ComeNtário a “James Scott e a origem agrária do estado: um rousseauismo inconfesso”

 

Thiago Vargas[1]

 

Referência do artigo comentado: Bandera, Mauro Dela. James Scott e a origem agrária do estado: um rousseauismo inconfesso. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, V. 45, n. 3, p. 207-230, 2022.

 

Procedendo a partir de aproximações e distanciamentos entre as obras de James Scott e de Jean-Jacques Rousseau, o artigo de Mauro Dela Bandera (2022) nos convida a refletir sobre as diferentes concepções da origem do Estado, com base em uma dupla questão: uma trata das transições de modos de vida para o Estado agricultor de tipo cerealista, levando em conta as críticas dirigidas às narrativas que atribuem funções demasiado restritas para o binômio nomadismo-sedentarização; a outra aborda o cultivo e a produção de grãos, pensada conjuntamente às questões de demografia e de controle populacional.

Assim, ao examinar as dificuldades heurísticas relacionadas à emergência estatal e considerando os elementos heterogêneos que explicam as variadas formas de organização de produção social, o artigo “James Scott e a origem agrária do estado: um rousseauismo inconfesso” explora esses problemas num agudo ponto, onde política, economia e antropologia se cruzam. O enfoque dá-se sobretudo na obra de Scott, cujas teses, exemplos e argumentos são vistos comparativamente aos escritos de Rousseau, especialmente em relação ao Discurso sobre a desigualdade e o Ensaio sobre a origem das línguas.

Com isso, o artigo abre caminhos para pensarmos a recepção de Rousseau por autores contemporâneos da antropologia e da política, como Pierre Clastres, David Graeber e Marshall Sahlins. Nesse sentido, Bandera (2022) assume uma postura inovadora frente à tradição de estudos rousseaunianos brasileiros. Voltarei a essa questão posteriormente, a fim de esclarecê-la. Antes, gostaria de dialogar com o artigo, propondo duas reflexões surgidas a partir de sua leitura.

A primeira se trata de uma história a contrapelo da relação entre grãos e governo, ou seja, de como a “questão agrícola” enseja não somente a discussão sobre a origem do Estado, como também produz um discurso de limitação de suas ações, até mesmo contra certas de suas ingerências. Evoco aqui uma disciplina pensada no seio da filosofia política e moral do século XVIII, ou seja, a economia política.

Enquanto alguns autores ainda insistiam em enfatizar a noção de subsistência ao tratarem de produções agrícolas, François Quesnay e seus discípulos inovam ao pensar que o termo não é o bastante para dar conta da questão, pois, para os économistes, a agricultura deve ser vista em termos de abundância ou opulência, o que abrirá caminho para uma inovadora teoria político-econômica. Afinal, junto com a “febre” dos grãos suscitada em meados do XVIII (cf. VOLTAIRE, “Blé”, Dictionnaire Philosophique), advém uma questão sobre o valor dos produtos: segundo os fisiocratas, não é a quantidade de bens agrícolas produzidos que irá gerar a abundância, mas o equilíbrio de preço que o comércio desses mesmos bens deverá encontrar. Em seu livro L’invention de l’économie politique au XVIIIe siècle, Catherine Larrère mostra como Quesnay passa, desde então, a analisar de perto os custos que o cultivador despende para produzir os grãos, sendo na base da contabilidade agrícola que se inventa a economia, ou, segundo Larrère, “[...] a invenção da economia é, primeiramente, um novo olhar sobre a agricultura, preciso, minucioso.” (LARRÈRE, 1992, p. 183).

O problema dos grãos levou os fisiocratas a pensarem justamente no estabelecimento de um “reino agrícola”, no qual o Estado entraria como garantidor da aplicação das leis naturais que davam primado à agricultura. Não obstante todas as nuances a serem levadas em conta ao pensarmos o papel do Estado na teoria fisiocrática, especialmente tendo em vista a noção de “despotismo legal”, a questão da liberalização do comércio de grãos foi alçada a assunto de primeira grandeza, ocasionando um intenso debate filosófico na França dos anos 1760-1770. Com isso, no momento de surgimento da economia política, nasce também um questionamento sobre a própria eficácia do Estado na gestão do mercado de commodities, conduzindo, em última instância, à formação de um discurso de matiz liberal, crítico às práticas interventivas do governo.

É evidente, por outro lado, que as críticas que os sistemas econômicos modernos realizam contra as políticas de Estado esbarram em aporias. David Graeber, por exemplo, ressalta que autores como Adam Smith, ao pensarem sobre os fundamentos da sociedade humana que precedem o Estado, acabavam por subestimar o próprio papel das políticas governamentais (GRAEBER, p. 32-61 et seq.). Seja como for, é certo que temas políticos caros à economia moderna, como a noção de população, nunca deixaram de ser um lugar privilegiado para se pensar as tecnologias de controle do Estado sobre as pessoas, o território e a gerência dos recursos naturais, como demonstrou Michel Foucault em seus cursos da década de 1970 (FOUCAULT, 2004a, 2004b). Ora, embora esse último filósofo não seja diretamente abordado no artigo de Bandera, a discussão que ele levanta emerge, por exemplo, em frases como “[...] por meio dos impostos, dos recenseamentos e cadastros, o Estado visa a tornar os agrupamentos humanos legíveis, mensuráveis e governáveis.” (BANDERA, 2022, p. 220).

Isso nos leva a uma segunda reflexão. Longe de encontrar-se alheio aos efervescentes debates econômicos que tomaram a intelectualidade francesa do século XVIII, Rousseau acompanhava com atenção as discussões acerca dos grãos, dos impostos, do comércio. Embora tenha escrito boa parte de seu sistema filosófico entre 1750 e 1762 – antes, portanto, da própria consolidação do discurso da economia política –, não deixa de ser surpreendente notar como o modelo antropológico de Rousseau antecipadamente coloca problemas ao surgimento “econômico” do Estado, tal como seria pensado na sequência. É digno de nota que o segundo Discurso pensou formas de organização humana, as quais, precedendo o advento do aparelho estatal, conseguem atingir um ponto ótimo da produção alimentar, da distribuição dos produtos realizados pelo trabalho, e ensejar o surgimento de um sentimento gregário que ainda dispensava a associação política.

Trata-se da ideia do “justo meio”, período histórico no qual o tempo de trabalho e de descanso encontram um equilíbrio quase perfeito, em que a sedentarização dá origem ao lazer, ao canto, à dança, inicialmente desconsiderando o papel da agricultura. É, em outras palavras, um período no qual a alimentação de uma comunidade é garantida sem a exploração do trabalho social, sem os maus efeitos produzidos pela divisão do trabalho, sem a ingerência do Estado e sem que a divisão agricultura-metalurgia houvesse nascido.

Para encerrar, volto à afirmação sobre a importância do artigo de Bandera (2022). Há, no Brasil, um sólido legado de estudos rousseaunianos, cuja ênfase recai sobre a formação do pensamento político do autor do Contrato social. Em vão tentaríamos exaurir a bibliografia atinente ao tema, mas podemos citar exemplos constitutivos dessa longa tradição, representada nas obras de Luiz Roberto Salinas Fortes, Milton Meira Nascimento, Rolf Kuntz e Maria das Graças de Souza, os quais propuseram interpretações de vanguarda, seja tratando do problema “teoria e prática”, seja trazendo à luz o uso dos modelos científicos fartamente utilizados pelo filósofo em seus princípios do direito político. Acrescente-se a essa linhagem das “leituras políticas” as análises de Bento Prado Júnior e Luiz Fernando Franklin de Mattos, que demonstram, com admirável elegância, a facilidade com que Rousseau transita entre os campos da linguagem, da estética e da moral, ou seja, por áreas que possuem vasos comunicantes diretos com o domínio do político. Fez-se, portanto, Rousseau dialogar com autores modernos e contemporâneos da filosofia política.

Todavia, no que concerne especialmente à bibliografia produzida pelos historiadores da filosofia, as análises sobre as recepções de Rousseau, no campo de estudos antropológicos, são bem menos enfatizadas do que em relação à política. Isso evidentemente não significa que essa associação não tenha sido feita, mas sim que se trata de um campo ainda fértil, pois pouco explorado pelos intérpretes. Eis, então, o sentido da afirmação do início deste comentário: ao estabelecer o diálogo entre Rousseau e Scott, abrindo também o caminho para a comparação com o campo da antropologia e suas relações com a política e a economia, o trabalho empreendido por Mauro Dela Bandera preenche lacunas e oferece uma contribuição inestimável para os estudos rousseaunianos brasileiros.

 

Referências

Bandera, Mauro Dela. James Scott e a origem agrária do estado: um rousseauismo inconfesso. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, V. 45, n. 3, p. 207-230, 2022.

GRAEBER, David. Dívida. Os primeiros 5000 anos. São Paulo: Três Estrelas, 2016.

LARRÈRE, Catherine. L’invention de l’économie au XVIIIe siècle: du droit naturel à la physiocratie. Paris: PUF, 1992.

FOUCAULT, Michel. La Naissance de la biopolitique. Paris: Seuil/Gallimard, 2004a.

FOUCAULT, Michel. Sécurité, territoire, population. Paris: Seuil/Gallimard, 2004b.

Recebido: 06/05/2022

Aceito: 15/05/2022

 



[1] Pós-doutorando na Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil. Apoio: FAPESP, processo n.º 20/12605-8. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6632-1419. E-mail: thivargas01@yahoo.com.br.