Comentário a “Dialéctica de la experiencia en Merleau-Ponty y Adorno”: Breve comentário a favor de Husserl

Abah Andrade[1]

 

Referência do artigo comentado: GAMBOA, Leonardo Verano. Dialéctica de la experiencia en Merleau-Ponty y Adorno. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 105-124, 2022.

 

Gamboa (2022) parte da constatação, haurida de uma leitura de Adorno e de Horkheimer, de que

[…] la fenomenología hace parte de la concepción tradicional de teoría: sus conocimientos –postulados, conceptos, métodos y prácticas – son el resultado de su misma reflexión, se originan únicamente en esta y no en procesos sociales concretos. (GAMBOA, 2022, p. 106).

 

Mais adiante, Gamboa (2022, p. 107) corrobora essa afirmação, dizendo:

Lo que está en juego en esta crítica es, de acuerdo con lo anterior, la concepción idealista en que incurre la tradición filosófica, y en este caso la fenomenología, que al dejar a un lado la experiencia concreta, viva del mundo, pierde su poder crítico.

 

Seu autor, para rebater essa investida de Adorno e Horkheimer contra a fenomenologia husserliana, aproxima-se, não de uma refutação direta desses autores, a partir de um exame dos textos de Husserl, mas, com mais esperança de ter êxito nesse afrontamento de dois gigantes, volta-se para o fenomenólogo francês Maurice Merleau-Ponty, o qual foi capaz de fazer fenomenologia de tal modo travejado com as aspirações dialéticas de uma elucidação da experiência histórica, que, então, as críticas de Adorno e Horkheimer, exatamente por isso, se veriam dissolvidas pelo intrépido sucesso filosófico de Merleau-Ponty.

Ora, penso seja muito mais profícuo defender a fenomenologia no próprio alvo de Adorno e Horkheimer: em Husserl. Seria possível livrar Husserl da crítica de que sua concepção de teoria deixa esta última intacta, quanto à sua concepção tradicional? E mais, seria possível, sem forçar demais o limite dos textos, recusar a asseveração de ter a fenomenologia husserliana perdido em “poder crítico”, porquanto teria “deixado de lado a experiência concreta, viva, do mundo”?

            Que Husserl receba sem questionamento a noção de teoria como “teoria tradicional”, ou seja, que Husserl não possa ser reconhecido como precursor de uma “teoria crítica da sociedade”, concede-se com facilidade. Todavia, que a própria concepção husserliana de “teoria” se prenda à noção tradicional, isso não pareceria aceitar que a fenomenologia não teria alterado em nada a paisagem das discussões epistemológicas do último século? Justamente porque, nessa paisagem, passa a brilhar de modo inescapável a própria fenomenologia como manancial de uma vasta produção teórica em filosofia, insinuá-lo deixa de ser verdadeiro. A noção fenomenológica de “teoria” abre um flanco de pesquisa que, ao oferecer ao pensamento um objeto novo (as idealidades essenciais), apresenta-se como uma teoria das teorias tradicionais, e só por isso já não se poderia, nem de longe, vir essa “teoria” das teorias a ser identificada com as teorias “objetos” de cujos procedimentos ela faz o processo de elucidação, até descobrir, na intelecção daquelas idealidades essenciais, o fundamento das teorias tradicionais.

Contudo, uma teoria fenomenológica que entrega os fundamentos da teoria tradicional nem por isso se ofereceria, de uma só vez, como instrumento de análise crítica da sociedade, da mesma sociedade que insiste em produzir aquelas teorias “tradicionais” para deixar o mundo intocado e manter-se, nesse mundo, como forma social vigente (e hegemônica). Com efeito. Apesar disso, a crítica da sociedade vigente não seria apanágio da dialética. Nem tampouco seria um privilégio da dialética aquele interesse pela “experiência concreta, viva, do mundo”. Afinal, não teria sido o primeiro grito de guerra da fenomenologia o chamado em direção “à coisa mesma”? E não seria a “coisa mesma” a própria concretude viva da experiência de mundo?

            Aqui é preciso ser severo com Adorno e Horkheimer e, quiçá, também com Marcuse. Se é verdade que não se pode fazer a crítica da lógica hegeliana, porque, nesse ato, sempre ocorre o risco de se pôr, para exercer essa crítica, num ponto do sistema já previamente superado por Hegel, então, com maior razão se pode dizer o mesmo em relação a Husserl, ao menos num ponto essencial: nenhuma de suas proposições pode ser compreendida fora da viragem provocada pela redução fenomenológica. Reclamar de que Husserl teria deixado escapar as agruras da vida social é fazê-lo, ainda, do lado de lá da redução, porque no lado de cá, quanto mais Husserl aprofunda suas pesquisas no verrume da redução eidética, quanto mais elucida as intelecções das essências, mais fundo nos deixa na gênese em cujo movimento algo como uma “história social” de deixaria destilar. A exploração da área noética, em Husserl, só com muita má vontade do leitor induziria a pensar que, quando nos aproximamos dela, afastamo-nos do mundo. É preciso, na hora de fazer a crítica a Husserl, e chamá-lo de “idealista”, pressupondo sem discussão já esteja resolvida, contra o idealismo, a superioridade teórica do materialismo, é preciso não perder de vista a viragem produzida pelo procedimento básico husserliano e procurar fazer a crítica no lado de dentro do próprio campo noético ou transcendental anteriormente aberto.

            Ora, o que a filosofia sabe da vida e da experiência concreta do mundo, fora do campo transcendental ou noético? Alguma defesa do materialismo é possível, fora de um discurso que a sustente? Depois que, entre nós, José Arthur Giannotti, em seu livro Origem da dialética do trabalho, mostrou a impossibilidade de uma teoria materialista ser forjada fora de toda alusão ao idealismo hegeliano; e depois de, em Du texte à l’action, Paul Ricoeur asseverar nada sabermos da vida e de suas agruras, fora de um texto que delas traga suas marcas, não se pode mais dizer, da fenomenologia husserliana, que seja um idealismo sem mais, e do qual já podemos saltar sem remorsos para outra margem. É preciso manter-se na margem desse “idealismo”, sem medo de afundar-se na perda do contato com a “concretude do mundo”, pois o “idealismo” husserliano é uma disciplina do pensar rigoroso no exercício da qual o que conquistamos é um ponto de vista privilegiado; no desenvolvimento desse ponto, descobrimos a própria Nous, ou, como prefere nosso Autor, o “ego transcendental”, não como sinônimo daquilo que sempre já entendemos como “eu”, mas como “intersubjetividade monadológica”, isto é, uma sociedade inteira dentro do campo aberto pela redução eidética.

            Qual sociedade? De fato, nenhuma. De direito, entretanto, o dispositivo no giro do qual qualquer sociedade enquanto tal é possível: a imaginação que, bem entendida no interior da viragem transcendental, não é uma “faculdade”, mas o povo originário, o povo antes de haver um grupo étnico qualquer registrado pela arqueologia, pela antropologia ou pela história, e que, no entroncamento genético do que ainda não é nem referente a “Deus” nem referente a “seres humanos”, produz as primícias divinas de significações com as quais um povo particular qualquer, aqui como alhures, pode despontar no lado de fora do campo transcendental como “experiência concreta, vivida”, porque já se mostrou essencialmente possível, no lado de dentro da “redução”.

Infelizmente, é verdade, Edmund (Husserl), quando tentou falar desse povo como de uma “humanidade”, deixou-se levar pelas limitações de sua época e a chamou de “humanidade europeia”. O que ali estava sendo visado, porém, senão essa nascença, esse desfraldar do modo como se faz uma sociedade? E quem há de dizer que ter acesso a como se pode fazer uma sociedade não seja uma instrução preciosa, para que aprendamos a desfazer-nos da que vige, porquanto esculhambada? Quem há de negar que, nisso, há uma virulência radical, com a qual se pode dar adeus à falida “civilização ocidental”, sem perder o seu mais precioso bem: não, claro, a concepção de razão que ficou lá fora do campo transcendental, entre as tralhas da teoria tradicional, mas o daquela racionalidade sem vergonha de encontrar seu elemento mais próprio na imaginação (fantasia sistemática) que se deixa pensar como povo, povo fresco, em estado de brotação? Ali, com efeito, onde Husserl escreve “ego transcendental”, está na hora de começarmos a ler, não do lado do mundo deixado entre parênteses, mas do lado das cogitações eidéticas, o sentido preciso e elucidado dessa expressão, a saber, “intersubjetividade monadológica”, ou seja: um povo infinitesimal.

 

Referência

GAMBOA, Leonardo Verano. Dialéctica de la experiencia en Merleau-Ponty y Adorno. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 105-124, 2022.

 

Recebido:13/04/2022

Aceito: 23/04/2022

 



[1] Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, PB – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6840-7470. E-mail: andradesimples@gmail.com.