COMENTÁRIO A “SOBRE A ORIGEM DA LINGUAGEM DE HERDER, O SEU LEGADO E A INEVITÁVEL REFLEXÃO A FAZER NO HIPOTÉTICO QUADRO DE SINGULARIDADE TECNOLÓGICA”

 

Ana Branca Soeiro de Carvalho[1]

 

Referência do artigo comentado: CASTRO, Paulo Alexandre e. Sobre a origem da linguagem de Herder, o seu legado e a inevitável reflexão a fazer no hipotético quadro de singularidade tecnológica. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, V. 45, n. 3, p. 237-254, 2022.

 

O artigo de Paulo Alexandre e Castro (2022) apresenta-se com objectivos claros e bem definidos, desde logo, pelo seu título, que faz menção à análise da obra, O Ensaio Sobre a Origem da Linguagem, do autor em questão, Johann Gottfried Herder, o seu contributo e remetendo-nos ainda para uma inevitável reflexão de um futuro que não pensámos. Atendendo aos propósitos do autor e considerando que é um artigo e que, portanto, tem limitações óbvias de espaço, não se pode deixar de referir a enorme capacidade de síntese que foi realizada num assunto, que, por si só, é complexo e e ainda faz correr muita tinta. Do ponto de vista formal, é de referir também a leitura fluida que o autor proporciona, mormente o facto da complexidade do tema e das ligações que estabelece.

Contudo, não se segue dessa capacidade de sintetizar tão complexos pensamentos que o artigo esteja inacabado ou incompleto. Pelo contrário, o autor apresenta-nos os pontos cruciais da obra de Herder e reflete dialógica e criticamente com eles, para, num movimento posterior, os reclamar para o debate com esse futuro indesejável da singularidade tecnológica.

Sobre esse ponto, acrescente-se ainda que, se é verdade que o autor assinala a influência de Kant sobre Herder, nós nos atreveríamos a dizer que Castro também, pela forma como estrutura e organiza o seu pensamento, tem em si um mundo de influências filosóficas (da racionalidade mais pura, passando pela fenomenologia, até à poética e descomprometida metafísica), que só uma mente distraída não vislumbra ou se pode negar ver. Não é certamente por acaso que Castro reserva uma atenção especial ao capítulo dois, dedicado à “reflexão”, a qual, como se pode ver, é algo não só fundamental como constituinte da natureza humana para a narrativa herderiana.

O autor do ensaio (2022) explicita diversos pontos de interesse de um debate, sobre a origem da linguagem, que atravessa a história da filosofia. Focando-se no ensaio de Herder, o nosso autor apresenta as circunstâncias, quer filosóficas, quer culturais, as quais marcam o século XVIII e o fascínio que o tema provoca junto dos letrados da época. Aqui, a atenção dada ao período histórico podia ser maior, mas convenhamos que esse não é o propósito do trabalho ensaístico do autor. Já no que diz respeito à análise do texto, o autor acusa Herder de não ter desenvolvido uma semiótica e uma fenomenologia inaugural sobre os fenómenos da audição como pontos originais de um pensamento que, como refere Castro (2022, p. 240), “[...] prepararia e alargaria a compreensão da linguagem e da própria natureza humana.” E compreende-se que Castro o mencione; não só o tema é retomado adiante (no capítulo três), como será retomado mais de um século depois, por certos filósofos, como Levinas ou Heidegger. Dizendo de outro modo, o ouvir o outro é uma forma de acolher a alteridade como é uma forma de escutar o apelo do ser, para parafrasearmos os pensamentos dos filósofos.

Ora, Castro sabe-o e por isso viu em Herder a originalidade de uma filosofia da audição e da reflexão que se conectará com aquilo a que Herder chamou de Leis Naturais, isto é, como se se cruzassem no plano da constituição existencial do ser humano, a biologia e a metafísica, os genes e os memes, e se fizesse brotar o ser linguístico, consciente, social. Castro não foi indiferente a esses aspetos e demonstra-os claramente, no seu artigo (ao chamar ao diálogo Dawkins e Blackmore), para reforçar a necessidade do diálogo com Herder, diálogo que se encontra repercutido nalgumas das disciplinas da atualidade, como bem nos lembra o autor e de que encontramos eco na psicobiologia, psicologia evolucionista, entre outras.

Se o artigo terminasse aqui, o ensaísta teria já feito um magnífico trabalho hermenêutico e traria já luz a um tema que exige demora e reflexão. Mas vai mais longe e, percebendo o potencial que é possível extrair da leitura do ensaio de Herder, apresenta o conceito que verdadeiramente está aqui subjacente, a saber, o de evolução. É precisamente esse conceito que preside à conceção e reflexão que coloca a singularidade tecnológica como cenário de futuro. Se John Von Neumann dita essa singularidade, ainda que de modo errático, é com Vernor Vinge, Ray Kurzweil, Stuart Armstrong, Nick Bostrom (entre outros) que essa conceção ganha força. Ora, a abordagem de Castro ganha especial relevância, ao perceber que o conceito de evolução está presente em ambas as conceções e que, portanto, se é verdade que a inteligência artificial é o resultado de um processo evolutivo e que o perigo que apresenta pode resultar da sua própria evolução, então, é legitimo pensar que é também pela linguagem que a humanidade resistirá. A linguagem não é apenas um dito que dita, é forma e ação da mente humana.

Se Herder percebeu o alcance dessa relação intrínseca que a humanidade desenvolveu, em relação à linguagem e à estruturação da mente, para constituir mundo, logo é válido pensar, tal como Castro fez, a capacidade de reinvenção do próprio ser humano como forma de superação das circunstâncias futuras, não apenas do ponto de vista linguístico (e da filosofia da linguagem), mas do ponto de vista da evolução e consolidação mental . Poder-se-ia pensar que Castro se esqueceu de concretizar uma reflexão bioética ou moral, todavia, ela está subentendida (embora não explicitada) naquilo que é lido como resistência e união.

Para terminar, parece-nos indubitável a entrega e a coesão que o autor fez do texto de Herder e que culmina com uma leitura original de um cenário futurístico (cumprindo com aquilo que prometeu fazer, no artigo), relembrando a importância de revisitar os autores (considerados mais) clássicos, na sua sabedoria, na sua maneira peculiar de nos alertarem para os desvios ou transformações que ocorrem na desmedida ambição humana. Só podemos estar gratos por existirem autores como Paulo Alexandre e Castro, os quais vão mais longe nas suas explorações e nos brindam com palavras de encorajamento e sabedoria.

 

Referências

ARMSTRONG, Stuart. Smarter Than Us. The rise of machine intelligence. Berkeley: MIRI, 2014.

BLACKMORE, Susan. The Meme Machine. Oxford: Oxford University Press, 1999.

BOSTROM, Nick. Superintelligence. Paths, Dangers, Strategies. Oxford University Press, 2014.

CASTRO, Paulo Alexandre e. Sobre a origem da linguagem de Herder, o seu legado e a inevitável reflexão a fazer no hipotético quadro de singularidade tecnológica. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, V. 45, n. 3, p. p. 237-254, 2022.

HERDER, Johann Gottfried. Ensaio sobre a origem da linguagem (José M. Justo, Trans). Lisboa: Antígona, 1987.

KURZWEIL, R. Singularity is Near. Londres: Gerald Duckworth, 2006.

 

Recebido: 24/04/2022

Aceito: 04/05/2022

 



[1] Professora Adjunta no Instituto Politécnico de Viseu, Viseu – Portugal. Membro do Centro de Investigação em Serviços Digitais (CISeD) da Universidade de Lisboa/Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa – Portugal. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8979-6644. Email: acarvalho@estgl.ipv.pt.