A visão em deus e o primado da representação em Malebranche[1]

 

Sacha Zilber Kontic[2]

 

Resumo: O presente artigo visa a examinar a noção de representação presente na exposição malebranchiana da tese da visão das ideias em Deus. Para tanto, volta-se para a progressiva precisão atribuída por Malebranche ao termo ideia, buscando ressaltar o caráter radicalmente representativo do conceito. Em seguida, analisa-se de que modo essa ideia representativa prescinde, na filosofia do oratoriano, de uma correspondência com a existência. Por fim, busca-se mostrar como esse primado da representação se articula com a tese da visão em Deus. Com isso, torna-se possível conceber como essas ideias representativas podem fundar, na filosofia de Malebranche, uma verdadeira ciência.

 

Palavras-chave: Nicolas Malebranche. Ideia. Conhecimento. Representação. Visão em Deus.

 

Introdução

O objeto de nosso pensamento, quando percebemos os corpos, não são os próprios corpos percebidos, mas sim suas ideias. Essa tese, central para a compreensão de todo o malebranchismo, se encontra formulada na segunda parte do Livro III da Recherche de la vérité, na qual a teoria da visão das ideias em Deus é explicitada pela primeira vez, na obra do oratoriano. Mas a questão da origem das ideias é antecedida, nesse mesmo livro, por uma discussão do caráter propriamente representativo delas, cuja característica principal é a cisão entre a coisa percebida por meio da ideia e a existência efetiva dessa mesma coisa, no mundo material.

É a partir dessa cisão que se torna possível compreender a especificidade da concepção de ideia que Malebranche começa a desenvolver, em 1674, na primeira edição da Recherche, e que é aprofundada e desenvolvida em seus textos posteriores. O primado da representação que o oratoriano atribui às ideias – e, por conseguinte, a todo conhecimento distinto – é o que fornece à tese da Visão em Deus sua importância para além de uma simples teoria sobre a origem das ideias.

 

1 A EQUIVOCIDADE DO TERMO IDEIA

O primeiro capítulo da segunda parte do Livro III da Recherche deixa clara a importância que Malebranche atribui ao caráter representativo das ideias. Nele, Malebranche introduz a questão pela negação, amplamente aceita, da noção de que o objeto imediato de nosso espírito não são as coisas mesmas, mas suas ideias:

Creio que todo mundo está de acordo que não percebemos os objetos que estão fora de nós em si mesmos. Nós vemos o Sol, as Estrelas e uma infinidade de objetos fora de nós, e não é verossímil afirmar que a alma saia do corpo e que ela vá, por assim dizer, caminhar nos céus para contemplar nele todos esses objetos. Ela não os vê, portanto, em si mesmos, e o objeto imediato de nosso espírito quando ele vê o Sol, por exemplo, não é o sol, mas algo que está intimamente unido à nossa alma, e é isso que chamo de ideia. (RV, III, II, I, §I, OC I, p. 413-414).[3]

 

            Ao afirmar que não vemos os objetos neles mesmos e que, portanto, é absurdo considerar que a alma sai de si mesma para caminhar nos céus, quando vemos o sol ou as estrelas, Malebranche aponta para a necessidade de haver algo diferente desses objetos materialmente existentes que os represente a nós. É por isso que a ideia é definida, na sequência do argumento, como “[...] aquilo que é o objeto imediato, ou mais próximo do espírito, quando ele percebe alguma coisa” (RV, III, II, I, §I, OC I, p. 414). Visto que, tal como para Descartes, a alma e o corpo são para o oratoriano duas substâncias realmente distintas, é inconcebível que haja alguma espécie de comércio real e imediato entre o espírito e o mundo material. É necessário, por conseguinte, que o objeto imediato de nossa percepção dos corpos seja algo distinto da matéria. Não vemos os corpos criados imediatamente, pois nossa alma não é capaz de tocar aquilo que é extenso. A alma não se abre ao mundo exterior, para apreendê-lo. O que percebemos não pode ser o objeto em si mesmo, mas sim sua representação, ou seja, sua ideia enquanto ela representa as coisas percebidas pelo espírito.

Não deixa de ser curiosa, no entanto, a pretensão de universalidade colocada no início do argumento. Rodis-Lewis (1963, p. 57) conjectura que isso se deve ao acordo, nesse ponto, entre o cartesianismo e a escolástica. Do ponto de vista da Escola, ao menos em sua vertente tomista, há entre os corpos percebidos e a percepção propriamente dita a mediação das espécies intencionais, as quais permitem uma espécie de assimilação intencional do objeto na mente.[4] Para o cartesianismo, a ideia é apresentada como aquilo pelo que nossa mente percebe os objetos exteriores ou, em outras palavras, a realidade objetiva da coisa representada e não sua realidade formal. Isso é afirmado com toda clareza por Descartes, na carta a Gibieuf, de 19 de janeiro de 1642:

Pois, estando seguro de que não posso ter nenhum conhecimento do que está fora de mim senão por intermédio das ideias que tive dele em mim, evito relacionar os juízos imediatamente às coisas e não atribuir a elas nada de positivo que eu não perceba antes em suas ideias. Mas creio também que tudo aquilo que se encontra nas ideias está necessariamente nas coisas. (Descartes, 1996, AT III, p. 474).

 

            Contudo, a sequência do argumento da Recherche não se afasta da hipótese tomista somente ao reforçar a distinção entre o sujeito e o objeto percebido, mas ainda ao afirmar a independência entre a realidade da representação e a existência do objeto representado. Para que haja representação, não é necessário postular que haja um correlato externo semelhante ao objeto representado pela ideia. Podemos perceber coisas que não existem ou até mesmo que nunca existiram, como uma montanha de ouro, além de perceber coisas em nossos sonhos que sabemos inexistir fora deles. A ideia, uma vez que representa a essência de um objeto, não possui por si mesma nenhuma relação com o objeto propriamente existente. Se a percepção sensível de um objeto nos leva a pensar em sua ideia é porque a sensação, em virtude das leis da união da alma e do corpo, pode nos dar a ocasião de pensar em uma dada ideia, porém, não a causar, nem garantir que a coisa percebida pela ideia possua uma existência efetiva para além de sua representação.

            Isto, no entanto, gera uma ambiguidade no uso do termo ideia, que Arnauld, em sua primeira crítica a Malebranche, não deixa de apontar. Na Recherche, o termo é usado ora como nossas percepções em geral – e assim podemos remeter igualmente a uma ideia de Deus, da cor, da dor, das qualidades sensíveis, do mesmo modo que tratamos das ideias dos corpos –, ora como aquilo que nos representa unicamente os objetos exteriores. A incompatibilidade entre esses dois sentidos do termo se torna clara pela distinção feita, no mesmo Livro III da Recherche, entre as duas espécies de coisas que a alma percebe: as coisas que estão na alma e as coisas que estão fora da alma.

Dentro da alma está tudo aquilo que é uma modificação dela, ou seja, todos os modos de pensar, como suas sensações, imaginações, desejos etc. Como essas modificações são somente a própria alma modificada ora de um modo, ora de outro, ela não necessita propriamente falando de ideias que as representem, e são assim percebidas pelo sentimento interior que a alma possui de si mesma. As coisas que estão fora da alma, por sua vez, sendo distintas da alma, necessitam algo distinto delas mesmas que as represente. São as suas representações no espírito que recebem o nome de ideia. Rigorosamente, o mesmo termo não pode ser usado para ambos os casos, segundo apontou Arnauld, pois se referem à percepção de duas coisas distintas, a saber, da alma, de um lado e, do outro, de tudo o que lhe é exterior.

Malebranche não era insensível a essa ambiguidade do termo. No Éclaircissement III, seu sentido é precisado:

[...] essa palavra ideia é equívoca. Tomei-a algumas vezes como tudo o que representa ao espírito algum objeto seja claramente, seja confusamente. Tomei-a ainda mais geralmente como tudo o que é objeto imediato do espírito. Mas também a tomei no sentido mais preciso e mais restrito, isto é, como tudo o que representa as coisas ao espírito de uma maneira tão clara que podemos descobrir por uma simples visão [simple vue] se tais ou tais modificações lhes pertencem. (RV, Écl. III, OC III, p. 44).

 

É por conta desse equívoco que Malebranche chega a aludir à ideia dos objetos sensíveis ou à ideia de Deus. No primeiro sentido (“como tudo o que representa ao espírito algum objeto”), Malebranche se vale do termo ideia, em sua acepção usual na filosofia seiscentista. A ideia, tomada nesse sentido, não é propriamente objeto, mas aquilo que designa o objeto. A coisa visada pode ser, nesse caso, a alma, o mundo, as verdades geométricas, os números etc. O segundo sentido (“como tudo o que é o objeto imediato do espírito”), por sua vez, designa até mesmo aquilo que se apresenta ao espírito, sem a mediação de uma representação, como é o caso de Deus.

Contudo, é no “sentido mais preciso e mais restrito” que Malebranche recorre ao termo ideia, na maior parte das vezes. Nele, a ideia é considerada como aquilo que não somente representa o objeto percebido a nós, mas também que o representa de um modo tão claro, que podemos deduzir dela todas as modificações e propriedades que pertencem a esse objeto. Podemos, por exemplo, deduzir da ideia de um triângulo – tomada nesse sentido restrito – que, qualquer que seja sua configuração particular, a soma de seus ângulos internos é igual à soma de dois ângulos retos. A visão simples [simple vue] traduz para o francês a noção cartesiana de intuição [intuitum]. Ela é essa possibilidade de deduzir intuitivamente do objeto percebido suas propriedades, a partir de uma análise atenciosa. É essa espécie de intuição que não é cabível a Deus ou aos nossos sentimentos, todavia, apenas aos corpos extensos e aos números.

Mas esse não é o único equívoco presente no modo como Malebranche define a ideia. Se, por um lado, ela possui uma ambiguidade quanto à maneira como apreendemos o objeto que se encontra presente ou “mais próximo” ao espírito, há ainda uma ambiguidade subjacente à própria maneira como podemos conceber o objeto do pensamento. Em termos cartesianos, podemos concebê-lo, seja como a correspondência de uma realidade objetiva a uma realidade formal (uma representação na mente de um objeto existente), seja como uma realidade objetiva que nos representa uma essência sem uma referência necessária a uma realidade formal. Essa distinção é explicitada por Malebranche, na carta póstuma a Arnauld, de 1699:

Se por objeto do pensamento entende-se seu objeto imediato e direto que é o que os filósofos chamam de ideia, confesso que não há pensamento que não possua seu objeto. Mas, se por objeto do pensamento entende-se o objeto exterior que a ideia representa, há mil e mil pensamentos que não possuem objeto. Quando pensamos em seres possíveis e que não existem atualmente, por exemplo em um sol plano, em uma terra cúbica, no círculo dos Geômetras, não é verdade que não pensamos em nada. (A Arnauld, 19 de março de 1699, OC VIII-IX, p. 910).

 

A ideia, em sua acepção mais própria, não é, por conseguinte, aquilo que representa ao entendimento o objeto do pensamento, entretanto, é ela mesma uma ideia-objeto. Em outras palavras, a ideia é propriamente aquilo que aparece ao espírito e que lhe representa uma essência, seja essa essência existente ou não.[5] O sentido estrito de ideia, liberto assim de suas ambiguidades e de seus equívocos, designa a representação de uma essência de um modo tão claro que podemos deduzir dela todas as propriedades do objeto em questão e, ao mesmo tempo, uma representação que é completamente independente da correspondência do objeto percebido com uma existência.

É nesse sentido que se deve compreender a possibilidade de uma confluência do cartesianismo e do agostinianismo (e, segundo veremos adiante, também do tomismo, em certo sentido) na concepção malebranchiana de ideia. A ideia clara deve, ao mesmo tempo, permitir que nós conheçamos intuitivamente as propriedades do objeto representado e ensejar que Deus também as tenha conhecido como arquétipo ou modelo das coisas criadas antes mesmo da criação. Podemos, com isso, desfazer a ambiguidade do termo e compreender adequadamente a relação da ideia com as coisas criadas, como precisa a Réponse à Regis:

Em relação às minhas ideias, creio que elas não me representam senão elas mesmas diretamente, que eu não vejo diretamente e imediatamente senão o que elas encerram, pois nada ver é não ver. Mas, se Deus criou algum ser que corresponde à minha ideia como a seu arquétipo, posso dizer que minha ideia representa esse ser, e que, vendo a ideia diretamente, vejo esse ser indiretamente. (RR, II, §22, OC XVII-1, p. 303).

 

2 A INVISIBILIDADE DOS CORPOS

Contudo, não é apenas o uso corrente, na filosofia, que causa dificuldades a respeito da equivocidade do termo. Os homens são naturalmente levados a crer pelos sentidos que as coisas que eles sentem existem atualmente e, amiúde, que elas existem tal como eles as veem. Esse erro se deve sobretudo à confusão entre a realidade das ideias e a realidade do mundo material. É essa confusão que faz com que, nos Entretiens, Aristo se choque com a afirmação de que o gabinete no qual ele e Teodoro conversam não é aquele que ele crê ver. Tudo aquilo que é percebido, seja uma casa, seja um círculo, um número, o ser, salienta Teodoro, é certamente uma realidade, ao menos enquanto pensamos neles. Todos esses objetos nos apresentam diferentes propriedades e porque, seguindo o axioma amplamente aceito pelos cartesianos, o nada não tem propriedades, tudo aquilo que percebemos atualmente possui alguma realidade.[6]

            O procedimento adotado por Malebranche, no primeiro Entretien, consiste assim precisamente em distinguir a realidade das ideias da existência dos corpos, estabelecendo, no âmbito do conhecimento, a precedência daquela sobre esta. A insistência de Teodoro em afirmar que o gabinete no qual ele e Aristo se encontram e onde se desenrola o diálogo não é tal como Aristo crê vê-lo tem como função chamar a atenção para essa dissociação entre a realidade do percebido e a realidade materialmente existente. Afirmar que o que percebemos é o objeto existente, e não a sua ideia, é confundir o objeto imediato da percepção com aquilo que ele representa. Quando Aristo, batendo os pés no chão e mostrando que ele lhe resiste, insiste que nossas percepções devem ter alguma realidade para além das representações, Teodoro lhe recorda que as sensações não se encontram nos corpos, mas somente na alma que as sente. Os erros dos sentidos, as alucinações, e os sonhos são provas suficientes de que não podemos atribuir nenhuma realidade exterior àquilo que sentimos sensivelmente. De fato, se Deus aniquilasse o mundo exterior, mas produzisse em nosso cérebro os mesmos traços que possuímos presentemente, contemplaríamos exatamente o mesmo mundo.[7]

            Por isso, Teodoro pode afirmar que o mundo no qual nosso corpo se desloca e o qual enxergamos, ao virar a cabeça de um lado para o outro, não é o mesmo que nosso espírito contempla. Este é um mundo puramente inteligível, constituído pelas ideias e não pelos seres materiais que elas representam. Valendo-se da distinção entre os sinônimos ver [voir] e enxergar [regarder][8], Malebranche diferencia uma percepção que é ciente de seu caráter meramente representativo de outra que acredita encontrar no mundo material um correlato direto das representações. O mundo que acreditamos ver, quando enxergamos [regardons], é aquele ao qual atribuímos uma existência para além das ideias, e ao qual atribuímos o poder ou a qualidade de causar em nós as sensações. Ele é, em suma, o mundo da Escolástica e do senso comum. O mundo que a atenção à natureza representativa das ideias nos revela é, por sua vez, um mundo puramente inteligível, distinto do mundo dos corpos, no qual se reconhece o caráter propriamente subjetivo das sensações. Ele é, como a doutrina da visão das ideias em Deus deixará claro, o mundo dos arquétipos inteligíveis contidos no Verbo, os quais são o modelo sobre o qual Deus forma o mundo material.

Vê-se, assim, como a noção de visão pode ser deslocada sem grandes dificuldades do campo conceitual do sensível para o campo conceitual das ideias. Se a visão designa aquilo que se apresenta mais imediatamente e de modo mais claro a nós, podemos dizer que só vemos propriamente as ideias e que só sentimos aquilo que se passa em nossa alma. O binômio voir-regarder explicita a radicalidade que a noção de representação assume no interior da doutrina da visão em Deus. Essa radicalidade, no limite, põe em xeque a correspondência entre a realidade objetiva e o corpo material, na medida em que este perde o estatuto de objeto da percepção.

Isso se explicita em uma carta datada somente de 14 de janeiro, sem menção ao ano e endereçada apenas a um “Reverendo Padre”, na qual Malebranche apresenta, talvez de modo mais explícito em toda a sua obra, uma reflexão sobre o caráter da representação. Nele, o oratoriano afirma, de maneira clara, que representar pode ser considerado propriamente uma apresentação, pois aquilo que é representado pela ideia é a própria realidade inteligível do objeto percebido:

Eu vos peço, meu Reverendo Padre, que medite um pouco sobre a noção que devemos unir à palavra representar, pois quanto a mim creio que, falando com exatidão e rigor, nada do que vemos imediatamente é representado [representé], mas somente apresentado [presenté], que não vemos senão aquilo que é, que a ideia contém o que vemos nela, que é precisamente aquilo que vemos que afeta a alma por sua eficácia, que assim as realidades inteligíveis são mais nobres do que aquelas que Deus forma sobre elas como modelos [...]. Mas não vemos as criaturas que são formadas sobre essas ideias, e nada pode representar essas ideias se não contém as perfeições que vemos nelas. (A ?, 14 de janeiro de ?, OC XVIII, p. 279-280).

 

Essa cisão entre a realidade do mundo material e a realidade das ideias, entre a existência das coisas e suas representações, não pode se operar sem que o acesso do entendimento ao mundo material se torne problemático. Se só temos como objeto imediato da percepção as ideias, ou se, em outras palavras, a visibilidade dos corpos criados não é uma propriedade deles, o mundo dos corpos se torna, nas palavras de Teodoro, “invisível em si mesmo” e, por conseguinte, dependente de uma revelação para ser conhecido, a qual se dá de duas maneiras: sobrenaturalmente, pelos livros sagrados, e naturalmente, por meio dos sentidos que Deus causa em nós, em virtude das leis da união da alma e do corpo.

Os sentidos, contudo, podem ser enganosos e dizem respeito mais propriamente ao modo como nosso corpo se relaciona com os objetos exteriores do que com os objetos em si mesmos. Eles não podem, portanto, nos fornecer nenhuma demonstração da existência dos corpos.[9] Também não se pode asseverar, à maneira de Espinosa, que o mundo material emana de Deus: “[...] o mundo corporal só existe pois Deus quis criá-lo.” (EMR I, §V, OC XII-XIII, p. 37). Ele não pode ser deduzido, mas somente revelado. É, por isso, somente pela autoridade das Escrituras que podemos possuir alguma garantia (não racional) da existência do mundo material.

Longe de ser uma dificuldade para o estabelecimento da ciência, o problema da existência dos corpos é, do ponto de vista do conhecimento, algo secundário: “Essa questão encerra dificuldades muito grandes, e talvez não seja tão necessário elucidá-la para aperfeiçoar nossos conhecimentos quanto poderíamos imaginar, nem mesmo para ter um conhecimento exato da Física, da Moral e de algumas outras ciências.” (RV VI, II, VI, OC II, p. 373). “Não é absolutamente necessário examinar se há efetivamente no exterior seres que correspondem a estas ideias, pois não raciocinamos sobre esses seres, mas sobre suas ideias.” (RV VI, II, VI, OC II, p. 377). As ideias bastam para um conhecimento adequado dos corpos e até mesmo para as ciências especulativas, tal como a moral.

Todavia, se, por um lado, essa conclusão aponta para um certo distanciamento da maneira como Descartes concebe nossa relação com o mundo material, por outro, isso se dá em vista de um estabelecimento de fundamentos metafísicos para uma ciência cujo princípio é cartesiano. É a evidência própria às ideias que garante que a ciência se estabeleça de um modo certo e ordenado. Assim, tal como para Descartes, Malebranche pode afirmar que “[...] podemos nos assegurar pertencer a uma coisa aquilo que concebemos claramente estar contido na ideia que a representa.” (RV IV, XI, §III, OC II, p. 99).

Se a correspondência dessas propriedades com o mundo material é desnecessária, é porque a ciência verdadeira, tal como concebe o oratoriano, deve necessariamente estar fundamentada em algo puramente inteligível. Do mesmo modo que o objeto da percepção são as ideias, e não aquilo que elas representam, também a ciência passará a ter como objeto as ideias, e serão elas que darão as regras segundo as quais a experiência deverá interpretar o mundo material que nos é confusamente revelado pelos sentidos.

Separada do mundo material, essa ciência deverá necessariamente ser fundada no exame das propriedades – tanto as atuais quanto as possíveis – das coisas representadas pelas ideias. Entretanto, dada a ausência de referência direta ao mundo criado, ela não poderá possuir como índice de verdade a conformidade ou a correspondência entre a representação e a coisa. É nesse sentido que a definição da ideia como objeto não somente se apresenta como um preâmbulo necessário à Visão das ideias em Deus, como também evidencia que o caráter epistêmico desta é dependente de uma precisão do estatuto representativo das ideias.

É localizando as ideias no Verbo que Malebranche poderá dar a elas um caráter de verdade, não só independente do mundo criado, mas, no limite, independente de qualquer outra exterioridade. Estando em Deus, o caráter de verdade intrínseco das ideias se deve, por um lado, porque vemos elas no Ser que as contém eminentemente e, por outro, porque temos o seu caráter de cientificidade garantido, na medida em que elas se constituem como o próprio arquétipo divino a partir do qual Deus criou o mundo dos corpos. Em suma, a ideia representativa é verdadeira, não porque ela é cópia, mas porque ela é um arquétipo divino.

 

3 A VISÃO EM DEUS DA IDEIA-ARQUÉTIPO

            Essa importância da representação para a tese da visão das ideias em Deus transparece desde sua primeira exposição, a saber, na segunda parte do livro III da Recherche. Nos capítulos II a VI dessa parte, Malebranche demonstra sua tese, a partir de um procedimento que se convencionou chamar de negativo ou por eliminação.[10] Nele, Malebranche elenca cinco maneiras possíveis de se conceber a origem das ideias:

Estamos seguros então de que é absolutamente necessário que as ideias que temos dos corpos e de todos os objetos que não percebemos por si mesmos [1] vêm desses mesmos corpos ou desses objetos; [2] ou bem que nossa alma tenha o poder de produzir essas ideias; [3] ou que Deus as tenha produzido ao criá-las, ou que eles as produza todas as vezes que pensamos em algum objeto; [4] ou que a alma possua em si mesma todas as perfeições que ela vê nesses corpos; [5] ou enfim que ela esteja unida a um ser inteiramente perfeito, e que encerra de modo geral todas as perfeições inteligíveis ou todas as ideias dos seres criados. (RV III, II, I, §II, OC I, p. 417).

           

Com base em um detido exame crítico das quatro primeiras teses, que não cabe detalhar aqui, Malebranche refuta uma a uma as quatro primeiras alternativas, até se debruçar sobre a tese segundo a qual vemos todas as coisas em Deus, a única correta. Contudo, é enganoso imaginar que é só por eliminação ou negativamente que a tese é aceita. O método aparentemente ingênuo de exclusão do qual se vale aqui só encontra o seu sentido, se considerarmos que seu objetivo não é somente afirmar que Deus é a origem das ideias e não os corpos ou a alma, mas afirmar que a natureza das ideias é tal que só é possível conceber que elas se encontram em Deus e que, consequentemente, nós as vemos nele.

Assim, no decorrer do seu exame, Malebranche não se limita a apontar como esta é a única tese dentre as cinco enumeradas que é aceitável e, mais do que isso, como ela é “mais que razoável” (RV III, II, VI, OC I, p. 447). Sua atenção se volta, sobretudo, para a adequação da visão em Deus ao caráter representativo das ideias. É ao localizar as ideias em Deus que se torna possível pensar como essas ideias representativas, as quais prescindem, estritamente falando, de uma relação com a existência da coisa representada, podem fundar uma ciência.

Somente em Deus as ideias podem ser compreendidas como seres espirituais, sem qualquer relação, seja com a matéria, seja com a existência em geral, e como distintas das modificações do espírito. Do mesmo modo, somente Deus pode conter em si o caráter infinito das ideias, assim como possuí-las todas simultaneamente, de modo que nós possamos acessá-las a todos os momentos. Todavia, Deus não somente pode contê-las, como é necessário que ele as contenha. “É absolutamente necessário que Deus tenha em si mesmo as ideias de todos os seres que ele criou, pois de outro modo ele não poderia tê-los produzido, e que assim ele vê todos esses seres ao considerar as perfeições que ele encerra às quais eles se relacionam.” (RV III, II, VI, OC I, p. 437).

            Malebranche defende inicialmente que a tese da visão das ideias em Deus é a mais conforme à economia e à simplicidade divina. Embora a simplicidade não tenha aqui o papel de princípio que ela assume, na fundamentação do ocasionalismo, a partir da segunda parte do Livro VI – e, em particular, no Éclaircissement XV –, ela é apresentada aqui para mostrar a superioridade explicativa da visão em Deus sobre as outras hipóteses.[11] Ademais, ela coloca todos os espíritos em uma dependência absoluta de Deus, pois eles não podem ver nada sem que Deus os faça ver. Essa dependência mostra como a visão em Deus se torna um dos principais elementos que permitem a Malebranche considerar o entendimento como algo completamente destituído de qualquer conteúdo representativo próprio.

            A visão das ideias em Deus garante também o requisito, levantado pelas análises críticas, de possuir atualmente e de forma permanente todas as ideias que podemos ter como objeto. Sendo infinito, Deus pode conter em seu intelecto todas as ideias dos seres criados e revelá-las a nós, a qualquer momento. Supera-se, assim, o problema de saber como um ser finito pode não só potencialmente conhecer, mas, principalmente, ter atualmente acesso a uma quantidade infinita de ideias. Essa é, frisa ele, “a mais forte de todas as razões” para demonstrar a necessidade da visão das ideias em Deus. Ao afirmar que vemos as ideias em Deus, não só afirmamos que as ideias possuem uma realidade enquanto pensamos nelas, mas ainda que elas a possuem, mesmo quando elas não são pensadas por nós. A Visão em Deus enseja, desse modo, que possamos dar razão à experiência que temos de possuir disponível a nosso entendimento todos os objetos que desejamos pensar:

É constante, e todo mundo sabe por experiência, que quando queremos pensar em algo em particular, lançamos inicialmente o olhar sobre todos os seres, e nos aplicamos em seguida à consideração do objeto no qual queremos pensar. Ora, é indubitável que não poderíamos desejar ver um objeto particular se já não o víssemos, embora confusamente e em geral, de modo que podendo desejar ver todos os seres, ora um, ora outro, é certo que todos os seres estão presentes em nosso espírito, e me parece que todos os seres não podem estar em nosso espírito senão porque Deus está presente a ele, isto é, aquele que encerra todas as coisas na simplicidade de seu ser. (RV III, II, VI, OC I, p. 440-441).

 

            Por conseguinte, aqueles que defendem as ideias inatas não estão errados, ao supor que as ideias devem estar de alguma maneira presentes a nós, para que pensemos nelas. De fato, é necessário, e comprovado pela experiência, que, para pensar em um objeto particular, precisamos já pensar nele de alguma forma, mesmo que confusamente. Só assim podemos distingui-lo da infinidade de outros seres. Mas não é necessário, para tanto, que tenhamos essas ideias em nós ou, então que as produzamos a partir de nossas próprias perfeições, mas sim que nossa alma esteja intimamente unida à mente divina, e que, por meio dela, Deus possa nos fazer ver as ideias em função das quais ele criou o mundo material. É por isso que Alquié (1974, p. 195) pode assegurar que, ao menos em sua formulação inicial, a visão em Deus pode ser compreendida como uma espécie de inatismo transposto e exteriorizado, e que é, pois, a partir de Descartes que a doutrina malebranchiana das ideias é pensada.

Torna-se claro, por conseguinte, como a inspiração agostiniana intervém aqui como um elemento para solucionar uma problemática cujo formato é dado pela filosofia de Descartes. Se toda a ideia é inata, ou seja, se ela deve ser compreendida como um modo do eu pensante, como é que ela pode ter por objeto uma realidade exterior? A filosofia de Agostinho fornece um elemento de resposta: é em Deus, e não em nós, que se encontram todas as verdades e, nele, as ideias são eternas, imutáveis e necessárias, sendo pela união íntima entre nosso espírito e Ele que as conhecemos.[12] Entretanto, ao menos na Recherche, é através do campo conceitual cartesiano que o problema da natureza das ideias é colocado.

            Do mesmo modo, Malebranche afirma ser necessário que vejamos as ideias em Deus, para que seja possível representar a nós mesmos as ideias gerais de gênero, de espécie etc., e especialmente a ideia de infinito, pois essas ideias gerais não podem ser abstraídas das ideias particulares. Novamente, é a Descartes que o oratoriano recorre implicitamente, ao sustentar que a prova da existência de Deus, “[...] a mais bela, a mais elevada, a mais sólida, e a primeira ou que supõe menos coisas é a ideia que temos do infinito” (RV III, II, VI, OC I, p.441), já que é necessário que o espírito perceba o infinito, mesmo que ele não o compreenda, porque todas as ideias pressupõem, de algum modo, a ideia do infinito:

Não somente o espírito possui a ideia do infinito, ele tem mesmo antes da ideia do finito. Pois concebemos o ser infinito simplesmente porque concebemos o ser, sem pensar se ele é finito ou infinito. Mas para que concebamos um ser finito, é preciso necessariamente suprimir algo dessa noção geral do ser, a qual consequentemente deve precedê-lo. Assim, o espírito só percebe algo na ideia que ele possui do infinito. (RV III, II, VI, OC I, p. 441).

 

            A influência cartesiana dessa concepção da anterioridade do infinito sobre o infinito é patente.[13] Assim como para Descartes, jamais passamos do finito para o infinito. A determinação da ideia particular se dá negativamente, pela supressão daquilo que há de geral no infinito. Isso quer dizer, portanto, que não se deve considerar que vemos as ideias particulares, porque elas estão contidas em uma quantidade numericamente infinita na mente divina, mas que, estando unidos a Deus, vemos em sua mente o infinito, e nele se determinam as ideias particulares. Como determinações da mente infinita de Deus, as ideias dos seres particulares não aparecem como algo distinto desse infinito, mas como uma participação imperfeita dele. Assim, continua Malebranche, na sequência do trecho citado:

Não é necessário que essa ideia seja formada pela reunião confusa de todas as ideias dos seres particulares, como pensam os Filósofos, mas ao contrário todas as ideias dos seres particulares não são senão participações da ideia geral de infinito, do mesmo modo que Deus não deve seu ser às criaturas, mas todas as criaturas não são senão participações imperfeitas do ser divino. (RV VI, II, VI, OC I, p. 441-442, grifo nosso).

 

É essa noção da ideia dos seres particulares em Deus como participação imperfeita de sua essência[14] que permite a Malebranche compreender a ideia vista em Deus ao mesmo tempo como representativa da essência dos seres representados e os arquétipos, a partir dos quais o mundo material é criado. As ideias são, ao mesmo tempo, as perfeições inteligíveis da mente divina pelas quais os corpos são representados e os arquétipos eternos com os quais Deus cria o mundo material. Essa dupla função das ideias em Deus garante que elas, enquanto nos representam os corpos, não os representem enquanto seres criados, porém, enquanto essências, as quais, por sua vez, são participadas pelo mundo material.

É também por isso que, ao mesmo tempo que afirma que a visão das ideias em Deus é perfeita em si mesma, Malebranche sustenta que, pelas ideias, nós conhecemos somente os corpos. Isso é explicitado pela distinção entre os quatro modos de ver as coisas, feito no mesmo Livro III da Recherche. Nele, o oratoriano distingue entre 1) o modo pelo qual conhecemos Deus por si mesmo, sem o intermédio das ideias, 2) o conhecimento por ideias, ou seja, por algo distinto do que é percebido, que é, como vimos, o caso da visão dos corpos, 3) o conhecimento por consciência ou por sentimento interior, que é como vemos nossa própria alma, e 4) o conhecimento por conjectura, que é restrito ao conhecimento que temos dos outros espíritos.[15]

Para o que nos ocupa, presentemente, é importante ressaltar que o conhecimento dos corpos, diferentemente do conhecimento da alma ou de Deus, exige a mediação de algo que difere deles próprios. Isso gera uma diferenciação de natureza entre a percepção que temos das modificações da nossa própria alma ou, então, da percepção sem mediações do infinito e a representação dos corpos, o que faz com que Malebranche reserve o sentido estrito de ideia apenas à última. Ademais, vendo os corpos em Deus, nós os percebemos de uma maneira perfeita, tal como Deus os vê, isto é, podemos conceber, dessa maneira, todas as propriedades das quais a extensão é capaz. A ideia da extensão vista em Deus é, em outras palavras, necessariamente distinta, e, se não somos capazes de deduzir dela todas as suas propriedades, isso se deve não à imperfeição da ideia, todavia, à limitação de nosso espírito finito:

Como as ideias das coisas que estão em Deus encerram todas as propriedades delas, aquele que vê Nele as ideias pode ver sucessivamente todas as propriedades que elas possuem, pois quando vemos as coisas como elas são em Deus, as vemos de uma maneira muito perfeita, e ela seria infinitamente perfeita se o espírito que as visse Nele fosse infinito. O que falta ao conhecimento que temos da extensão, das figuras e dos movimentos não é um defeito da ideia que os representa, mas de nosso espírito que os considera. (RV III, II, VII, §III, OC I, p. 450).

 

Malebranche inverte, com isso, a concepção cartesiana de ideia segundo a qual, por mais que a existência do objeto representado não seja absolutamente necessária para emitir um juízo verdadeiro sobre ele, não deixava de conceber a ideia como um quadro ou uma cópia da coisa representada.[16] A ideia-arquétipo malebranchiana possui seu valor objetivo, não pela relação com a existência, mas por sua natureza propriamente divina, da qual, por sua vez, os corpos existentes são propriamente participações destas ou, no limite, cópias. No entanto, ao mesmo tempo que se afasta de Descartes, a doutrina da visão em Deus funda em bases metafísicas uma matemática e uma física propriamente cartesianas. Tendo em vista que as ideias dos corpos representam a nós a sua essência, ou seja, os representam como substâncias extensas, constituídas por comprimento, largura e profundidade, a ciência dos corpos se torna fundamentalmente geométrica. Tal como no exemplo cartesiano do pedaço de cera que aproximamos do fogo,[17] o conhecimento dos corpos enquanto substâncias extensas – portanto, enquanto considerados separadamente das qualidades sensíveis que os acompanham – deve ser um conhecimento puramente intelectual. A passagem de uma física baseada unicamente na essência dos corpos para uma física dos corpos existentes exigirá a intervenção da experiência, a qual, atuando em conjunto com o conhecimento puramente metafísico constituído pelas ideias, nos permite vislumbrar, além da mente, também a ação da vontade divina, embora de modo confuso e imperfeito. Mas é pelas ideias que ela poderá se constituir, rigorosamente falando, como uma ciência.

O lugar que as ideias devem necessariamente ocupar coincide, assim, com o próprio Deus ou, mais precisamente, com sua mente ou Verbo divinos. Malebranche estabelece, com isso, uma perfeita homogeneidade entre a inteligência humana e a inteligência divina. Se não somos capazes de conhecer a totalidade da verdade, tal como ela se encontra em Deus, é porque, por um lado, nosso espírito finito é incapaz de compreender em uma só visada o infinito do intelecto divino. Por mais que possamos conceber o infinito e que estejamos sempre necessariamente unidos a ele, devido à nossa união necessária a Deus, não podemos compreendê-lo em sua totalidade e muito menos exauri-lo.

Por outro, Malebranche ressalta que vemos em Deus as suas ideias, porém, não sua vontade, de sorte que essa homogeneidade não transborda para o campo das existências – na medida em que ele é dependente do poder criador de Deus – e se restringe, assim, ao campo das essências.[18] A doutrina da visão das ideias em Deus pode se erigir, dessa maneira, como uma teoria da origem e da natureza das ideias, que, ao mesmo tempo que possibilita uma compreensão metafísica da representação e do conhecimento, exclui qualquer pretensão de fundar, a partir dela, uma ontologia dos corpos.

Ao fazer com que as ideias a partir das quais percebemos os corpos sejam também os seus arquétipos, Malebranche funda a veracidade e a universalidade da representação no caráter necessário e universal da mente divina. Com isso, o conhecimento dos corpos por ideia se torna não só simplesmente claro e distinto, mas também necessário, imutável e universal. Com a visão em Deus, o caráter de necessidade e de veracidade das ideias é dado de antemão, sem que, para tanto, seja necessário refazer o itinerário cartesiano pela dúvida. Na medida em que as ideias são perfeições da mente divina, o modo como os corpos são representados a nosso espírito deve ser tal como Deus os representa a si mesmo, ao criá-los. Isso fornece ao nosso conhecimento dos corpos um caráter de verdade, cuja garantia é intrínseca à natureza da ideia.

Assim, Malebranche pode fundar a representação como o modo privilegiado de acesso do entendimento à verdade. Todo conhecimento concernente às essências é necessariamente representativo e, na medida em que a ideia que o representa se encontra em Deus, a representação é sempre, em si mesma, verdadeira. Ao afirmar que as ideias pelas quais representamos os corpos nos revela a mesma essência que Deus representa a si mesmo, enquanto arquétipos do mundo criado, elas ganham uma dignidade ontológica que as emancipa da necessidade do vínculo à existência.

A ideia-arquétipo garante que o objeto do pensamento representa, de maneira clara e distinta, a essência dos corpos criados, enquanto a existência desses mesmos corpos é opaca à representação. Malebranche pode afirmar, assim, uma ciência que prescinde de qualquer correspondência direta ao mundo criado, isto é, uma ciência puramente representativa.

 

The vision in God and the primacy of representation in Malebranche

 

Abstract: This paper aims to examine the notion of representation that emerges from development of Malebranche’s thesis of the vision of ideas in God. To do so, we turn to the progressive clarification made by the author to the term idea, seeking to highlight the radically representative character of the concept. We then analyze how this representative idea, in the philosophy of the Oratorian, does not require some correspondence with existence. Finally, we show how this primacy of representation is articulated with the thesis of vision in God. Thus, it becomes possible to conceive how these representative ideas can give the foundation to a true science.

 

Keywords: Nicolas Malebranche. Idea. Knowledge. Representation. Vision in God.

 

REFERÊNCIAS

ALQUIÉ, F. Le cartésianisme de Malebranche. Paris: Vrin, 1974.

AQUINO, T. Summa Teológica. São Paulo: Loyola, 2001.

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CARDOSO, A. A representatividade do pensar na controvérsia entre Malebranche e Arnauld. In: CARDOSO, A. Labirinto do eu. Curitiba: Kotter, 2019.

DESCARTES, R. Oeuvres de Descartes. 12 v. Paris: Cerf, 1897-1913 [reed. Paris: Vrin, 1996].

DESCARTES, R. Meditações sobre Filosofia Primeira. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.

GUEROULT, M. Malebranche (3 v.). Paris: Aubier, 1955-1959.

JOLLEY, N. Light of the soul: theories of ideas in Leibniz, Malebranche and Descartes, Oxford: Oxford University Press, 1990.

MALEBRANCHE, N. Oeuvres Complètes. 23 v. Paris: Vrin, 1958-1990.

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PRICLADNITZKY, P. F. O argumento da “alma caminhante”: Malebranche e o caráter indispensável das ideias na percepção. Kínesis: Revista de Estudos dos Pós-Graduandos em Filosofia. v. 8, n. 18, 2016.

ROBINET, A. Système et existence dans l’ouvre de Malebranche. Paris: Vrin, 1965.

RODIS-LEWIS, G. Malebranche. Paris: P.U.F., 1963.

YOLTON, J. Perceptual Acquaintance: From Descartes to Reid. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984.

 

Recebido: 29/06/2022

Aprovado: 22/08/2022



[1] Trabalho realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (processo nº 165892/2020-0). Ele retoma parte de minha tese de Doutorado, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP (processo nº 2015/03661-3).

[2] Professor na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pós-doutorando na Universidade de São Paulo (USP). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6844-3663. E-mail: szkontic@gmail.com.

[3] Seguimos, para as obras de Malebranche, as seguintes abreviações: EMR: Entretiens sur la métaphysique et la réligion. RR: Réponse à Régis. RV: De la Recherche de la verité. RVFI: Réponse au livre des vraies et des fausses idées. Todas as citações são seguidas pela paginação da edição de referência: OC: ROBINET, A. (ed.). Oeuvres de Malebranche, 20 v. Paris: Vrin, seguido de volume e página.

[4] Respondendo a Arnauld, que havia visto no argumento da “alma caminhante” um princípio da Visão em Deus, Malebranche afirma: “O que pretendi, quando disse que a alma não ia caminhar no Céu para nele contemplar os astros? Pretendi que era preciso uma ideia para vê-los, e fazer uma reflexão sobre uma verdade da qual aqueles que eu quero combater estão de acordo, mas sobre a qual não fazem frequentemente muita reflexão. Pretendi somente que fosse preciso algo de diferente do Sol para representá-lo a alma.” (RVFI, XII, §VII, OC VI-VII, 95-96). Sobre esse argumento, cf. Pricladnitzky (2016).

[5] Na fórmula precisa de Bardout (1999, p. 104): “Para aparecer ao espírito se objetificando a ele, todo objeto deve se deixar constituir e indicar pela ideia, que se torna por meio disso o único objeto em sentido próprio, imediato e originário do espírito. Somente a ideia pode aparecer e realizar nela o papel da objetificação diante e para o espírito cognoscente.” Cf. também Cardoso (2019, p. 119).

[6] EMR I, §IV, OC XII-XIII, p. 35-36.

[7] EMR I, §V, OC XII-XIII, p. 38.

[8] Por exemplo: “Pode acontecer de que nós vejamos [voyons] esse primeiro sol que está unido intimamente à nossa alma sem que o outro esteja no horizonte, e mesmo sem que ele exista de todo. Do mesmo modo podemos ver [voir] esse primeiro sol maior quando o outro se ergue do que quando ele está muito elevado sobre o horizonte, e embora seja verdade que esse primeiro sol que nós vemos [voyons] imediatamente seja maior quando o outro se ergue, não se segue que este outro que enxergamos [regardons], ou em direção do qual viramos os olhos, seja maior. Pois não é propriamente aquele que se ergue que nós vemos [voyons], ele não é aquele que nós enxergamos [regardons], pois ele dista por muitas milhões de milhas, mas é esse primeiro que é verdadeiramente maior e tal como o vemos.” (RV I, XIV, §II, OC I, p. 159). A respeito desse binômio, cf. Yolton (1984, p. 50).

[9] Malebranche opera uma distinção entre o que ele considera ser uma demonstração da existência dos corpos, a qual pressupõe uma certeza de tipo geométrico e que é, rigorosamente, impossível, e uma prova, que busca um máximo possível de certeza a respeito de sua existência. Embora os sentidos não possam fornecer nenhuma demonstração, eles possuem um papel fundamental na prova da existência dos corpos.

[10] É o caso de Guéroult (1955, p.101 sq); Robinet (1965, p. 218-225); Nadler (1992, p.108), entre outros.

[11] “O que marca sua sabedoria e seu poder não é fazer pequenas coisas por grandes meios. Isso é contra a razão, e indica uma inteligência limitada. Mas, ao contrário, é fazer grandes coisas por meios muito simples e muito fáceis. [...] Pois então, como Deus pode tornar visível aos espíritos todas as coisas ao simplesmente querer que eles vejam o que está ao redor deles mesmos, isto é, o que há nele que se relaciona com essas coisas e que as representa, não parece que ele faça de outro modo.” (RV III, II, VI, OC I, p. 438).

[12] RV III, II, VI, OC I, p. 444.

[13] Ele parafraseia uma passagem da carta de Descartes a Clerselier, de 23 de abril de 1649: “A noção que tenho do infinito está em mim antes daquela do finito, pois do simples fato de que concebo o ser ou aquilo que é sem pensar se ele é finito ou finito, é o ser infinito que concebo. Mas, a fim que eu possa conceber um ser finito, é preciso que eu suprima algo dessa noção geral do ser, a qual consequentemente deve precedê-la.” (DESCARTES, 1996, AT V, p. 356). Cf. também Descartes (2004, p. 41).

[14] Apesar da sua postura radicalmente antiescolástica, é com base em Tomás de Aquino que Malebranche concebe a ideia como participação da ideia geral do infinito. Na questão 15 da Summa Teológica, Tomás de Aquino (2009, p. 354, ST I, q.15, art. 2) escreve: “Ele [Deus] conhece perfeitamente sua essência. Conhece-a, portanto, de todas as maneiras em que é cognoscível. Ora, ela pode ser conhecida não apenas como é em si mesma, mas também enquanto pode ser participada, segundo algum modo de semelhança, pelas criaturas. Cada criatura, porém, tem sua representação própria, segundo a qual de algum modo participa da semelhança da essência divina. Assim, quando Deus conhece sua própria essência como imitável de maneira determinada por tal criatura, Ele a conhece como sendo a razão própria e a ideia dessa criatura, como também das outras. E assim fica evidente que Deus conhece muitas razões próprias de muitas coisas, o que são muitas ideias.” Malebranche cita essa passagem, no prefácio que ele acrescenta aos Entretiens, em 1696.

[15] RV III, II, VII, §I, OC I, p. 448-449.

[16] Cf. Gueroult (1955, v. 1, p. 120-121).

[17] A percepção distinta da cera, que muda de cor, de sabor, de odor, de dureza etc., não pode, segundo Descartes, estar fundada nas qualidades sensíveis, pois permanecemos conhecendo a cera mesmo que elas mudem, nem à imaginação, pois é impossível percorrer com a imaginação a infinidade de figuras possíveis que a cera pode assumir. Assim, escreve: “O que se deve notar é que sua percepção [da cera], ou a ação pela qual ela é percebida, não é um ato de ver, de tocar, de imaginar, e nunca o foi, embora antes o parecesse, mas é uma inspeção da mente, que pode ser imperfeita e confusa, como antes era, ou clara e distinta, como agora, segundo presto menos ou mais atenção às coisas de que se compõe.” (DESCARTES, 2004, p. 31). Sobre a proximidade do exemplo cartesiano do pedaço de cera e o conhecimento dos corpos por ideia em Malebranche, cf. Jolley (1990, p. 88-92).

[18] Nas Métitations chrétiennes et métaphysiques, o Verbo divino, quando questionado sobre a vontade de Deus, responde ao meditativo: “Queres saber por que uma coisa existe devido ao simples fato de que Deus o quer. Me pedes uma ideia clara e distinta desta eficácia infinita, que dá e conserva o ser a todas as coisas. Não tenho presentemente resposta a dar-te que seja capaz de te contentar. Tua pergunta é indiscreta. Me consultas sobre o poder de Deus; consulte-me sobre sua Sabedoria, se queres que eu te satisfaça.” (MC IX, §II, OC X, 96).