Ética hermenêutica: circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer a partir do Filebo de Platão[1]

 

Luiz Rohden[2]

 

Que agora cada um de nós tentará indicar o estado e a disposição da alma capaz de fornecer a todos os homens uma vida feliz. (PLATÃO, 2012, p. 27).

 

[...] não há a proposição ou o conjunto de proposições sobre a vida boa que possa formular de uma vez e para sempre a resposta à pergunta pela vida feliz, pois, em cada ocasião da vida nos vemos confrontados com a tarefa de combinar novamente, e com prudência, os ingredientes desiderativos e cognitivos que a constituem. E sempre podemos falar. (MONCADA, 2009, p. 208).

 

Resumo: No contexto do projeto do autor, no sentido de justificar a dimensão ética da Hermenêutica, neste artigo, propõem-se respostas à pergunta central em torno da qual se articula o diálogo Filebo de Platão, a saber, qual o estado e a disposição da alma (hexis kai diathesis) que pode outorgar aos homens uma vida feliz? É pelo conhecimento, ou pelo prazer?”. A partir das pistas propostas no diálogo, será desenvolvida a noção de vida boa e feliz como processo e resultado da mistura correta entre o conhecimento e o prazer. Sob a égide da hermenêutica gadameriana, tomada enquanto práxis ética, objetiva-se fundamentar a tese de que a felicidade é fruto da circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer, em contraposição à circularidade viciosa que implementa a infelicidade, instaura uma vida escrava, a qual implica a destruição pessoal, social e ambiental. Isso se fará, explicitando-se, inicialmente, o tipo de ontologia e a racionalidade própria para lidar com a vida boa e feliz conjugada com o prazer, possibilitando serem indicadas pistas da alquimia apropriada – mediante a apuração dialógico-phronética – entre o conhecimento e o prazer, para instaurar a vida boa e feliz. A contribuição original desta reflexão reside em propor critérios para aferir se a mistura foi bem feita, através da apresentação de implicações da circularidade viciosa e corolários da circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer. Mostrar-se-á que a circularidade viciosa fomenta a infelicidade, ao passo que a virtuosa faculta a criação de uma vida boa e feliz, em termos individuais, sociais, além de instaurar uma relação harmônica e de integração com o meio ambiente.

 

Palavras-Chave: Ética Hermenêutica. Gadamer. Conhecimento. Prazer. Filebo. Platão.

 

INTRODUÇÃO

            Não raramente, repetimos e praticamos hábitos como “primeiro trabalhar, para depois se aposentar e daí aproveitar a vida”, “primeiro o conhecimento, o dever, depois o prazer!” Na outra margem estão os que praticam o oposto e despendem suas vidas em gozar, desfrutar os prazeres no presente, à margem das implicações disso, no futuro. O dilema que brota dessa situação nos remete à seguinte questão: “Vale a pena uma vida vivida apenas em função do conhecimento ou do prazer?” É com esse retrato que me reporto ao Filebo, porque nele o filósofo Platão, amadurecido com os choques da realidade, lidou com esse dilema ético-metafísico. Platão estampou o problema na pergunta para a qual propôs algumas pistas, ao longo do diálogo, a saber, qual o estado e a disposição da alma (hexis kai diathesis) que pode outorgar aos homens uma vida feliz? É pelo conhecimento (razão), ou pelo prazer?” (MONCADA, 2009, p. 207); ou, dito de outro modo, “[...] cada um de nós tentará indicar o estado e a disposição da alma capaz de fornecer a todos os homens uma vida feliz.” (PLATÃO, 2012, p. 27).

            Cientes dos incontáveis fatores que independem da nossa vontade, força e empenho, para gozarmos de uma vida boa e feliz, há outros, poucos, que estão em nossas mãos para sua consecução. E é desses fatores que me ocuparei, propondo uma reflexão sobre a alquimia entre o conhecimento e o prazer que constitui a ética dialética desenvolvida no Filebo, sob a égide da hermenêutica filosófica. A partir dela, proporei o desenvolvimento de uma circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer e, com isso, desenvolver mais uma parte do meu projeto de justificar a teoria e a práxis hermenêutica como uma ética. Destaco que a apropriação do Filebo, com o escopo de explicitar a ética dialética entre o conhecimento e o prazer, complementa, corrobora e consolida o propósito similar que desenvolvi, a partir do Sofista (ROHDEN; KUSSLER, 2021) e do Fédon.[3]

            Farei isso apresentando, inicialmente, o tipo de ontologia e a racionalidade própria para lidar com a felicidade[4] e o prazer, o que me possibilitará apontar pistas da medida apropriada – mediante apuração dialógico-phronética – para a consecução da vida boa e feliz. Por fim, explicitarei critérios para aferir se a medida da mistura foi adequadamente feita, expondo especificidades da circularidade viciosa e da circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer.

 

1 Racionalidade própria para lidar com a felicidade e o prazer

1.1 Ética dialética: racionalidade dianoética, phronética

No Filebo, Platão desenvolveu a relação entre ontologia e ética, entre o modo de ser do ser e o modo de abordá-lo, entre o bem e o tipo de racionalidade para tratá-lo. Platão sustenta a ontologia do uno-múltiplo e a racionalidade dianoética própria para abordar o indeterminado, na versão do prazer, ambas conducentes à ética dialética. Essa proposta se retrata na resposta à pergunta de Sócrates: “Qual é, portanto, nesta mistura, o componente que vemos como o mais precioso e como sendo, de maneira mais decisiva, o causador?” – posta por Benoit (2007, p. 217), ou seja, “[...] na verdade, o que caracteriza essa região fronteiriça ao Bem, como já sabia desde a República, é o saber dianoético das matemáticas.”

Conforme Benoit (2007, p. 218), no Filebo, o caminho proposto para pavimentar a vida feliz não “[...] é mais a austeridade absoluta dos guardiães de A República, mas “[...] uma vida que mescla saberes puros e impuros com prazeres mais puros possíveis, esta mistura híbrida, para não resultar em droga perniciosa”, a qual “[...] depende antes de tudo de saber dosar, quantitativamente, cada elemento da fórmula” e a racionalidade escolhida foi “a razão dianoética”, que constitui a ética dialética. A medida própria para lidar, explicar e justificar a compreensão e a efetivação da felicidade se pauta pela racionalidade adequada às coisas humanas, segundo o pressuposto de uma ontologia aberta, porque é composta pelo uno e múltiplo, pelo definido e indefinido, pelo ser e pelo não ser, que, nesse caso, corresponde ao prazer.

A ontologia e a ética, no Filebo, se descortinam para se materializar numa ressonância dialética em constante realinhamento. Gadamer chega a nos dizer, no prefácio de sua tese sobre o diálogo platônico, o quanto à dialética ora em causa efetivamente concerne um problema de natureza ética (GADAMER, 1991, p. XXV).[5] Sabe-se o quanto Platão elabora as reflexões acerca do bem humano, em analogia ao que o filósofo supõe ser a estrutura da realidade em geral, vale dizer, com suporte na efetivação de uma mistura, respectivamente, entre o conhecimento e o prazer, e entre o uno e o múltiplo (REALE, 1997, p. 336). A justa medida, em especial no terreno da ética, do qual aqui nos ocupamos, envolve a proporção adequada da limitação do ilimitado: dita conciliação representa a própria ideia do Bem como algo concluído, mas igualmente suscetível de um contínuo ajustamento em vista da abertura inevitável ao novo (ALMEIDA, 2002, p. 212).

Como se pode perceber, essa reflexão sobre o prazer tecido com o conhecimento é imprescindível, porque não diz respeito apenas à vida boa pessoal ou à felicidade individual (reino da ética), mas, em Platão – e para nossos dias –, ela é ou deveria ser o diapasão da política. A vida pessoal do político regido pela desarmonia entre o conhecimento e o prazer gera desequilíbrio, cisão, polarização, divisão no ethos.

 

1.2 A felicidade se faz com prazer!

À luz da ética dialética, na versão da racionalidade phronética, maleável, proposta pelo Filebo, vou me ater agora ao seu objeto, tema em que consiste a felicidade ou, nas palavras de Platão (2012, p. 27), “[...] o estado e a disposição da alma capaz de fornecer a todos os homens uma vida feliz” relativamente ao tema do prazer e do conhecimento.

Nos diálogos Protágoras, Górgias, República, é possível rastrear, em Platão, conforme Iglésias (2007, p. 89), “[...] como a questão central sobre o papel do prazer na vida humana aparece [...] e como ela se desenvolve em direção a uma concepção mais complexa, incorporando elementos novos em suas reflexões”, cujo ápice encontramos no Filebo. Segundo ressalta Iglésias (2007, p. 89), é importante lembrar e situar que “[...] as reflexões sobre o prazer se ligam essencialmente a suas reflexões sobre o próprio bem”, não apenas nos diálogos mencionados, mas inclusive nos textos sobre a Doutrina Não Escrita e, de modo especial, na Carta Sétima.[6]

Na trilha de Maura Iglésias (2007, p. 90), vou me deter na “questão do prazer [...] essencialmente ligada à questão do bem”, ou seja, “sobre a natureza do bem” que “[...] implica essencialmente a questão sobre a natureza e o papel do prazer na vida humana”. Ora, a questão central é “o que é o bem?”, que “[...] poderia ser reformulada como: ‘o que é a vida boa?’, ou ainda ‘o que é felicidade – mais exatamente, a eudaimonia – e o que fazer para alcançá-la’?” (IGLÉSIAS, 2007, p. 91). E, para responder a isso, a autora faz a distinção entre

[...] felicidade e eudaimonia, para evitar que se confunda nossa noção atual e corriqueira de felicidade, que leva em conta sobretudo uma satisfação do indivíduo consigo mesmo, com a eudaimonia entre os gregos, que significa especialmente, e este certamente é o caso nas discussões filosóficas, o que poderíamos entender como a plena realização da vida (...) De fato, nenhum grego duvidaria que o que está em jogo na vida é realizar plenamente a vida, e isso tem que ver com a compreensão do que seja o significado, ou a finalidade, da vida humana. Atingir esse fim é alcançar a eudaimonia, é ser, plenamente feliz. (IGLÉSIAS, 2007, p. 91).

 

É essa acepção de felicidade que norteia a presente reflexão. E, enquanto estado e processo,

[n]ão há a proposição ou o conjunto de proposições sobre a vida boa que possa formular de uma vez e para sempre a resposta à pergunta pela vida feliz, pois, em cada ocasião da vida nos vemos confrontados com a tarefa de combinar novamente, e com prudência, os ingredientes desiderativos e cognitivos que a constituem. E sempre podemos falar. (MONCADA, 2009, p. 208).

 

E “sempre podemos falar”, ou seja, compreender, explicar, porque a felicidade é uma construção que precisa de cuidado e de atenção com os nossos desejos, os nossos sonhos, os nossos projetos, no tempo e no espaço onde vivemos. E, assim como o “ser se diz de muitas maneiras”, em Aristóteles, penso que é possível dizer, a partir do Filebo, que também o bem, a felicidade, a vida boa e a vida plena – à luz da unidade dos princípios ser e não ser – podem ser ditos de diferentes maneiras, sendo concretizados de diferentes modos, em tempos e espaços distintos, porquanto somos seres humanos e, por isso mesmo, essencialmente históricos. Diferentemente das plantas e dos animais, nosso modo mais próprio de ser[7] – e, portanto, de viver em felicidade – é plurívoco, com suas exigências e consequências distintas, e é por isso que sobre esse tema “[...] sempre podemos falar.” (MONCADA, 2009, p. 208).

Precisamos e podemos falar sobre o estado e o processo de vivermos felizes, porque ambos se fazem com a medida – não dada definitivamente – apropriada entre o dever e o prazer, entre o conhecimento racional e o prazer. Essa dosagem correta necessita ser feita incessantemente e se corporifica na figura e na postura de Hermes, sempre em movimento, cuja identidade consiste em ligar dois pontos da vida, ser e não ser, conhecimento e prazer, eternidade e temporalidade. Não há fórmula pronta nem medida prefixada para compreender e determinar a costura entre essas duas margens; a terceira margem precisa ser configurada, e é de sua dosagem correta que teremos a produção da virtude ou do vício, da felicidade ou da infelicidade, da alegria ou da dor, da tristeza ou da leveza que pendem sobre nossas vidas, tal qual o peso da espada de Dâmocles.

            Somos seres cindidos entre nossa sede de conhecer e de satisfazer nossos desejos de prazer, e somos convocados a lidar apropriadamente com essa procura, para processar uma vida boa, feliz e plena.[8] E sabemos muito bem que

[e]sta oscilação entre carência e satisfação, entre vazio e plenitude, é algo constitutivo da existência humana, de sua tragédia e sua comédia. Uma vida completamente racional, livre das interrupções do desejo, é completamente impossível. No mundo real, Platão sabia, a irracionalidade nem sempre é condenada e a racionalidade nem sempre é reconhecida. Sua filosofia política concebe a possibilidade de reduzir ao mínimo a irracionalidade constitutiva da vida humana ou, dito de outra maneira, quer evitar, ou pensar, como se pode evitar por exemplo fenômenos como a tirania e seu apetite desmesurado de domínio, que para Platão encarna o mal absoluto dentro da polis, pois, destrói a vida individual e coletiva. (MONCADA, 2009, p. 207).

 

Noutros termos, de acordo com Frede (1992, p. 427-428),

[...] nem o prazer nem o conhecimento, tomados por si próprios, podem preencher a conta do que torna a vida humana boa ao obter nossa felicidade [...], pois ninguém poderia desejar uma vida de prazer sem qualquer tipo de razão, nem uma vida de razão sem um pedaço de prazer. Apenas uma vida mista que contém prazer e razão é suficiente a esse respeito e deve, portanto, ser superior à vida do hedonista, bem como à dos “intelectualistas”.

 

Passo a apresentar algumas pistas ou “dicas” da boa medida da vida mista, que é a felicidade feita com prazer.

 

2 Pistas da boa medida para viver uma jornada vitalmente feliz

De acordo com Moncada (2009), em Platão, “a vida boa é possível”. Contudo, para isso, há que se refletir sobre seus componentes essenciais, a saber, os desejos e os prazeres, na medida em que

[...] deixar de pensar, negar-se a ver como desejos e opiniões contribuem para configurá-la, significaria abandonar nossas vidas completamente ao azar, ao capricho das circunstâncias políticas externas, ou ao automatismo dos comportamentos e formas de pensar e sentir adquiridas acriticamente. Certamente todos estes fatores jogam um papel na vida humana, e ainda que não possamos gozar da autonomia dos deles, senão podemos ao menos que nossos desejos, opiniões ou crença, não são dadas por natureza, e que podemos – talvez até devamos – atuar de modo que elas contribuam para configurar nossa existência da melhor maneira possível, se é o caso modificando-os. (MONCADA, 2009, p. 206).

 

No Filebo, vimos Sócrates e Protarco concluírem “[...] que devem entrar na mistura da vida todas as ciências, mas quanto aos prazeres, somente os mais puros, todos eles acompanhados sempre da verdade.” (BENOIT, 2007, p. 217). A vida boa e feliz é tecida, dialeticamente, com o conhecimento e o prazer, sem a hegemonia ou a supressão de um ou de outro. Não faz sentido para uma vida feliz, por conseguinte, a supremacia do conhecimento a despeito dos prazeres, tampouco a prevalência impulsionada pelos instintos humanos[9] mais epidérmicos e tendentes à satisfação imediata. Por outro lado, os prazeres direcionam sensivelmente o conhecimento, e este vem a nortear, pelo discernimento racional, quais são as sensações mais puras suscetíveis da realização de uma vida plena. Em certa medida, a adequada mistura dos dois componentes converge para o tempero equânime, a distar entre um conhecimento abstrato e calculista e certos prazeres instantâneos perdidos na efemeridade.

 

2.1 Em que consiste uma vida feliz?

A vida boa ou feliz é uma “[...] vida mista, uma vida que mescla saberes puros e impuros com prazeres mais puros possíveis”, de modo que “[...] esta mistura híbrida, para não resultar em droga perniciosa, depende antes de tudo de saber dosar, quantitativamente, cada elemento da fórmula”, pois “[...] em toda a mistura privada da medida e da proporção, qualquer que seja a forma pela qual seja composta, corrompem-se os seus componentes e ela própria.” (BENOIT, 2007, p. 218). Diferentemente da vida feliz proposta pela República e reiterada por Platão, em praticamente toda sua obra, no Filebo, ele defende “[...] a vida mista de prazer e sabedoria” que não consiste mais

[...] de ascender ao Bem, ao princípio a-hipotético, fundamento de todas as coisas, planície divina da aletheia; não se trata também mais de construir uma nova cidade inteiramente projetada a partir da contemplação de paradigmas perfeitos, esta vida não é mais aquela da austeridade perigosa dos guardiães comunistas regida pelo rigor absoluto de governantes-filósofos, dominadores da ciência suprema, a dialética, detentores do Bem em si e por si mesmo. (BENOIT, 2007, p. 220).

 

Neste estágio da reflexão, considero oportuno apresentar algumas das respostas de Jairo Moncada à pergunta que caracteriza a vida boa ou vida feliz, a saber, “qual estado e disposição da alma (hexis kai diathesis) que “pode outorgar aos homens uma vida feliz?”

Em primeiro lugar, conforme Moncada (2009, p. 207), nenhuma das disposições do prazer ou do conhecer “[...] pode chegar a constituir um bem em si isolando uma da outra, ou se a concebe com uma prioridade excludente”, pois “[...] viver só no prazer sem ter intelecto nem memória nem opinião correta não é própria da vida humana, mas da vida de um pulmão marinho”, ou, nos termos de Aristóteles, tal vida se restringiria ao seu componente vegetativo, vida indigna de ser vivida por nós.

Em segundo lugar, sem tais disposições,

[a]lguém não estimaria nem saberia apreciar o que se goza, e um gozo que não se pode recordar empobrece a vida. Uma vida prazerosa sem memória alguma do gozado é vazia. Uma vida sem memória do vivido, carente da possibilidade de lembrar-se do gozo experimentado não é uma vida boa nem digna de viver-se. (MONCADA, 2009, p. 207).

 

É a vivência do gozo que torna nossa vida saborosa e nos motiva a vivê-la, diariamente, intensa e de modo pleno.

Em terceiro lugar, “[...] uma vida refletida funde suas raízes na capacidade da memória, a qual, ademais, está mediada proposicionalmente”, ou seja,

[...] uma vida dedicada exclusivamente à razão, à ciência, ao intelecto, porém insensível ao prazer, à dor, é uma vida que carece de motivação para fazê-la digna de eleição. Uma vida dedicada à atividade do conhecer, p. ex., porém que não tem prazer na atividade de conhecer é uma vida absurda. (MONCADA, 2009, p. 206-207).

 

Em quarto lugar, de acordo com Moncada (2009, p. 207), “[...] viver humanamente é poder ser sensível ao gozo e à dor das atividades nas quais se realiza nossa vida”, pois ninguém “[...] busca a dor voluntariamente”, mas, como ela nos sobrevém, “[...] viver implica saber-se exposto à dor e à carência”, que participam de nossa vida. Sabemos que, “[...] na tragédia e na comédia da vida, as dores estão misturadas com os prazeres. Só a vida composta pelos dois é uma vida humana propriamente dita. A vida lograda é a vida que mescla com medida ambos os elementos.” (MONCADA, 2009, p. 207). Embora não queiramos, nem assim o desejemos, a vida é trágica, porque carrega em si gérmens de dor, de tristeza, de sofrimento com os quais precisamos aprender a lidar apropriadamente.

Em quinto lugar, “[...] se a vida mista é a vida humana propriamente dita, preferível às anteriores (uma dedicada exclusivamente ao prazer e outra exclusivamente ao intelecto), a razão, o conhecimento, o juízo correto, são meramente o caminho, não o fim da vida boa possível.” (MONCADA, 2009, p. 207). Esta é, pois, a novidade platônica que inverte a identificação da vida feliz apenas com o cultivo da razão, reorientando-a para uma vida na qual a razão é uma meta a ser conjugada com nosso desejo de prazer.

Enfim, a vida boa e feliz, por paradoxal que pareça, é uma vida pautada pela razão, porém, não se trata mais de uma racionalidade matemática ou abstrata, nem absoluta, mas dianoética:

Viver racionalmente não quer dizer que se tenha que extirpar os afetos, as emoções, os desejos, as carências, as dores que o acompanham, mas saber apoiar-se neles, combiná-los adequadamente, saber tratá-los como elementos de nossas vidas, e não em seguir cegamente valorações que se nos impõe ou se nos querem impor, nem deixá-los crescer de forma desmedida de modo que nos afundem na imprudência e no esquecimento. Para isto, por suposto, não há regras absolutas, e creio que Platão não pretende possuí-las. (MONCADA, 2009, p. 207).

 

O paradoxo está, por conseguinte, na abertura platônica, no Filebo, de uma qualidade própria do discurso racional, no qual se apresenta o compromisso com a verdade, para componentes não lógicos outrora estranhos à razão, como as paixões e os prazeres (CASERTANO, 2018, p. 186). Considerando que a vida boa e feliz é tecida com o auxílio da razão, proponho explicitar, a seguir, seu modo de consecução.

 

2.2 A medida da vida feliz se efetiva dialógico-phroneticamente

No Filebo, Platão nos alerta e nos recomenda a medida apropriada para construir uma vida feliz. Nos termos de Moncada (2009, p. 209), “[...] nunca poderemos encontrar a fórmula que indique de maneira definitiva como combinar com proporção e medida nosso conhecimento e nossos desejos, de modo que a combinação seja bela, adequada ao momento que se vive, e às circunstâncias em que se vive.”

Porém, dizer que não há uma fórmula definitiva para realizar a medida certa da mistura não significa que se possa prescindir de uma metodologia para efetivá-la. Daí porque, segundo ele,

[...] a relação com a verdade no mundo da ação consistiria em que nossa orientação em direção ao bem se apoie sobre opiniões discutíveis, corrigíveis, e as mais possivelmente verdadeiras, como o mostram os diálogos socráticos, e esta orientação em relação à verdade de minhas ações implica que eu possa criticar e modificar os desejos e apetites que guiam minhas ações e as crenças com as quais se vinculam, ou ao menos tratar de minimizar os efeitos destrutivos que podem ter tais desejos e apetites, se se deixam crescer desmedidamente. (MONCADA, 2009, p. 209).

 

Sem abandonar o princípio da razão na consecução da vida boa, da felicidade, a novidade sugerida é que sua medida já não é mais aquela da pureza matemática ou da exatidão abstrata, mas de uma medição que parte e é tecida com e para a finitude, a contingência, a historicidade. A verdade, o bem e, portanto, a felicidade, além de se revestirem de diferentes roupagens, se efetivam situadamente; a vida boa varia no tempo e no espaço, pois o bem se diz de diferentes modos, o que implica precisar ser efetivado com uma medida que lhe seja apropriada. Noutros termos, para ser devidamente vivida, a felicidade requer o uso da racionalidade, nos moldes do entimema,[10] da dialética, e menos ou muito pouco do silogismo ou da ciência apodítica. Em termos metodológicos, por conseguinte, “[...] não há a proposição ou o conjunto de proposições sobre a vida boa que possa formular de uma vez e para sempre a resposta à pergunta pela vida feliz.” (MONCADA, 2009, p. 208).

A alquimia que nos torna felizes se faz por meio do logos – linguagem, discurso, razão, palavra – do diálogo, da prudência.[11] Como em cada ocasião de nosso percurso vital nos confrontamos com a necessidade de combinar elementos desiderativos e cognitivos, estamos às voltas com algo, um processo, em permanente abertura, para poder desfrutar de uma vida boa e feliz, e que, para tanto, nos pede para se implementar um logos com eficácia de argumentar, falar, dialogar. A vida feliz pressupõe e implica, portanto, abertura de horizontes e disponibilidade para gozar o prazer em cada oportunidade, mediante a razão prática.

A vida feliz consiste numa jornada mista, regida pela medida apropriada, assumida em termos de uma terceira margem, cuja configuração não se reduz a uma simples soma nem ao confinamento de uma margem a outra e, muito menos, à fundição delas, mas que se potencializa criativamente em uma nova via a abrangê-las na dosagem certa.[12] Isso constitui a ética dialética encarnada numa ciência prática, distinta do procedimento apodíctico-técnico. A vida ética não requer apenas justificativas e teorias éticas, porém, o exercício e o cultivo da prudência, a qual, de acordo com Theodore George (2015, p. 118), é traduzida por Gadamer como consciência moral concreta que se expressa em conceitos como apropriado, adequado, bom e certo.

Para George (2015, p. 103), Gadamer foi capaz de relacionar a obrigação incondicional da moral kantiana com a condicionalidade da existência humana aristotélica, que aponta para uma vida ética que opera caso a caso, sem poder ser reduzida a teorias opacas ou a memórias desligadas de experiências passadas. Daí a razão por que ele propõe o diálogo como o caminho para respondermos responsavelmente à nossa busca por uma vida feliz, tendo em vista estarmos jogados às contingências, seladas com suas imprevisibilidades que fogem do nosso controle ou da pretensão prévia de erradicá-las.

A boa medida pressupõe e implica a ruptura da postura dogmática aferrada à crença de que a felicidade reside apenas ou na satisfação dos prazeres ou no cultivo do conhecimento.[13] No Filebo, mostra-se e se justifica que a vida feliz é uma síntese, aberta, gerada pela mistura apropriada entre o conhecimento e o prazer; isso pode ser tido na conta de Platão, “[...] independentemente se se compartilha ou não alguns de seus juízos e valorações éticas, é ter visto isto”, de sorte que repensar isso, “[...] entre outras coisas, significa não deixar cair no esquecimento sua pergunta pela vida boa.” (MONCADA, 2009, p. 209). Destaca Moncada (2009, p. 207-208):

Quando Platão fala nos diálogos sobre a importância da reflexão para viver, não está afirmando uma equivalência completa entre vida boa e reflexiva, como se um devesse estar refletindo o tempo todo, mas se refere antes ao fato de não aceitar acriticamente, mas, sim, em submeter à deliberação, os padrões ou critérios sociais e políticos próprios da época, aos quais não são imunes nossos desejos. Ser racional, visto platonicamente, significaria estabelecer uma relação reflexiva e crítica com os fins da ação, por um lado e com os critérios de juízo das ações pelo outro, e com os próprios desejos e afetos que motivam as ações.

 

Finitos, cindidos, entre nossa sede de conhecer e de satisfazer nosso desejo de prazer, “[...] nosso saber sempre tem limites e no caso de poder se obter um saber completo e total sobre a condição humana, teria pouca importância, pois o verdadeiro problema reside em seu uso: a prudência, a medida, o uso oportuno e adequado de tal saber.” (MONCADA, 2009, p. 207-208). Todavia, como fazer a mistura correta entre conhecimento e prazer? A resposta a essa pergunta é posta em procedimento nos seguintes termos de Sócrates e de Protarco, os quais “[...] começam a preparar a mistura perfeita que caracteriza a melhor das vidas” invocando “[...] Dionísio ou Hefaísto ou outro deus que seja encarregado de presidir a mistura”. Nessa perspectiva,

[...] como preparadores de libação, imaginam diante de si duas fontes, aquela do prazer e aquela da sabedoria, a primeira assemelha-se a uma fonte de mel, e a segunda à água austera e saudável, sóbria e sem vinho. À procura da melhor das vidas, a vida na qual residem o bem, devem eles tentar estabelecer a mistura desses elementos da maneira mais perfeita possível. (BENOIT, 2007, p. 215).

 

Por essa imagem, percebe-se que a boa vida depende mais da habilidade similar à arte dialógica que do labor da técnica. O ponto nevrálgico da atividade feliz consiste em “[...] mesclar, na correta dose, os prazeres e os diversos saberes para não produzir uma mistura perigosa” segundo o pressuposto de “[...] que certos prazeres e certos saberes eram mais puros e mais verdadeiros” e que deveriam acrescentar também os saberes menos verdadeiros e impuros para “uma vida feliz.” (BENOIT, 2007, p. 216).

            A dificuldade em obter a medida apropriada faz parte do itinerário de uma vida feliz e, por isso, precisamos falar, argumentar, discorrer e dialogar sobre sua medição correta, no sentido de adequada na proporção fático-histórica de sua concretude. Inclusive o perigo de não saber nem conseguir dosar apropriadamente tais meios participa do processo da vida humana. Esse desafio foi estampado de modo magistral, em linguagem literária, por João Guimarães Rosa (1958, p. 550), ao repetir, no Grande Sertão Veredas, o seguinte mantra: “[...] viver [...] é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é viver, mesmo”, de modo que, em última instância, aprender a medir apropriadamente, vale dizer, praticando-se a alquimia correta entre o conhecimento e o prazer para viver em felicidade importa no que representa o viver mesmo. Nesse caso, é de pouca valia a medida ideal ou exata sob uma fórmula pré-fixada, para vivermos bem e felizes. Eis o motivo pelo qual Sócrates e Protarco equipararam a arte de ser feliz com a elaboração musical em suas imprecisões criativas, uma arte “[...] repleta de suposições e imitações.” (BENOIT, 2007, p. 216).

            No processo alquímico para se viver felizmente, cogita-se se se “[...] deveriam admitir indiscriminadamente todos os prazeres?”, ao que Protágoras responde:

Que primeiro seria melhor aceitar apenas os prazeres mais puros e verdadeiros [...] os prazeres violentos nos trazem muitos problemas, tormentos, desequilíbrios e impedem o nosso desenvolvimento; quanto aos prazeres verdadeiros e puros, são quase nossos parentes e podem ser admitidos, juntamente com aqueles que são acompanhados da saúde, da virtude e da temperança. (BENOIT, 2007, p. 216).

 

Quem faz a alquimia em questão não nega a ciência, não nega o conhecimento, não nega o saber nem prescinde da argumentação, pois “[...] nossas experiências são palavras (logoi) ‘escritas na alma como em um livro’, muitas vezes complementadas por imagens (eikones), que podem ser atualizadas pela própria alma.” (FREDE, 1992, p. 445). E, quanto ao resultado da mistura entre o conhecimento e o prazer, relativamente ao Bem, lemos, no Filebo:

[...] teriam chegado dessa forma a sua morada? Teriam ultrapassado as barreiras postas pela sua transcendência? Na verdade, como em a República, o Bem permanece como algo além, não se chega a ele próprio, somente a sua proximidade. Em a República, porém, pensava-se que era possível chegar até ele, e agora, no Filebo, ao contrário, parece que ele pode permanecer como uma mera referência analógica para os bens atingíveis. Se o Bem é sempre a referência última de todo percurso e de toda ação na vida humana, agora permanece apenas nas suas fronteiras de forma metodologicamente consciente. Assim, agora, se ocorre uma aproximação, no entanto não se chega e não se pretende chegar ao próprio Bem e nem sequer se penetra na sua própria casa, mas apenas se chega às portas de sua morada. (BENOIT, 2007, p. 217).

 

Em outros termos, para Protarco e Sócrates,

[f]ica muito claro que chegaram a algum lugar, mas não à própria meta última da viagem. Sim, certamente, ocorreu a aproximação à terra procurada, mas não a chegada a ela própria. Atingiram apenas ‘as portas externas’, ‘o vestíbulo’ do bem e de sua morada, mas, nem a ele próprio e, nem sequer, sobretudo, puderam penetrar em sua morada. (BENOIT, 2007, p. 217).

 

A felicidade, pois, dista de um estado possuído em definitivo, porquanto envolve um processo em construção a ser construído e reelaborado dialogicamente. A dialética platônica, no Filebo, parte da premissa segundo a qual a realidade, mesmo sendo múltipla, pode ser submetida a um procedimento do logos – qualificado mais como arte e menos como técnica – capaz de efetuar relações, distinguindo e unificando por gêneros, na continuidade de uma tradição “[...] ofertada pelos deuses aos homens para examinar, aprender e ensinar uns aos outros.” (PERINE, 2020, p. 151). O processo alquímico-dialógico da boa medida na proporção correta varia de pessoa para pessoa, de sociedade para sociedade. Embora a adequada mistura seja relativa às pessoas e às sociedades, é preciso postular que há uma objetividade mensurável suscetível de ser aferida pela produção dos seus resultados.

 

3 Critérios para saber se a medida da mistura foi bem ministrada

Inicialmente, sabemos que a complexa realização da medida apropriada não deixa de estar acompanhada de uma certa insegurança, em vista da condição humana, conforme já atestado nas sábias palavras de Sófocles (1973, p. 157), pela boca de Filoctetes:

[...] salva-me, tem pena de mim! Vê como para os mortais tudo é para temer e cheio de perigos, tanto na felicidade como na desgraça. Quem está livre de trabalhos deve abrir os olhos para o pior...

 

Considerando a situação trágica característica da humanidade, é de se propor critérios para saber se a medida foi bem conduzida pela aferição dos seus corolários. Em meio ao torvelinho do processo phronético para aproveitar uma vida feliz, sugerimos averiguar a dosagem correta da mistura pela análise dos seus efeitos. Proponho, destarte, mostrar a mistura correta entre o conhecimento e o prazer, atendo-me às implicações pessoais e sociais, através da ótica de dois registros, a saber, via negationis – ou pela circularidade viciosa entre conhecer e prazer que produz a vida ruim e infeliz – e via afirmationis – ou pela circularidade virtuosa entre conhecer e prazer que produz a vida boa e feliz.

 

3.1 Corolários da circularidade viciosa entre prazer e conhecer

Comecemos com o exemplo do vinho, o qual, se tomado em excesso, pode causar dor de cabeça e mal-estar, ou seja, uma sorte de indisposição que acaba azedando a vida de quem assim o desfruta; ademais, se tomado repetidas vezes, compulsiva e desmedidamente, o mau hábito se converte em dependência, cuja marca se traduz em depressão. Portanto, se ingerido sem a dosagem correta da moderação, cria-se um vício, uma escravidão, que não faz bem nem ao corpo e menos ainda à alma do sujeito. Essa circularidade viciosa se nutre apenas de um dos lados da polaridade e, no caso de ser saciado o desejo de beber sem o uso da razão, o que se obtém é a destruição progressiva da saúde psíquica e física, individual e social das pessoas.

A circularidade viciosa alimenta a desarmonia e o desequilíbrio entre a sede de conhecer e o desejo de prazer, pois gera atos intempestivos, passionais, violentos e agressivos. A desarmonia gerada e alimentada pelo círculo vicioso produz efeitos nefastos, tanto no indivíduo quanto na sociedade; veja-se Creonte, em conflito com Antígona e os seus, veja-se a prática atual de governantes com seu negacionismo científico, no combate à pandemia, cuja administração se assemelha às mais hostis e deliberadas práticas totalitárias contra o seu próprio povo, culminando por engendrar, pelo impacto do péssimo exemplo de quem deveria servir como modelo de virtude, uma circularidade viciosa que fomenta ódio, rancor, ressentimento e polarização sociopolítica.

A circularidade viciosa, por se nutrir apenas de emoções desvencilhadas de razões, produz raiva, indisposição, irritação e tristeza, uma coletânea de sentimentos debitáveis da conta da infelicidade. Nos termos de Frede (1992, p. 451-452), quanto ao papel das emoções vinculadas ao prazer, conforme desenvolvido no Filebo,

Platão é verdadeiramente inovador: todas as nossas afeições apaixonadas resultam numa mistura de prazeres e dores, e os chamamos de um ou de outro porque há uma preponderância de um ou de outro, tal como havia nas condições do corpo. Ele insiste que todas as nossas emoções dolorosas, como raiva, saudade, lamentação, amor, ciúme e inveja, são privações de algum tipo ou outro que contêm uma porção de prazer.[14]

 

O círculo vicioso é capaz de acarretar, em última instância – no agente e no paciente –, morte, dor, sofrimento e tristeza, emoções próprias do acervo de uma vida infeliz. Essa circularidade não faculta nem propicia a realização de uma vida humana plena, porque é tecida por uma parte apenas – e insuficiente – da polaridade própria que pavimenta uma vida boa e feliz.

Esse círculo vicioso possui também implicações ambientais, pois é o desmedido prazer oriundo do beneficiamento individual próprio, em detrimento da coletividade que fomenta, por exemplo, a exploração inesgotável que protagoniza a destruição de nossas florestas em nome do crescimento econômico de interesses privados. O prazer de enriquecer desmedidamente, sem cotejá-lo com o conhecimento responsável, promove o desequilíbrio em todas as esferas e, portanto, tal inclinação parcial, com caráter não holístico, universal e sistêmico, é o que patrocina a destruição da natureza, do nosso ethos, do Lebenswelt que caracteriza o período do Antropoceno. Podemos dizer que a representação antropológica dessa postura se encontra na figura do Homo Deus, de Harari (2016),[15] indisposto e incapaz de rever sua recusa em misturar apropriadamente conhecimento e prazer.

A ruptura desse tipo de circularidade só é possível com uma certa dose de racionalidade. É a prática da racionalidade situada e histórica que pode nos salvar do prazer violento oriundo do ódio destruidor que podemos sentir para com o outro. O uso da razão fraca[16] nos possibilitará evitar a destruição do nosso ethos, em tempo. A aplicação de uma porção de razão no movimento da circularidade viciosa responde, portanto, pela possibilidade de se romper o círculo vicioso para torná-lo virtuoso, de modo a gerar a tão ambicionada harmonia, que é um dos atributos essenciais da vida boa e feliz.

Aliás, o diálogo platônico nos convida a pensar que o estatuto dos prazeres carece, à partida, de um complemento essencial, pois o prazer não pode ser sentido e mensurado como prazer, se não estiver acompanhado pelo conhecimento. Desse modo, a circularidade viciosa no campo dos prazeres já nos aponta para a fragilidade típica de uma configuração dialética claudicante, na qual o conhecimento, apesar de indispensável para identificar a carga da sensibilidade em jogo, vai sendo abandonado e subsumido aos poucos pela força da contraparte. O vício é, por conseguinte, mais um desdobramento desse desequilíbrio do que o resultado de uma unilateralidade.[17] E a reivindicada circularidade virtuosa, a seguir apresentada, nada mais realizará do que a retomada da harmonia entre aqueles dois componentes, sem a qual nada poderá nos fazer conduzir ao bem da vida boa em felicidade.[18]

 

3.2 Corolários da circularidade virtuosa entre o prazer e o conhecer

A circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer se corporifica na produção de saúde, de harmonia, de amor e de alegria, próprios da vida boa e feliz. O prazer de saber tomar um vinho na medida correta expressa bem esse estado desejado de vida! A denominada bebida dos deuses nos alegra, faz bem à nossa saúde e saber bebê-la na medida apropriada não é algo pré-fixado por uma escala abstrata, tampouco adaptável a certos parâmetros, com medida universal a ser aplicada. Cada qual é convocado a fazer a alquimia para produzir o prazer equilibrado com a razão que gera a vida boa e feliz. Note-se bem, a circularidade virtuosa promove o justo equilíbrio da mistura correta entre prazer e conhecimento, propiciando inclusive meios para necessárias adaptações que se irrompam na jornada finita e imperfeita da vida humana.

A vida boa e feliz implica a harmonização ensejada pela conjugação apropriada entre conhecer e prazer, a qual se reverte em sensação de bem-estar físico, de conforto, de plenitude. A vida feliz é uma vida misturada de prazer e conhecimento e, de acordo com Platão,

[a]penas um conjunto muito restrito de prazeres é aceitável para uma vida boa. Além dos prazeres verdadeiros e puros, Sócrates inclui ‘o prazer da saúde e da temperança e todos aqueles que se comprometem com a virtude’, isto é, aqueles que conduzem à saúde e à harmonia da alma e do corpo. (FREDE, 1992, p. 430).

 

Nessa direção, conforme Frede (1992, p. 429), Sócrates defende:

A visão de que os próprios prazeres precisam de moderação e harmonização. Se eles são bons, sua bondade não vem de sua própria natureza genérica, mas está condicionada a algo além do próprio prazer. “Então temos que procurar algo além de seu caráter ilimitado que conceda ao prazer uma parte do bem” [...] os prazeres surgem nos seres vivos que estão em um estado de harmonia, a classe mista.

 

Da mistura feita corretamente decorre e se corrobora, em termos pessoais, a harmonia interna entre sentimentos e ações, sensações e realizações, entre paixões e sede de conhecer; em termos sociais, proporciona e instaura um ethos harmonioso pautado pelo respeito, pela tolerância, pela compreensão da justiça, das razões e dos argumentos do outro.[19]

            Do ponto de vista da temporalidade, a circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer se aplica à vida vivida relativa ao tempo presente e ao futuro, ao passo que, na circularidade viciosa, se absolutiza um daqueles polos, ou apenas o presente, em detrimento do futuro ou o futuro em detrimento de uma vida feliz, no presente, segundo o mantra “primeiro o trabalho, depois o prazer; primeiro acumular para depois gozar”[20]. A crítica dessa circularidade viciosa sempre esteve na pauta dos filósofos e, no caso, retomo as palavras de Sêneca, em sua lúcida advertência:

Ouvirás a maioria dizendo: “aos cinquenta anos me dedicarei ao ócio. Aos setenta, ficarei livre de todos os meus encargos”. Que certeza tens de que há uma vida tão longa? O que garante que as coisas se darão como dispões? Não te envergonhas de destinar para ti somente resquícios da vida e reservar para a meditação apenas a idade que já não é produtiva? Não é tarde demais para começar a viver, quando já é tempo de desistir de fazê-lo? Que tolice dos mortais a de adiar para o quinquagésimo e sexagésimo anos as sábias decisões e, partir daí, onde poucos chegaram, mostrar desejo de começar a viver? (SÊNECA, 2007, p. 32).

 

A circularidade virtuosa rompe a viciosidade dessa lógica anterior, à proporção que faz do tempo presente e do futuro o tempo das nossas vidas a ser experimentado intensamente, em busca da felicidade. A circularidade virtuosa cria a harmonia, a alegria, a saúde e o equilíbrio característicos do estado de uma vida feliz. Se, na República, tal estado da alma foi sugerido como próprio apenas da figura do filósofo, que se atém a contemplar o bem, mediante esforço e exercício puramente racional, específico da parcialidade do círculo vicioso, no Filebo, a felicidade é factível para todo aquele que se envereda na arte virtuosa de dosar, corretamente, o conhecimento com o prazer. Essa circularidade que reabilita nas pessoas a lama dos vícios e, cada vez mais leves, nos possibilita viver com uma visão e ação mais livres e holisticamente integradas.

            Se, no círculo vicioso, se institui o vício, a escravidão – no caso do vinho, ingerido sem o auxílio da razão, para ministrar sua dosagem correta, ao alimentar tão só a dependência de um prazer desmesurado –, na circularidade virtuosa, instaura-se a liberdade, a autonomia e o gozo pleno, porquanto equilibrado, dos prazeres. A prática de ingestão racional da bebida institui uma segunda natureza – à medida que sentimos seus efeitos positivos – que caracteriza a virtude. O corolário da dosagem adequada ou bem-feita se reverte em acréscimo de ser ao nosso modo de ser, uma expansão da nossa liberdade para conosco e com o mundo, um aprimoramento qualitativo em sabedoria. O sábio, antípoda do dogmático – o qual se vincula apenas a uma das margens da polaridade mencionada –, se encontra aberto às inúmeras possibilidades de efetivar a felicidade, acomoda para ela largos horizontes e lhe é peculiar a postura de tolerância, de respeito, de compreensão da diversidade, da vulnerabilidade e da historicidade no rumo dos acontecimentos.

            Nutrido e movido pelo esforço de efetivar a circularidade virtuosa, aquele que se envereda por essa rota acaba por implementar harmonia, justiça e respeito em reciprocidade no ethos. Ao fomentar a harmonia interna – conforme sugerido por Sócrates a Alcibíades –, é possível criar uma morada mais agradável, mais aprazível, com vínculos saudáveis entre seus membros, pois quem cuida de si mesmo pode cuidar apropriadamente dos outros, conforme atributo próprio do político em conformidade ao disposto no Alcibíades.

No caso da Carta Sétima, tanto Dionísio I quanto Dionísio II, embora tivessem simpatia pela filosofia, ficaram presos à busca do prazer oriunda da posse do poder, as quais viabilizaram práticas e políticas totalitárias excludentes do diferente, avessas à instância do outro. Nessa carta, encontramos prelúdios do que caracteriza a gestão virtuosa, filosófica, pela proposição da alquimia entre verdade e bondade, justiça e emoções, conhecimento e prazer. Apenas essa circularidade pode evitar a tirania que maltrata a vida, com o antídoto capaz de fomentar a harmonia e a liberdade das pessoas, uma vez que, como já nos alertaram Hémon e Tirésias, são levadas em consideração a razão e a opinião do outro, isto é, o não ser, na esteira da proposta do estrangeiro de Eleia, no Sofista. A circularidade virtuosa entre conhecimento e prazer gera mais vida, mais saúde, mais harmonia pessoal, social, política e ambiental. A mistura correta implica a maximização da qualidade das nossas vidas e também a sustentabilidade ambiental, porque o desejo de saciar o prazer é pautado pela relação de respeito e de cooperação de uns com os outros, e de todos com o mundo habitável em que vivemos e no qual procuramos ser felizes.

 

Conclusões

Em termos pessoais, qual o sentido de uma vida vivida, se não for examinada e, em simultâneo, se não for investida pelo fio do sabor dos prazeres? Que razão teríamos para viver, se não pudéssemos também gozar o prazer que nos torna plenos, livres, autônomos e felizes? Viver sem prazer equivale a comer uma comida sem sal, a beber um vinho avinagrado, a viver vegetando, a decrescer enquanto ser.

Particularmente, a vivência dolorida e interminável do pathei mathos de Ésquilo tem mostrado, a toda evidência, que a vida plena e feliz se faz entrelaçando o conhecimento – de nós mesmos, dos outros, do real – com o prazer do tempo presente à mira do horizonte de continuidade em perspectiva do futuro. Essa conjunção se corporifica na atenção cuidadosa conosco e com os outros. Aprendemos, com Platão, que a vida boa e feliz consiste na arte, alquímica, de saber dosar o dever e a satisfação, o conhecimento e o prazer, nossa atividade profissional com o tempo livre, cuidando dos seres próximos que fazem parte de nossa história. De fato, não vale a pena uma vida vivida apenas em função da razão ou do prazer isoladamente considerados, porque somos alma e coração, somos espírito e corpo, somos eternidade e temporalidade, somos dever ser e liberdade.

Vimos que a felicidade não é elaborada somente pelo prazer ou pelo conhecimento, mas pela mistura adequada entre ambos, à luz da racionalidade dialética ética, phronética. Não se trata de uma ética intelectualista, formalista, deontológica e, menos ainda, de uma ética utilitarista e hedonista, todavia, de uma ética das virtudes que articula dois componentes antropológico-ontológicos, a saber, nossa sede insaciável de saber e nosso desejo de satisfazer o que nos confere prazer. Trata-se de uma ética hermenêutica, porque nela se realiza o trabalho de Hermes de pontificar essas dimensões humanas constitutivas num todo, o que fomenta um ethos mais harmônico, pautado pela responsabilidade e pelo compromisso de todos os envolvidos para instaurar a vida boa, plena e feliz, senão, ao menos, para vislumbrá-la como uma possibilidade factível, ao alcance de nossa realidade rumo a um futuro provido de esperança.

Enquanto o círculo vicioso torna alguém mais escravo, dependente de seus desejos e infeliz, o círculo virtuoso produz mais vida, mais alegria, mais harmonia, mais liberdade, mais felicidade. Dentre os horizontes do prazer e do conhecer, é mais fácil e mais cômodo se fixar num deles; é mais fácil se ater à crença cega, à adesão a uma lei, a uma regra, às fake news, que se dedicar ao esforço diário e constante de compreensão, de interpretação,[21] de tradução de como viver em felicidade e se empenhar na busca pela vida boa. É mais simples incorporar uma ética idealista, hedonista ou deontológica, porque nela se dispensa a postura phronética para discernir e julgar com constância sobre aquilo que, de fato, nos torna felizes.

Por certo, é difícil praticar sistematicamente a arte de medir, de se empreender a dosagem correta entre prazer e conhecer. A ética dialética, enquanto ética hermenêutica, é exigente e, além disso, nos instabiliza a ponto de nos desacomodar, pois requer permanentemente o uso da razão, para compreender, em cada situação, aquilo que nos plenifica e nos torna felizes. Se, por um lado, é difícil assumir ou incorporar a hermenêutica diária entre o conhecimento e o prazer, por outro lado, parece-me que estamos a cogitar de condição sine qua non para atualizar nosso modo mais genuíno de ser e, portanto, nossa possibilidade de realização plena corporificada no estado e na experiência de felicidade.

A vida boa e feliz parece ser sempre “incompleta”, “limitada”, por isso se diz que é eterna enquanto dure, porém, essa é a nossa condição, porque somos finitos, livres e históricos. Sobre nosso estado e sensação de felicidade pende a espada da Dâmocles, pois ela depende de fatores internos (pessoais) e externos (sociopolíticos). Daí porque, em nossa procura pela felicidade, o que acaba importando mesmo é o caminho, o processo de sua consecução. Nos termos de Guimarães Rosa, o ponto não está nem no começo nem no fim, mas no meio, na travessia, a qual caracteriza o perigo de viver felizmente, porque, ao final, aprender a viver felizmente é o que constitui o viver mesmo. Ou seja, nas palavras de Cícero (2009, p. 169), “[...] as coisas humanas são frágeis e caducas”, o que o leva a recomendar que “[...] sempre devemos procurar alguém a quem amemos e por quem sejamos amados. Pois sem afeto e sem benevolência, a vida perde todo seu encanto”, e, de fato, de que vale uma vida regida pelo dever determinado pelo conhecimento, se não for nutrida pelo prazer e pela alegria de viver bem consigo e com outros?

Da mesma forma, de que vale, por outro lado, a errância hedonista de prazeres sucessivos na vida de alguém, desarticulados do exercício da razão, de uma pauta racionalmente hermenêutica, capaz de direcionar a busca pela mistura correta, cujo destino importe na efetiva felicidade? Na voz de Gonzaguinha, a alquimia entre o conhecimento e o prazer, entre deveres e emoções que nos fazem felizes, se corporifica em cantar e cantar e “viver na esperança de ser um eterno aprendiz” – porque sabemos que sempre pode ser melhor, que sempre há uma luz no final do túnel, que, depois das tempestades, vem a bonança... – o que não nos “impede de cantar que é bonita, é bonita”, porque é na procura de viver na plenitude que está e se encontra o encanto da coisa desejada: eis o estado e a experiência, sempre em movimento, de uma vida feliz.

Em termos do progresso de conhecimento, a arte da mistura correta entre o conhecimento e o prazer combina com a abertura e o acolhimento dos avanços comprovados e disseminados pela ciência, o que leva à disponibilidade para argumentar em combate aos variados dogmatismos, à ignorância, ao negacionismo, práticas que desdenham e destroem as conquistas científicas e a sua inquietude para novas perguntas e formulações. De posse dessa dialética, podemos nos precaver frente ao desequilíbrio interno assentado sobre nossas crenças e dependências (o que não deixa de ser uma supremacia viciosa de prazeres egoístas), as quais excluem dados e conjecturas reconhecidos pela comunidade dos cientistas.

Em termos políticos, em meio à pandemia, não é difícil reconhecer a tragédia gerada por políticos aferrados à margem da satisfação da obtenção e do uso do poder e da riqueza. Desequilibrado, o irresponsável administrador da coisa pública pauta sua conduta pela margem do prazer e, tal qual Creonte, redunda em ser fonte de tragédias pessoais e sociais. Daí porque Alcibíades pode ser visto como protótipo de político doente que Sócrates procurou curar, pela argumentação, recomendando cultivo e cuidado de si mesmo – naquele exercício constante de autoconhecimento, autoaferição e auscultação da medida correta entre conhecer e prazer – para poder gerenciar a vida e os interesses da cidade (ROHDEN; KUSSLER, 2017).

Em termos ecológicos, a busca para saciar a sede do prazer de acumular riquezas patrocina uma ação predatória, destrutiva da nossa casa, da mãe natureza. Desmesuradamente, a satisfação gananciosa do prazer de enriquecer em acúmulo envenena nossas águas, polui nosso ar e, em última análise, vai nos aniquilando aos poucos. Fazer a mistura correta entre nossa ânsia de satisfação pessoal com nossa racionalidade não é coisa de pequena monta, tampouco constitui assunto privado ou de ordem pessoal, pois tem sérias implicações sociais, políticas e ecológicas. Enfim, fazer a dosagem apropriada entre ambas não é uma questão de somenos importância, irênica, romântica, mas diz respeito à nossa sobrevivência e, fundamentalmente, à condição de construir uma vida boa e feliz para nós mesmos, nossos semelhantes e descendentes.

 

Hermeneutic ethics: Virtuous circularity between knowledge and pleasure from Plato’s Philebus

 

Abstract: In the context of my project to justify the ethical dimension of Hermeneutics, in this article I will propose answers to the central question around which Plato’s Filebo dialogue is articulated, namely, “what is the state and disposition of the soul (hexis kai diathesis)? that can grant men a happy life? Is it for knowledge, or for pleasure?” From the clues proposed in the dialogue, I will develop the notion of a good and happy life as a process and result of the correct mixture between knowledge and pleasure. Under the aegis of Gadamerian hermeneutics, taken as an ethical praxis, the objective is to substantiate the thesis that happiness is the result of the virtuous circularity between knowledge and pleasure as opposed to the vicious circularity that implements unhappiness, establishes a slave life that implies the personal, social and environmental destruction. I will do this by explaining, initially, the type of ontology and the rationality proper to dealing with the good and happy life combined with pleasure; this will make it possible to indicate clues of the appropriate alchemy – through dialogical-phronetic investigation – between knowledge and pleasure to establish a good and happy life. Finally, the original contribution of this reflection lies in proposing criteria to assess whether the mixture was well done by presenting the implications of the vicious circularity and corollaries of the virtuous circularity between knowledge and pleasure. I will show that vicious circularity fosters unhappiness, while virtuous circularity enables the creation of a good and happy life in individual and social terms, in addition to establishing a harmonious relationship and integration with the environment.

 

Keywords: Hermeneutic ethics. Gadamer. Knowledge. Pleasure. Philebus. Plato.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 04/07/2022

Aceito: 22/08/2022



[1] Este artigo contou com o apoio de recursos do Edital PQG 2017 e CNPq.

[2] Professor Doutor do Curso e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sino (Unisinos), São Leopoldo, RS, e Pesquisador do CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6143-090X. E-mail: rohden@unisinos.br.

[3] Artigo submetido para periódico em Filosofia: ROHDEN, L.; KUSSLER, L. Μετοίκησις enquanto transvaloração existencial: leitura fenomenológico-hermenêutica da morte e imortalidade da alma no Fédon.

[4] Compreendo pelo termo “felicidade” o que Maura Iglésias desenvolveu e apresento, logo abaixo.

[5] O filósofo declara textualmente, logo em seguida: “Eu não afirmo assertivamente que a ética de Platão seja dialética; em vez disso, eu prefiro indagar se, e em que medida, a dialética platônica pode ser considerada uma ética” (tradução nossa).

[6] Sobre esta questão, ver Rohden (2018).

[7] Pressupondo aqui a ambiguidade do termo “idiota”, cuja condição importa naquilo que a especificidade da espécie humana aspira a ser, remeto à clássica obra de Dostoiévsky, O idiota.

[8] O prazer deve ser concebido, assim o compreendemos, não apenas como um estado corporal, senão igualmente como um modo psíquico de o indivíduo se relacionar com o mundo (cf. BOSSI, 2005, p. 317).

[9] Sabemos que a expressão “instintos humanos” é substituída, com a contribuição da psicanálise freudiana, pelo termo específico “pulsões” (Trieb), assinalando-se a complexidade da situação do homo sapiens comparativamente aos animais, estes dotados de instintos (Instinkt). A diferença entre pessoas e animais indica-nos, na verdade, uma descontinuidade instintual que nos direciona rumo às reflexões de Platão, no Filebo: o bem humano não remonta simplesmente aos prazeres, senão seríamos apenas conduzidos pelos instintos, mas também não há uma força alternativa exclusiva responsável pelo direcionamento de uma vida feliz, o conhecimento. Por isso, o conceito de pulsão, em Freud (cf. GARCIA-ROZA, 2009, p. 115-116), tido como o impulso vital de descargas sucessivas de energia, formadas entre o somático e o psíquico, que nos mobiliza aos objetos de satisfação – variados, não pré-definidos e sequer exaurientes –, reedita a mistura platônica como resposta em torno da interrogação sobre a causa da felicidade humana: a descontinuidade de instintos que não se bastam a si mesmos (prazeres), porquanto carecem de algo distintivamente humano (conhecimento) para o seu genuíno regozijo e ulterior reinvestimento.

[10] Sobre essa temática, ver meu livro: Rohden (2010).

[11] Ver meu artigo submetido para periódico: “A práxis hermenêutica enquanto exercício da virtude da prudência”.

[12] Desenvolvi, em parte, a imagem da terceira via ou margem a partir do conto “Terceira Margem do Rio”, de João Guimarães Rosa, no artigo “Tertium non datur? Entre as longas beiras da Terceira Margem” (em avaliação no momento).

[13] Aliás, um dos argumentos decisivos no diálogo consiste no experimento de pensamento, ou seja, um artifício da razão, o qual promove um curto-circuito no hedonismo de Protarco, pela imediata aceitação do papel indispensável do conhecimento, para quem afirma a totalidade do prazer em sua vida (21 b, 2-4). A escolha do hedonista deixa de ser má: ela se torna impossível, porque a vida permeada por prazeres carece da sabedoria para o fito básico do seu mais singelo reconhecimento, na medida em que o prazer, para ser sentido, precisa ser investido pelo pensamento, para ser valorado, precisa das lembranças (memória), para ser discriminado, necessita ser ajuizado, todas operações intelectivas, transcendentes ao âmbito da sensibilidade imediata. Eis a mistura humana, diz-nos Platão, a nos separar dos moluscos: para um ser humano, tal combinação entre conhecimento e prazer importa no bem (SANTAS, 2011, p. 297). Sobre isso, em outro texto, afirmamos que a vida humana não deixa de ser um enigma, pois a alma consiste “[...] na carência de contornos e sem finalidade acabada”, de uma especificidade própria que nos distingue dos seres animais, os quais apenas executam instintos bem demarcados na rota da sobrevivência e da reprodução (ROHDEN, 2020a. p. 8).

[14] E, ainda de acordo com a autora, “[...] é bem concebível que a teoria da purificação desenvolvida por Aristóteles tenha sido influenciada pela ‘discussão sobre a impureza de nossas emoções no Filebo.” (FREDE, 1992, p. 452).

[15] “O sucesso alimenta a ambição, e nossas conquistas recentes estão impelindo o gênero humano a estabelecer objetivos ainda mais ousados. Depois de assegurar níveis sem precedentes de prosperidade, saúde e harmonia, e considerando tanto nossa história pregressa como nossos valores atuais, as próximas metas da humanidade será provavelmente a imortalidade, a felicidade e a divindade [...] Tendo elevado a humanidade acima do nível bestial da luta pela sobrevivência, nosso propósito será fazer dos humanos deuses e transformar o Homo Sapiens em Homo Deus.” (HARARI, 2016, p. 30).

[16] Essa perspectiva foi desenvolvida por Vattimo (1990).

[17] É de se questionar, então, a possibilidade de mensurarmos os prazeres em bons ou ruins, úteis ou nocivos, verdadeiros ou falsos, como atos isolados momentâneos suscetíveis de certa validação estanque, sem levar em conta a vida do próprio sujeito na continuidade histórica da sua existência e em como tais prazeres se integram na correspondente trama – falível e finita – de realização. Nesse sentido, vem-nos em boa hora a expressão “hedonismo sapiencial” para o fito de qualificar a mescla (mistura) dissertada naquele diálogo tardio de Platão (BOSSI, 2005, p. 326).

[18] Custódio de Almeida (2002, p. 217-218) sinaliza com perspicácia a importância dos prazeres no movimento dialético que nos conduz à mistura – o terceiro gênero culminante de dois elementos individualmente insuficientes – como endereçamento do Bem. É importante não perder de vista que não estamos falando de um duelo entre conhecimento e prazer, mas de uma complementaridade bem efetuada, a qual resulta necessariamente impulsionada pela trilha do prazer na esfera humana, na medida em que os prazeres são os únicos ingredientes da mistura que atravessam a fronteira entre o sensível e o inteligível. Noutras palavras, o prazer constitui a causa do movimento do desejo que nos mobiliza com constância, a apontar para um lugar além de si mesmo, o qual, com a contribuição do conhecimento naquela almejada mistura virtuosa, nos remete para o “sempre mais” – a busca permanente – não apenas do corpo, mas da alma humana.

[19] Sobre essa temática, ver Rohden (2020b).

[20] Destaco, aqui, o pertinente comentário do Prof. Dr. Maurício Reis: “A dialética das temporalidades apropriadas na experiência do vivido, no campo intrapsíquico, entre os afetos e as representações, e no laço intersubjetivo pela dinâmica dos imbricamentos relacionais das mais variadas ordens, é uma referência importante para a psicanálise e para a hermenêutica, no sentido de como podemos nos reapropriar do passado no presente rumo a um futuro melhor resolvido, vale dizer, em termos de capacidade de investimento simbólico nisso que chamamos de vida plena ou feliz.”

[21] Note-se bem o argumento de Gadamer acerca do que significa – para cada um de nós, seres humanos – o interesse pela vida justa à luz do Filebo: algo que, para o sujeito, se situa para além do ímpeto vital reinante nos demais seres vivos, a racionalidade ou a sabedoria, cuja distinção não se basta, porém, por ela mesma se não estiver devotada ao constante esclarecimento, através do bem a se perseguir, naquela mistura onde conhecimento e prazer se interpenetram e, tão ou mais importante, na qual se opera sempre e invariavelmente uma decisão acerca de si mesmo, dos outros e da coletividade. Enfatiza o filósofo: “A cegueira do ímpeto vital, o qual sobretudo impera, é a falta de escolha. Mas do outro lado da escolha encontra-se aquilo que, por si só, já está escolhido, por estar posto para escolha: o próprio escolher através do conhecimento contido no aquilo. Isso transforma o ser humano em ser humano, de modo que ele precise indagar acerca do Bem, que ele prefira isso àquilo de acordo com uma decisão consciente, ou seja, que ele tenha de prestar esclarecimento a si mesmo.” (GADAMER, 2009, p. 111). Essa prestação de contas de alguém para consigo mesmo – e, por conseguinte, para com os demais, nisso que já denominamos cuidado hermenêutico de si e dos outros – não deixa de ser um dos maiores tributos da hermenêutica filosófica na reviravolta por ela promovida, diante do alcance do papel da interpretação (dentre outros aspectos, como compreensão pelos efeitos da história e na mediação com a linguagem): o esclarecimento pela interpretação não equivale aqui à revelação enquanto transparência do sujeito pela lente soberana da consciência, contudo, o alcance dessa inevitável e incessante autoevidenciação perpassada pela temporalidade histórica, algo que, na psicanálise, advém pela expressão “onde estava o eu deve advir o isso”, ou seja, a interpretação manifesta, a cada vez, para o sujeito algo originário e reinvestido com as marcas de sua própria verdade. Sobre esse tema das relações entre hermenêutica e psicanálise, ver artigo submetido para periódico: ROHDEN, L; REIS, M. M., Hermenêutica e psicanálise: uma clareira comum denominada interpretação.