Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica


Jonas Gonçalves Coelho1


Resumo: A questão sobre a qual se propôs refletir neste artigo é se, e em caso afirmativo, em que termos, uma abordagem fisicalista não reducionista e interacionista explica a relação entre consciência e cérebro. Para tanto, tomou-se como fio condutor o problema da lacuna explicativa em sua relação com o problema da lacuna ontológica, o que envolveu duas questões entrelaçadas: 1. A existência de uma lacuna explicativa implica a existência de uma lacuna ontológica? 2. A inexistência de uma lacuna ontológica implica a inexistência de uma lacuna explicativa? Acredita-se que essa reflexão seja bem-vinda, uma vez que essas duas perspectivas, a epistemológica e a ontológica, muitas vezes se confundem e não são compreendidas.


Palavras-chave: Consciência. Cérebro. Lacuna explicativa. Lacuna ontológica.



Suponhamos que construímos um ser artificial capaz de passar com louvor no Teste de Touring. Não saberíamos se esse ser possui consciência fenomênica; a rigor, só ele o saberia. Na hipótese de esse ser artificial possuir consciência fenomênica, seria preciso algo além do conhecimento de sua estrutura e funcionalidade, por nós construídas, para explicar a existência daquela?


Quanto mais conheço a estrutura e funcionamento do cérebro, em sua interação com o corpo e com o ambiente, físico e sociocultural, externo ao corpo, menos a consciência, em suas diversas formas e conteúdos, parece-me um mistério.


I

Tenho defendido, baseando-me em pesquisas envolvendo a interface entre a filosofia da mente e a neurociência, o que chamo de “abordagem dupla face” da relação entre consciência e cérebro, a qual pode ser resumida nos seguintes termos: para explicar a relação entre consciência e cérebro, é necessário que se considerem as suas duas faces e direções dessas, ou seja, consciência cérebro e cérebro consciência. Essa abordagem assume e corrobora uma concepção fisicalista não reducionista e interacionista, segundo a qual consciência e cérebro – duas faces – são entidades distintas, irredutíveis e inseparáveis, sendo as propriedades de cada uma delas a causa – duas direções – das propriedades da outra. O cérebro físico, incorporado e situado fisicamente e socioculturalmente, causa a existência da consciência, em suas diferentes formas e conteúdos; a consciência, propriedade do cérebro incorporada e situada fenomenalmente, causa modificações na estrutura e funcionalidade do cérebro. Considerando-se que, segundo essa abordagem, a consciência não é uma substância cartesiana2, seu papel causal deve ser compreendido, conforme se verá posteriormente, como inseparável do cérebro no qual está instanciada.

A hipótese de que, para explicar a consciência, deve-se olhar para o cérebro, incorporado e situado, fundamenta-se, principalmente, em pesquisas neurocientíficas, as quais indicam que os eventos conscientes em geral – cognitivos, volitivos e emocionais – são causados por eventos cerebrais. São incontáveis os estudos publicados nos últimos anos que tratam da relação entre o cérebro e os vários aspectos da vida consciente, os quais envolvem os efeitos de lesões em regiões cerebrais específicas, o monitoramento da atividade cerebral através do uso de tecnologias, como a ressonância magnética funcional, e a manipulação química e eletromagnética do cérebro. Essas pesquisas têm propiciado o desenvolvimento de práticas terapêuticas dirigidas a disfunções cognitivas, volitivas e emocionais, as quais consistem, grosso modo, em modificar fisicamente a anatomia e funcionalidade do cérebro e, consequentemente, as experiências subjetivas conscientes.

A hipótese de que, para explicar a estrutura e funcionalidade do cérebro, deve-se olhar para a consciência, também se baseia em pesquisas neurocientíficas, as quais têm mostrado que o cérebro, além de ser incorporado e situado fisicamente, é incorporado e situado experiencialmente – fenomenalmente. Isso significa que é como consciência, embora não exclusivamente, que o cérebro interage tanto com os estímulos físicos provenientes do corpo e do ambiente físico externo, nos quais está inserido, quanto com o ambiente externo sociocultural. Sabe-se que o cérebro responde inconscientemente aos estímulos físicos através dos órgãos dos sentidos, da interocepção e da propriocepção, entretanto, o que se está enfatizando aqui é a capacidade que o cérebro tem de interagir conscientemente com os estímulos físicos e socioculturais. Em relação a esse aspecto, a neurociência contemporânea tem defendido que o cérebro é modificado – plasticidade cerebral – pela exposição não apenas a estímulos físicos corpóreos e externos, mas também a práticas socioculturais, como aquelas relacionadas à educação regular, à educação moral, às psicoterapias, às práticas de meditação etc.

Assumindo esses resultados das pesquisas em neurociência, cujo mérito não será objeto de análise neste artigo, a questão sobre a qual me proponho refletir é se, e sendo o caso, em que termos, essa concepção fisicalista não reducionista e interacionista, pressuposta e ancorada na abordagem dupla face acima esboçada, resolve de forma satisfatória o problema da relação entre consciência e cérebro. Para tanto, tomarei como fio condutor o problema da lacuna explicativa – lacuna epistemológica –, o qual será enfrentado a partir de sua relação com o problema da lacuna no ser – lacuna ontológica, o que envolve duas questões entrelaçadas: 1. A existência de uma lacuna explicativa implica a existência de uma lacuna ontológica? 2. A inexistência de uma lacuna ontológica implica a inexistência de uma lacuna explicativa? Considero que essa reflexão é oportuna, visto que essas duas perspectivas, a epistemológica e a ontológica, frequentemente se confundem, sem que se explicitem suas implicações recíprocas. Para efetivá-la, começarei com uma breve apresentação, nas duas seções que se seguem, dos termos em que tem sido tradicionalmente colocado o problema da lacuna explicativa.


II

Para que se compreenda o problema da lacuna explicativa, tal como atribuído à concepção fisicalista não reducionista, incluindo a interacionista, da relação entre cérebro e consciência, é necessário que se explicite o significado dos conceitos diretamente envolvidos nessa problemática, a saber: “consciência”, “cérebro” e “explicação”. Inicio pelo conceito “consciência”. Embora difícil de definir, seu significado é facilmente compreensível, visto tratar-se de algo que nos é muito familiar. Compreendemos o que é consciência por oposição à inconsciência. Dizemos que uma pessoa está inconsciente, durante o tempo em que está dormindo – sono normal sem sonhos ou sono induzido (anestesia geral) – com isso significando que, durante esse período, essa pessoa não vivencia nenhum tipo de experiência.

De modo distinto, dizemos que essa pessoa está consciente, ou seja, acordada, significando que ela vivencia as mais diversas formas de experiência. Dentre as formas de experiência consciente, destacam-se as sensações corpóreas – visuais, auditivas, olfativas, táteis, gustativas, interoceptivas, proprioceptivas –, as emoções – medo, alegria, tristeza, ódio, amor etc. –, as imaginações, os desejos, as crenças, as intenções e as lembranças. Cada uma dessas formas inumeráveis implicam variados conteúdos, os quais constituem a experiência subjetiva consciente de cada pessoa. Daí podermos perguntar sobre um ser humano – ou não humano –, que acreditamos ter experiências conscientes: como são suas experiências? Por exemplo, como são suas sensações olfativas, gustativas, visuais, auditivas, táteis, proprioceptivas; como são seus sentimentos, lembranças, crenças, desejos, intenções etc.3

Diferentemente do conceito de consciência, o qual se refere às várias formas e conteúdos da experiência subjetiva, o conceito de “cérebro” significa algo objetivo, ou seja, o órgão corpóreo, constituído de várias estruturas, corticais e subcorticais, cujas funções, individualmente e/ou em conjunto, são associadas àqueles estados conscientes. Dentre as estruturas, incluem-se os corteses frontal, ocipital, parietal, temporal, sensorial, motor etc.; o hipocampo, o tálamo, o hipotálamo, o corpo caloso, a amídala etc.; os sistemas visuais, auditivos, olfativos, gustativos, interoceptivos, proprioceptivos etc.; as células e circuitos eletroquímicos neuronais, os circuitos químicos hormonais etc.

Essas estruturas cerebrais interagem continuamente com as outras partes do corpo e, através dessas, com o ambiente externo físico e sociocultural, instanciando funções cognitivas, volitivas, afetivas e motoras; em outras palavras, o cérebro é um órgão incorporado e situado. Sendo um órgão físico, o cérebro compartilha com outros corpos físicos alguns dos inúmeros constituintes fundamentais da natureza, tal como definida pela Física. Nesse nível, a natureza é composta por partículas, tais como próton, nêutron, elétron pósitron, neutrino, kaons etc; pelas quatro forças fundamentais, ou seja, a gravidade, a eletromagnética, a interação forte e a interação fraca; pela energia em suas várias formas, tais como a luz, a eletricidade, o calor e o raio-x.

Tendo definido, grosso modo, os conceitos “consciência” e “cérebro”, passo ao significado da noção de “explicação”, afinal, trata-se do problema da lacuna explicativa. Nesse contexto, assumirei que uma explicação consiste no estabelecimento de uma relação causal entre eventos, a partir da identificação da causa – explanans – de um efeito – explanandum. Dessa maneira, uma explicação – perspectiva epistemológica – pressupõe uma relação causal real entre eventos – perspectiva ontológica – a ser identificada. Isso significa que a noção de “explicação” implica a noção de “conexão” entre eventos, ou seja, o evento considerado como causa possui propriedades que tornam necessária, em contextos semelhantes, as propriedades características do evento efeito.

Essas conexões necessárias seriam identificadas a partir das regularidades que se observam na relação entre os eventos. Baseando-se na regularidade verificada entre os eventos cerebrais e os eventos conscientes, o fisicalismo não reducionista defende que as propriedades físicas, estruturais e funcionais dos primeiros causam as propriedades qualitativas dos segundos; em outras palavras, as propriedades qualitativas conscientes são efeito das propriedades físicas, estruturais e funcionais do cérebro. Segundo essa perspectiva, explicar as propriedades qualitativas conscientes consiste em identificar as propriedades físicas do cérebro que as causam; em outras palavras, identificar a propriedades físicas do cérebro das quais elas são um efeito.

Mas não haveria uma lacuna nessa explicação segundo a qual, grosso modo, o cérebro é a causa da consciência, ou seja, os eventos físicos cerebrais são a causa dos eventos qualitativos conscientes? É o que defendem proeminentes filósofos da mente, cujos principais argumentos serão resumidamente apresentados a seguir.


III

O argumento central a favor da lacuna explicativa é que o conhecimento, por mais detalhado que seja, dos eventos físicos associados regularmente aos eventos conscientes não permitiria identificar uma conexão causal entre eles. De que haja uma conjunção regular entre os eventos físicos cerebrais e os eventos qualitativos conscientes não há dúvida, mas conjunção regular não é o mesmo que conexão causal, argumentam os defensores da lacuna explicativa. A existência de uma lacuna explicativa nessa relação seria corroborada pelo fato de ser imaginável, ou concebível, que cérebros estruturalmente e funcionalmente idênticos aos nossos não possuam consciência, ou seja, seria possível existir um mundo fisicamente idêntico ao nosso, mas no qual seus habitantes seriam destituídos de consciência. Desse modo, pretende-se que, por serem os eventos físicos cerebrais e os eventos qualitativos conscientes essencialmente distintos, a sua conexão causal é ininteligível. Em suma, por mais que se conheça a natureza e as propriedades físicas do cérebro, não seria possível explicar a partir delas a existência das propriedades qualitativas da consciência. Essa relação ininteligível seria, portanto, um mistério.

Sobre esse problema, vejamos, brevemente, o que dizem alguns dentre os mais proeminentes filósofos da lacuna explicativa: Joseph Levine, David Chalmers e Collin McGinn. Joseph Levine afirma que a “ligação” entre os aspectos físicos/funcionais cerebrais e suas características qualitativas/fenomênicas é um “completo mistério” (LEVINE, 1983, p. 357). Levine apresenta o problema da lacuna explicativa, tomando, como principal exemplo, a experiência de dor. A dor, sendo uma experiência consciente, possui um “caráter qualitativo” – “propriedade fenomênica” –, ou seja, o “modo como ela é sentida”. Além disso, a dor está associada causalmente a eventos envolvendo o sistema nervoso periférico e central.

O argumento de Levine é que, ao associar causalmente a dor a um evento cerebral com o qual a identificamos, como o disparo das fibras-C no cérebro, continuaria inexplicada “a razão por que sentimos a dor como a sentimos!” Isso porque “[...] não parece haver nada sobre o disparar das fibras-C que se ‘ajuste’ naturalmente com as propriedades fenomênicas da dor.” (LEVINE, 1983, p. 357). Essa lacuna tornaria possível imaginar os eventos físicos cerebrais sem os eventos qualitativos conscientes e os eventos qualitativos conscientes sem os eventos físicos cerebrais: “Se não há nada que possamos determinar sobre o disparar das fibras-C que explique por que esse tem o caráter qualitativo que tem [...] torna-se imediatamente imaginável haver disparos de fibras-C sem o sentimento de dor, e vice-versa.” (LEVINE, 1983, p. 359).

David Chalmers considera que a “[...] coisa mais misteriosa do mundo” (CHALMERS, 1996, p. 4) é conciliar a consciência, a coisa “mais familiar” e “mais intimamente conhecida”, com o que se sabe sobre o físico: “[...] a consciência é tão desconcertante quanto sempre foi [...] parece completamente misterioso que a causação do comportamento deva ser acompanhada por uma vida interna subjetiva.” (CHALMERS, 1996, p. XI). Segundo Chalmers, embora tenhamos “[...] boas razões para acreditar que a consciência se origina de sistemas físicos tais como cérebros [...] temos pouca ideia de como ela se origina, ou de porque ela existe.” (CHALMERS, 1996, p. XI).

Ainda segundo o filósofo, por mais conhecido que seja o mundo físico, não seria possível derivar dele a consciência: “Se tudo que soubéssemos fossem os fatos físicos, e mesmo os fatos sobre dinâmicas e processamento de informação em sistemas complexos, não haveria nenhuma razão convincente para postular a existência de experiência consciente.” (CHALMERS, 1996, p. 4). A consciência seria algo completamente “inesperado”, “imprevisível” e “surpreendente”. Daí ser possível conceber logicamente a existência de zumbis, ou seja, seres fisicamente idênticos a nós, mas desprovidos de experiência consciente, e até mesmo mundos fisicamente idênticos aos nossos, porém, desprovidos de seres conscientes: “[...] podemos conceber a possibilidade lógica de um mundo zumbi: um mundo fisicamente idêntico ao nosso, mas no qual não existem seres conscientes. Nesse mundo, todos são zumbis.” (CHALMERS, 1996, p. 94).4

Assim como Levine e Chalmers, Colin McGinn defende que o problema da lacuna explicativa envolvendo a relação entre cérebro e consciência é um “mistério”, todavia, diferentemente desses filósofos, entende que esse não é um mistério em si mesmo, mas um mistério para os seres humanos. Assumindo que o cérebro causa a consciência, McGinn argumenta que não podemos saber como isso ocorre: “Sabemos que os cérebros são a base causal de facto da consciência, mas não temos, ao que parece, qualquer entendimento de como isto pode ser.” (McGINN, 1989, p. 349). Não o sabemos, e nunca o saberemos, em virtude de nossa constituição cognitiva: “Este é um tipo de nexo causal que estamos impedidos de alguma vez compreender, dado o modo que temos de formar os nossos conceitos e desenvolver as nossas teorias.” (McGINN, 1989, p. 350). O limite de nossas “competências cognitivas” implica um “fechamento cognitivo”.

Para McGinn, embora o modo como estados físicos cerebrais causam os estados qualitativos conscientes seja “misterioso” para nós, ele não é “milagroso”, visto ser real e, em princípio, explicável: “[...] o que para nós é numênico pode não ser miraculoso em si [...] na verdade, a consciência não surge do cérebro do modo miraculoso como o Génio surge da lâmpada.” (McGINN, 1989, p. 352). Desse modo, por considerar que não há milagres na natureza, McGinn argumenta que a assunção de que estados cerebrais causam estados conscientes significa que existe “conexão necessária” entre os dois estados, a qual deve ser explicada, ou seja, tornada inteligível, e acredita que existe uma teoria científica que os explique, embora essa teoria esteja definitivamente fora do alcance dos seres humanos.

O problema filosófico acerca da consciência e do cérebro surge na medida em que somos forçados a aceitar que a natureza contém milagres — como se a lâmpada meramente metálica do cérebro pudesse trazer à existência o génio da consciência. Mas não precisamos de aceitar isto; podemos apoiar-nos no conhecimento de que alguma propriedade (incognoscível) do cérebro faz com que tudo se encaixe.. O que cria a confusão filosófica é a pressuposição de que o problema tem, de algum modo, de ser científico mas que qualquer ciência concebida por nós irá representar as coisas como totalmente milagrosas. E a solução é reconhecer que o sentido de milagre vem de nós e não do mundo. Nada há, na realidade, de misterioso acerca do modo como o cérebro gera a consciência. Não há problema metafísico. (McGINN, 1989, p. 362).


Em que pese o problema da lacuna explicativa, tal como tem sido paradigmaticamente apresentado pelos filósofos da mente citados, estes são unânimes ao sustentar que a consciência qualitativa é uma propriedade causada pelas propriedades físicas do cérebro, sugerindo assim que não há uma lacuna ontológica nessa relação; é o que McGinn postula explicitamente, ao afirmar a existência de uma conexão necessária entre cérebro e consciência. Argumentarei, a seguir, que a assunção de uma conexão causal necessária entre os eventos físicos cerebrais e os eventos qualitativos conscientes implica, se não em dissolver, pelo menos em mitigar a lacuna explicativa; se não solucionar o mistério, pelo menos amenizá-lo, e isso sem que sejam necessárias capacidades cognitivas especiais distintas daquelas que naturalmente possuímos, como McGinn sugere.

IV

Ao defender que há uma conexão causal necessária entre eventos, estou assumindo uma concepção essencialista – realista – da causação. Nesse sentido, penso que se aplica à relação entre o cérebro físico e a consciência qualitativa o mesmo tipo de relação causal que Brian Ellis, em seu “essencialismo científico”, atribui à relação entre o que chama de “tipos naturais”, referindo-se a entidades puramente físicas.5 Parafraseando Ellis, assumirei que: (a) cérebro e consciência não são passivos, mas essencialmente ativos e reativos; cérebro e consciência possuem propriedades disposicionais, isto é, poderes, capacidades e propensões causais; (c) as regularidades – “leis básicas” – envolvidas na relação cérebro e consciência decorrem dos modos como estão predispostos a agir ou interagir, dadas suas propriedades essenciais; (d) essas regularidades são metafisicamente necessárias, porque qualquer coisa que tenha as mesmas propriedades disposicionais essenciais deve estar predisposta a comportar-se como essas propriedades requerem; (e) as relações causais elementares envolvem conexões necessárias entre eventos cerebrais e eventos conscientes.

Assumindo-se essa concepção ontológica – essencialismo/realismo causal – como ficaria o problema da lacuna explicativa, ou seja, os eventos físicos cerebrais explicariam os eventos qualitativos conscientes? Em que pese a existência de uma conexão necessária, o problema da lacuna explicativa parece permanecer, na medida em que, como já argumentava brilhantemente o filósofo David Hume, nossa experiência nos oferece eventos distintos, todavia, não a conexão causal entre eles. Seríamos nós que os conectamos causalmente, a partir de sua conjunção regular, mas conjunção regular não é conexão causal. Embora concordando com essa tese humiana, estou assumindo que onde houver causação há regularidade – essencialismo/realismo causal –, o que significa que a identificação de conjunções regulares é o meio mais adequado para se identificar as causas, isto é, para explicar os efeitos. Levando-se em conta que onde houver conexão causal há conjunção regular, e que há uma conjunção regular, amplamente conhecida, entre eventos físicos cerebrais específicos e eventos qualitativos conscientes específicos, conclui-se, legitimamente, que são os primeiros que causam e, portanto, explicam os segundos.

Poder-se-ía alegar, ainda em termos humianos, que essa regularidade não constitui nenhuma garantia de que há uma conexão causal entre os eventos físicos cerebrais e os eventos qualitativos conscientes. Penso que esse ceticismo pode ser mitigado, admitindo-se: 1. Que não há uma causa da consciência concorrente com o cérebro físico, por exemplo, algum tipo de substância não física; nenhum tipo de experiência nos dá a existência de uma substância não física ocorrendo de forma regular com os eventos qualitativos conscientes. 2. Que, embora possa causar estranhamento o fato de eventos físicos cerebrais causarem eventos conscientes, cuja natureza é essencialmente qualitativa, é preciso lembrar que estes últimos eventos não têm uma natureza substancial, no sentido cartesiano, ou seja, não se trata de uma substância cartesiana não física produzida pelo cérebro físico. 3. Que, quando se observam em detalhes a riqueza e a complexidade da estrutura e funcionamento do cérebro, em sua interação com a riqueza e complexidade do corpo no qual está incorporado, e do ambiente externo ao corpo no qual está situado, parece não haver nenhum fundamento para se especular que todo esse extraordinário complexo sistema não seja a causa da consciência qualitativa, a qual deveria ser procurada em outro lugar.

Consideremos, a título de exemplo, a relação entre o cérebro e a consciência visual.6 Segundo a concepção essencialista/realista anteriormente assumida, explicar a consciência visual consiste em identificar a sua causa, no caso, a estrutura e a funcionalidade do sistema cerebral visual, em sua interação com o órgão corpóreo e com o ambiente externo. Resumidamente, a concepção científica dominante é a de que a consciência visual, constituída por propriedades, tais como cor, forma, movimento, localização espacial e identificação de objetos, resulta de um processo que se inicia no ambiente físico externo ao corpo, onde a luz incide sobre os objetos e esses, em virtude de sua constituição atômico-molecular, a absorvem e refletem em maior ou menor grau. A luz refletida incide sobre o olho, órgão corpóreo altamente complexo, cuja estrutura é constituída por inúmeros componentes, dentre os quais se destacam a pupila, a íris, a córnea, as câmaras anterior e posterior, o cristalino e a retina, esta, por sua vez, composta por células fotorreceptoras (cones e bastonetes), além de células horizontais, bipolares, amácrina, ganglionares etc., cada uma delas com funções específicas e imprescindíveis à geração de informações eletroquímicas.

Essas informações são transmitidas pelo nervo trato ótico para uma estrutura localizada no tálamo, o núcleo geniculado lateral, do qual partem radiações óticas que chegam ao córtex visual, constituído por vários núcleos (V1, V2 etc.) com funções específicas. O córtex visual, junto com outras estruturas, tais como o campo ocular frontal, o colículo superior, os núcleos pretectais, os músculos extraoculares etc., algumas dessas responsáveis por atividades motoras do olho, estão envolvidos e são imprescindíveis para a construção dos diversos conteúdos da consciência visual anteriormente citados.

Embora essa seja uma descrição muito resumida da estrutura e funcionalidade do sistema visual, acredito que ela seja suficiente para ilustrar o que foi dito no penúltimo parágrafo. Primeiro, não é necessário, nem inteligível, postular que a causa da consciência visual não é o cérebro, incorporado e situado, mas alguma substância cartesiana de natureza não física, o que implicaria uma lacuna ontológica. Segundo, ao causar a consciência visual, o cérebro não está produzindo uma substância cartesiana não física; novamente, não há uma lacuna ontológica. Terceiro, a busca de um conhecimento minucioso dessa complexa estrutura e funcionalidade, envolvendo não apenas o sistema visual, mas também outros sistemas cerebrais relacionados a outras formas de consciência cognitiva, a saber, as volitivas, afetivas e motoras, é o único caminho para explicar as experiências conscientes correlatas. 4. Não seria possível que cérebros e corpos com estrutura e funcionalidade idênticas às dos seres humanos não possuíssem experiências conscientes semelhantes; daí a admissão de que animais não humanos, que tenham sistemas visuais, assim como outros sistemas cerebrais/corporais, mais ou menos semelhantes aos dos seres humanos, tenham consciência visual, assim como outras formas de consciência correlatas.


V

Assumindo essa visão fisicalista segundo a qual as propriedades físicas, estruturais e funcionais do cérebro físico causam a propriedade qualitativa consciência, em suas várias formas e conteúdos, e que, portanto, é no cérebro, em sua interação com seu corpo e com o ambiente externo, físico e sociocultural, que se deve buscar a explicação para as diversas formas e conteúdos de consciência, como compreender o papel causal da consciência em relação ao cérebro?

Aqui reaparece o problema da lacuna explicativa, contudo, numa direção inversa, pois se trata de responder se, e sendo o caso, explicar como as propriedades qualitativas da consciência atuariam causalmente sobre as propriedades físicas do cérebro, o que parece ininteligível. Vem ao encontro desse problema a possibilidade de se poder imaginar/conceber a consciência qualitativa sem o cérebro físico – um mundo berkeleyano de consciências puras. Assim como no caso do problema da causalidade cerebral, o problema da causalidade da consciência envolve uma lacuna explicativa, a qual pressupõe uma lacuna ontológica entre a consciência qualitativa e o cérebro físico. Voltemos então à questão da lacuna ontológica.

Cabe aqui inicialmente lembrar o que foi destacado na seção anterior, ou seja, que, para o fisicalismo, a consciência não é uma substância cartesiana, mas uma propriedade qualitativa das propriedades físicas do cérebro. Não sendo a consciência qualitativa uma substância, não seria apropriado, rigorosamente falando, dizer que a consciência causa eventos cerebrais, pois tal enunciado sugere que a consciência, a qual é causada pelo cérebro, adquire, a partir daí, algum tipo de independência ontológica e um poder causal inerente à sua natureza qualitativa; é o que parece implícito na noção de “causação descendente”. O primeiro passo, então, para resolver o problema da causação consciente consiste em não substancializar a consciência, não confundindo, assim, o dualismo de propriedade com o dualismo de substância; o cérebro não causa a substância cartesiana consciência, mas a propriedade qualitativa consciência. Não sendo a consciência uma substância cartesiana, seria legítimo atribuir a ela uma ação causal sobre o cérebro?

Penso que sim, e que o caminho é, em vez de considerar a consciência como possuidora de alguma autonomia em relação ao cérebro, deve-se considerá-la como uma propriedade qualitativa do cérebro, a qual lhe dá a capacidade/poder de interagir causalmente consigo mesmo e, a partir daí, com seu corpo e, através deste, com o ambiente físico e sociocultural externo ao corpo. Isso significa focar no poder causal do cérebro derivado do fato de este ter a propriedade qualitativa consciência, o que implica entender como o fato de o cérebro possuir essa propriedade interfere na sua estrutura e funcionalidade e, consequentemente, na sua interação física e consciente com seu corpo e, através deste, com o ambiente externo físico e sociocultural. Essas propriedades conscientes, em suas várias formas e conteúdos, as quais dão ao cérebro capacidades/poderes causais que este, de outro modo, não teria, são utilizadas pelo cérebro como guias de sua ação voluntária, não sendo, portanto, apenas epifenômenos. Resumidamente, o cérebro é o agente e a consciência, em suas várias formas e conteúdos, é seu guia de ação.

Tentarei explicitar essa interpretação, voltando ao exemplo da consciência visual. Um cérebro, ao deslocar-se junto com seu corpo, recebe, como vimos anteriormente, através do olho, estímulos externos a partir dos quais produz os conteúdos da consciência visual. Destaco agora que o cérebro emprega esses conteúdos por ela produzidos para orientar o seu deslocamento incorporado no ambiente no qual está situado. Para esclarecer esse ponto, volto a uma analogia, já utilizada em texto anteriormente citado, sobre o papel de uma lanterna usada por um indivíduo para orientação num ambiente escuro. A lanterna produz uma visibilidade que funciona como guia que o indivíduo utiliza, para se deslocar de forma adaptativa no ambiente. Embora o indivíduo dependa da luz produzida pela lanterna para seu deslocamento eficaz no ambiente, é ele que direciona a lanterna e se vale das novas visibilidades por ela produzida, ou seja, o indivíduo é o agente e a visibilidade criada pela lanterna é seu guia de ação.

No caso da relação entre o cérebro e a consciência visual, há uma diferença importante, qual seja, o cérebro é ao mesmo tempo o causador da consciência visual (visibilidade) e o agente que utiliza a consciência visual por ele produzida, a partir de sua interação como o corpo e, através de seu órgão, o olho, com o ambiente externo, como guia de ação; na analogia citada, o cérebro é tanto a lanterna quanto o indivíduo. As ações implementadas pelo cérebro em decorrência das informações constitutivas de sua consciência visual, como guia, permitem ao cérebro receber, através do deslocamento de seu olho/corpo, outros estímulos visuais que lhe produzirão outras modificações, as quais, por sua vez, produzirão outros conteúdos de consciência visual, os quais continuarão a ser usados pelo cérebro como guias para novas ações no mundo externo e, assim, sucessivamente. Um cérebro que, seja em virtude de fatores ambientais como a escuridão, seja em razão de graves problemas oculares, seja em decorrência de danos em sua própria estrutura e funcionalidade relacionada à visão, não é capaz de produzir a consciência visual tem sua performance incorporada mais ou menos prejudicada, dependendo do grau de dependência da ação eficaz em relação à consciência visual.

Observe-se que a consciência visual está sendo tomada como uma propriedade do cérebro, derivada de sua relação com o corpo/olho e, através deste, com o ambiente externo, imprescindível para sua ação eficaz no mundo, e não como uma substância não física cartesiana que exerceria, por si só, independentemente do cérebro, uma ação causal, uma espécie de causação descendente, sobre o cérebro. Por isso, evitei dizer que a consciência visual guia o cérebro, para não incorrer num cartesianismo. Lembremos que a consciência visual não funciona isoladamente, mas é associada a outras formas de consciência, tais como sensações, crenças, desejos, intenções, afetos conscientes e seus respectivos e inumeráveis conteúdos, sobre os quais vale também a tese de que são efeitos e guias de ação do cérebro incorporado e situado.


VI

Procurei argumentar brevemente, na seção anterior, que é possível, assumindo-se uma abordagem fisicalista não reducionista da relação entre o cérebro físico e a consciência qualitativa, afirmar o papel causal da consciência em relação ao cérebro, sem que isso implique a existência de uma lacuna ontológica. Já havia argumentado, na penúltima seção, que é possível, com base na mesma abordagem, afirmar o papel causal do cérebro em relação à consciência, também sem que isso implique a existência de uma lacuna ontológica. Em ambos os casos, o ponto essencial da argumentação consistiu na interpretação da noção de consciência como propriedade do cérebro, e não como uma substância cartesiana por aquele criada. Retornarei, a partir daí, a alguns dos argumentos, anteriormente citados, de Joseph Levine, David Chalmers e Colin McGinn a favor da lacuna explicativa.

Resumidamente, apresentando a dor como exemplo, Levine defende que a associação entre um evento consciente a um evento cerebral não explica a forma e o conteúdo do evento consciente, visto não haver nada sobre os acontecimentos cerebrais que se ajuste com as propriedades fenomênicas dos eventos conscientes. Em concordância com essa posição de Levine, Chalmers argumenta que, por mais conhecido que seja o mundo físico, não seria possível derivar a partir dele os eventos conscientes, sendo a consciência algo completamente “inesperado”, “imprevisível”, “surpreendente”. Aceitando os termos do problema da lacuna explicativa, tais como colocados por Levine e Chalmers, McGinn acrescenta que esse problema é inerente à constituição cognitiva dos seres humanos – “fechamento cognitivo” –, e não intrínseco à relação entre cérebro e consciência.

O que me chama a atenção no argumento de Levine é a ideia de que é necessário que haja algo nos eventos causa que se ajuste aos eventos efeitos, sem que se explicite o que é e o porquê de tal ajuste ser necessário. Se tal ajuste não é possível, no caso da relação entre cérebro e consciência, o conhecimento, por mais detalhado que seja, do funcionamento cerebral, em sua interação com o corpo e o ambiente externo ao corpo, não seria suficiente para explicar as experiências conscientes. O que seria necessário para explicar, por exemplo, as experiências conscientes de dor e de cor, além de uma descrição detalhada da estrutura e funcionalidade dos sistemas cerebrais/corporais/ambientais envolvidos com essas experiências conscientes? Haveria algum outro tipo de evento causal cuja natureza se ajustaria ao efeito consciência, sendo mais apropriado para explicá-lo? Qual deveria ser a natureza do evento causa da consciência, para que houvesse o ajuste reivindicado por Levine? Algum tipo de substância cartesiana não física?

No argumento de Chalmers, gostaria de destacar a ideia por ele sugerida de que, para se estabelecer relação causal entre dois eventos, seria inicialmente necessário derivar a priori os eventos efeitos dos eventos causa, no caso, a consciência qualitativa dos eventos físicos cerebrais. A questão é se seria possível, em qualquer relação entre eventos, derivar a priori o evento efeito do evento causa. Não seriam os eventos efeito, sempre que considerados a priori, ou seja, independentemente de suas causas, “inesperados”, “imprevisíveis” e “surpreendentes”, deixando de o ser apenas quando os associamos causalmente, e após repetidas experiências, a outros eventos?

O argumento de McGinn me parece intrigante, pois, ao atribuir a lacuna explicativa ao fechamento cognitivo dos seres humanos e a solução do problema a seres que porventura tenham outras competências cognitivas, ele não parece estar se referindo às dificuldades e limites inerentes a uma compreensão minuciosa da estrutura e funcionamento do cérebro. McGinn sugere que nos falta a compreensão de alguma coisa que faça a conexão entre o cérebro e a consciência. Todavia, se o próprio McGinn admite que há uma conexão necessária entre eventos cerebrais e eventos conscientes, e que é possível uma teoria científica que explique essa conexão, o que essa teoria poderia oferecer que não seja uma descrição detalhada da estrutura e funcionamento do cérebro? E, sendo o caso, por que essa descrição estaria além de nossas competências cognitivas?

Por não vislumbrar a existência de nenhuma causalidade da consciência concorrente com a cerebral, incorporada e situada, por não entendear que haja uma justificativa legítima para não se considerar que o cérebro, incorporado e situado, seja a causa das várias formas e conteúdos da consciência, por levar em conta que já dispomos de um conhecimento amplo sobre o funcionamento do cérebro associado a uma enorme variedade de eventos conscientes e por assumir uma concepção essencialista da causação, penso que o programa de pesquisa em neurociência é o caminho para, se não eliminar, pelo menos mitigar a lacuna explicativa. Creio que a neurociência, associada à outras áreas da biologia, tais como a genética e a teoria evolutiva, apresenta-se como o único programa de pesquisa que tem permitido construir, passo a passo, uma teoria da consciência que preencha os requisitos apresentados por David Chalmers, a saber, uma teoria que especifique as condições sob as quais os processos físicos originam os tipos de experiências conscientes a eles associadas; explique de modo inteligível, não mágico, como a consciência se origina; permita ver a consciência como parte integral do mundo natural (CHALMERS, p. 5).7


CONSCIOUSNESS AND BRAIN: EXPLANATORY GAP AND ONTOLOGICAL GAP


Abstract: The question I have proposed to reflect on in this article is whether, and if so, in what terms, a non-reductionist and interactionist physicalist approach explains the relationship between consciousness and brain. For that, I took as a guiding thread the problem of the explanatory gap, which was faced with the problem of the ontological gap, which involves two intertwined issues: 1. Does the existence of an explanatory gap implies the existence of an ontological gap? 2. Does the nonexistence of an ontological gap imply the nonexistence of an explanatory gap? I believe this reflection is welcome, since these two perspectives, the epistemological and the ontological, are often confused, and not understood.


Key-words: Consciousness. Brain. Explanatory gap. Ontological gap.


Referências

CHALMERS, D. J. The Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory. New York/Oxford: Oxford University Press, 1996.

COELHO, J.G. Abordagem Dupla Face da Relação Mente Consciente e Cérebro: A Visão como Exemplo Paradigmático. In: Toledo, G. L.; GOUVEA, R. A.S.; ALVES, M. A. S. (Org.) Debates Contemporâneos em Filosofia da Mente. São Paulo: FiloCzar, p. 131-150, 2018.

DESCARTES, R. Les Principes de la Philosophie. In: DESCARTES, R. Oeuvres en Lettres. Paris: Gallimard, 1952.

ELLIS, B. Scientific Realism. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

LEVINE, J. 1983. Materialism and Qualia: The Explanatory Gap. Pacific Philosophical Quarterly, v. 64, p. 354-361, 1983.

McGINN, C. Can We Solve the Mind-Body Problem? Mind, v. 98, p. 349-366, 1989.

NAGEL, T. What is it like to be a bat? The Philosophical Review, v. 83, n. 4, 435-450, 1974.

Recebido: 12/08/2022

Aceito: 09/12/2022



1 Professor Associado do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Bauru), Bauru, SP – Brasil, e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Marília). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9525-1114. Email: jonas.coelho@unesp.br.

2 No livro Princípios de Filosofia, Descartes define substância como alguma coisa que não depende de outra coisa para existir, isto é, como algo que serve como substrato ou suporte para outros seres existentes que seriam seus atributos. É nesse sentido que o filósofo escreve, no livro mencionado, que uma substância é “[...] uma coisa que existe de tal maneira que tem necessidade de si própria para existir.” A seguir, reitera essa posição, apenas acrescentando que uma substância, diferentemente de um atributo, é uma criação divina que não depende de outra criação divina: “Todavia, porque, entre as coisas criadas, algumas são de tal natureza que não podem existir sem as outras, distinguimo-las daquelas que só têm necessidade do concurso ordinário de Deus, chamando então, a estas, substâncias e, àquelas, qualidades ou atributos das substâncias.” (DESCARTES, 1952, p. 594).

3 “Experiências conscientes variam de sensações de cores vívidas a experiências mais tênues de aromas de fundo; de dores extremas a elusivas a experiências de pensamento na ponta da língua; de sons e aromas mundanos a abrangente grandeza da experiência musical; da trivialidade de uma coceira persistente ao peso de uma profunda angústia existencial; da especificidade do sabor menta à generalidade da experiência de eu. Todos esses têm uma experiência qualitativamente distinta. Todos são partes proeminentes da vida interna da mente. Podemos dizer que um ser é consciente se há algo como é ser aquele ser, para usar a frase tornada famosa por Thomas Nagel. Do mesmo modo, um estado mental é consciente se há algo como estar naquele estado mental.” (CHALMERS, 1996, p. 4).

4 Há um grande debate a respeito da possibilidade lógica e possibilidade natural de zumbis. O próprio David Chalmers considera improvável a possibilidade natural de zumbis. Esse debate diz respeito principalmente à questão da irredutibilidade ou não da consciência ao físico, e não propriamente ao problema da lacuna explicativa, embora essas duas questões estejam relacionadas. Não tratarei da querela acerca da possibilidade de zumbis, visto que meu principal objetivo, neste artigo, não é discutir se a consciência é distinta e irredutível ao físico, contudo, assumindo a distinção e irredutibilidade, focar no problema da lacuna explicativa.

5 “O essencialismo científico defende que (a) a matéria não é passiva, mas essencialmente ativa e reativa; (b) as propriedades essenciais das coisas pertencentes a tipos naturais incluem propriedades disposicionais – isto é, poderes causais, capacidades e propensões; (c) as leis básicas da natureza não são descrições de regularidades comportamentais, mas dos modos pelos quais as coisas pertencentes a tipos naturais devem estar dispostas a agir ou interagir, dadas suas propriedades essenciais; (d) as leis da natureza são metafisicamente necessárias, porque qualquer coisa que têm as propriedades disposicionais essenciais de um dado tipo natural devem estar dispostas a comportar-se como essas propriedades requerem; (e) relações causais elementares envolvem conexões necessárias entre eventos – saber, entre os disparadores e exibidores de propriedades disposicionais básicas.” (ELLIS, 2007, p. 106).

6 Tratei mais detalhadamente da relação entre cérebro e consciência visual em Coelho (2018).

7 “Gostaríamos de uma teoria da consciência que fizesse pelo menos o seguinte: ela deveria oferecer as condições sob as quais processos físicos originam a consciência, e para esses processos originarem consciência, deveria ser especificado que tipo de experiência está associado. E gostaríamos de uma teoria que explicasse como ela se origina, de modo que a emergência da consciência parecesse inteligível e não mágica. No final das contas, gostaríamos de uma teoria que nos permitisse ver a consciência como uma parte integral do mundo natural.” (CHALMERS, 1996, p. 5).