Entrevista com Ivan Domingues: Epistemologia das ciências humanas

 

 

Entrevistado:

Ivan Domingues [1]

 

Entrevistadores:

Weiny César Freitas Pinto[2]

Allison Vicente Xavier Gonzalez[3]

 

Apresentação

Esta entrevista é realizada com o filósofo brasileiro Ivan Domingues (1952), graduado, mestre e doutor em filosofia. Atualmente, professor titular, recém-aposentado, do Departamento de Filosofia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Com mais de quatro décadas de atuação em ensino, pesquisa e extensão, Domingues tem experiência em vários campos da filosofia contemporânea: epistemologia das ciências humanas, filosofia da técnica, ética e conhecimento e filosofia no Brasil. Foi cofundador e diretor do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT/UFMG) e coordenador do Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo (NEPEC/UFMG).

Com publicações relevantes em cada área de sua atuação, destacamos: O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das ciências humanas (1991), Epistemologia das ciências humanas: positivismo e hermenêutica (2004), Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos (2012), O continente e a ilha: duas vias da filosofia contemporânea (2009), Foucault, a arqueologia e “As palavras e as coisas”: cinquenta anos depois (2020). Todos esses livros são relativos às suas contribuições para a área Epistemologia das ciências humanas, tema exclusivo ao qual se refere esta entrevista, cuja realização se deu por e-mail, entre junho e outubro de 2021.

 

ENTREVISTA

 

WCFP/AVXG - Em O grau zero do conhecimento (1991), são utilizados diversos conceitos que dividem a história do conhecimento em grandes categorias epistemológicas: “idade das ciências humanas”, “epistemes”, “o problema antropológico” e “estratégia discursiva”. Em Epistemologia das ciências humanas (2004), as categorias “idades das ciências humanas” e “problema antropológico” deixam de ser apresentadas, ainda que as noções de “estratégia discursiva” e de “episteme” apareçam algumas vezes, no livro. No início de sua Epistemologia..., você afirma que, após O grau zero..., sentiu a impressão de esgotamento do assunto. Gostaríamos de saber o que exatamente mudou de uma pesquisa para outra e se há alguma razão específica para as noções de “idade das ciências humanas” e “problema antropológico” deixarem de aparecer em Epistemologia...?

 

ID - São várias as situações e as problemáticas abarcadas por seus questionamentos. Na origem de tudo está a minha tese de doutorado, defendida na Sorbonne, em fins de 1989, e da qual veio a lume O grau zero do conhecimento, que é a sua versão revista, não digo ampliada, mas encurtada, resultando num corte de 50% da tese. Depois foram as vezes da Epistemologia das ciências humanas, que saiu em 2004, seguida da obra Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural do mito, publicada em 2012, pondo fim ao meu ciclo de publicações, nesse campo de pesquisa. Comparando as três obras, poderíamos dizer que O grau zero... nos coloca, ao se considerar a linha do tempo, num lapso de 200 anos ou mais, em que se circunscreveria alguma coisa como uma pré-história das ciências humanas, ao passo que a Epistemologia... e Lévi-Strauss... nos dariam outra coisa: algo como uma epistemologia não mais pré-histórica daquelas ciências, como alguém me arguiu, quando defendi a tese, mas histórica, por assim dizer, por se circunscrever a um lapso temporal – a supor que a disciplinarização e autonomização das ciências humanas e sociais se iniciam em fins do século XIX e se consumam no século XX adentro – em que as ciências humanas estão rigorosamente constituídas, autorizando-nos a falar em uma epistemologia daquelas ciências, em sentido próprio ou estrito.

Por sua vez, ao longo desse percurso de mais de vinte anos, conforme eu deixei claro em mais de uma oportunidade, havia uma espécie de interlocutor mais ou menos oculto em minhas investidas epistemológicas, no campo das ciências humanas e sociais: justamente, Michel Foucault e sua obra seminal As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas, publicada em 1966. Vale dizer, Foucault, questionando os próprios termos “epistemologia” e “ciências humanas”, dizendo que fazia arqueologia, e tensionando as ciências humanas com as ciências do homem, ao se abrirem para a medicina, a história natural e a biologia; enquanto eu mesmo, tratando de me demarcar de Foucault e dele me afastar, dizia que fazia epistemologia e das ciências humanas e sociais, no mesmo passo em que deixava a história natural, a medicina e a biologia de lado. Daí, sendo o filósofo o interlocutor oculto, a permanência de categorias foucaultianas como “episteme” e “estratégia discursiva”, como você constatou, em O grau zero... e em Epistemologia... Daí, igualmente, o embate com Foucault, ao se falar em “idades das ciências humanas” e em “problema antropológico”. E o que é importante: num caso e em outro, usadas contra Foucault e em busca de outras alternativas e perspectivas. Tudo isso me consumou, o período das pesquisas de doutorado incluído, mais de 30 anos de esforço intenso e continuado. Donde a “impressão de esgotamento do assunto” e, ainda, no mesmo passo, a ideia de “fadiga do produto”, expressão que eu cunhei depois, na esteira dos experts em marketing, ao cabo de tanto tempo falando da mesma coisa.

Então, foi isso que aconteceu. Mas tais impressão e ideia, conquanto reais e recalcitrantes, não me impediram que eu finalmente publicasse um livro totalmente consagrado a Foucault e a As palavras e as coisas, tomando-o como interlocutor frontal ou direto e não mais oculto e indireto. Tal se deu no ano passado, 2020, quando publiquei, pela Editora UFMG, Foucault, a arqueologia e “As palavras e as coisas” – cinquenta anos depois. E que fique claro: tratava-se de uma homenagem ao filósofo – a publicação do livro foi motivada por uma efeméride importante: o jubileu de ouro da obra famosa, efeméride que ficou obnubilada por causa da demora em vir a público, por atrasos de várias ordens, da Editora e não meus, mas a efeméride está registrada no subtítulo – e tratava-se ao mesmo tempo de um acerto de contas com o autor e comigo mesmo.

 

WCFP/AVXG – A fim de trabalhar em diferentes vias, criando alternativas especialmente em relação à via de Foucault, O grau zero do conhecimento propõe uma análise epistemológica de três estratégias discursivas da episteme moderna: as estratégias essencialista, fenomenista e histórica. Depreendeu-se daí a tese de que as ciências humanas iniciaram a modernidade em busca do princípio da fundamentação suficiente do conhecimento e que, ao fim da modernidade, se encontraram sem qualquer fundamento. O que objetivamente difere a sua proposta e análise da episteme moderna da proposta e análise foucaultianas?

 

ID - Acho que a resposta foi parcialmente encaminhada no quadro mais amplo da primeira questão.

Sobre os pontos adicionais ou específicos dos questionamentos, começo pelas três estratégias e a sua pergunta sobre o que diferencia a minha análise e a de Foucault, acerca da episteme moderna, pois ambos falamos de episteme e ciência moderna, mas de um jeito diferente.

De saída, digo que aquilo que distingue nossas abordagens é, antes de tudo, as nossas diferentes concepções de “moderno/modernidade” e as respectivas periodizações, associadas às diferentes “epistemes” e “estratégias discursivas”. Note-se que, em sua obra seminal, Foucault distingue três epistemes: renascentista, clássica e moderna. Das três, se o período da Renascença não constitui problema, indo do século XIV ao XVI, não é nada tranquila, menos ainda óbvia, a distinção entre as epistemes clássica e moderna, com base nos respectivos períodos. Conforme eu já mostrei em mais de um lugar, e mais especialmente no meu último livro consagrado a Foucault, o filósofo e crítico das ciências humanas lidava com uma periodização própria à história das artes e da literatura, e, antes de tudo, histórias de uma e de outra, em sua extração francesa, que identifica o clássico com o barroco e adia o moderno do XVII para o século XIX. De minha parte, à diferença de Foucault, ao falar das ciências humanas e ciências, eu lido com uma periodização própria à história da filosofia, bem como à história das ciências, levando-me a recuar a época moderna, como todo mundo faz, ao século XVII. Daí, ao falar de episteme moderna, operando com um período bem mais dilatado do que o de Foucault, com 200 anos a mais, eu não poderia ficar apenas com uma estratégia discursiva, historicista ou o que quer que seja, como quer o autor de As palavras e as coisas. Ao invés, além do específico da episteme moderna, deveria incorporar alguma coisa da episteme clássica, com o propósito de juntar as duas epistemes e no mesmo passo, indo além do filósofo, mostrar que a episteme moderna não é monovalente, mas polivalente. Uma episteme ou sistema de saber, cuja face mais saliente, quando tudo começou, é a contraposição entre racionalismo e empirismo e à qual vai corresponder, num nível mais profundo, a distinção entre as estratégias essencialista e fenomenista ou ainda empiricista – distinção que Foucault não faz. E, desde logo, como nos argumentos por retorção, haverá um embate direto entre as duas perspectivas, levando-me a lançar contra Foucault a categoria foucaultiana de “estratégia discursiva”, a qual me permitirá medir forças com o filósofo francês, em seu próprio terreno, e, assim, partir para a desconstrução da arqueologia foucaultiana e abrir caminho para a epistemologia, epistemologia das ciências humanas e sociais, ao fim e ao cabo. Com o mesmo propósito, na esteira de Foucault, tratei de dilatar o moderno para frente, ao incorporar o século XX, por vezes nominado de “contemporâneo” e também de “modernidade tardia”, havendo ainda “pós-modernidade”, termo ao qual eu prefiro o anterior. Dessa reconstrução surgirá, malgrado Foucault e suas reservas, uma visão mais favorável ou positiva das ciências humanas e sociais como ciências empíricas e herdeiras, ao seu modo, dos Studia Humanitatis dos renascentistas.

Concluo com a sua pergunta sobre o fundamento e o princípio da fundamentação suficiente, como ele surgiu e como ele saiu da cena do conhecimento, tendo as ciências humanas e sociais, no fim do processo de sua constituição, se descoberto elas mesmas “sem qualquer fundamento”, como você lembrou muito bem, e levando-me a falar da serpente de Valéry, que morde a sua própria cauda e se inocula do próprio veneno, a saber: o veneno da própria teoria filosófica do conhecimento, com seu propósito de instaurar um discurso fundante e autofundado.

Prosseguindo, tudo isso aconteceu, ao que parece, sem que as ciências humanas e sociais se dessem por vencidas e se vissem desautorizadas como ciências, ao se verem questionadas pelo filósofo, poderíamos acrescentar, continuando como tais ciências sua caminhada titubeante e empunhando ainda assim o ideal da busca da verdade das coisas e dos processos. Sobre esse ponto, eu gostaria de dizer que o contexto da discussão sobre a questão do fundamento e o dito princípio é uma época em que não havia a separação da filosofia e das ciências, levando Newton a falar em “filosofia natural”, ao se referir à física, Hobbes, em “filosofia civil”, na esteira do Leviathan, e Hume, em “ciências morais”, ao se referir à psicologia e à filosofia moral. Tal situação levou, de início, a uma certa embrulhada no tocante às competências da filosofia e da ciência, na enquete do fundamento último ou da arché = grau zero do conhecimento, uns buscando-o do lado do sujeito, outros do lado do objeto, quando duas estratégias foram delineadas ao longo dos séculos XVII e XVIII, a saber: a via da redução às essências e a do ordenamento dos fenômenos, denominadas por mim, respectivamente, estratégia essencialista e estratégia fenomenista.

Nesse cenário que iria durar cerca de dois séculos, como eu disse, o grande desafio compartilhado pelos estudiosos das matérias humanas era instaurar um discurso racional, fundante e autofundado, com a questão do ponto arquimediano do conhecimento na cabeça de todos. Descartes, tratando de essência no nível da coisa, no Tratado do Homem (corpo = res extensa, p. ex.) e Hobbes, procurando o fundamento último do mundo humano no indivíduo, tomado como uma espécie de átomo, visto como correlato da essência, sem seu ônus metafísico, e apreendido como fenômeno e matéria da observação e da experiência. Estou falando dos dois, porque são os mais emblemáticos e os mais claros, nessa empreitada, que os levou a buscar o fundamentum inconcussum na ordem das essências ou dos fenômenos, encontrando-os no plano mesmo dos objetos investigados, de maneira que, nesse modo de ver, o fundamento ontológico e o fundamento epistemológico eram uma só e mesma coisa.

Depois, já no século XVIII e no início do XIX, com Kant e a revolução copernicana, as coisas mudam e o fundamento do conhecimento vai ser buscado do lado do sujeito, exclusivamente, no sujeito epistemológico, bem entendido, levando à distinção bem como à confusão entre o empírico e o transcendental, cuja consequência no campo da filosofia será o antropologismo e o sono antropológico, conforme Foucault. Paralelamente, no campo das ciências humanas, haverá a embrulhada da questão fundacional jamais inteiramente desfeita, ao se dar conta o cientista social de que, em ciências humanas, o objeto do conhecimento é o próprio sujeito, sendo impossível apartá-los e colocá-los em planos ou níveis diferentes. Toda essa problemática foi tratada n’O grau zero..., levando-me, ao chegar ao séc. XIX, a pavimentar um caminho com duas direções. Numa vertente, na direção do historicismo, na esteira da escola histórica alemã, ao dar azo à estratégia historicista, levando Hegel a dialetizar as essências e os fenômenos, abrindo-os à história, com o devir na linha de frente e a dificuldade de introduzir o ponto fixo para pensar o móvel em filosofia, na esteira do saber absoluto. Mas se contentando as ciências positivas, ao virar as costas para Hegel, em ficar com as cronologias e a linha do tempo, no mesmo passo em que eram compelidas a renunciar ao fundamentum extratemporal ou à sua busca. Noutra vertente, ao contornar a história e as aporias do devir, a via das ciências humanas e sociais nascentes, com a trifurcação que passou a caracterizá-las, desde então: de uma parte, às voltas com as positividades fenomênicas, como em Durkheim (família, grupo, sociedade, forças sociais, agregados estatísticos), de outra parte, às voltas com círculos hermenêuticos, como em Dilthey (sujeito/objeto, texto/contexto, parte/todo) – não em Weber, que deles se desfaz e os abre à história, ao associar explicação e compreensão –; e às voltas ainda com estruturas e suas modalidades, compactas umas (parentesco) e difusas outras (mito), como em Lévi-Strauss e o estruturalismo.

Finalizando, na esteira dessas duas vertentes, as ciências humanas e sociais finalmente se constituem, cindem-se da filosofia e ganham autonomia, consolidando-se e ganhando maturidade, sem perguntar pelo fundamentum inconcussum e, desde logo, livres do estorvo de resolver a questão do fundamento último do conhecimento, antes mesmo de conquistar o conhecimento efetivo, pela via da investigação empírica: um verdadeiro non-sense para os cientistas sociais do século XX, coisa de filósofo e ilusão de neófito, devendo, por um lado, as ciências empíricas positivas se sujeitarem aos dados da observação e da experiência, e, por outro, os cientistas eles mesmos se fiarem no empírico e se contentarem com resultados parciais das pesquisas – umas e outros se colocando no terreno do aberto e fazendo do conhecimento uma tarefa sem fim e um work in progress. Estes foram os principais resultados a que eu cheguei, nas duas obras que se sucederam a O grau zero...: [i] Epistemologia das ciências humanas – Weber e Durkheim e [ii] Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural do mito.

 

WCFP/AVXG – Encontramos, em Epistemologia das ciências humanas, a ideia de que esta é um tipo de epistemologia aplicada e vinculada diretamente à teoria do conhecimento. Como você concebe a relação entre epistemologia das ciências humanas/epistemologia aplicada/teoria do conhecimento/filosofia da ciência?

 

ID - Vejo a distinção desses campos como uma coisa muito simples, em termos doutrinais, e como algo meio autobiográfico, ao considerar minha carreira como professor e intelectual.

Simples do ponto de vista teórico ou doutrinal, por reservar o termo “epistemologia” e seu sinônimo “teoria do conhecimento” à filosofia, considerando-os como disciplina filosófica, ao lado da ética e da metafísica ou ontologia. Já “epistemologia aplicada”, que se rivaliza com “filosofia da ciência”, mas cujos escopos não são rigorosamente os mesmos, podendo o filósofo da ciência perguntar pelas bases metafísicas da ciência moderna ou então pela relação entre a ética e a ciência ou as implicações morais da ciência contemporânea, ao passo que em epistemologia, tanto a geral quanto a aplicada, é o problema do conhecimento que está em jogo: conhecimento científico, bem entendido. Então, haverá uma epistemologia geral, que se ocupará do conhecimento filosófico, do conhecimento científico, do conhecimento empírico, podendo haver outros, e haverá também uma epistemologia aplicada: aplicada a campos disciplinares específicos das ciências, como a física, a química, a biologia e as ciências humanas e sociais. E que fique claro: resultando do cruzamento entre a filosofia e as ciências e ao mesmo tempo acarretando a necessidade de trabalhar-lhes as interfaces, sempre tive claro para mim que a empresa da epistemologia aplicada só poderia ser levada a cabo em bases interdisciplinares, ao exigir do epistemólogo a aquisição de cultura filosófica, como é óbvio, e a aquisição de cultura científica. De resto, este foi o meu caso em epistemologia das ciências humanas e sociais, ao longo de décadas, em minha carreira, e também o meu caso, em minhas investidas posteriores em filosofia da tecnologia, bem como em minhas pesquisas levadas a cabo no quadro do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares ou ainda do Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo, ambos da UFMG e dos quais sou cofundador.

Este último ponto, como eu disse antes, tem algo de autobiográfico, o qual não convém ser desenvolvido aqui, mas é importante registrar que sempre esteve no horizonte de minha carreira, dentro e fora da UFMG, em que eu vejo a minha alma mater, como gostam de dizer os norte-americanos, ao olharem para trás, em suas biografias intelectuais.

 

WCFP/AVXG – No quinto e último capítulo da primeira parte de Epistemologia das ciências humanas, você afirma que as noções de “objetividade” e de “método” encontram referência especialmente em Platão. Desde O grau zero do conhecimento, Platão estava presente, quando você indicava que o “problema antropológico” nascia justamente com o preceito délfico de Sócrates. O referencial platônico aparece, portanto, nos dois livros. Sabemos que a epistemologia das ciências humanas é um campo recente da reflexão filosófica, séc. XIX, e que, como tal, se constituiu ao problematizar a noção clássica de verdade. Como você enxerga o problema epistemológico da verdade, no interior das ciências humanas? Esse problema da verdade está necessariamente relacionado aos problemas epistemológicos da objetividade?

ID – Toda vez que alguém me coloca a questão da verdade, eu sempre me reporto a Platão, ao procurar respondê-la, ao dizer com o filósofo que a verdade é aquilo que, escondido, deve ser mostrado. Essa ideia, em aparência tão simples, por um lado, pode nos levar em filosofia a Heidegger, que toma a aletheia ou o desvelamento da verdade num jogo de claro/escuro, léthé e aléthé, revelar e esconder, trazer à luz e deixar à sombra, vir à tona e recalcar ou ainda esquecer, além de outras possibilidades, como latente (no latim latens, de latere = estar escondido) e manifesto. Por outro lado, pode dar passagem, na teologia cristã e na escolástica medieval, à ideia de revelação e de uma verdade salvífica. Contudo, em minhas investigações em epistemologia das ciências humanas, não se tratava de nada disso, mas de trazer a lume algo diferente: a ideia de mostrar ou evidenciar aquilo que estava velado ou escondido, demonstrar, por meios racionais, operações lógicas e matemáticas, teoremas ou a verdade de uma proposição, demonstração presente de uma maneira ou de outra em vários cientistas sociais e disciplinas das CHS. Paralelamente, a ideia de mostrar ou evidenciar a verdade de alguma coisa, por meios empíricos, desde a atestação da verdade das sentenças ou teorias, por meio da observação e da experiência, até por meio da experimentação em laboratórios e com a ajuda de aparatos tecnológicos. Estes, de grande uso em ciências naturais e em menor escala em CHS, ficando reservados à fonética, em linguística, hoje cada vez mais à disciplina de engenharia, bem como a certos ramos da psicologia.

Já a noção de objetividade, em sua dupla remissão às coisas ou à realidade (verdade objetiva da coisa) e ao cientista ou sujeito epistêmico/cognoscente (objetividade do cientista ou sua isenção), exigirá um par de clarificação conceitual extra ou adicional: por um lado, na relação de conhecimento e em sem-número de operações intelectuais, o sujeito cognoscente deverá dar sua adesão à verdade in foro interno, livremente, sem qualquer coação externa (pressão das coisas ou de uma autoridade), fiando-se apenas na evidência da ideia (de videre = ver = ver claro]; por outro, mesmo que autoevidente, a verdade em ciência e em filosofia, à diferença da verdade da religião, não é mera questão de fé e uma verdade “para mim” e menos ainda “só para mim” (artigo de fé e matéria de convicção pessoal), mas algo que deve ser compartilhado pelas pessoas (pares), levado à discussão e trazido à esfera pública, sem o que não há ciência possível, nem matemática, nem física e nem ciências humanas.

Porém, nada mais difícil do que mostrar a verdade, fazendo lembrar Agostinho e o enigma do tempo: se me perguntam o que o tempo é, não sei; se não perguntam, eu sei. Sem esquecer do que disse Pilatos. ao se dirigir a Cristo, que se dizia ser a verdade e o seu próprio testemunho em pessoa, dizendo-se filho de Deus e que seu reino não era neste mundo, em contraposição às falsidades das acusações dos rabinos e outras autoridades judaicas, que o tinham condenado à morte, num processo viciadíssimo. Eis então, conforme o relato do apóstolo João, depois de ter escutado de Cristo ter ele vindo ao mundo para dar o “testemunho da verdade” e que “Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz. Perguntou-lhe Pilatos: Que é a verdade? Tendo dito isto, voltou aos judeus e lhes disse: Eu não acho nele crime algum” (João 18:33-38).

Compreende-se, então – num quadro dramático como esse, em que a verdade vem sempre junto com seu par, a falsidade, no mesmo passo em que a própria verdade por si só nem salva nem liberta – que a verdade ela mesma entra em crise, crise de fundamento ao fim e ao cabo, em meio a incredulidades e à dúvida cética, levando a incidir sobre a verdade a exigência de certeza e de fundamentação absoluta: então, teremos dois problemas, o da verdade objetiva da coisa e o da certeza subjetiva do sujeito. Entretanto, como passar de um plano a outro e como saber, com certeza, que estamos na verdade e vencer o ceticismo de Pilatos que, ao tomar sua decisão, lavou-se as mãos e seguiu em frente?

Aqui não é lugar para continuar com esses questionamentos teológico-filosóficos. O que eu fiz, ao longo da minha carreira, com a questão da verdade em mente e ao vê-la ela mesma em questão por toda parte, ao enfrentar a crise de fundamento por causa da sua irmã gêmea, a falsidade, bem como por causa de sua prima, a dúvida cética, quando a verdade autoevidente a uma certa altura foi posta em xeque, em meio a exigências de testemunhos e garantias; o que eu fiz então, repito, foi abrir um espaço mais largo em minhas pesquisas em epistemologia geral e dar vazão às várias teorias da verdade formuladas pela tradição filosófica, com o intuito de salvá-la e fazer frente à crise: verdade-correspondência, verdade-coerência, verdade-consenso, verdade-obra, verdade-pragma ou utilidade, e outras mais. Porém, as coisas não pararam aí: ao se passar do plano da filosofia para o da ciência e, em especial, para o das ciências humanas, como vocês mesmos constataram, no final da pergunta, as CHS foram levadas a “problematizar a noção clássica de verdade”.

De fato, foi isso que aconteceu, especialmente com respeito à verdade-correspondência (verdade objetiva da coisa), ao dar início a um processo que não iria mais parar, tendo-se aprofundado no curso do século XX e se estendido às primeiras décadas do século XXI. Como já tinha acontecido com a causalidade e a relação de causa-efeito, tão centrais em filosofia e em ciências, e, por tabela, em epistemologia das ciências, a noção de causação foi colocada em xeque no século XX, por nada menos do que Bertrand Russell, como uma categoria proto-histórica em lógica e em epistemologia, bem como em CHS, levando Paul Veyne a falar a mesma coisa, no tocante à história, vendo nela igualmente uma categoria proto-histórica da história e epistemologia das ciências. Então, em seu lugar, vão ficar outras categorias e candidatas, tais como estruturas, funções, inter-relações, variáveis dependentes e independentes etc.

Ora, algo parecido vai acontecer com a noção de verdade, tanto em filosofia como em ciências, a qual irá se colapsar e dará lugar outras noções e categorias, à primeira vista sem seus inconvenientes epistemológicos e ônus metafísicos, tais como verossimilhança, correção dos raciocínios, plausibilidade dos julgamentos, ou mesmo ao abandono puro e simples da ideia da verdade e de seus sucedâneos, além de todo critério ou qualquer criteriologia. Tal vai ser o caso do constructivismo radical que dominará a agenda das CHS, em anos recentes, levando os estudiosos a tomarem tudo como construções, desde o átomo e a célula, até os fonemas e os estratos sociais. Eu não tenho a menor condição de analisar esse ponto, na entrevista. Só registrar a minha preocupação em ver a agenda clássica das CHS devastada, em meio a modismos e coisas do gênero, com os modismos se apresentando como a via rápida de chegar ao âmago das coisas, com o jovem cientista na companhia dos “Latours” da vida e a certeza de estar livre dos estorvos e das veleidades dos clássicos – e, desde logo, tal como eu o vejo, não sendo o constructivismo radical mais do que a contraparte epistemológica do relativismo cultural e do historicismo radical.

O resultado é conhecido: sem qualquer ideia de cânone, de critério e mesmo de verdade com que contar como diretriz ou posse, assistiremos à irrupção das fake news, das realidades paralelas, das narrativas, do nós contra eles, e assim por diante. O que fazer? A saída, a meu ver, contra o fake, o embuste, o tanto faz e o eu contra todos é voltarmos com a noção de verdade, qualquer que seja ela, sabendo que ela vem junto com seu par, a falsidade, e buscar a companhia de Platão, como vimos no início. Contudo, como viu o grande bruxo, no Eutifron, ao se referir às controvérsias em filosofia, o problema epistemológico da verdade é que, em filosofia, assim como em CHS, não temos nem métron nem balança para pesar as ideias e os prós e contras dos argumentos. Então, não tem jeito, a busca do conhecimento e da verdade sempre se dará em meio a muitas polêmicas e discussões, mas, se renunciamos à verdade e à ideia de critério, como o critério de objetividade ou de verificabilidade, o resultado será a ruína do conhecimento, o domínio da opinião e o reino da sofística.

 

WCFP/AVXG – Se reunidos os conceitos e recursos metodológicos utilizados em O grau zero... e em Epistemologia..., temos um novo método de análise epistemológica das ciências humanas? Se sim, qual a sua principal característica: um método que permite a realização de análises comparativas de diversas teorias, a fim de apontar conhecimentos e argumentos que se repetem em vários autores e épocas? Se não, qual é, segundo a sua opinião, a contribuição mais decisiva de seus trabalhos sobre epistemologia das ciências humanas?

 

ID - De fato, em minhas investidas em epistemologia das CHS, ao longo de minhas três principais contribuições (estou pensando em meus três livros consagrados aos clássicos daquelas ciências), eu não criei uma metodologia e uma teoria originais. Aliás, a questão da originalidade e da criação, tanto em artes quanto em filosofia e em ciências, caracteriza-se por um grande enviesamento e um enorme equívoco, como se tudo se decidisse ou se pudesse decidir à base de tudo ou nada, vale dizer, em termos do tudo da criação total ou absoluta ou do nada da imitação, da cópia e do embuste puro e simples. Mas, de fato, não é nada disso. Sim, eu posso ter chegado em meus livros a muitos resultados inéditos e originais, ao cabo de dezenas de anos de pesquisas árduas e continuadas, mas nada de absolutamente original ou que não tivesse sido tratado ou aflorado por outros estudiosos: assim, Foucault, Gusdorf, Aron e uma plêiade de estudiosos anglofônicos, em meus livros de epistemologia, ou então, mais recentemente, Gary Gutting, em meu livro consagrado a Foucault e a As palavras e as coisas.

Sobre as minhas afinidades intelectuais e principais ascendências, conforme tive a ocasião de comentar, em mais de uma oportunidade, eu me alinho à escola epistemológica francesa e sua trinca mais conhecida: [i] Bachelard e as ciências naturais, especialmente a física; [ii] Canguilhem, a medicina e as ciências da vida; [iii] Foucault e as ciências humanas. E o que distingue a escola epistemológica francesa e a escola anglo-americana, conforme eu mostrei em O continente e a ilha: duas vias da filosofia contemporânea[4], é bastante claro: enquanto, na escola inglesa e norte-americana, na esteira da filosofia analítica, o filósofo faz epistemologia ou filosofia da ciência, na extensão da lógica e da filosofia da linguagem, na escola epistemológica francesa, o filósofo faz epistemologia ou filosofia da ciência, na esteira da história da ciência e da filosofia. Este foi o meu caso, nos meus três livros.

 

WCFP/AVXGA respeito da figura do “epistemólogo”, você poderia comentar mais precisamente qual o seu papel, o domínio de sua atuação e, principalmente, a sua relação com a figura mais ampla do “filósofo”?

 

ID - O papel do epistemólogo é parecido com o do filósofo moral ou do filósofo da arte ou ainda do filósofo político, para ficarmos com alguns exemplos e estabelecermos algumas comparações intuitivas. E isto mesmo que uns e outros não consigam competir com o filósofo ou o pensador, às voltas com as exigências de um pensamento inaugural ou da criação pessoal. Mas, ainda assim, todos eles estão a fazer filosofia de alguma maneira e podendo o pensador genial retomar em seus pensamentos e criações uma boa porção daquilo que foi preparado antes, por centenas e mesmo milhares de filósofos menores mais ou menos anônimos. Afinal, parafraseando o conhecido adágio, o pensador ou o filósofo só pôde avistar tão longe e se revelar um gigante do pensamento, porque apoiado por sobre os ombros de muitos anões e um contingente enorme de indivíduos menores, mas, ainda assim, preparados e talhados para os ofícios do pensamento.

Sobre esse ponto, todos nós, que estamos familiarizados com a filosofia e a práxis filosófica, como professores fazendo filosofia acadêmica ou como pensadores fazendo filosofia autoral, perto da lareira, durante as noites frias de inverno (Descartes), ou afastados do mundo, em nossa biblioteca pessoal (Montaigne), todos nós sabemos que vários caminhos levam à filosofia e à busca do filósofo pelo pensamento inaugural: tais caminhos e buscas poderão ser encontrados nas proximidades das artes, das ciências, da opinião corrente ou do conhecimento comum, bem como nas imediações do trágico da existência, da vida santa ou da experiência religiosa, e ainda poderão ser encontrados na extensão ou no prolongamento da própria filosofia e sua história, servindo a filosofia de sua própria matéria. Em todas essas situações, notamos que não há aquilo que poderíamos chamar de mainstream, podendo a filosofia sair da própria filosofia e sua história ou, então, sair da não filosofia, com o filósofo trabalhando as interfaces, em busca do ponto comum compartilhado e alargando o campo da filosofia e do filosofar.

Ora, retomando o ponto de partida que estava em jogo, este é o caso do epistemólogo, do filósofo político, do filósofo moral etc., todos eles às voltas com um discurso de 2º grau, digamos assim, à diferença do filósofo genuíno ou do pensador universal, que filosofam em 1ª pessoa e protagonizam, em suas criações, um pensamento inaugural de 1ª ordem. Discurso este menos ambicioso, sem dúvida – a supor que a filosofia é um gradiente que vai do menos ao mais, do menos ao mais alto, em termos de criação e racionalidade –, mas nem por isso, como nas exegeses e nas histórias da filosofia, menos filosófico como um tal discurso e que consiste numa retomada reflexiva, pelos meios do pensamento, de uma realidade de primeira ordem que não foi criada ou gerada pelo filósofo e estudioso da filosofia. E, não obstante, uma realidade frente à qual o filósofo não pode ficar indiferente, e a própria filosofia, como gênero literário, se vê interpelada ou mesmo questionada de perto, ao se ver desafiada para dar uma resposta, como na questão do conhecimento científico, mas uma resposta filosófica, ao fim e ao cabo.

Em suma. é isso: trata-se de modos de filosofar e de experiências de pensamento que, mais ou menos dessa maneira, como eu disse, já duram mais de dois milênios, não sendo a filosofia mais do que uma reflexão e, como tal, um fletir e um re-fletir, implicando recuos, avanços e retomadas, devendo como tal experiência ser reatualizada o tempo todo e buscando o filósofo a matéria da reflexão por toda a parte, qualquer que seja o lugar em que o pensamento a encontre. Mas, ao contrário do que muitos gostariam, em tempos de relativismo sofístico e em pleno pós-modernismo desconstrucionista, que ficou no lugar do pensamento da suspeita, a tarefa da filosofia e do filosofar não deverá ser levada a cabo de qualquer maneira, à base do tanto faz ou do vale tudo ou por meio de esgrimas intelectuais. Deverá ser levada a cabo com circunspecção e de acordo com os meios, os cânones e as technai de uma tradição duas vezes milenar ou mesmo bem mais, como dito, num processo longo e sinuoso, no curso do qual quase todas as possibilidades do filosofar e de conduzir os ofícios do intelecto com método e rigor foram intentadas, adensadas e estabilizadas, estando à mão e à disposição do neófito, bem como do pensador ou do sábio. Tudo somado, qualquer que seja o caminho, a filosofia não pode ser coisa de qualquer um, senão um ofício que deverá ser aprendido e coisa de iniciados, exigindo, como na ciência e na arte, de todos aqueles que a ela se entregam com paixão não a espontaneidade dos inocentes e o empenho da curiosidade indisciplinada, mas o preparo pessoal e a aquisição das ferramentas intelectuais, das technai, em suma. Tudo isso – qualquer que seja a matéria ou a porta de entrada – deverá ser realizado, segundo eu penso, com o cuidado de não legiferar e tirar de reflexões pessoais diretrizes prescritivas ou normativas, como aconteceu em várias tradições e escolas de pensamento, com o filósofo em seu furor legiferante assumindo o lugar do profeta e do legislador, fundando morais e impérios, mas não levando a nada, só castelos no ar. E ainda, passado o tempo dos profetas e das hostes sapienciais, numa tradição mais aberta e mais laica, mas em certas vertentes, como já tinha acontecido com o idealismo alemão, vamos nos deparar com o filósofo desdenhoso, em sua arrogância, da ciência e da própria filosofia, como no caso de Heidegger. Ou então vamos nos haver com o epistemólogo, como em Popper e seu princípio de falsificação, exibindo um afã legiferante parecido com Kant e com Hegel, ainda que se aplicando a matérias diferentes, revelando-se o popperiano ou bachelardiano anônimo médio, em tudo o que faz, disposto a ensinar ao cientista como deve investigar o átomo e quebrar as partículas subatômicas ou, ainda, em estética e filosofia da arte, ensinar ao escritor e ao pintor ou escultor a talhar a sua personagem, modelar um pedaço de mármore bem como de bronze ou ajustar o golpe de vista e o manejo do pincel, para capturar a realidade e o sublime da natureza. Não se trata de nada disso, com efeito, e nada mais equivocado do que pensar o contrário. Ao invés, acredito eu, trata-se de trazer essas matérias e realidades criadas para o campo da filosofia, no e pelos meios do pensamento, consistindo a filosofia numa reflexão, resumindo-se a tarefa do filósofo em trazer essas experiências à expressão filosófica, e a do epistemólogo em levar a cabo a clarificação conceitual e, por conseguinte, filosófica daquilo que as ciências carregam de filosófico em sua práxis e em suas investigações, solicitando à filosofia, na mesma medida em que a filosofia as solicita.

Então, rigorosamente, no tocante à epistemologia e à atividade do epistemólogo, não há tutela, mas compartilhamento e uma dupla abertura: da filosofia frente à ciência e vice-versa. E desde logo, como eu disse acima, a tarefa da epistemologia, mais ainda do que estética e da filosofia da arte, só poderá ser levada em bases interdisciplinares, não sendo as artes uma disciplina acadêmica e podendo ser conduzida a tarefa, quanto à epistemologia, pelo cientista com cultura filosófica ou pelo filósofo com cultura científica. Estes foram os casos de Bachelard, de Thomas Kuhn, de Koyré e de Popper, no campo das ciências naturais. E um pouco este foi o meu caso, assim como foram os casos de Gusdorf, Boudon, Aron, Cassirer, Gabriel Cohn, este último eminente weberiano brasileiro, no campo da epistemologia das ciências humanas e sociais.

 

WCFP/AVXGPor último, como você avalia, no Brasil e fora dele, o campo da epistemologia das ciências humanas hoje? Surgiram novos problemas e tendências de análises, novas soluções a antigas questões? Quais? Especialmente sobre a pesquisa filosófica brasileira na área, você acha que ela pode causar algum impacto na pesquisa internacional?

 

ID - Aqui são vários os questionamentos e todos eles contundentes.

Sobre a situação do campo da epistemologia das ciências humanas e sociais, aqui no Brasil e pelo mundo afora, noto uma certa indiferença nos meios filosóficos e mesmo, pior ainda, uma queda acentuada do interesse pela disciplina da parte dos cientistas sociais, dos historiadores, dos linguistas e assim por diante. Aliás, essa indiferença e mesmo queda não é uma exclusividade da epistemologia das ciências humanas e sociais. Algo parecido assistimos nas últimas décadas, no campo da filosofia das ciências exatas e naturais, com sua agenda dominada pela filosofia analítica, havendo a concorrência de kuhnianos e popperianos, tendo sua pauta chegado a nossos meios décadas mais tarde e hoje meio raquítica e em estado de inanição.

Mas vejam bem: estou comentando essas coisas a título de constatação e com um sentimento de desconforto e de frustração. Contudo, ao me deparar mais uma vez com esse problema, mais uma vez me vem à mente uma ideia que já foi objeto de minhas considerações, em mais de uma oportunidade, em meus cursos, em vários artigos e em outras entrevistas. É que, frente a essas matérias, quando estão em jogo pautas e urgências ou prioridades, temos de tomar muito cuidado com as impressões à primeira vista, por mais avassaladoras que elas sejam e nos arrastem, e, antes de tudo, o cuidado de nada comprar pelo valor de face. Simplesmente, nessas matérias, para sua avaliação e seu sopesamento, é preciso introduzir a perspectiva temporal e não nos deixar levar pelos altos e baixos do mercado das ideias e das reputações. Já vivi bastante e, após décadas entregue à tarefa da epistemologia das ciências humanas e sociais, vivenciei os altos e baixos de outras áreas da filosofia, no Brasil e em outras partes do mundo. Para ficar só com o Brasil, num país que chegou à disciplinarização da filosofia tarde demais, apenas quando o sistema nacional de pós-graduação foi implantado, nos anos 1970, eu pude acompanhar o “empoderamento” – desculpem-me o anglicismo – da filosofia da ciência, com viés de filosofia da física, antes de tudo, bem como a hegemonia do marxismo e da filosofia política naqueles e mais além, e, no mesmo passo, assistir ao desprestígio da ética ou filosofia moral, considerada matéria de padre e assunto de conservadores e falsos moralistas. Hoje, em diferentes quadrantes do país, não se trata mais de nada disso, com a filosofia política mais o marxismo em descenso e a ética em primeiro plano, atraindo as melhores vocações dos jovens estudantes de filosofia. Por isso, todo cuidado é pouco e, em especial, com a régua das prioridades e das relevâncias.

Sobre sua pergunta se “surgiram novos problemas e tendências de análises, novas soluções a antigas questões”, não tenho quase nada de específico a dizer, por ter-me afastado um pouco da agenda atual da epistemologia das ciências humanas e sociais, conforme comentei antes, ao me referir a um certo cansaço pessoal ou à “fadiga do produto”, como dizem os especialistas em marketing. Disse ter-me afastado um pouco, não que eu tenha desistido ou abandonado o campo, e é por isso, com grande desconforto e frustração, que noto em meus colegas de CHS a propensão de abandonar os clássicos e colocar em seu lugar aquilo que eles consideram urgentes ou atuais, resultando em modismos intelectuais, como eu vejo. Eles veem uma espécie de atalho e a via reta ou mais rápida para tratar das questões que hoje realmente contam para nós, mas deixadas de lado ou obnubiladas pelos clássicos. Então, para que continuar com Weber, Lévi-Strauss e Durkheim, com suas agendas datadas e old fashioned, se temos, na França, Bruno Latour e Michel Callon, com seus sistemas sociotécnicos e a agenda atualíssima do constructivismo radical, enquanto, no Brasil, não ficando para trás, temos algo parecido e assistimos a um Viveiros de Castro falando de perspectivismo ameríndio e jaguar, lendo Deleuze e fazendo filosofia, como notou Paulo Arantes?

Confesso que não dou conta desse estado de coisas e não consigo acompanhar as discussões. Então, desisti e não tenho mais o que dizer. Até quando isso continua, não sei, mas não vejo nenhum sinal de esgotamento definitivo. E vida que segue.

Por fim, quanto à possiblidade de a investigação filosófica brasileira na área causar algum impacto na pesquisa internacional, o Brasil ainda continua na franja do sistema e condenado à periferia, na divisão do trabalho intelectual. Precisamente, um país que investe pouco em C & T e Educação, funcionando só para 10% da população, 20%, no máximo, e, portanto, resultando em suas políticas públicas tacanhas, numa massa enorme de indivíduos com uma cultura científica, bem como em humanidades, sumamente deficientes, com a predisposição de acreditar em terras planas, realidades paralelas e outras bizarrices. Num cenário como esse, não se pode esperar grandes coisas, em termos de influência e impacto das coisas feitas no Brasil, na agenda internacional. Isto se dá ou tem lugar não apenas por causa da centralidade da agenda anglo-saxã, por causa do inglês e do poder dos EUA. Há também outras razões, inclusive nossas, e é com grande inquietação que assisto ao amesquinhamento, não só da epistemologia das ciências humanas e sociais, em nossas terras, mas da própria sociologia e economia brasileiras, na falta de cientistas sociais com a disposição e o páthos para pensar o país, à diferença de décadas atrás. Decididamente, parece que o Brasil saiu de nossas cabeças como terra de imigrantes e da esperança, condenando-nos a viver a imediatez de um presente absoluto, tendo anulado o passado e agora disposto a cancelar o futuro.

Até quando não sei, mas não vamos aguentar isso por muito tempo.

 

Referências

DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das ciências humanas. São Paulo: Loyola, 1991.

DOMINGUES, Ivan. Epistemologia das ciências humanas – positivismo e hermenêutica: Durkheim e Weber. São Paulo: Loyola, 2004.

DOMINGUES, Ivan. Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos. São Paulo: Loyola, 2012.

DOMINGUES, Ivan. O continente e a ilha: duas vias da filosofia contemporânea. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Loyola, 2017.

DOMINGUES, Ivan. Foucault, arqueologia e “As palavras e as coisas”: cinquenta anos depois. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2020.

 

Recebido: 05/05/2022

Aprovado: 24/06/2022

 



[1] Docente na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. Bolsista Produtividade CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8252-020X. E-mail: domingues.ivan3@gmail.com.

[2] Docente do curso de Filosofia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande, MS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7101-9150. E-mail: weiny.freitas@ufms.br.

[3] Discente do curso de Filosofia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande, MS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9189-1157. E-mail: est.allisonvicente@gmail.com.

[4] Nota dos entrevistadores: Livro lançado em 2009, revisto e ampliado em sua segunda edição, 2017. Cf. DOMINGUES, I. O continente e a ilha: duas vias da filosofia contemporânea. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2017.