Comentário a “LA ACTUALIDAD del esse en la metafísica tomista: perspectivas críticas”

 

José Jivaldo Lima[1]

 

Referência do artigo comentado: Serra Pérez, Manuel Alejandro. La actualidad del esse em la metafísica tomista: perspectivas críticas. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 3, p. 129-152, 2022.

 

Do trabalho em comento emerge uma questão de relevante interesse para o pensamento tomista, máxime no Brasil, que – parece-nos – tem passado um tanto ao largo de tão importante discussão.

Efetivamente, no mundo universitário tupiniquim, tem-se o hábito, anacrônico, de se estribar em auctoritates, nas mais diversas escolas filosóficas, sem confrontá-las com as fontes nas quais as mesmas auctoritates haurem seu pensamento. E se algum “incauto” transgride essa norma, tão logo se vê acuado a reingressar no âmbito das “cercas-elétricas” intangíveis do pensamento “canônico” acadêmico.

Não é outra a experiência que se tinha até há pouco, quanto ao pensamento do Doutor Comum, pelo viés de uma das auctoritates vigentes – Étienne Gilson – cujas teses gozaram de padrões dogmáticos que não se sabe de alguém que tenha obtido o nihil obstat para além desse Index.

Em que pese esse contexto, o trabalho em epígrafe enfrenta uma problemática relativa ao entendimento do Aquinate, quanto ao esse ut actu (ser como ato), cuja origem remonta aos próprios discípulos do Angélico: Pedro de Tarantásia (futuro papa Inocêncio V) – o qual lançara mão do termo actus existendi (ato de existir), enquanto Tomás se utiliza do termo actus essendi (ato de ser) –, Henrique de Gand e Egídio Romano, passando por Tomás de Vio (ou Cajetano) e Francisco Suárez, vindo a desembocar em comentadores tomasianos da Europa, como é o caso de Gilson e Cornélio Fabro, entre outros. Este último já alertara para o uso promíscuo dos termos que o futuro papa perpetrara.

E no melhor estilo da dialética medieval (que nos faz lembrar a Pedro Abelardo), o artigo em tela põe os comentadores a se digladiarem uns com os outros, como num quadro sinótico.

Iniciando sua análise na gênese do debate, expõe as idiossincrasias que têm levado à exegese “canônica” do Tomismo – do esse ut actu – séculos afora até chegar a nós, por caminhos tortuosos.

Uma dessas idiossincrasias se refere ao entendimento que os primeiros discípulos supraditos de Tomás legaram para outro importante pensador tomista, Cajetano, em sua concepção da reali compositio (composição real), como composição real do Ente por esse essentiae (ser da essência) e esse existentiae (ser da existência).

Em face da discussão que perpassou outros importantes pensadores e escolas tomásicas, o texto em foco localiza em Gilson o importante feito de registrar a incorreção da exegese acima exposta e delinear traços exegéticos oportunos do Tomismo, sem deixar, todavia, de evidenciar que, mesmo o comentador francês, altercando com opositores, não alçou voo – como uma “Coruja de Minerva” – para a centralidade do pensamento aquinatense que não prevê a respectiva dualidade ôntica como dua res (duas coisas), senão como dois princípios incompletos em si, mas realmente copertencentes ao Ente (reali compositio).

De fato, a dualidade na exegese das escolas tomistas têm levado seus integrantes a supor – integralmente ou não – que o esse é o mesmo que a existência, ou a cair num extremo oposto que se caracteriza por um formalismo da Essência (Suma de Teologia, I, q. 3, a. 4),[2] incabível em Santo Tomás.

Das auctoritates em debate exsurge que a melhor senda é a de Cornélio Fabro, que se opõe a Gilson na problemática da Existência, em face de cuja insuficiência explicativa do valor causal do esse faz o pensador italiano matizar a perspectiva tomista da participação.

Mas, ainda sem se limitar às propostas “fabrianas” – conquanto valiosas e ímpares –, o trabalho em comento oferece mais contribuições novéis à discussão.

Efetivamente, o Autor salienta que Tomás de Aquino se coloca em locus próprio, em momentos diversos de seus escritos. Assim, os discípulos do Aquinate, como muitos dos tomistas modernos e contemporâneos, passaram ao largo do quesito de que algumas obras pertencem a relações dialógicas próprias, como é o caso dos Comentários a Pedro Lombardo e à Metafísica de Aristóteles, da Suma de Teologia (ST), do Da Potência (De Pot.) e do Ente e a Essência e da Suma Contra os Gentios (SCG), por exemplo.

Num desses momentos, de cujo locus do Ente e a Essência é a Metafísica de Aristóteles, L. Z, 5, esteio este que faz o Angélico tecer seu texto com os termos estagiritas e em fidelidade a eles, abstraindo-se dos debates a porvir. Assim também se dá com os Comentários a Pedro Lombardo e à Metafísica de Aristóteles e a ST.

Não atentos a isso, os mais diversos autores se confrontaram, oferecendo propostas mais ou menos próximas do que busca ser o pensamento tomasiano.

Noutras obras – a nosso ver, subestimadas nos debates da Academia, nessa questão, em face da Suma de Teologia –, como a SCG e o De Pot., são indicadas pelo Autor como os loci apropriados para se ambientar na perspectiva de Tomás no tocante à questão do esse ut actu.

É cediço que uma das formulações capilares nesta discussão – o “ipsum suum Esse[3] – se encontra na SCG I, c. 21 e, se olhada na perspectiva de uma leitura feita segundo o locus próprio, a partir do qual o aquinatense a escreve – não mais atento às formulações do filósofo, mas às suas próprias –, encontra eco noutras perícopes que corroboram seu sentido tomista, como nessa mesma SCG, I, c. 28 e na obra De Pot. q. 7, a. 2, ad 9.

Ora, na SCG, temos: “quidditas Dei est ipsum suum Esse[4] (I, c. 21) e “omnis enim nobilitas cuiuscumque rei est sibi secundum suum esse[5] (I, c. 28); enquanto no De Pot. temos “hoc quod habet esse efficitur actu existens” [6] (q. 7, a. 2, ad 9); sendo chaves hermenêuticas para o que o Angélico expõe, na ST:Deus est per essentiam suam formam[7] (ST., I, q. 3, a. 4) e “ipsum enim esse est quo aliquid est[8] (ST., I, q. 75, a. 5, ad 4). O termo a quo do espectro de Santo Tomás seria a passagem da Teofania, no Êxodo (Ex 3, 14) colacionada na SCG (I, c. 22), donde aliás se extrai igualmente o dístico causador da polêmica: “ipsum esse purum actum[9] (I, c. 16. 22).

Destarte, Gilson emergiu o ponto fulcral da querela em torno do esse ut actu, se bem que Fabro delineou os caminhos mais amplos para a visão tomasiana da questão. Outrossim, seguindo, ab ovo, a controvérsia e a partir desses dois “trilhos” mais contemporâneos a nós, o presente trabalho ofereceu ulteriores pistas, fazendo-nos deitar os olhos não somente para os loci hermenêuticos do Aquinate, mas também para a SCG e o De Pot., como ambientes onde Tomás se expõe a si mesmo, ao expor seu pensamento sobre a questão, embora esparso aqui e alhures, porquanto não se tenha proposto a isso ex officio ou ex cathedra.

Tendo todo esse horizonte exegético, abre-se uma “janela” para outras hermenêuticas no tocante à Metafísica tomista que – se não prescindam das auctoritates pretéritas e mais coetâneas a nós – tenham a liberdade acadêmica para ensejar leituras próprias hauridas das fontes tomásicas dialogadas entre si, em seus loci de produção.

Já é passada a hora de não se precisar mais repetir fórmulas cunhadas por alguma auctoritas sobre o esse e o esse ut actu, em Tomás, ou quaisquer oriundas das leituras das auctoritates que levem ao pesquisador a se curvar a um Tomás de matiz gilsoniano ou outro qualquer.

Nesse sentido, será possível afirmar que a pesquisa no corpus thomisticum é prenhe de possibilidades, pois sempre se apresentam novas problematizações interna corporis, sejam pretéritas, sejam para nossos dias, o que as torna atuais.

 

Referências

ARISTOTELES. Metafísica. Trad. Giovanni Reale/Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2001. 3 v.

Serra Pérez, Manuel Alejandro. La actualidad del esse em la metafísica tomista: perspectivas críticas. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 3, p. 129-152, 2022.

TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teologia (ou Teológica). 2. ed. Trad. Alexandre Corrêa. Porto Alegre: EST/Sulina/UCS, 1980. 11 v.

TOMÁS DE AQUINO. Ente e a Essência. (Texto latino e português). Trad. D. Odilão Moura. RJ: Presença, 1981.

TOMÁS DE AQUINO. Comentário a Las Sentencias de Pedro Lombardo. Trad. Juan Cruz Cruz. Navarra: Ed. Universidad de Navarra, 2002.

TOMÁS DE AQUINO. Quaestiones Disputatae De Potentia (De Pot.). Disponível em: www.corpusthomisticum.org. Acesso em: 10 set. 2021.

TOMÁS DE AQUINO. Scriptum Super Sententias (In Sent.). Disponível em: www.corpusthomisticum.org. Acesso em: 10 set. 2021.

TOMÁS DE AQUINO. Suma Contra os Gentios. Trad. Odilão Moura. Porto Alegre: EST/Sulina/UCS, 1990. 2 v.

 

Recebido: 05/05/2022

Aceito: 13/05/2022


 

 



[1] Docente na Universidade Federal de Goiás (UFG/Campus Cidade de Goiás), Cidade de Goiás, GO – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8639-9195. E-mail: prof.jivaldo@gmail.com.

[2] As indicações bibliográficas de obras clássicas medievais – por tradição acadêmica internacional – seguem metodologia própria, que se diferencia da da ABNT. As obras comentadas neste trabalho serão abreviadas conforme consta, entre parênteses, após seus respectivos nomes. Excetuando-se a Metafísica de Aristóteles (cognominado de Estagirita), todas as outras são de Tomás de Aquino, apelidado de Aquinate, Aquinatense, Doutor Angélico, Doutor Comum, ou Aquino.

[3] “[...] seu mesmo Ser”

[4] “A essência de Deus é seu mesmo Ser”

[5] “A perfeição (nobreza) de qualquer coisa é proporcional ao seu ser”

[6] “O que tem ser é por isto atualmente existente”

[7] “Deus é por essência sua forma”

[8] “O mesmo ser é pelo que algo é”

[9] “Ele mesmo é ato puro”