Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do sul global

 

Cristiano Cordeiro Cruz[1]

 

Resumo: Andrew Feenberg é um importante autor da filosofia da tecnologia, cujas ideias são particularmente relevantes para identificar a dimensão política da tecnologia, seja no seu papel de conformar a sociedade, seja em ser conformada por esta. A falha do estágio atual da sua reflexão está em não se voltar, de forma mais rigorosa, para o âmbito interno das disciplinas técnicas, usualmente interrompendo sua análise na fronteira entre o mundo da vida (no qual ocorrem as mobilizações democratizantes e de onde emergem suas pautas ou demandas) e tais disciplinas. Para identificar e superar essa falha, são articulados alguns elementos da reflexão de Boaventura de Sousa Santos e de Yuk Hui. Também são trazidos exemplos de intervenções técnicas decoloniais (ou emancipadoras), os quais ilustram: como aquilo teorizado por Santos e Hui já acontece em práticas técnicas desenvolvidas no Sul global; e os impactos disso nas equipes técnicas que as praticam (e, a partir disso, potencialmente também nas disciplinas a que seus membros estão vinculados).

 

Palavras-chave: Construtivismo crítico. Andrew Feenberg. Boaventura de Sousa Santos. Yuk Hui. Projetos técnicos decoloniais.

 

Introdução

Andrew Feenberg é inegavelmente um dos principais autores da filosofia da tecnologia. Premiado em 2019, por suas contribuições nesse campo, pela principal sociedade da área (a Society for Philosophy and Technology), ele possui cinco obras/coletâneas de textos traduzidas para o português[2] e, no Brasil, tem recebido atenção não apenas de filósofas/os e pesquisadoras/es da área dos Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia, como também de estudiosas/os e praticantes das disciplinas técnicas.

Malgrado sua importância para a área e a incorporação de suas ideias em teorias e práticas críticas ou (com pretensões) emancipadoras provindas do Sul global, a filosofia de Feenberg precisa ser criticada e alargada, de modo a subsidiar melhor a reflexão sobre, e a construção de outros mundos (ou ordens sociotécnicas) possíveis.

Neste artigo, será problematizado o funcionamento interno das disciplinas técnicas e, particularmente, as epistemologias (i.e., conhecimentos e modos de conhecer) nas quais elas se baseiam. Esses são aspectos que Feenberg reconhece como passíveis de serem analisados e criticados, mas que ele próprio não o faz. Com isso, sua reflexão perde em precisão e potência.

No que se segue, a primeira seção apresenta os elementos centrais do construtivismo crítico de Feenberg. A seção seguinte traz elementos da reflexão de Boaventura de Sousa Santos e Yuk Hui, os quais explicitam limites das ideias de Feenberg, bem como caminhos para superá-los. Na sequência, três práticas técnicas decoloniais (ou emancipadoras) são brevemente expostas, oferecendo-se como exemplos tanto daquilo que, a partir de Santos e Hui, se mostrou como teoricamente defensável quanto dos impactos disso nos conhecimentos, modos de conhecer e práticas das respectivas equipes técnicas responsáveis. Por fim, nas considerações finais, os principais pontos trabalhados no artigo são brevemente recuperados e sistematizados.

 

1 Fundamentos do construtivismo crítico

A filosofia da tecnologia de Feenberg tem, na compreensão dele próprio, quatro bases teóricas principais: a teoria crítica da Escola de Frankfurt; os estudos sociais de ciência e tecnologia (ESCT); a fenomenologia (Husserl e Heidegger); e a teoria marxista do trabalho (FEENBERG, 2021a). Em seus escritos, ele a chama com pelo menos três nomes diferentes – “teoria crítica da tecnologia”, “construtivismo crítico”, “minha filosofia da tecnologia” –, a depender da audiência a que está se dirigindo. Tendo percebido, porém, o desinteresse de teóricas/os críticas/os ligadas/os à Escola de Frankfurt em discutir sobre tecnologia e, ao mesmo tempo, uma interessada e altamente profícua interlocução com estudiosas/os vinculadas/os aos ESCT, assumiu “construtivismo crítico” como denominação mais adequada da filosofia da tecnologia que desenvolve (FEENBERG, 2022a).

Ao se voltar aos estudos de caso dos ESCT, Feenberg consegue fundamentar filosoficamente o entendimento de que toda solução técnica – material (como uma máquina) ou imaterial (como um procedimento, um algoritmo ou uma metodologia) – nunca é puramente instrumental, ou seja, apenas eficiente, eficaz, robusta, barata etc. na realização ou no suporte a alguma função (como a produção de energia, o transporte de pessoas em uma cidade ou a forma de se produzir alimento). Na verdade, as soluções sempre também incorporam elementos outros, como valores ético-políticos. São esses valores que possibilitam superar a subdeterminação, isto é, escolher, dentre as múltiplas soluções possíveis ou imagináveis (p.e., micro ou macrogeração de energia, combustível fóssil ou fontes renováveis de energia etc.), aquela que será buscada ou implementada (FEENBERG, 2019a, 2021a).

Essa seleção será definida pelos atores com mais poder nessa disputa/negociação, os quais lograrão emplacar o equacionamento que for mais adequado aos seus interesses, à sua visão de mundo (ou cosmovisão), a seus valores e ideais. Nesse mesmo processo, vão sendo estabelecidos os códigos técnicos, que são a gramática da tecnologia, indicando como os elementos técnicos podem (ou devem) ser combinados (ou projetados), além de critérios a serem observados (como segurança, privacidade etc.) e limites mínimos e/ou máximos para os aspectos mensuráveis/controláveis em que tais critérios serão traduzidos (FEENBERG, 2019a, 2021b, 2022a, 2022b).

Quando uma tal solução é implementada – e/ou um tal código técnico, seguido –, ela/e conforma, sustenta ou favorece um ordenamento social (ou, mais propriamente, socioambiental) alinhado com esses interesses, visão de mundo, valores e ideais, em detrimento de outros ordenamentos possíveis. É assim que a macrogeração de energia elétrica produz controle tecnocrático (hierarquizado) e concentração de poder e recursos nas mãos de alguns atores (i.e., empreiteiras, grandes concessionárias de energia e certos atores governamentais). Ou seja, as soluções técnicas – ou os códigos técnicos que as normatizam/padronizam – não são neutras/os. E como essas soluções são não apenas amoldadas pela sociedade (na superação da subdeterminação), mas aquelas também a amoldam (por sua não neutralidade), diz-se que sociedade e tecnologia se constroem mutuamente (coconstrução) e que essas soluções são, na verdade, sociotécnicas (FEENBERG, 2019a, 2021a, 2022a, 2022b).

A teoria crítica, por sua vez, permite a Feenberg superar aquilo que ele entende ser um problema do construtivismo, o qual seria a aplicação do princípio de simetria à relação entre programas (ou seja, os projetos dos atores dominantes, como as/os donas/os de uma fábrica, que buscam aumentar seu lucro) e antiprogramas (os projetos dos atores dominados, como as/os funcionárias/os dessa fábrica, que almejam melhores salários e condições mais seguras e saudáveis de trabalho). O problema aqui, para Feenberg, é duplo: 1) a simetria impede que se faça um juízo moral da situação ou disputa (p.e., entre industriais que querem baratear os custos de sua produção e trabalhadoras/es que querem estar menos expostas/os a acidentes); ao mesmo tempo que 2) ela não evidencia as estruturas de poder estabelecidas (materializadas também, como se viu, tanto nas tecnologias disponíveis quanto nos códigos técnicos vigentes), e que forçam ou favorecem (muitas vezes, de forma avassaladora) um dos lados, em detrimento do(s) outro(s) (FEENBERG, 2019b, cap. 2; 2021c; 2022a; 2022b, cap. 3, cap. 5).

É aqui que entram as mobilizações sociais, como o movimento ambiental. São apenas essas forças que podem fazer frente às estruturas de poder estabelecidas, obrigando-as a ceder algum espaço (ou, idealmente, a capitularem) – algo que será traduzido na modificação/reformulação dos códigos técnicos e na subsequente modificação das tecnologias subordinadas a eles. As diversas regulamentações ambientais que impõem limites à quantidade, ao tipo e ao tratamento dispensado à poluição gerada pela indústria e pelos artefatos por ela fabricados emergem dessas lutas, nas vitórias alcançadas por esses coletivos de manifestantes (FEENBERG, 2021c; 2022a; 2022b, cap. 4).

Para Feenberg, por um lado, lutas como essas identificam potencialidades não suportadas pela(s) tecnologia(s) disponível(is) (como, no caso, a de se desfrutar de uma natureza não contaminada ou moribunda) ou efeitos colaterais não antecipados e/ou identificados até então (como a presença de quantidades tóxicas de chumbo na água que se bebe). Por outro lado, e de forma complementar, quando essas lutas logram ser vitoriosas, elas obrigam as disciplinas técnicas a terem uma visão mais alargada da realidade, a fim de conseguir produzir as novas soluções esperadas. E isso costuma acontecer a partir da introdução de novas disciplinas/especialidades ao projeto técnico (como a incorporação de disciplinas/ especialidades ambientais ao projeto de automóveis) (FEENBERG, 2021d; 2022b, cap. 4).

Tributário da fenomenologia nesse ponto, Feenberg entende que a experiência que fazemos da realidade/natureza em nossa vivência cotidiana no mundo da vida é diferente do modo como as ciências da natureza enxergam essa mesma realidade. No primeiro caso, o mundo é experimentado em uma perspectiva teleológica e de potencialidades materializadas em coisas como o “crescimento humano”, o “florescimento da natureza” etc. No segundo, por outro lado, o mundo é reduzido à matéria e movimento, e a aspectos mensuráveis/quantificáveis. O problema da modernidade está em universalizar essa ontologia mecanicista das ciências da natureza – e, de maneira particular, daquela ciência tomada como paradigmática, a física –, assumindo a realidade nela mesma como matéria, movimento, mensuração, cálculo e recursos à disposição (esse seria o Gestell, o enquadramento, de Heidegger) (FEENBERG, 2019a, 2021d).

Nesse sentido, esses movimentos de luta pela transformação da tecnologia estariam fincados na experiência do mundo da vida feita pelos coletivos que lutam neles. Tais movimentos operam, assim, na atualização de outros potenciais, outros valores, outros mundos. É isso que seria, por conseguinte, a democratização da tecnologia. E o exercício contra-hegemônico por excelência a ser buscando seria o de colocar esses dois mundos – o das experiências cotidianas de diferentes coletivos de pessoas e o das disciplinas e práticas técnico-científicas – em diálogo (FEENBERG, 2019a, 2021d, 2022a).

Seja como for, essas mobilizações ou intervenções democráticas assumem, segundo Feenberg, três configurações principais (FEENBERG, 1999, p. 121-129; 2022b, cap. 3): controvérsias (i.e., disputas que forçam o reprojeto da tecnologia e a modificação do seu código técnico, como no caso do banimento do trabalho infantil nas tecelagens inglesas e a imposição de regulamentação de segurança para as caldeiras nos Estados Unidos (FEENBERG, 2019a)); apropriação criativa (como a subversão do uso do Minitel, que passa a ser também um meio de comunicação com outras/os usuárias/os (FEENBERG, 1995, p. 144-166)); e diálogo participativo com as disciplinas técnicas (no qual as/os especialistas se associam a grupos ou comunidades para o encaminhamento das demandas destes, como na tradição dos projetos participativos (ROBERTSON; SIMONSEN, 2013) e da engenharia popular (FRAGA et al., 2020).

Todavia, embora reconheça a possibilidade/ocorrência histórica desses diálogos participativos, e mesmo que já tenha tomado parte em alguns deles (FEENBERG, 2022a), Feenberg oferece poucos elementos para se (re)pensarem as práticas/disciplinas técnicas (como as engenharias, a arquitetura e o design) a partir de dentro. Pode-se perceber, com isso, que o mais distante que se precisa ir com a democratização da tecnologia – e, assim, com a viabilização de outros mundos possíveis – é até a fronteira entre o mundo da vida e as disciplinas técnicas. Ou seja, até nos fazermos escutadas/os pelas/os técnicas/os, que, a partir desse ponto, encaminharão a demanda – com todos os requisitos ou exigências associadas a ela – de maneira autônoma, ainda que eventualmente alargada pela incorporação, ao seu fazer técnico, de outras disciplinas técnico-científicas.

Dito de outra forma, a racionalidade sociotécnica defendida por Feenberg – a qual se contrapõe ao entendimento de uma racionalidade tecnológica pura, que seria a racionalidade legítima a nortear o desenvolvimento tecnológico (argumento tecnocrático) ou aquela a que estaríamos inexoravelmente fadadas/os, uma vez chegadas/os à tecnologia moderna (como na crítica de Ellul (2008, cap. 1)) – é sensível a valores e cosmovisões, enquanto meio ou caminho para realizá-los, emulá-los ou apoiá-los sociotecnicamente. Contudo, os conhecimentos e modos de conhecer – ou epistemologia(s) – em que o construtivismo crítico se finca, com seus conhecimentos e modos de conhecer legítimos ou validados, seguem sendo o das ciências e disciplinas técnicas hegemônicas.

Manter – ou não problematizar – essa epistemologia é o oposto daquilo que atores do Sul global têm proposto (em termos teóricos) ou realizado (em termos de intervenções sociotécnicas concretas). E essa não problematização parece interditar muito do potencial emancipador – ou de construção de outros mundos possíveis – que a democratização defendida por Feenberg traz consigo. Desse modo, no restante deste artigo, e em diálogo com algumas dessas outras fontes, buscar-se-á avançar ou alargar o construtivismo crítico, de sorte a torná-lo mais coerente com as vivências e os acúmulos do Sul, e com anseios e horizontes decoloniais ou libertadores aqui gestados.

 

2 Aportes teóricos do Sul global

Para Boaventura de Sousa Santos, “[...] não existe justiça social global sem justiça cognitiva global.” (2016, p. 8). A manutenção do pensamento abissal, isto é, da universalização dos conhecimentos e modos de conhecer ocidentais modernos – com a centralidade da ciência –, juntamente com a desvalorização ou apagamento dos conhecimentos e modos de conhecer periféricos/subalternos – o epistemicídio! –, interditam a possibilidade de se conceberem – e de se lutar por – outros mundos possíveis (SANTOS, 2016). A epistemologia abissal (ou hegemônica) não é a manifestação da epistemologia mais pura, elevada ou verdadeira, mas o resultado de escolhas contingentes e de uma construção ativa. Nos termos da teoria decolonial (QUIJANO, 1999; MALDONADO-TORRES, 2009; ESTERMANN, 2014), essa epistemologia é produto e produtora do ordenamento hegemônico do poder no mundo e da subjetivação (ou identidade) dominante. Ela é parte de um aprisionamento triplo e que se constrói e reforça mutuamente: colonialidade do poder, colonialidade do saber e colonialidade do ser.

Conforme Santos (2016), a epistemologia (abissal) dominante naturaliza escolhas contingentes relativas ao conhecimento construído. Por um lado, essa não necessidade se revela em decisões de três tipos: sobre a escala com que se analisará o fenômeno e a perspectiva utilizada nessa análise; sobre a detecção do fenômeno (com os métodos necessários para tanto) e o reconhecimento dele (com as teorias que o tornam compreensível/reconhecível); sobre o tempo (velocidade) da pesquisa e o tempo de percepção do fenômeno estudado. Por outro lado, a epistemologia dominante privilegia a produção de conhecimento voltado ao controle (de pessoas e da natureza como um todo), em detrimento do conhecimento voltado à emancipação (SANTOS, 2016, cap. 5).

Essa epistemologia produz cegueira (ou epistemicídio). Superá-la pressupõe, de uma parte, recuperarem-se os conhecimentos e as/os agentes ausentes ou invisibilizadas/os. É nesse ponto que entra o que ele chama de sociologia das ausências, a qual confronta os cinco modos de produção do não existente do pensamento abissal (i.e., monocultura do conhecimento, do tempo linear, da naturalização das diferenças, da lógica da escala dominante e da lógica capitalista da produtividade), com cinco ecologias (i.e., dos conhecimentos, de temporalidades, do reconhecimento, da transescala e de produtividades). De outra parte, a superação da epistemologia da cegueira requer também uma sociologia das emergências, que faz frente à monocultura do tempo linear regido pela lógica do progresso infinito, apresentando o futuro em sua escassez (ou limitação de recursos do planeta), algo que precisa ser tratado com cuidado. Tal sociologia substitui o vazio desse futuro infinito por um futuro de várias possibilidades concretas, utópicas ou realistas. Ela é essa busca por alternativas (SANTOS, 2016, cap. 6).

O entendimento de fundo de Santos é duplo: em consonância com o pragmatismo, “[a] própria ação de conhecer [...] é uma intervenção no mundo, que nos coloca dentro dele como colaboradoras/es ativas/os de sua construção” (2016, p. 308); e, “[...] como nenhum tipo de conhecimento pode dar conta de todas as intervenções possíveis no mundo, todos os conhecimentos são incompletos de modos diferentes.” (2016, p. 315). É por isso que ele advoga por uma ecologia de conhecimentos, não por um conhecimento universal e absoluto, apenas diferente – mais completo? mais puro? – dos conhecimentos técnicos, científicos e filosóficos ocidentais (com sua pretensão à universalidade).

Ao lado dessa ecologia de conhecimentos, a justiça cognitiva requer também a tradução intercultural, isto é,

[a] busca de preocupações isomórficas e pressupostos subjacentes entre as culturas, identificando diferenças e semelhanças e desenvolvendo, sempre que apropriado, novas formas híbridas de compreensão e intercomunicação cultural que possam ser úteis para favorecer interações e fortalecer alianças entre movimentos sociais que lutam, em diferentes contextos culturais, contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado e pela justiça social, dignidade humana ou decência humana. (SANTOS, 2016, p. 334-335).

 

Trata-se de um processo vivo de interações complexas, que diz respeito a conhecimentos e práticas, assim como suas/seus respectivas/os agentes, o qual não é esgotado em abordagens logocêntricas ou centradas no discurso e se foca, seja em conceitos ou cosmovisões, seja em modos alternativos de se construírem práticas e agentes coletivas/os (SANTOS, 2016, cap. 8).

Nesse sentido, o projeto de Santos de se recuperarem/reconhecerem e avançarem as epistemologias do Sul (ou não hegemônicas), em seu foco triplo e inseparável em conhecimentos (e modos de conhecer), práticas e agentes, como condição de possibilidade para a concepção de, e a luta por outros mundos – e subjetivações – possíveis, articula-se muito bem com a perspectiva decolonial latino-americana, na tripla colonialidade que ela busca superar (de poder, conhecer e ser).

Como, porém, toda essa reflexão e esse projeto emancipador/decolonial podem ser aplicados ao desenvolvimento tecnológico e à reflexão sobre ele? Como o pensamento abissal ou a colonialidade conformam (ou podem conformar) a tecnologia e a filosofia da tecnologia (mesmo uma filosofia crítica, como a de Feenberg)? O que poderiam ser tecnologias pós-abissais (ou decoloniais)? Como elas poderiam ser construídas na prática? Que mudanças isso requereria ou implicaria, nas disciplinas técnicas?

Yuk Hui oferece um caminho para responder a essas questões, com base em seu conceito de cosmotécnica:

Tese: a tecnologia, como formulada por alguns antropólogos e filósofos, é um universo antropológico entendido como a exteriorização da memória e a superação da dependência dos órgãos. Antítese: a tecnologia não é antropologicamente universal; seu funcionamento é assegurado e limitado por cosmologias particulares que vão além da mera funcionalidade e da utilidade. Assim, não há uma tecnologia única, mas uma multiplicidade de cosmotécnicas. (HUI, 2020, p. 16).

 

Nessa perspectiva, a tecnologia moderna, a qual tem como cosmologia original a ocidental-moderna, é, na verdade, uma cosmotécnica específica, a cosmotécnica que Hui chama de capitalista (HUI, 2016, p. 299). É a universalização dessa cosmotécnica – alcançada por imposição e competição militar e econômica – que, para o autor, conduz ao enquadramento [Gestell] denunciado por Heidegger (HUI, 2016, p. 228, 305). Assim,

[p]odemos suspeitar que tem havido um engano e um desconhecimento quanto à tecnologia nos últimos séculos, já que ela tem sido vista como algo não essencial e de caráter meramente instrumental – mas, de modo mais significativo, como homogênea e universal. Esse universalismo favorece uma história tecnológica fundamentalmente europeia. (HUI, 2020, p. 9-10).

 

Mas a superação desse universalismo – e do enquadramento heideggeriano que ele engendra – é possível para Hui. Ela se processa pelo resgate de outras cosmotécnicas (HUI, 2017, p. 337; 2016, p. 229, 289, 310) ou, o que seria dizer o mesmo, pela tomada de consciência do inconsciente tecnológico de que criamos as tecnologias, mas também somos condicionadas/os por ela (HUI, 2016, p. 228). Tal resgate – que pode ser visto como exemplo de perspectiva pós-abissal, não universalizante, de Santos – consiste em um projeto tanto metafísico quanto epistêmico (HUI, 2016, p. 296). Quer dizer, além da recuperação da capacidade de imaginar outros mundos (ou cosmologias) possíveis, ele pressupõe também o resgate e o desenvolvimento das epistemologias e formas de vida[3] capazes de suportá-los, produzi-los ou emulá-los cosmotecnicamente:

A reapropriação da tecnologia moderna do ponto de vista da cosmotécnica pressupõe dois passos: primeiro, como tentado aqui, ela requer que reconfiguremos categorias metafísicas fundamentais, como Qi-Dao, como fundamento; segundo, que reconstruamos sobre esse fundamento uma episteme[4], que, por sua vez, condicionará a invenção, o desenvolvimento e a inovação técnicos, de modo que estes não sejam mais meras imitações ou repetições [da cosmotécnica capitalista e do enquadramento (Gestell) que a universalização dela produz]. (HUI, 2016, p. 307).

 

Hui chama esse resgate de investigação sobre a tecnodiversidade. Trata-se de uma rearticulação da questão sobre a tecnologia que, “[...] em vez de entendê-la como um universo antropológico, redescobr[e] uma multiplicidade de cosmotécnicas e reconstr[ói] suas histórias para projetarmos [...] as possibilidades que nelas estão adormecidas.” (HUI, 2020, p. 8).

A proposta de Hui, de todo modo, não é a de se retornar ao passado de uma suposta era de ouro de alguma cultura, ou de um mais elevado grau de pureza cultural. O desafio, ao contrário, é construir o futuro, partindo-se da apropriação criativa da cosmotécnica capitalista disponível (HUI, 2017, p. 332, 336-7; 2016, p. 305-6). Essa apropriação deve ser conformada ou fertilizada pela(s) cosmotécnicas(s) não capitalista(s) de onde se esteja partindo. Ou seja, o esforço ou desafio aqui é de se superar a modernidade, sem, com isso, recair-se em etnocentrismo ou em um retorno à natureza (HUI, 2017, p. 325-6; 2016, p. 240-241).

Nesse esforço tecnodiversificador, pós-abissal, libertador ou decolonial, a filosofia tem um papel muito importante, mas que é o oposto daquele que lhe é oferecido “[...] pela filosofia iluminista: fragmentar o mundo de acordo com o diferente, em vez de universalizá-lo através do mesmo; induzir o mesmo através do diferente, em vez de deduzir o diferente a partir do mesmo.” (HUI, 2020, p. 51).

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Como se vê, Santos e Hui trazem reflexões que podem ser vistas como complementares, no sentido de que Hui materializa, em sua investigação sobre a tecnodiversidade, aquilo que Santos propõe para as Humanidades em geral, mas que não desenvolve, no que concerne à tecnologia. Em conjunto, tais ideias desses autores: evidenciam a enorme relevância daquilo sobre o que o construtivismo crítico pouco fala – os conhecimentos e modos de conhecer (ou epistemologias) que fundamentam a invenção e o desenvolvimento tecnológicos –; e apresentam propostas de como trabalhar essa questão, em uma perspectiva pós-abissal, libertadora, decolonial ou tecnodiversificadora.

A fragilidade principal do construtivismo crítico, nessa linha, é ignorar (ou não explorar em toda profundidade necessária o fato de) que as lutas políticas pela democratização do desenvolvimento tecnológico só têm chance de nos libertar do ordenamento hegemônico (colonial, capitalista e machista, nos termos de Santos, ou do enquadramento capitalista colonial e globalizado, nos de Hui), se, ao lado de novas identidades (ou formas de vida) e arranjos de poder, der conta de produzir também novas epistemologias.

Feenberg reconhece o papel conformador ou produtor de identidades das lutas em torno de questões tecnológicas (FEENBERG, 2019b, p. 21, 78-79, cap. 7). Sua falha está em interromper a reflexão epistemológica no choque entre mundo da vida e disciplinas técnicas, e no entendimento de que esse choque pode ser adequadamente trabalhado: 1) pela mera tradução dessas demandas em novos valores e/ou requisitos incorporados aos códigos técnicos modificados/atualizados; e 2) na articulação de mais/outras disciplinas técnico-científicas, de modo a compreenderem e manipularem o real, segundo uma mirada interdisciplinar mais ampla.

Obviamente, as demandas emergentes a partir do mundo da vida podem, em alguns casos, equivaler a novas cosmotécnicas. Também é claro que, em alguns casos de democratização – i.e., aqueles nos quais se estabelece uma parceria entre técnicas/os e leigas/os mobilizadas/os –, essas novas cosmotécnicas demandadas podem dar ensejo ao desenvolvimento de novas epistemologias. Nesse sentido, por conseguinte, o construtivismo crítico não excluiria práticas pós-abissais, decoloniais ou tecnodiversificadoras. Contudo, ao não evidenciar que, para as democratizações mais radicais ou transformadoras, as disciplinas técnicas precisarão ser reconfiguradas e/ou desenvolverem novos tipos de conhecimento e modos de conhecer, Feenberg não evidencia um âmbito fundamental de disputa e pesquisa no domínio da democratização da tecnologia (e da construção de outros mundos possíveis): o das disciplinas técnicas, que engloba também a universidade como espaço de formação, pesquisa e extensão.

Nesse ponto, de todo modo, mesmo Hui não ajuda muito. De fato, embora ele reconheça a necessidade de se desenvolverem novas epistemologias e formas de vida, de sorte que possamos ser capazes de desenvolver nova tecnologia e nos apropriarmos da tecnologia disponível, segundo outras cosmotécnicas que não a capitalista, ele não explica como isso pode ser feito, na prática. E, mesmo que reconheça a necessidade do resgate de outras cosmotécnicas, ele parece confiar esse processo fundamentalmente a filósofas/os e outras/os pensadoras/es, os quais, alcançando tal “despertar espiritual”, o ensinariam/repassariam às/aos técnicas/os e cientistas (para produzirem as novas epistemologias necessárias) e ao povo (para viver segundo essas outras cosmologias) (HUI, 2016, p. 296, 307, 310).

Na próxima seção e a partir de três casos de projeto técnico decolonial, será mostrado como intervenções tecnodiversificadoras (ou com potencial tecnodiversificador) podem ser desenvolvidas, na prática, identificando-se tanto a maneira de se resgatarem/desenvolverem outras cosmotécnicas (em função do resgate/concepção de outros mundos possíveis) quanto caminhos para a construção das epistemologias de base para elas. E tudo isso a partir de uma abordagem que, diferentemente da de Hui (a qual talvez possa ser chamada de elitista), não parte de filósofas/os ou pensadoras/es e chega, de modo “descendente”, a técnicas/os, cientistas e o povo, mas que parte do povo e, de forma “ascendente”, cuidadosa e dialógica, fertiliza as disciplinas técnicas e lança as bases técnicas, políticas, epistemológicas e ontológicas (no sentido de outras formas de vida e cosmologias buscadas) para a construção de outros mundos (populares) possíveis.

 

3 Aportes de práticas de intervenção técnica do Sul global

Isso que se chama de projetos técnicos decoloniais refere-se a um subgrupo daquilo que tem sido denominado práticas técnicas engajadas. Elas são intervenções técnicas em alguma medida não convencionais, usualmente focadas em grupos vulnerabilizados e que almejam colaborar com o empoderamento do grupo e/ou com o desenvolvimento de soluções sustentáveis, em termos ambientais (ALVEAR et al., 2021; CRUZ et al., 2021; KLEBA, 2017).

Podem ser identificadas ao menos oito dimensões diferentes do empoderamento do grupo vulnerabilizado que são (ou podem ser) suportadas/promovidas por intervenções engajadas. Elas vão desde a promoção de inclusão sociotécnica (i.e., prover acesso a algum bem ou serviço considerado fundamental para a dignidade do grupo, como água potável, rede de esgoto e internet) e a valorização da diferença cultural (i.e., reconhecimento e apoio a modos de vida plurais – e conhecimentos que os suportam –, que implicam ou pressupõem a transformação do processo projetivo, de sorte a sociotecnicamente se promoverem esses modos de vida [construindo-se cosmotécnicas adequadas]), até a promoção da emancipação social, econômica e política do grupo (KLEBA; CRUZ, 2022).

Intervenções decoloniais sempre dão especial atenção à dimensão da valorização da diferença cultural. É por isso que elas lançam mão de diferentes práticas, as quais encorajam, facilitam e promovem uma ampla troca verbal e não verbal de saberes entre o grupo vulnerabilizado e a equipe técnica – o que é usualmente chamado de diálogo de saberes. Além disso, no geral, essas intervenções buscam trabalhar todas as demais sete dimensões do empoderamento, em um processo a um só tempo crítico (no sentido de questionador) e cuidadoso. Quanto a esse cuidado, ele é usualmente praticado segundo as três acepções identificadas por Bellacasa (2017): trabalho concreto de manutenção, proteção ou apoio (de indivíduos ou grupos), com implicações ético-políticas (e.g., compromisso com o bem viver de quem é cuidada/o e a luta por se assegurar isso) e afetivas (i.e., querer bem a quem se cuida) (CRUZ, 2021a, 2022).

No que se segue, três intervenções decoloniais serão brevemente apresentadas, tendo como foco principal suas características mais diretamente relacionadas (ou relacionáveis) à discussão em curso neste artigo.

Terceira Margem[5] (TM) é um ateliê de arquitetura carioca que desenvolve seus projetos segundo uma prática particular de projeto participativo, na qual os corpos e o inconsciente das/os habitantes que demandam o projeto têm um papel central (GUIZZO, 2019; 2021). Em sua atuação, o TM busca:

[...] descolonizar nossos próprios meios de desenhar, ao criarmos pontes autônomas com o território, a ponto de utopias incorporadas nos colocarem em movimento vital e nos fazerem vibrar, criar e cuidar do nosso próprio modo de habitar. Afinal, qual mundo queremos habitar? Essa é a questão central desse método e que é pensada enquanto dançamos em roda a fim de ativar o inconsciente e escapar de uma resposta que, em um primeiro momento, também se faz modelizada. Acredita-se que essa roda e outras práticas “encantadas” podem criar o que intitulamos de demanda real de projeto, valiosas pontes com o território e seus habitantes, antes dos primeiros desenhos. (GUIZZO, 2019, p. 26).

 

Para tanto, aplica-se uma metodologia “[...] compost[a] basicamente por quatro oficinas sensoriais inspiradas em diferentes saberes e cosmovisões [...]: Habitar Fogo, Habitar Água, Habitar Ar e Habitar Terra, tendo cada uma delas as mesmas três etapas - Magia, Cura e Carne.” (GUIZZO, 2021, p. 372-373). Essas oficinas são conduzidas no território em que a construção/reforma em projeto será realizada e têm a pretensão de incorporar ao processo projetivo também os demais entes humanos e não humanos que o compõem. Tal metodologia busca articular cosmovisões e filosofias ameríndias e africanas/afro-brasileiras à prática (participativa) da arquitetura (GUIZZO, 2019, p. 143-157; 2021, p. 366-371).

Com relação às três etapas de cada uma das oficinas, magia, a primeira delas, é a do movimento corporal, na qual, por meio de exercícios de dança, se busca uma conexão com a alegria, a música e a expansão do corpo. Cura, a segunda etapa, é como um tempo de meditação, no qual se procura possibilitar a emersão de memórias, desejos, intuições e afetos que podem estar enterrados no inconsciente das/os participantes. Ela é desenvolvida por intermédio de objetos, os quais são usados para estimular sensorialmente os corpos das/os participantes. Por fim, carne materializa ou sistematiza os efeitos da mágica e da cura em certas construções verbais, como mapas, textos e caixas de afetos (GUIZZO, 2021, p. 376-378).

Essa experiência completa é conduzida pela(s) arquiteta(s) responsável(is) pelo projeto, que orienta(m) as atividades e testemunha(m) os efeitos delas nas/os participantes, ressoando em si mesma(s) os afetos e desejos que emergiram, e tendo acesso às imagens, ideias e ideais que surgiram. É a partir desse ponto, pois, que ela(s) está(ão) pronta(s) para desenhar soluções para as demandas explicitadas nas oficinas sensoriais (GUIZZO, 2019, p. 174). Nesse sentido, no TM,

[...] as mulheres estão à frente, visam à descolonização do seu próprio modo de projetar (à descontaminação do seu meio) e não separam da prancheta de projeto os corpos e os afetos nem a capacidade de conviver, contagiar e cuidar, a qual um processo de projeto e sua construção permitem fomentar. (GUIZZO, 2019, p. 164).

 

A segunda intervenção é igualmente um tipo de projeto participativo, mas desenvolvido, no âmbito da engenharia elétrica/eletrônica/de computação, por uma equipe que contava com uma engenheira e dois engenheiros, além de duas etnógrafas. O exercício assumido por essa equipe colombiana era o de trabalhar com um grupo de mulheres da cidade de Cartagena, que faziam um bordado tradicional chamado calado. Essas mulheres eram chamadas, por isso, caladoras (RIVERA et al., 2016).

O processo de intervenção envolveu períodos de imersão junto às caladoras, nos quais a engenheira responsável pelo projeto e as duas etnógrafas residiam com as bordadeiras, partilhavam da vida delas, tomavam parte em seus trabalhos e aprendiam os rudimentos do calado. O que se buscava com isso era tanto desenvolver laços de afeto e cuidado com essas mulheres e conseguir compreender melhor a realidade, os sonhos e desejos delas, quanto estabelecer um diálogo de saberes com elas (PÉREZ-BUSTOS, 2017; PÉREZ-BUSTOS; MÁRQUEZ, 2016; RIVERA et al., 2016).

Como consequência dessa prática comprometida e não paternalista de cuidado, conseguiu-se chegar ao tipo de solução técnica que interessava a essas mulheres: uma interface tangível, a qual, com um tablet devidamente programado, permitia a elas não apenas registrar, armazenar e trocar entre si os diferentes padrões de calado que conheciam, mas também testar no tablet padrões novos. Isso era particularmente importante para elas, porque 1) o calado, sendo um bordado baseado no esgarçamento do tecido, não pode ser desfeito, de modo que, se o padrão novo tentado não ficar bom, se perde o tecido que estava sendo trabalhado; 2) a armazenagem desses padrões era feita em papel, o qual se desgastava em não muito tempo; 3) a troca de padrões de bordado entre essas mulheres é algo altamente valorizado por elas (RIVERA et al., 2016; PÉREZ-BUSTOS; MÁRQUEZ 2016).

Ao mesmo tempo, essa intervenção, construída nesses termos, possibilitou às caladoras e à engenheira responsável pelo projeto alargarem suas práticas profissionais. Nas palavras da engenheira,

[c]onfigurar o projeto de modo a dar responsabilidade para as usuárias foi importante para garantir que a tecnologia projetada teria impacto real e conduziria a novas formas de conceber as práticas tanto do bordar quanto do projetar tecnologia. (CORTÉS-RICO; PIEDRAHITA-SOLÓRZANO, 2015, p. 520).

 

No que concerne particularmente ao impacto desse diálogo de saberes no projeto desenvolvido pela engenheira, ela assim o descreve:

De fato, o hardware foi literalmente bordado com fio condutor e o software demandou uma rememoração contínua do ofício [de bordar] com as nossas próprias mãos, de modo a construir as representações computacionais dos pontos do calado. (RIVERA et al., 2016, p. 61).

 

A terceira intervenção decolonial é a engenharia popular (EP). Ela surge no Brasil em meados dos anos 2000, articulando três elementos centrais: o ideário da economia solidária, a perspectiva tecnológica da tecnologia social e as práticas de intervenção promovidas a partir da extensão universitária (FRAGA et al., 2020). Ao final de 2020, a EP era praticada por doze núcleos de extensão e coletivos de engenheiras/os populares espalhados pelo país, por 49 pessoas que se definiam como engenheiras populares, além de outras 250 que atuavam juntamente com as primeiras, nas intervenções desenvolvidas (ARAÚJO; RUFINO, 2021).

Em termos metodológicos, a EP costuma se basear na pesquisa-ação, utilizando, como parte central de sua intervenção, processos de educação popular e uma variedade de práticas que reforçam a vinculação afetiva, o cuidado das pessoas e o compromisso ético-político com o grupo vulnerabilizado com o qual se atua (CRUZ, 2021b; CRUZ; RUFINO, 2020). Com isso, ela busca estabelecer um sólido diálogo de saberes que fertilize sua prática de intervenção, possibilitando-a colaborar com a emancipação do grupo e com a construção, a partir de bases populares, de uma outra ordem sociotécnica possível – com as epistemologias necessárias para isso.

As particularidades dessa metodologia de atuação variam em alguma medida entre os núcleos que praticam EP. No Alter-Nativas (vinculado à UFMG) e no GEPERT (interinstitucional), isso significa a incorporação da ergonomia da atividade e dos ferramentais etnográficos requeridos por ela, em um esforço tanto de compreender melhor as atividades realizadas pelas/os trabalhadoras/es com as/os quais se atua (p.e., em cooperativas de catadoras/es ou fábricas recuperadas por trabalhadoras/es) quanto de evidenciar e incorporar criticamente à solução construída os conhecimentos e valores delas/es (VARELLA et al., 2020; ARAÚJO et al., 2019).

Por fim, a EP, ao longo dos seus quase 20 anos de existência e das múltiplas experiências dos seus núcleos e da rede por eles constituída,[6] vem militando por transformações estruturais na formação superior em engenharia. Tais transformações passam por determinadas questões, como a incorporação de pautas populares às agendas de pesquisa e desenvolvimento nacionais, uma graduação que capacite as/os estudantes a práticas não apenas mercadológicas da engenharia e uma extensão com viés também popular (em função da qual as pautas de pesquisa e desenvolvimento podem chegar à universidade, os conhecimentos necessários para atendê-las podem ser desenvolvidos e uma formação para práticas como EP pode, de fato, acontecer) (ARAÚJO; RUFINO, 2021).

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A atuação da Terceira Margem, da equipe colombiana que trabalhou com as caladoras, e da Engenharia Popular transforma a prática técnica em ao menos quatro dimensões diferentes: 1) modificando as formas de conduzir o projeto técnico, não apenas incorporando ativamente a ele os grupos com os quais se esteja trabalhando, mas adotando, para isso, modificações significativas na prática projetiva (identificadas nas várias técnicas relativas ao cuidado, ao diálogo de saberes e à educação popular); 2) suscitando respostas, trocas, dados, demandas, horizontes de soluções e impactos sociais (identificados, por exemplo, nas diferentes dimensões do empoderamento) que não seriam possíveis por meio dos conhecimentos e modos de conhecer hegemônicos;[7] 3) demandando o desenvolvimento de novos conhecimentos, agenciando conhecimentos técnico-científicos de diferentes áreas e reforçando agendas de pesquisa técnico-científica, por assim dizer, populares; 4) sendo espaço de resgate de agentes invisibilizados (os grupos vulnerabilizados e seus membros) e (re)construção de identidades (individuais e coletivas, seja do grupo vulnerabilizado, seja da equipe técnica). Com isso, produzem-se esboços, mesmo que locais, de outros mundos possíveis e outras formas de vida, bem como das epistemologias necessárias para construí-los e, em particular, das abordagens técnicas requeridas para tanto.

Pode-se afirmar, assim, que essas três iniciativas de intervenção técnica decolonial atuam ativamente como caminho ou possibilidade para o resgate e a coconcepção de novas cosmotécnicas e formas de vida, e a construção das epistemologias de suporte a elas. Embora de maneira incipiente ou local, elas promovem uma sociologia das ausências (e, a partir disso, o florescimento de uma ecologia de conhecimentos, temporalidades, transescala e produtividades) e uma sociologia da emergência (que conduz ao cuidado e à concepção de outros mundos possíveis). Nos termos de Hui, elas produzem uma nova episteme, a partir do horizonte de cosmotécnicas (ou cosmologias) diferentes da capitalista hegemônica. Trata-se, de todo modo, de uma episteme que caminha, não no sentido de uma epistemologia universal, mas de uma epistemologia local e legítima para, e legitimadora do mundo (e da cosmovisão/ cosmotécnica) que ela suporta e que a suporta.

 

Considerações finais

O construtivismo crítico de Feenberg não apenas possibilita análises fundamentais do fenômeno tecnológico, como também tem servido até mesmo para equipes técnicas decoloniais (como as da engenharia popular) conceberem e aprimorarem suas intervenções. Há, contudo, ausências ou não tematizações em seu pensamento que precisam ser superadas. Esse é o caso da não problematização da operação interna das disciplinas técnicas e das suas epistemologias de base, algo que ele reconhece como legítimo de ser problematizado (FEENBERG, 2022a), mas que não o faz de fato ou não o faz em diálogo efetivo com ideias, como as de Santos e Hui, apresentadas aqui.

Conforme se mostrou, é insuficiente parar a luta pela democratização da tecnologia na fronteira do mundo da vida com as disciplinas técnicas. Da perspectiva do Sul global e de outros mundos possíveis, o alargamento, a fertilização ou a hibridização dos conhecimentos e práticas técnico-científicos com outros conhecimentos, práticas e modos de conhecer é fundamental. É dessa maneira que se poderá alcançar, no âmbito do desenvolvimento tecnológico, a ecologia de conhecimentos defendida por Santos, ou o resgate e desenvolvimento – a partir das bases; popular – de outras cosmotécnicas. Tal coisa, ademais, não é apenas uma elucubração razoável ou teoricamente defensável, mas realidade em várias iniciativas ao redor do mundo, mesmo que sejam iniciativas pontuais (e certamente marginais), como as três aqui brevemente expostas bem o ilustram.

Nesse sentido, tão importante quanto estarmos atentas/os aos movimentos sociais/políticos que podem forçar mudanças estruturais mais profundas no mundo (ou no status quo sociotécnico) é se lançarem as bases metodológicas e epistemológicas das disciplinas técnicas capazes de construir essas outras ordens sociotécnicas/cosmotécnicas possíveis (ou esses outros mundos). Feenberg parece entender que, assegurando-se as forças sociais/políticas pró-mudança, esta decorrerá naturalmente, mesmo em termos tecnológicos (FEENBERG, 2022a). Já as teorias e práticas do Sul global, apresentadas neste artigo, entendem que o resgate e o avanço dessas outras epistemologias constituem parte inseparável da mobilização e luta por mudança, seja porque esse resgate favorece o empoderamento dos grupos em luta, seja porque é desse processo que outros mundos possíveis podem se tornar concebíveis e (sociotecnicamente/cosmotecnicamente) implementáveis.

Assim, um construtivismo crítico adequado para os desafios e as lutas (por outros mundos possíveis) do Sul global não pode parar onde Feenberg o deixa, mas precisa incorporar isso que Santos e Hui teorizam e que as intervenções decoloniais praticam (ou buscam praticar).

 

Criticizing and advancing critical constructivism from a global south perspective

Abstract: Andrew Feenberg is an essential author in the field of philosophy of technology. His ideas are particularly relevant in revealing the political dimension of technology, be it shaping society or being shaped by society. However, current Feenberg’s reflection fails to consider the internal domain of technical disciplines more rigorously. Indeed, he usually stops his analysis in the border between lifeworld (where the democratizing mobilizations occur and new/different requirements or values arise) and the technical disciplines. To identify and overcome this failure, I articulate some elements from Boaventura de Sousa Santos and Yuk Hui. I also present the example of three decolonial (or empowering) technical interventions, which illustrate: how what Santos and Hui theorize is already being developed by some technical interventions in the Global South, and the impacts of such interventions on the technical teams (and, through that, also on the technical disciplines).

 

Keywords: Critical constructivism. Andrew Feenberg, Boaventura de Sousa Santos. Yuk Hui. Decolonial technical designs.

 

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Recebido: 16/05/2022

Aceito: 26/09/2022



[1] Pesquisador visitante no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), São José dos Campos, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2844-3439. E-mail: cristianoccruz@yahoo.com.br.

[2] A teoria crítica de Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia (2013); Tecnologia, democracia e modernidade (2018); Entre a razão e a experiência (2019a); Tecnossistema: a vida social da razão (2019b); Construtivismo crítico: uma filosofia da tecnologia (2022).

[3] Os termos utilizados por Hui são epistemologia e episteme, sendo este último apropriado da reflexão de Foucault (HUI, 2017, p. 335). Contudo, quando defende a necessidade de se desenvolver também uma nova episteme, ele justifica isso, argumentando que esta “[...] vai além [da epistemologia], uma vez que também se refere à questão das formas de vida. Isso significa que será necessário transformar a própria tradição a fim de reapropriar a modernização tecnológica e constituir uma nova episteme. Essas nuances precisam ser destacadas com cautela, em vez de simplesmente procedermos pela subsunção do discurso a categorias claramente opostas e excludentes como direita e esquerda.” (HUI, 2020, p. 47). Como a concepção, enunciação e desenvolvimento de novas “formas de vida”, para além de novas epistemologias, em apoio a, e/ou emergentes de novos mundos (ou cosmologias), está presente igualmente em Santos (como, de resto, também na teoria decolonial), preferiu-se manter tal termo em lugar de “episteme”.

[4] Cf. nota 2.

[5] Disponível em: http://www.3margem.com.br/. Acesso em: 20 jun. 2022.

[6] REPOS – Rede de Engenharia Popular Oswaldo Sevá, criada em 2013 (FRAGA et al., 2020): Disponível em: https://repos.milharal.org/. Acesso em: 10 jan. 2022.

[7] Para mais detalhes sobre isso, ver Cruz (2021c).