingleses tiveram contato com os grupos locais, o seu aparato cultural era muito menos sofisticado do que o das gerações anteriores desses grupos, como veio a atestar a pesquisa arqueológica. Essa deriva cultural teria sido consequência da diminuição da população desses grupos (cf. MESOUDI, 2011, p. 31).


VI. As populações no nível do grupo são darwinianas?

Para responder a essa questão, teríamos que, em princípio, seguir um procedimento semelhante ao adotado no caso da população PoCi: investigar como se aplicam os conceitos de variação, de herança e de aptidão às populações PoBg e PoCg. Este é um projeto ambicioso e não temos a pretensão de levá-lo a cabo, neste artigo, e nem haveria espaço para tanto. Abrimos frentes de trabalho nessa direção, em outros artigos (ABRANTES, 2011, 2013). Vamos nos contentar em fazer, nesta seção, algumas observações genéricas que mostram, a nosso ver, o poder heurístico da distinção proposta entre tipos de populações culturais. O ponto que nos parece mais relevante diz respeito à herdabilidade cultural.

Agora temos condições de abordar, de frente, a segunda questão que foi colocada no início da seção III.1, sobre “Variação”: como a variação cultural é preservada ao longo do tempo? Esta é, como enfatizamos, uma condição sine qua non para que a SN possa atuar (MAMELI, 2004).

Embora a herdabilidade cultural venha a ser baixa, na população PoCi, como argumentamos na seção III.2.3, este não parece ser, necessariamente, o caso em PoCg. Ressaltamos que não se trata, nesse contexto, da questão da variação entre linhagens culturais dentro de um grupo, já tratada, mas da variação entre grupos culturais. O problema do “embaralhamento” das linhagens culturais em PoCi, em consequência da herança horizontal de VCs (da existência de muitos pais culturais), não se colocaria com a mesma intensidade, no plano do grupo.

A baixa fidelidade da transmissão cultural de indivíduo para indivíduo, devido a erros de “cópia”, por exemplo, é compensada, no nível do grupo, por vieses como o conformista. Efetivamente, Henrich e Boyd (1998, 2002) construíram modelos matemáticos nos quais o conformismo compensa os erros na transmissão da informação cultural e cria, ao lado de outros mecanismos, a variação na (meta-)população dos grupos culturais, variação esta sobre a qual a SN pode agir. Este também é o modo como Sterelny (2006, p. 144) avalia tais resultados.34

Por esses mecanismos, a SN passa a atuar no nível do grupo, devido às diferenças entre os seus “fenótipos” culturais, que constituem, justamente, PoCg. A baixa intensidade da SN atuando sobre a variação cultural dentro de cada grupo não impede que ela tenha intensidade, quando atua sobre a variação entre grupos culturais, ou seja, em PoBg. Temos aqui um caso de SN atuando simultaneamente em vários níveis, correspondendo às várias populações culturais que distinguimos (ABRANTES, 2011, 2013; cf. MAMELI, 2004; CLAIDIÈRE et al., 2014).

A construção de nicho também assegura a fidelidade da transmissão cultural, e isso vale, a nosso ver, especialmente para grupos culturais como um todo. Legados ecológicos das gerações anteriores, como resultado da construção de nicho que essas gerações empreenderam, pelo fato de serem legados, em geral, a toda a população, não criam uma variação estável entre linhagens culturais para que a SN possa atuar dentro de um grupo cultural (MAMELI, 2004, p. 57; MAMELI; STERELNY, 2009). Esses legados promovem, ao contrário, uma homogeneização cultural. Entendemos, portanto, que a construção de nicho reduz a variação cultural em PoCi e, logo, a herdabilidade, mas aumenta a variabilidade cultural entre grupos e, consequentemente, a intensidade da SN atuando sobre a variação cultural nesse nível (cf. HENRICH, 2014, p. 1).35

Até este ponto, nós nos restringimos a discutir a herdabilidade nas populações culturais categorizadas no nível do grupo. No que concerne a uma aplicação do conceito de aptidão a essas populações, em particular a PoBg – embora o qualificativo “biológico” seja utilizado para nomeá-la –, há problemas em se definir “reprodução” para grupos, de modo geral, e grupos culturais, de maneira especial, segundo já referido.


VII. Em defesa de uma descrição abstrata

As várias desanalogias que apontamos entre a EB e a EC levam Mesoudi (2011, 46-47), entre outros, a defender que a modelagem da EC não deve tomar como ponto de partida os mecanismos específicos envolvidos na EB, como descritos pelo neodarwinismo – os quais incluem os genes enquanto replicadores e, também, fatores no desenvolvimento dos organismos –, mas a versão da teoria proposta, originalmente, por Darwin (depurada das suas especulações a respeito de alguns desses mecanismos).

De certa forma, foi o que fizemos, neste artigo, ao assumir uma descrição mínima do processo de evolução por SN e a aplicar às populações culturais. Efetivamente, as descrições populacionais darwinianas são, como vimos, mais gerais do que as que pressupõem replicadores, por exemplo.

Mesoudi retira, daí, a consequência de que uma teoria da EC é analógica, pois aplica à cultura exclusivamente os conceitos que descrevem o processo abstrato de evolução por SN, evitando exportar para o domínio cultural os conceitos que se referem às particularidades da instanciação desse processo, no domínio dos seres vivos, conforme descritos pelo neodarwinismo.36

Heinz e Claidière (2011) aludem a um darwinismo literal e a um metafórico. Em nossa interpretação, este último seria tributário de um darwinismo universal e de raciocínio analógico; o darwinismo literal corresponderia àquele aplicado à EB.37


VIII. Macroevolução cultural

Em biologia evolutiva, classificam-se os processos que ocorrem em uma população de organismos como microevolutivos. A macroevolução refere-se a processos em grande escala e de longa duração, como a especiação e a extinção, as quais envolvem várias populações e suas relações filogenéticas.

Quando tratamos das populações PoBi e PoCi, estava em jogo a microevolução cultural, que diz respeito a processos ocorrendo em um mesmo grupo cultural. Nessa microevolução, a psicologia dos agentes, as suas habilidades individuais, as VCs que constituem seus fenótipos e as relações que se dão entre esses agentes na população desempenham papéis cruciais.

Por analogia com a macroevolução biológica, a macroevolução cultural se refere às populações no nível do grupo (GODFREY-SMITH, 2012, p. 2160) e como evoluem, nesse âmbito. Padrões de cooperação e de conflito entre grupos culturais nos quais um grupo pode, por exemplo, servir de modelo cultural para outro grupo e, desse modo, transmitir suas VCs (instituições, formas de organização social etc.), seriam fenômenos macroevolutivos, bem como a extinção de uma cultura. A possível emergência de filogenias culturais na população PoCg também constitui um processo macroevolutivo.

Os que se dedicam a essa congênere macroevolução cultural usam métodos filogenéticos importados da biologia para descobrir padrões nos fenômenos culturais que se dão em grande escala e se estendem por longos períodos de tempo. Com o uso desses métodos, pode-se construir árvores filogenéticas culturais que representam, por exemplo, as relações históricas entre ramos linguísticos (GODFREY-SMITH, 2009, p. 163), tipos de organização social ou diferentes padrões exibidos pelos instrumentos líticos, durante o Pleistoceno. Essas árvores permitem distinguir as similaridades entre traços culturais “homólogos” (os quais resultam de descendência a partir de um ancestral comum) daquelas similaridades que seriam simplesmente “homoplasias” culturais (similaridades resultantes de evolução convergente).

As questões que se colocam para uma teoria da macroevolução cultural são diferentes das que se colocam no nível microevolutivo, e as condições que definem as dinâmicas culturais das populações PoBg e PoCg são outras:

Imitation might be rare, as Sperber says. Culture might be holistic in its influence on each person, as Fracchia and Lewontin say. Those situations are consistent with there being reasonably discrete segments in the larger network of cultures. A more cohesive, less population-like form of culture may even have a better fit to the requirements of phylogenetic methods than looser forms of culture, because a more cohesive culture may be less likely to draw on outside influences, and maintain better boundaries. (GODFREY-SMITH, 2012, p. 2168).


Há casos de artefatos que dependem, para a sua construção, do trabalho de muitas pessoas de um grupo, sendo mais frutífero ver esses artefatos como parte do fenótipo do grupo como um todo, e não dos seus membros. Godfrey-Smith dá o exemplo do desenho de um barco que resulta da contribuição de várias pessoas, frequentemente de diferentes gerações (GODFREY-SMITH, 2012, p. 2167). As mesmas considerações podem ser feitas a respeito das formas dos instrumentos líticos – como os machados de mão que caracterizaram a chamada cultura “Acheulense”, associada ao Homo ergaster (1,7 a 0,25 Maa) –, assim como aos procedimentos de talha desses artefatos.

Outros exemplos seriam a construção de instrumentos musicais, como o violão e o piano. Além da dimensão “cultural-ontogenética”, na qual o foco é colocado em um único instrumento construído por um ou vários artesãos, sabemos que as características desses instrumentos mudaram ao longo de várias gerações de construtores, bem como os métodos de sua construção. Essa dinâmica cultural apresenta um caráter evolutivo ao qual se aplicam métodos filogenéticos importados de outras áreas.


Conclusões

Antes de finalizarmos, convém ressaltar que não se deve confundir o tópico da evolução cultural, que é o objeto do presente artigo, com outros dois tópicos, embora intimamente relacionados: o da origem da cultura enquanto sistema não genético de herança, por um lado, e o da “coevolução gene-cultura”, por outro. Esses tópicos – que dizem respeito, especialmente, à evolução na linhagem hominínea –, não foram aqui abordados, a despeito da sua relevância.38

A investigação científica a respeito da evolução cultural requer uma análise prévia dos conceitos fundamentais, em um esforço de abstração que permita ampliar o escopo descritivo e explicativo da biologia evolutiva. O tratamento da dinâmica cultural em termos evolutivos, efetivamente, tirou proveito da investigação que vem sendo feita, há décadas, sobre os fundamentos da biologia evolutiva, para a qual filósofos têm dado contribuições decisivas. Neste trabalho, servimo-nos também dessas investigações, de modo a explicitar as condições mais gerais que precisam ser satisfeitas, para que se descrevam as dinâmicas apresentadas por diferentes tipos de populações culturais – com ênfase na população integrada por variantes culturais (PoCi) –, enquanto dinâmicas evolutivas e darwinianas.

Cada uma dessas populações culturais (embora marginais”, no que diz respeito ao seu caráter darwiniano, devido às desanalogias que ressaltamos entre a evolução biológica e a evolução cultural), provavelmente se aproximou, em maior ou menor grau, dos padrões de uma população darwiniana “paradigmática”, no decorrer da evolução na linhagem hominínea, em função de diversos fatores elencados na seção III.3. Em períodos recentes, outros fatores (institucionais, econômicos etc.) afetaram o caráter das populações culturais e sua dinâmica.

A teoria darwiniana da evolução possibilitou dar alguma unidade à diversidade de fenômenos estudados pela biologia, nas suas mais diversas áreas, e isso continua sendo amplamente reconhecido. A diversidade dos fenômenos culturais é, provavelmente, ainda maior, o que torna um tanto quimérico o objetivo de se alcançar, através de um arcabouço conceitual evolucionista, uma unidade semelhante no domínio dos fenômenos culturais, a despeito da expectativa de autores como Mesoudi (2011) e Leal-Toledo (2013).

Os padrões eventualmente observados nas dinâmicas microevolutivas e macroevolutivas culturais se devem aos mais diversos mecanismos e, provavelmente, variam segundo o tipo de traço cultural e a granularidade admitida na sua definição.

Feitas essas ressalvas, acreditamos ser fértil importar o arcabouço conceitual da teoria darwiniana da evolução, sobretudo em sua versão mais abstrata e com as devidas adaptações, para descrever porções da esfera cultural em termos populacionais, evolutivos e darwinianos. A pesquisa atual sobre microevolução e macroevolução culturais, em suas vertentes empírica e teórica, tem demonstrado isso.39



Can culture evolve?


Abstract: The paper starts with a distinction between kinds of description that can be proposed for a populational dynamics, including a ‘Darwinian’ description, in terms of variation, inheritance and differential fitness, engaging the entities that make up the relevant population. It follows with a categorization of different kinds of cultural populations and an investigation of the most general conditions that have to be fulfilled for an evolutionary and Darwinian dynamics to take place in those populations, especially in the population comprised by the cultural traits themselves. We make salient some approaches to the evolution in the human lineage, such as dual inheritance theory and memetics, that place cultural evolution at the center of their scenarios. In this way, those approaches contribute to the development of a general theory of cultural evolution, and we compare them, in this respect, with other approaches. Those confrontations grant also illustrations of the analogies between biological evolution and cultural evolution, as well as failures in the analogy.


Keywords: Cultural evolution; Darwinian populations; Cultural selection; Cultural populations; Dual inheritance theory; Memetics.



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Recebido: 12/08/2023

Aceito: 19/12/2022



1 Professor titular aposentado da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9125-9701. E-mail: pccabr@gmail.com.

2 Sou muito grato aos dois pareceristas pelas suas contribuições para o aperfeiçoamento deste artigo.

3 Voltaremos a mencionar esses paralelos mais adiante, quando tratarmos da competição.

4 É sugestivo observar que artefatos materiais e outros tipos de VCs fazem parte do fenótipo estendido dos agentes. A noção de fenótipo estendido foi proposta, originalmente e no contexto da evolução biológica, por Dawkins (1989).

5 Godfrey-Smith (2009) emprega, nesse contexto, o termo “explicação”, assim como o fazem Claidière et al. (2014). Neste artigo, optamos por adotar o termo “descrição” para qualificar os tipos ilustrados na figura.

6 Abrantes (2011, 2013) comete um equívoco na descrição da população PoCg (o acrônimo correspondente, adotado nessas publicações em inglês, é CPg). Não se trata, como lá é dito, que as VCs são tomadas em grupo e não individualmente, mas sim que são VCs de grupos, compondo os fenótipos dos grupos na metapopulação PoBg (o acrônimo correspondente, adotado naquelas publicações, é BPg).

7 O leitor, provavelmente, notou a ambiguidade no uso do termo “indivíduo”, para qualificar o nível em que se situam as populações PoCi e PoCb, uma vez que se admita que grupos podem, eventualmente, também ser considerados indivíduos e níveis de seleção natural. Não conseguimos encontrar um termo melhor para qualificar os níveis e que também não apresentem inconvenientes. Como o tema das transições em individualidade não é central a este artigo, essa ambiguidade não deverá causar problemas de entendimento.

8 Uma discussão a respeito pode ser encontrada em Abrantes (2011, 2013).

9 De Almeida (2020) utilizou o arcabouço conceitual de Godfrey-Smith para investigar possíveis transições em individualidade ocorridas no quadro institucional das sociedades modernas.

10 Variação “cega” não equivale, contudo, a variação “aleatória”. Embora a variação genética seja “cega”, no sentido aventado, ela não é aleatória, pois a probabilidade de surgir uma certa variante genética pode ser maior do que a de outra, dependendo das causas e restrições atuantes no modo como essas variantes são geradas. Além disso, há que se ter cuidado na atribuição, eventual, de qualificativos análogos ao processo de geração de uma VC. Voltaremos a esse ponto, quando discutirmos a herança cultural e os vieses na transmissão cultural.

11 A variação guiada (pelo ambiente) com base na aprendizagem individual não garante maior aptidão para o agente, a depender das características do ambiente. Esse é um ponto enfatizado por Richerson e Boyd: se o ambiente é muito instável, ou o comportamento adaptativo é dificilmente adquirido pelo indivíduo, ao longo da sua vida, então é mais vantajoso aprender socialmente, por imitação (o erro tem um custo!). É melhor copiar o mais fielmente possível “o que deu certo” naquele ambiente, a partir da experiência de outros agentes, em geral das gerações anteriores (NECO; RICHERSON, 2014).

12 Se o agente imita fielmente um outro, não introduz, evidentemente, qualquer modificação na VC. E se a transmite, sem modificação, a outros agentes, nenhuma variação é “gerada” nesse processo de assimilação e transmissão.

13 A variação guiada pode ser entendida em termos do que Dennett chamou uma “criatura popperiana”. Esta é capaz de pré-selecionar as variações originalmente cegas (comportamentos potenciais, ideias etc.) produzidas por algum gerador interno à criatura. Teríamos, no caso, um gerador que alimenta um selecionador (o qual incorpora um modelo do ambiente externo), ambos internos ao agente (ABRANTES, 2004). Os comportamentos ou ideias exibidas, efetivamente, pelo agente são, nesse sentido, guiadas. O processo selecionista é, dessa forma, incorporado no processamento cognitivo do agente.

14 Eventuais mal-adaptações biológicas, que reduzem a capacidade reprodutivo-biológica dos seus portadores, resultam do fato da herança cultural dar-se, em PoCi, não somente pelo canal vertical, mas também pelo canal horizontal. Este não é o caso em PoBi, conforme já frisamos.

15 O conceito de “seleção cultural” será discutido mais adiante. As questões relativas à acumulação cultural e ao surgimento de novidade cultural são muito relevantes, mas bastante complexas (ver GODFREY-SMITH, 2012). Essa discussão pressupõe a diferença, que esse filósofo propõe, no caso da evolução biológica, entre “explicações de distribuição” e “explicações de origem”. As explicações de distribuição, segundo Godfrey-Smith, pressupõem a “descrição mínima” de um fenômeno populacional darwiniano, de que já tratamos. Explicações de origem requerem a intervenção de outros parâmetros, os quais possibilitem descrever um processo evolutivo paradigmático, e não somente marginal (Cf. ABRANTES, 2013, p. 208, 210-214).

16 Um ponto central nessa discussão diz respeito à existência de condições para a herdabilidade cultural, requeridas para que haja uma EC acumulativa, um tópico que não abordamos neste artigo. Fizemos uma breve referência a D. Hull a esse respeito e veremos, abaixo, que vieses na transmissão cultural e a construção de nichos culturais são fatores relevantes para que essa acumulação se verifique. Um outro ponto a ser ressaltado é que os processos evolutivo e de desenvolvimento estão inter-relacionados (ABRANTES, 2020c), o que é ainda mais evidente no caso da EC.

17 Não há, contudo, um vínculo conceitual, necessário, entre teorias evolutivas da cultura e teorias da evolução, na linhagem hominínea. Neste artigo, estas últimas são usadas, simplesmente, para ilustrar questões colocadas pelas primeiras.

18 A teoria da dupla herança assenta-se em modelos que Claidière et al. (2014) qualificam de “selecionistas” (ver a seção I.1). São sugestivas, nesse sentido, as comparações que esses autores fazem com a epidemiologia, aplicando ao caso cultural a diversidade de modelos usados para descrever e prever a propagação de doenças.

19 MAMELI, 2004, p. 40, 65; LEAL-TOLEDO, 2013, p. 190, n. 3. A herdabilidade, convém ressaltar, é uma propriedade dos traços fenotípicos, e não dos genes (SOBER, 2001, p. 54; cf. SOBER, 1994).

20 Mameli também enuncia a questão de como modalidades de variação não genética (como é o caso da variação cultural) interagem com a variação genética. Essa questão não é tratada no presente artigo (cf. ABRANTES, 2018), mas faremos uma breve menção à coevolução gene-cultura, nas Conclusões.

21 Mesmo que a variação guiada e o conformismo diluam a variação cultural em PoCi, isso não impede que, em princípio, a SN seja uma força significativa no nível dos grupos culturais. Mais adiante, trataremos do caso específico das populações no nível do grupo.

22 Uma questão é saber se isso também ocorre na população PoBi, mas é argumentável que não seja o caso, por várias razões. Entre elas, ressaltamos a provável similaridade entre os vieses psicológicos de pais e filhos/filhas biológicas, bem como a construção de um nicho, pelos pais, que favorece a transmissão e a assimilação fidedigna de certas VCs e/ou de vieses, heurísticas e mecanismos cognitivos (cf. BIRCH; HEYES, 2021).

23 Estamos supondo, nessa discussão, que a posse de uma VC afete a aptidão biológica dos seus portadores, caso contrário, a SN não atuaria. Outra hipótese seria termos uma outra modalidade de seleção, uma seleção propriamente cultural, tópico ao qual dedicaremos uma seção.

24 Quando temos reprodução assexuada e com alta fidelidade, fala-se de “replicação” de uma VC, como observamos anteriormente.

25 Há também gradação nas populações de seres vivos, algumas sendo mais paradigmáticas do que outras, no que diz respeito a uma dinâmica populacional darwiniana, segundo mostra Godfrey-Smith (2009). Cf. ABRANTES (2011).

26 Para Leal-Toledo (2013, p. 193-194), é uma “questão em aberto” se há pressões seletivas “externas” sobre os memes, ou se elas são, exclusivamente, “internas”, isto é, devidas aos recursos cognitivos escassos dos seus portadores.

27 Se considerarmos não um único agente portador do meme, como normalmente se faz, mas vários agentes numa população, os recursos cognitivos podem não ser tão escassos assim, já que distribuídos entre os vários agentes. Isso reduziria, em princípio, a competição entre VCs. Ver, abaixo, a discussão que fazemos sobre deriva cultural, a qual leva também em conta o fator demográfico relativo aos portadores dessas VCs.

28 Ao longo deste artigo, adotamos a expressão “seleção natural” (SN), mesmo no caso em que a herança é cultural, ou seja, quando se trata de uma VC que, ao ser assimilada por aprendizagem social, afeta a aptidão biológica do seu portador. Gera confusão, a nosso ver, falar de “seleção cultural”, nesses casos, como fazem Birch e Heyes (2021), os quais distinguem dois tipos de “seleção cultural”.

29 Não abordamos, neste texto, a atuação da SN sobre os mecanismos psicológicos envolvidos na aprendizagem individual e que possibilitam a variação guiada. Abrantes e De Almeida (2018) discutem, a partir da teoria da dupla herança, o(s) ambiente(s) físico(s) e social(i)s que teriam promovido, no processo evolutivo da linhagem hominínea, modalidades de aprendizagem individual e de aprendizagem social, bem como o viés conformista.

30 Essa expectativa é razoável para quem se apoia em analogias com a EB, porque a aptidão de um ser vivo é função do ambiente em que ele se situa, e não somente dos processos que ocorrem internamente ao ser vivo.

31 Claidière et al. (2014, p. 2, 7). Esses autores também incluem a variação guiada entre os processos construtivos que levam a uma convergência da população, como um todo, para certos atratores. Baravalle (2021, p. 453-454) defende, por sua vez, a importância dos fatores demográficos, não só em biologia evolutiva, o que é amplamente reconhecido, mas também em EC, eventualmente conferindo a este processo, ao lado de outros fatores, como a herdabilidade, um caráter dinamicamente suficiente, no sentido de evidenciar leis de transformação que indicam a atuação de mecanismos causais específicos.

32 Trata-se de uma formulação duvidosa, pois faz dos memes agentes (do mesmo modo como o “ponto de vista do gene” faz dos genes agentes). Godfrey-Smith (2009) denuncia, em ambos os casos, o que ele chama de agential view. Cf. Leal-Toledo, 2013, p. 194, 197, 199.

33 Chamamos a atenção para o fato de que a expressão “mal-adaptação cultural” é empregada na literatura sobre EC com diferentes sentidos, o que causa confusão. Richerson e Boyd usam essa expressão, no sentido em que aqui utilizamos, de uma mal-adaptação biológica causada por uma VC. Esse uso da expressão “mal-adaptação cultural”, por Richerson e Boyd, deve ser distinguido daquele atribuído à mesma expressão por Mesoudi, como no teclado QWERTY, por exemplo.

34 Para uma discussão a respeito das implicações dessa variação cultural entre grupos, para a evolução da coomperação e dos mecanismos que a viabilizam, ver Abrantes, 2014b.

35 Poderíamos conceituar, por analogia, uma “herança vertical” ocorrendo em cada grupo cultural. Uma questão que requer mais investigação é se VCs são transmitidas de um grupo cultural para outro, o que transparece em vários relatos antropológicos, e de como isso se dá. Esse tópico envolve, de forma especial, PoCg, e não há espaço para tratar dele, neste artigo.

36 Não poderíamos deixar de fazer referência, mesmo que de passagem, à teoria, muito peculiar, que D. Hull desenvolveu para explicar, em termos evolutivos, o “processo da ciência”: seja do conhecimento (e.g. teorias científicas), seja dos próprios cientistas, incluindo a sua organização social, instituições que dão suporte a essa atividade etc. (HULL, 1988, 2001; ABRANTES; EL-HANI, 2009). Não temos a pretensão de situar esse projeto de Hull – o qual enseja ver a ciência como um setor da cultura apresentando uma dinâmica evolutiva –, no arcabouço conceitual que desenvolvemos aqui. Isso requereria um outro trabalho.

37 Sobre raciocínio analógico e modelos em ciência, ver Abrantes, 1999.

38 Abrantes (2018) efetua um apanhado geral das pesquisas sobre a evolução na linhagem hominínea que consideram a cultura um fator central, nesse processo.

39 O último congresso da Cultural Evolution Society, realizado em junho de 2021, mostrou a vitalidade dessa área, a qual tem atraído pesquisadores com as mais diversas formações e interesses. Toscano (2009) oferece uma demonstração das possibilidades dessa abordagem, no caso da evolução dos motores a álcool, no Brasil. Hull (1988), já citado, é um clássico na proposta de adotar um modelo evolutivo para a investigação científica, segundo mencionamos na nota 36.

40 As publicações de Abrantes podem ser acessadas na página: https://pauloabrantesfilosofia.com.br/.