APRESENTAÇÃO

 

Marcos Antonio Alves[1]

 

Com satisfação, apresentamos o número três do ano de 2022 da Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp. Dos 18 textos publicados neste fascículo, dez são de autores originários de instituições brasileiras e os outros oito, de instituições estrangeiras. Os brasileiros são oriundos de todas as regiões do país: Acre, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Paraná e São Paulo. Os textos do exterior são provenientes da Austrália, Chile, com quatro textos publicados, Colômbia, Espanha e dois artigos de Portugal.

Do total de textos, publicamos uma entrevista, nove artigos e oito comentários. Conforme aponta Alves (2021, p. 13), os comentários, além de propiciar o debate filosófico, também são “[...] uma forma de valorizar formalmente o trabalho dos avaliadores do periódico.” Trata-se de textos originais e inéditos, os quais buscam dialogar com os artigos produzidos e aprovados para publicação.

Começamos este fascículo com a entrevista intitulada “Epistemologia das ciências humanas”, feita por Weiny César Freitas Pinto e Vicente Xavier Gonzalez a Ivan Domingues. Os entrevistadores lembram que Ivan Domingues é graduado, mestre e doutor em Filosofia e professor titular, recém-aposentado, do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. Com mais de quatro décadas de atuação em ensino, pesquisa e extensão, Domingues tem experiência em vários campos da filosofia contemporânea: epistemologia das ciências humanas, filosofia da técnica, ética e conhecimento e filosofia no Brasil. Essa entrevista passa por diversos desses temas, abordados pelo pensador brasileiro, ao longo de sua trajetória profissional.

O primeiro artigo, escrito em inglês, é de autoria de Cristina Crichton, intitulado “Metontology and Heidegger’s concern for the ontic after Being and Time: challenging the A priori.” Conforme lembra a autora, a Kehre (viragem) no pensamento de Heidegger foi amplamente discutida e debatida. A introdução da noção de metontologia (Metontologie), em 1927, informou proveitosamente esse debate, uma vez que implica uma preocupação com o domínio ôntico, por parte de Heidegger, que não está presente em trabalhos anteriores. O fato de essa noção desaparecer logo após ser introduzida, porém, desafia sua contribuição para esse debate. Crichton mostra que o desaparecimento da metontologia não significa o desaparecimento da preocupação de Heidegger com o ôntico, mas o contrário. Ela começa apresentando a visão de Freeman de uma tensão entre o ôntico e o ontológico, no pensamento de Heidegger, em meados da década dos 20, que resulta na introdução da metontologia, em 1927. Depois, assinala que a explicação de McNeill para o desaparecimento de a metontologia, como consequência da visão de Heidegger, de meados dos anos 30, de que a projeção a priori do ser é uma retirada do ser (Entzug des Seins), permite dizer que esse desaparecimento não acarreta uma repentina falta de preocupação de Heidegger com o ôntico. Ao considerar a análise de Heidegger de "o matemático", em Die Frage nach dem Ding, argumenta que a metontologia desaparece do pensamento de Heidegger, porque sua dependência da ontologia a impede de explicar sua crescente preocupação com o ôntico, de maneira adequada.

Em seguida, também na língua inglesa, publicamos “The power to tolerate”, de Eduardo Fuentes Caro. Conforme o autor, a tolerância é um privilégio dos poderosos. Uma pessoa só pode tolerar, se tiver o poder de interferir naquilo a que se opõe. Caro revisa, nesse artigo, as circunstâncias em que alguém tem o poder de tolerar. Ele argumenta que a resposta deve incorporar considerações metafísicas e práticas. Em particular, defende que alguém tem o poder de tolerar, quando suas propriedades fundamentam esse poder na situação prática em que a pessoa se encontra, caracterizada por seus interesses práticos. Ao fazer isso, opõe-se à análise de Glen Newey sobre esse poder.

O terceiro artigo é “Reconstruindo a Era Secular em Charles Taylor”, escrito por Juliano Cordeiro da Costa Oliveira, o qual discute como Charles Taylor reconstrói a era secular. A tese de Taylor é que a era secular não pode estar restrita à ideia da saída da religião do espaço público (secularidade 1), nem apenas pode significar a diminuição de crenças e práticas religiosas (secularidade 2). Taylor propõe uma nova leitura da era secular (secularidade 3), na qual o pluralismo de crentes e não crentes seria a melhor descrição para um mundo que se seculariza, mas que, ao mesmo tempo, as doutrinas de fé ainda continuam influenciado o modo de vida das pessoas. Esse filósofo, lembra Oliveira, enfatiza que a religião ainda se relaciona com a formação das diversas identidades, à medida que exerce, ao mesmo tempo, uma perspectiva de reconhecimento dos sujeitos, mesmo em sociedades modernas. Na parte final do artigo, o autor discute críticas à filosofia de Taylor, a partir das propostas teóricas de Jürgen Habermas e Nancy Fraser. A metodologia consistiu em análises das obras de Taylor (principalmente Uma Era Secular, como obra-chave desse artigo), bem como de seus intérpretes e estudiosos.

Escrito em espanhol, Leonardo Verano Gamboa publica “Dialéctica de la experiencia en Merleau-Ponty y Adorno”. Gamboa propõe um diálogo entre a fenomenologia e a teoria crítica, especificamente em Merleau-Ponty e Adorno. O autor sustenta que a tarefa por eles atribuída à filosofia revela uma concepção dialética da experiência, na qual se reivindica o sentido dela como experiência viva (lebendige Erfahrung). Não obstante as fortes objeções dirigidas à fenomenologia, por Adorno, Horkheimer e Marcuse, Gamboa identifica, à guisa de introdução, a negatividade da experiência como traço característico em Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty. Feito isso, trata da concepção de percepção como experiência sensível em Merleau-Ponty, a fim de especificar seu significado dialético. Depois, aponta a importância atribuída por Adorno ao trabalho conceitual da filosofia, a fim de ver seu significado dialético, que o vincula à experiência viva das coisas. Por fim, identifica pontos de encontro na concepção da dialética em ambos os autores e apresenta uma reflexão sobre seu estado atual.

O quinto artigo também está em espanhol: “La actualidad del Esse en la metafísica tomista: perspectivas críticas, de autoria de Manuel Alejandro Serra Pérez. Conforme o autor, uma das causas do renascimento que a filosofia do ser de Tomás de Aquino teve, desde meados do século passado, é, sem dúvida, o impacto dos estudos realizados sobre o assunto pelo medievalista francês Étienne Gilson. Instados pela crítica ontoteológica de M. Heidegger, Gilson e outros tomistas fizeram causa comum para esclarecer o alcance da invectiva de Heidegger, o qual julgava que a metafísica do ser de Tomás de Aquino também teria caído num essencialismo ou reificação do ser. A proposta desses autores centrou-se em destacar a noção original de ser (actus essendi) contra intérpretes (alguns da própria escola tomista) que teriam obscurecido seu sentido, fundamentalmente seu valor de suprema relevância. Na opinião de Gilson, Fabro e outros, a principal causa desse borrão teria sido a identificação do ser e da existência. Serra Pérez analisa criticamente algumas posições do tomismo contemporâneo e justifica a impossibilidade de identificar o que Tomás de Aquino chama de esse por existência.

Em seguida vem “Socioconstrutivismo: críticas e respostas”, de Marcos Rodrigues da Silva. O autor apresenta e discute quatro objeções que têm sido direcionadas ao socioconstrutivismo, enquanto concepção de ciência: i) sua impossibilidade teórica; ii) sua implausibilidade teórica; iii) sua irrelevância; iv) sua indesejabilidade. Silva sustenta a inadequação das quatro objeções, sugere a importância do socioconstrutivismo, mas defende que essa posição não é nem a única nem a melhor para nossa compreensão da ciência, senão que apenas mais uma, dentre tantas contribuições filosóficas para essa compreensão.

O sétimo artigo é “Ética dialética da interpretação: a hermenêutica romântica de Friedrich Schleiermacher, de Mauricio Mancilla. O autor busca expor o pensamento hermenêutico de Friedrich Schleiermacher (1768-1834), levando em conta o contexto germinativo fértil de sua obra e sua influente posição filosófica, no âmbito do “primeiro romantismo alemão” (Frühromantik). Schleiermacher renuncia a um importante fundamento transcendental a-histórico, em favor de uma compreensão situada, a qual se configura através do diálogo. A hipótese central de Mancilla alerta que o desenvolvimento paralelo e sistemático das lições sobre ética, dialética e hermenêutica, em Schleiermacher, não é mera coincidência, muito menos um sintoma isolado, contudo, revela um projeto de caráter orgânico. Por um lado, o autor examina, à luz de seus textos, o papel da linguagem como variável histórica e social para a compreensão e, por outro, algumas reflexões sobre as novas possibilidades de seu método hermenêutico e suas implicações para a reflexão filosófica contemporânea.

O oitavo artigo é de Mauro Dela Bandera, intitulado “James Scott e a origem agrária do estado: um rousseauismo inconfesso”. Conforme o autor, a narrativa de Rousseau sobre a origem do Estado foi retomada nos últimos séculos por diversas tradições, fazendo-se notar, no seio do iluminismo escocês e nos trabalhos de Engels. James Scott, em seu recente livro Contra o grão, de 2017, ecoa algumas teses de Rousseau. Dentre tantos pontos de convergência, três se destacam, sendo eles analisados no decorrer desse artigo: i) de um lado, a variedade dos modos de ser e de se relacionar com a natureza dos povos sem Estado, a idade de ouro dos bárbaros; de outro, a estratificação dos povos sob o Estado, o empobrecimento dos agricultores cerealistas; ii) as condições ecológicas raras e especialíssimas favoráveis à emergência do aparelho estatal, em oposição às dificuldades de se formar o Estado em regiões de abundância naturais, donde se faz necessário estabelecer a hipótese de mudanças climáticas que alteram as condições de existência; iii) a importância dos grãos para o processo civilizatório, isto é, a afinidade entre economia agrária de cereais e Estado.

Fechando o rol de dez textos publicados neste fascículo está o artigo de Paulo Alexandre e Castro: “Sobre a origem da linguagem de Herder, o seu legado e a inevitável reflexão a fazer no hipotético quadro de singularidade tecnológica”. Johann Gottfried Herder, à semelhança dos seus contemporâneos, refletiu sobre a linguagem e, em 1772, publicou o Ensaio Sobre a Origem da Linguagem, o qual, no ano anterior, lhe valera a distinção da Academia de Berlim para melhor ensaio. No entanto, ainda hoje, muito do seu pensamento é desconhecido, ignorando-se por isso que algumas das modernas abordagens da filosofia contemporânea, da antropologia filosófica ou mesmo da sociobiologia estão já aí enunciadas, nomeadamente nas narrativas decorrentes da enunciação das quatro leis naturais. Mais do que a justificação sobre a origem da linguagem, o ensaio do filósofo permite ainda compreender a natureza humana, inserindo no coração da antropologia filosófica a sua gênese e contrariando, se não mesmo confrontando, dessa forma, a tradição divina dessa atribuição. Assim, num primeiro momento, Castro desenvolve uma análise genérica da obra, ressaltando as teses fundamentais que permitirão o estabelecimento do diálogo com algumas das abordagens filosóficas contemporâneas. Em seguida, admitindo a possibilidade de um cenário de singularidade tecnológica, tal como enunciado por Irving John Good, Vernor Vinge ou Ray Kurzweil, verifica a plausibilidade e a validade das teses de Herder, no que concerne ao alcance da linguagem e à natureza humana, e de como isso poderá constituir uma fronteira de resistência.

Assim está constituído este fascículo. Desejamos boa leitura e ótimo proveito das ideias publicadas!

 

Referência

ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 9-20, 2021.

 

Recebido: 07/06/2022

Aceito: 20/06/2022

 

 



[1] Docente no Departamento de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Marília, SP – Brasil e Líder do Grupo de Estudos em Filosofia da Informação, da Mente e Epistemologia – GEFIME (CNPq/UNESP). Editor responsável da Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da UNESP. Pesquisador CNPq/Pq-2. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5704-5328. E-mail: marcos.a.alves@unesp.br.