TOTALIDADE E FINITUDE: SOBRE A SINGULARIZAÇÃO EM SARTRE

 

Marcelo Prates[1]

 

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar o problema da totalidade em Sartre, em sua relação com a finitude. Inicia-se pelo problema da solidão ontológica, pelo qual analisamos o Ser enquanto exterioridade de indiferença e o acontecimento do para-si ou ato ontológico. Postulando esse acontecimento como processo de singularização e a própria vida do indivíduo, mostra-se como a finitude afere à totalidade, enquanto totalização e singularização. Imagem condensada pelo universal singular, a finitude, então, não é tomada como uma totalidade isolada, mas passa a ser compreendida por sua abertura do humano, na singularização de uma vida.

Palavras-chave: Ontologia. Fenomenologia. Finitude. Totalidade. Singularidade.

 

 

A obra O ser e o nada é o grande marco da ontologia de Sartre. Por isso, qualquer crítica ao seu pensamento necessariamente a perpassa. E se se pensa uma continuidade ou mesmo uma descontinuidade em seu pensamento, é sempre com referência a ela que se procuram os liames que permitem tal investida. Na querela dessas questões, encontramos a fragmentação das consciências, seja pela ideia de que a consciência constitui uma “[...] uma totalidade sintética e individual inteiramente isolada das outras totalidades do mesmo tipo” (SARTRE, 1994a, p. 48), seja pela impossibilidade de tomar um ponto de vista sobre a totalidade das consciências (SARTRE, 2007a, p. 341), isto é, vê-las pelo lado de fora. Isso renderia a Sartre a conjuntura filosófica de um “individualismo anarquista”, como, por exemplo, o quer Mészáros (2012, p. 193), ou simplesmente de um individualismo, como o quer Renaut (1993, p. 232).

Nesse caso, pela ênfase, quer à ontologia, quer à História, o Ser como aventura individual[2] demarcaria o indivíduo por uma solidão ontológica, na qual o isolamento não se daria mediante apenas uma impossibilidade de relação com o outro pelo conflito das consciências, na tomada objetivante de uma para com a outra, mas devido ao próprio estatuto ontológico do Ser. Com efeito, duas consequências interpretativas podem se seguir disso: em primeiro lugar, a consciência é absoluta e o Outro, um ser-outro cujo ser mesmo me escapa, o que complica a ideia de mundo como mediação e o codifica como horizonte de separação ontológica e não apenas ôntica, em que a unidade denota uma multiplicidade negativa, na qual os outros são incompossíveis; ou, em segundo lugar, o enraizamento comum do qual eu sou um particular, tal qual o Outro, e o mundo aparece com um estatuto transcendente próprio que se estende ao outro, nesse caso, mediador da separação ôntica, cuja multiplicidade se opera no seio da unidade ontológica, dando a essa multiplicidade o caráter derivado de uma estrutura secundária e também negativa, já que não é motivo de síntese, senão de negatividade.

Ora, tal ambiguidade não aponta apenas à questão do para-outro, mas ao ser-todo, forma tomada por essa solidão ontológica, devendo ser a ela, portanto, que precisamos dirigir nossa interrogação. Trata-se, assim, não apenas da questão de fato, que é a existência – e sabe-se que Sartre toma a fenomenologia como uma ciência dos fatos e a consciência como fato absoluto –, porém, de uma interrogação crítica, isto é, as condições de direito em que essa tomada do ser o determina, na sua solidão ontológica. Assim, talvez, por essa via se consiga maior arrojo a tal problema. Desse modo, nosso trabalho tem por objetivo analisar a questão da solidão ontológica, a partir da relação entre totalidade e finitude, dada a unidade e a totalidade da consciência, em sua irredutibilidade. Nossa hipótese é que, ao analisar a relação entre totalidade e finitude, somos conduzidos à radicalidade, pela qual a finitude é assumida no pensamento de Sartre, levando-nos, por conseguinte, à própria ideia de inconsciente como finitude interiorizada. Com isso, veremos que a finitude não implica a solidão ontológica, mas a própria condição de abertura, por sua singularização.

Sartre, em O Ser e o Nada, anuncia como seu propósito uma teoria geral do ser (SARTRE, 2007a, p. 33 e 470), na qual o em-si e o para-si são compreendidos como duas modalidades do Ser (SARTRE, 2007a, p. 669). Esses modos, segundo os quais o ser se manifesta enquanto causa sui, determinam a sua compreensão como quase-totalidade na esfera de uma imanência de si a si que é o indivíduo. Ante isso, o mundo não passava do resultado da tensão dessas modalidades, não possuindo, então, um estatuto próprio, pois era o resultado da nadificação, modo de ser do indivíduo como ser-no-mundo e o modo pelo qual coisas. Fazendo do para-si um fluxo e não uma substância, todo processo de existência era visto não como uma totalidade, mas como uma totalização, e o mundo aparecia à consciência enquanto revelação-revelada (SARTRE, 2007a, p. 29).

Ora, se o para-si não é uno, entretanto, unificação (SARTRE, 1983, p. 162) (isto é, não se fecha numa substancialidade, está sempre se escapando e se unifica por seu próprio fluxo) e totalização, de forma que o mundo é o resultado e reflexo dessa mesma totalização, logo, é preciso asserir que o mundo não é nem hipóstase da consciência, tal como o múltiplo processado do uno, nem uma esfera unitária independente, uma espécie de outro ser, numericamente uno, mas sem relação alguma para além de si, que é o caso do em-si. Isso faz com que o mundo seja resultado da condição ontológica da existência. Daí toda a ênfase que decorrerá à ideia de situação e de que o sujeito é sua situação (SARTRE, 2007a, 595). O que o para-si unifica (ao mesmo tempo que unifica a si) é a exterioridade de indiferença da contingência, para a qual tal dispersão é uma realidade amorfa, de sorte que o para-si, como negação, opera nessa negação interna (negação de si) a afirmação do ser: “[...] na quase-totalidade do Ser, a afirmação ocorre (arrive) no Em-si: a única aventura do Em-si é ser afirmado” (SARTRE, 2007a, p. 253), sendo, então, o mundo enquanto fenômeno o resultado dessa afirmação.

Com efeito, “[...] o desvelar do em-si é originariamente o desvelar da identidade de indiferença.” (SARTRE, 2007a, p. 232). Todavia, se o Ser é contingência e sua indiferença está para além de toda individuação, esta se torna afirmação positiva sem denotar um ser absolutamente outro, senão como diferença; em outras palavras, devemos, para manter a tessitura dos princípios, o ser e o nada, aferir que o desvelar do para-si só pode ser o da identidade de diferença, não a separação entre sujeito e mundo, mas a condensação unitária deles na finitude singular de um indivíduo. Dessa maneira, não haveria a necessidade de compreender o ser como totalidade, uma vez que a falta dessa totalidade não conduz ao absurdo e irracional, pois a totalidade se torna categoria intangível e limitativa, no entanto, não apreensiva por si, enquanto condição de apreensão do próprio Ser.[3]

Assim, o ser-todo enquanto finitude afere ao indivíduo como ocorrência no ser, e esta não enquanto emergência de uma totalidade vinda de outra, mas a um processo, movimento, um fluxo, o qual se condensa como finitude, afirmando, concomitantemente, o mundo como condição de seu escoamento. E, dada a exterioridade da existência, já que pela consciência tudo se encontra fora e tudo é lançado para fora (SARTRE, 2005, p. 57), a finitude não é senão uma maneira de ser, um modo como o mundo ocorre; não sendo possível, portanto, a tomada desse mundo numa universalidade, senão por essa singularidade ou, ainda, a tomada de alguma transcendência que não seja na própria esfera de imanência; é o caso do para-si como “distância mínima”, “hiato”, “transcendência na imanência” (SARTRE, 2007a, p. 27, 69), “presença a si”, (SARTRE, 2007a, 113), “imanência de si a si” (SARTRE, 2007a, p. 23); eis o solo a partir do qual se dará todo o esplendor para a figura do universal-singular em sua filosofia, sobretudo nos textos a partir da Crítica.

Não obstante, dado o caráter da relação sintética, o Ser é apreendido em sua totalidade, porém, mais precisamente como quase-totalidade, na qual o em-si e o para-si são pensados como esboços dessa totalidade, ainda que ela seja irrealizável, mas que seja real como idealidade ou valor, o em-si-para-si. Em todo caso, a totalidade não pertence ao Ser, seja pela indiferença primeira do Ser, seja porque ela é pensada apenas a partir do para-si e da cisão. É o que reclama Barbaras (2002, p. 18), quando pensa a questão da falta como desejo e infere que Sartre “[...] situa a totalidade ao lado do acontecimento antes que do Ser”, o que, para ser coerente com sua teoria do desejo, dever-se-ia “[...] inverter essas premissas metafísicas situando a totalidade do lado do ser e a cisão do lado do acontecimento absoluto.” A totalidade, como pertencente ao para-si, enquanto esboço de fundamento absoluto, ratificaria ainda mais a separação entre em-si e para-si e a impossibilidade de se apreender a totalidade, senão como quase-totalidade, como fantasma da totalidade irrealizável ou Deus:

Tudo se passa como se o mundo, o homem e o homem-no-mundo não chegassem a realizar mais do que um Deus faltado. Tudo se passa, portanto, como se o em-si e o para-si se apresentassem em estado de desintegração em relação a uma síntese ideal. Não que a integração jamais tenha tido lugar algum dia, mas precisamente o contrário, ela é sempre indicada e sempre impossível. É o perpétuo fracasso que explica a indissolubilidade do em-si no para-si e, ao mesmo tempo, sua relativa independência. Igualmente, quando é rompida a unidade das funções cerebrais, produzem-se fenômenos que apresentam uma autonomia relativa e, ao mesmo tempo, só podem manifestar-se sobre fundo de desagregação de uma totalidade. (SARTRE, 2007a, p. 671).

 

Nesse ponto, já estamos à mercê da hipótese da metafísica, a qual, apontada na nota 2 deste trabalho, não ultrapassa o nível hipotético. Ora, é justamente a falta dessa totalidade que faz da realidade-humana não mais um momento do Espírito, mas um lapso do ser, seu “[...] esforço abortado para alcançar a dignidade de causa-de-si.” (SARTRE, 2007a, p. 671). Entretanto, se a totalidade não pertence ao Ser, de modo que o fenômeno enquanto totalidade homem-no-mundo não altera a realidade do ser, a diferença requerida pelo para-si, como ser que é possibilização e historialização, não é uma diferença que corresponda a uma alteração a essa indiferença do ser, de sorte que o acontecimento não é uma processão do ser (pois, na esfera da imanência, tudo se resolve e resulta como humano e sem mais), mas a condição resultante das relações estabelecidas por seus modos, isto é, enquanto conjuração própria da finitude. Por isso –e, adiantamos, contra Barbaras –, é ao acontecimento que se dá a irrupção da totalidade e mesmo, como veremos, da unidade e da multiplicidade.

Se o acontecimento do ser é a irrupção da totalidade, haveria, então, se se segue a lógica de Barbaras, uma incongruência entre totalidade ontológica e totalidade fenomênica, de forma que só a totalidade fenomênica é que seria propriamente totalidade, porque se assenta na relação sintética homem-no-mundo.[4] Isso exigiria, segundo Barbaras (2002, p. 13), que essa ontologia ausente da totalidade no Ser reclamasse “[...] uma outra ontologia, ou uma outra metafísica”, que situasse a totalidade no Ser. As conclusões, portanto, são negativas: “[...] ora, faltando ao Ser, a totalidade não pode ser, e não podendo ser, ela não pode ser verdadeiramente constitutiva do para-si.” (BARBARAS, 2002, p. 18). Nesse caso, a totalidade do fenômeno fica às expensas da consciência, e justamente por isso só chega a ser quase-totalidade, ocasionando sua crítica à fenomenologia de Sartre e sobre a sua ideia de fenômeno enquanto desejo de ser. Assim, ao invés de procurar uma totalidade anterior da qual o fenômeno se manifesta e se constitui, é o próprio fenômeno que deveria ser tomado na sua irredutibilidade. Vemos que é por não tomar a própria finitude que Barbaras é levado a reclamar essa totalidade ausente e hipoteticamente constitutiva.

Nas conclusões de O Ser e o Nada, Sartre afirma que, para que um existente seja considerado uma totalidade, “[...] é preciso que a diversidade de suas estruturas seja mantida em uma síntese unitária de tal forma que cada uma delas, encarada à parte, não passe de um abstrato.” (SARTRE, 2007a, p. 670). Mas essa totalidade, embora denote a condição ontológica da realidade, em nada responde sobre o porquê da existência, pois, para Sartre, “[...] não faz diferença para a ontologia considerar o para-si articulado com o em-si como uma dualidade seccionada ou como um ser desintegrado” (SARTRE, 2007a, p. 672), sendo, portanto, a categoria da totalidade, caso pertencesse ao ser, uma dimensão metafísica, mas não ontológica nem fenomenológica; todavia, metafísica, de tal forma que nada nos diz sobre a totalidade singular do fenômeno, senão que ela é tal qual é, dada a inferência direta da contingência do Ser e disso a impossibilidade de aprender qualquer processo genético fenomenologicamente, bem como a impossibilidade de ultrapassar a esfera do fenômeno, isto é, a possibilidade de legitimar o discurso metafísico (BORNHEIM, 2003, p. 145).

ANesse sentido, a questão da totalidade reenvia ao ser-contingente, o ser à contingência (enquanto exterioridade de indiferença) e esta ao fenômeno enquanto totalidade nadificada na condição finita, ocorrência imanente como reordenamento dessa exterioridade, em um sentido possível do ser, que, na concretude fáctica ou na sua exigência pela fenomenologia, alude à diferença singular do mundo como situação, isto é, sua finitude, ou à aventura mesma como fenômeno. Dessa forma, o fenômeno é o sentido do Ser, e só aqui, em seu sentido, o Ser se faz total, mas essa totalidade agora já escapa ao próprio ser-todo pela abertura mesma de que ela necessita. Essa abertura não é outra senão a singularização pela finitude e seu condensamento na situação singular. Vejamos melhor essa proposição.

Ora, sabemos que não há uma correlação absoluta entre as duas modalidades, pois o ser é independente da fenomenização que ocorre sobre ele, donde se seguia, em O ser e o nada, que o para-si sem o em-si era abstrato, mas não o em-si. Isso demarcava não somente que eles não correspondem a uma totalidade, mas que a totalização do para-si nada deve ao em-si como seu constituinte, senão pelo fato de se afirmar como diferença sobre sua indiferença, ou seja, se singularizar como nadificação do ser individual. Novamente o jogo dos princípios[5] transfenomenais se torna insuficiente e só pode resultar num abstracionismo que não encontra razão de ser no fenômeno, totalidade-(destotalizada) concreta e diferenciada, cuja dimensão denota esses princípios, não como gêneros supremos (SARTRE, 2007a, p. 667) ou transcendentais (dada a esfera da imanência do ser), contudo, modalidades cuja forma denega a generalidade à mercê da finitude mesma.

Com efeito, o que se nadifica não é o ser em geral, mas o em-si singular e individual (SARTRE, 2007a, p. 666, grifos nossos), pois a contingência é inapreensível enquanto fenômeno, assim como essa indiferença do ser que ela exige, porquanto, se dando na facticidade, esse ser só pode se dar singularmente, de forma que tal apreensão do Ser na sua suposta totalidade indiferente só a sentimos em raros fenômenos de quase-indiferença, como o tédio. Quase, porque o fenômeno tédio é fenômeno, isto é, consciência de, portanto, não é a indiferença do ser que se faz presente, mas o fenômeno mesmo quase-desnudo da sua diferença por uma posição de nulidade ou abstração de sua situação. Assim, negativamente, o quase da quase-totalidade, que é o fenômeno, denota a impossibilidade da totalidade, mas positivamente ela demarca a negação imanente ao ser que, na sua determinação, é condição da sua afirmação, ou seja, da diferença sobre a indiferença, antes mesmo de se pensar a totalidade ou de uma totalidade para além da imanência.

É por isso que, tomando o fenômeno na sua forma positiva, sua condição ontológica alude não a uma correlação hipostasiada como em-si-para-si, senão a esta enquanto singularidade, dada a finitude radical do ser do fenômeno. Nesse caso, se se pensa ainda que hipoteticamente o ser como contingência, já que essa contingência nunca é dada absolutamente como fenômeno, pois o fenômeno de Ser apela à prova ontológica, não é à totalidade, ao uno e ao múltiplo que os princípios denotam, e que remetia à solidão ontológica, mas à diferença e à indiferença do ser, no jogo da existência, isto é, à finitude singularizada na aventura individual. O quase da totalidade não é senão esse lastro irrevogável de nada pelo qual o ser se nadifica e que se afirma sobre o ser como diferença – do fundo negro da exterioridade de indiferença o ser se faz como fenômeno por sua finitude. Assim, não seria por uma falta da totalidade que o acontecimento ontológico perde sua dimensão no fenômeno, entretanto, justamente, e afirmando a ordem das razões da filosofia de Sartre, é o acontecimento que sobrepuja a totalidade pela nadificação enquanto totalização do enraizado na própria finitude do acontecimento singular.

Nesse caso, a totalidade é condizente ao fenômeno, mas isso deveria supor que, se o acontecimento opera essa totalidade, a qual não é a dimensão própria do ser, nem do ser-todo, ela então não passa do resultado da nadificação do ser como limite finito e negativo dessa mesma totalidade: “[...] é justamente por isso que a totalidade nada acrescenta ao ser, pois não passa do resultado da aparição do nada como limite do ser.” (SARTRE, 2007a, p. 217). Em outras palavras, o fenômeno é ao mesmo tempo limite do acontecimento e esfera própria do acontecimento, em sua imanência. Novamente é a finitude do acontecimento que afere sua totalidade e não a totalidade que afere a finitude, como o universal ao particular. É também por isso que insistimos na força da ideia do singular como singularização e a dimensão limitativa da totalidade fenomênica apenas como momento atual do movimento do processo.

Assim, se Barbaras (2005, p. 136) aferiu que, por partir, não da fenomenalidade, mas de sua reconstituição mediante uma relação de ser, a fenomenologia de Sartre deveria ser considerada uma “fenomenologia sem fenômenos”, é preciso reconduzir o discurso ao acontecimento do fenômeno como finitude e garantir que uma fenomenologia condizente, não à generalidade hipostasiada do ser, porém, à vida concreta, deve revelar o acontecimento como este acontecimento, ou seja, não uma singularidade abstrata, mas o fenômeno enquanto singularidade concreta indicada no indivíduo como polo da aventura do ser; nesse caso, trata-se, sim, de uma fenomenologia que expressaria fenômenos, contudo, cujo fenômeno por excelência é uma vida, “aventura individual” (SARTRE, 2007a, p. 664).

Por isso, a ambiguidade da ontologia sartriana se deve à radicalidade com a qual essa ontologia quer operar. No fundo, a fenomenologia não se radica em ontologia, senão enquanto esta é condição própria de explicitação da finitude, mas, nesse caso, ela já não pode ser somente uma ontologia do Ser-todo ou do sentido geral do Ser. Daí que nos encontremos na encruzilhada difícil entre descrição empírica e hipótese metafísica. Poderíamos argumentar, é claro, que não se trata de um caminho ou outro, como o quer Thana Souza (2012, p. 160), ao enfatizar que não se trata mais do infinito-finito, mas do “infinito no finito”, seguindo a alusão de Sartre, na Introdução de O ser e o nada, ou mesmo dizer, como Jeanson (1947, p. 158, 254), que é uma ontologia direcionada à prática e sem nenhuma relação à metafisica ou ao ser. Assumindo essas duas perspectivas, acrescentaríamos que, se há uma fenomenologia em Sartre, essa fenomenologia é a do indivíduo singular, concreto, datado: uma ontologia da finitude, para seguir à esteira de Bornheim (1998, p. 14). Dimensão ontológica que se envereda constantemente com a hipótese metafísica, por seu limite fenomenológico; fenomenologia que privilegia o acontecimento como vida concreta e singular; finitude que expressa todo o ser em seu movimento de emergência; tal ontologia da finitude é o coração da filosofia sartriana.

Esboçadas as condições de direito, as condições de emergência do fenômeno em sua tessitura própria, o que nos permitiria aferir ainda dessa solidão ontológica? É-nos ainda exigido assombrarmo-nos perante essa ideia e a de ser-todo que ela carrega?

O acontecimento, ou para-si no em-si enquanto singularidade, não é o resultado de um jogo entre Ser e Nada transcendentes entre si, mas uma ocorrência imanente no Ser, esse ato ontológico, no qual o ser se cinde e aparece como situação concreta e totalizada na ordem do fenômeno (o nada como verme no coração do Ser, para lembrar a imagem presente em O ser e o nada). Com isso, já apontamos – e agora reiteramos – a totalidade, mas também outras categorias, que são ali determinadas segundo a lógica da negatividade enquanto determinação. É o caso da multiplicidade e mesmo da unidade do para-si como unificação, pois, sendo um fluxo, escorre no mundo, mas permanece na sua unidade transcendental enquanto mesma consciência. Essa condição de escorrer para fora de si, sendo a mesma, leva à imbricação entre transcendência e facticidade.[6] De fato, seja a totalidade, seja a multiplicidade, elas são sempre remetidas a sua tessitura singular. Por isso, elas não aparecem como gêneros supremos do ser, todavia, como determinações que exigem sua singularidade:

Pois a totalidade só pode vir ao ser pelo para-si. Uma totalidade, com efeito, supõe uma relação interna de ser entre os termos de uma quase-multiplicidade, da mesma forma que uma multiplicidade supõe, para ser esta multiplicidade, uma relação interna totalizadora entre seus elementos; é neste sentido que a própria adição é um ato sintético. A totalidade só pode vir aos seres por um ser que tem de ser, na presença a eles, sua própria totalidade. É precisamente o caso do para-si, totalidade destotalizada que se temporaliza num inacabamento perpétuo. É o para-si na sua presença ao ser que faz com que haja todo o ser. Com efeito, entendemos bem que este ser determinado só pode ser definido como isto sobre um fundo de presença de todo o ser. (SARTRE, 2007a, p. 216, grifos nossos).

 

Nesse caso, aparecendo sempre sob o fundo, mas como um nada determinado, essa negatividade se qualifica tanto como um nada geral quanto como essa negação particular, como privação singular deste ser, deste em-si individual (SARTRE, 2007a, p. 666). Isso quer dizer que, ao realizar a pura solidão do conhecido (SARTRE, 2007a, p. 215), embora ainda assombrada pela dualidade do sujeito-objeto, alude-se a um modo específico de como essa totalidade conjura a multiplicidade dos termos que a singularizam, para a qual não pode entrar um novo elemento (porque não é dado, mas constituído na liberdade e na contingência do fora) sem que este se torne totalizado por mim, isto é, que ele advenha ao sentido do Ser por minha singularização. Dessa forma, faço o todo como situação, mas por este todo ser abertura pela abertura que sou (hiato, fissura, negatividade), sempre entra nele o escoamento fáctico dessa mesma exterioridade; quer dizer, torna o mundo fáctico sempre contingente, mesmo quando o para-si o amarra com sua paixão.

Eis, pois, a fragilidade do todo do fenômeno e da existência e a ideia mesma de esforço de fundamentação: dois movimentos divergentes (nadificação e contingência, esta última pela fugacidade da exterioridade), no âmago da totalidade do fenômeno, o qual, nesse caso, é tomado como totalidade apenas pelo limite do horizonte fenomênico atual. Em outras palavras, a totalidade e a multiplicidade são unificadas no meu projeto sempre aberto e pronto a desmoronar e a se reerguer ante o real: tal é o peso da paixão e da contingência da existência e, ao mesmo tempo, sua mais doce e angustiante leveza.

O fundo da contingência, que só aparece como facticidade pela transcendência do para-si individual como sua aventura, se torna, por sua própria exterioridade, um domínio de uma multiplicidade fáctica que, ao mesmo tempo, me escapa, pois não é nem constituída e nem desfeita por mim. Tal domínio, todavia, é totalizado na medida em que refaz constantemente essa mesma totalização pela subsequente variação do campo fáctico. É por isso, voltamos a assentir, que tal processo é singularizante e não totalizante, no sentido de uma ascensão ontológica ou metafísica, dado que o campo transcendental permanece na imanência como sendo o mesmo, porém, como variação contínua, fazendo dessa diferença dada pela condição de finitude a singularização como sentido do próprio Ser.

Ora, em O Ser e o Nada, Sartre sempre constrói a imagem do fenômeno análoga à imagem das teorias da Gestalt, na qual o isto ganha seus contornos, mediante o fundo, visto que o fundo é condição de evidência de um isto qualquer, pois, pela fórmula geral, todo nada é negação do ser. Isso se adapta à totalidade, de forma que encobre a multiplicidade que o fenômeno implica, além de dispensar a condição de ser que não só é temporalidade, mas é temporalizado pelo desdobramento mesmo de uma vida. De fato, o fator da multiplicidade deveria trazer uma nova perspectiva ao fenômeno que Sartre não explora, devido à correspondência do fenômeno com a forma da Gestalt e a exterioridade da contingência, em sua opacidade, tal como ele mesmo irá requerer, posteriormente, na Crítica, dada a complexidade do mundo circundante e sua positividade. O fato é que, tratando o fenômeno dessa maneira, o fundo aparece como “totalidade indiferenciada” (SARTRE, 2007a, p. 44) à margem da minha atenção que destaca determinado isto e faz da própria relação entre o isto e o todo “uma relação de exterioridade” (SARTRE, 2007a, p. 219), cuja consequência é a impossibilidade da singularização, de modo que o real seja apreendido como tensão e impossibilidade do fundamento.

As relações de exterioridade são compreendidas por Sartre tal qual a indiferença do ser, de sorte que a relação de exterioridade seria uma quase-relação, cuja dimensão vem pela infinitude suposta pela totalidade fundo do fenômeno. Essa infinitude como horizonte de transcendência na imanência demarca, na negatividade da transcendência, essa indiferença enquanto exterioridade, cuja multiplicidade é suposta, mas não associada ao ser-todo, pois só se torna tangível pela nadificação do fenômeno na quase-totalidade. Aqui, a tensão da negatividade dá todo o contorno da totalidade aberta e da dimensão múltipla que a compõe, porque a relação é sobreposta a essa exterioridade de indiferença, a qual permanece como fundo infinito e opaco.[7] Assim, entre o para-si como totalização e a exterioridade de indiferença enquanto relação, que é o mundo fático, a relação é de singularização.

Por isso, não é que Sartre não considere a multiplicidade, entretanto, ele apenas a subjuga à totalização[8], a qual, tendo em vista esse fator de multiplicidade pela relação entre totalização e exterioridade, não deve ser tomada como uma totalização metafisica enquanto guinada ao fundamento, ou sua impossibilidade, mas como singularização ontológica. Tal multiplicidade, que permite a variação do campo prático e, com isso, a da própria consciência, em sua síntese no fenômeno, faz do horizonte fenomenológico não um isto sobre um fundo, porém, um conjunto complexo de relações que se complexificam, na medida em que se unificam sob uma vida. Tal movimento só pode se dar como singularização e finição na aventura individual da liberdade, haja vista que

[o] em-si não é diverso, ele não é multiplicidade e para que ele receba a multiplicidade como característica de seu ser-no-meio-do-mundo é preciso o surgimento de um ser que seja presença simultaneamente a cada em-si isolado em sua identidade. É pela realidade-humana que a multiplicidade vem ao mundo, é a quase-multiplicidade no seio do ser-para-si que faz que o número se desvele no mundo. Mas qual é o sentido dessas dimensões múltiplas ou quase-múltiplas do para-si? São as diferentes relações com seu próprio ser. Quando se é o que se é, pura e simplesmente, não há mais que uma só maneira de ser o seu próprio ser. Mas, a partir do momento em que não se é mais o próprio ser, surgem simultaneamente diferentes maneiras de sê-lo não o sendo. (SARTRE, 2007a, p. 172, grifos nossos).

 

Em outras palavras, não há singularização sem complexificação, e esta sem ao menos relações múltiplas. Sem essa dimensão, a facticidade apareceria como um bloco de identidade na sua indiferença. Do mesmo modo, o para-si não é só relação, mas um sistema de relações pela condição de ser um “sistema de negações internas” (SARTRE, 2007a, p. 222). Por isso, nunca se trata do Em-si, mas de um em-si individual, cuja totalidade não é um bloco de identidade do fenômeno, mas a própria totalização do para-si.[9] Mas como exige ser um nada qualificado, essas miríades de nadificações entram na trama unificante do para-si como seu ser, isto é, enquanto sua finitude é singularização. Por isso mesmo, não há o todo do ser, nem o todo da contingência.

Em consequência, reconhece-se que a totalidade do fenômeno não aparece como indiferenciada (até porque o aparecer já é diferenciação), visto que já se dá como mundo, e o mundo fenomênico e fáctico “parece sempre prestes a abrir-se como uma caixa para deixar aparecer um ou vários ‘istos’ que já eram ­– no âmago da indiferenciação do fundo – aquilo que são agora como forma diferenciada.” (SARTRE, 2007a, p. 219). Facticamente, os istos e, sobretudo, o prático-inerte mantêm uma continuidade para além da indiferenciação do ser, enquanto facticidade deste mundo histórico.[10] É por isso que o mundo extrapola os limites da totalidade do para-si, embora só possa aparecer a esta nadificação individual que sou, entrando na trama de meu próprio escoamento intencional, porque, tal como elaborado em O Ser e o Nada, ou um isto é relacionado atualmente por um para-si, ou ele se perde na exterioridade de indiferença da facticidade, a qual não é simplesmente uma desconstrução do espaço[11] empírico, mas uma condição ontológica que constitui o fenômeno enquanto tal.

Ora, o mundo assim considerado não é um plano espacial, mas um plano situacional. De fato, o para-si define-se na sua trama por sua situação enquanto síntese entre a transcendência e facticidade que ele é. Assim, contra o monismo do fenômeno como imagem da Gestalt, como um isto sobressaltado por um fundo, o qual Sartre denota indiferenciado, tanto com relação a si quanto com relação ao isto que se sobressalta, é preciso aferir que o fenômeno é, se se quer manter sua realidade concreta, uma situação. A situação, com efeito, jamais é um fundo indiferenciado, mas é justamente a consolidação dessa singularidade vivida pelo indivíduo como mundo, de modo que não há singularidade senão constituída na conjuntura de uma situação: “Assim, o surgimento da liberdade é cristalização de um fim através de algo dado, e descoberta de algo dado à luz de um fim; essas duas estruturas são simultaneamente inseparáveis.” (SARTRE, 2007a, p. 553, grifo nosso).

Na situação, é estabelecido um “[...] sistema de relações entre ‘os’ em-sis, ou seja, entre o plenum de ser que então se revela como mundo e o ser que ela tem de ser no meio desse plenum, o qual se revela como um ser, como um isto que ela tem de ser.” (SARTRE, 2007a, p. 532). Há esse plenum, essa totalidade, porque não há como apreender algo sem inseri-lo na própria trama da unificação da situação: “[...] isso porque, escolhendo um fim, escolho ter relações com esses existentes e o fato de que esses existentes tenham relações entre si: escolho o fato de entrarem em combinação de modo a anunciar a mim aquilo que sou.” (SARTRE, 2007a, p. 553, grifos nossos). Diante disso, não posso confinar-me ao um, ainda que a multiplicidade não me seja apreensível também por ser apenas postulada e ser a dimensão mesma dessa infinidade na imanência, já que ela mesma se dá nesse limite de unificação e totalização, mas que não é mais opaco e afogado na indiferença, mas unificado por mim na minha situação.

Com isso, a situação é uma ação, uma composição de si e do mundo concreto como resultado da sua totalização, contudo, que não cessa de se totalizar, porque, mesmo não sendo a situação apenas a soma de objetos (pois é a transcendência que unifica), a inserção na trama de um único objeto, dada sua potencialidade própria (SARTRE, 2007a, p 549), pode trazer uma modificação radical à situação[12] (SARTRE, 2007a, p 550), mas que, como já salientado, só pode aparecer à consciência entrando na trama dessa mesma consciência, ao retirar o dado do seu “exílio de indiferença” (SARTRE, 2007a, 553). Assim, e uma vez que isso ocorre, “[...] certas alterações empíricas de seu meio podem incliná-lo a modificar seu projeto original ou, ao menos, ser a ocasião de fissuras ou de distúrbio no interior deste projeto.” (SARTRE, 2007b, p. 96). Por isso, nem mesmo a situação deve ser vista como um bloco de identidade, mas uma constante singularização pelo seu movimento de escoamento como mundo.

Destarte, o que muda não é a forma da situação (unificação), pois as mudanças (que ocorrem ante essa multiplicidade) que descubro é somente sob a condição de ser mudanças “em minha vida”, ou seja, nos limites unitários de um mesmo projeto (SARTRE, 2007a, p. 598). E que, portanto, nada impossibilita a vastidão do mundo para além de minha suposta solidão, pois justamente a requer enquanto condição de sua singularização, todavia, que aparece como meu projeto existencial. Ademais, Sartre mesmo assevera que a situação não é nem subjetiva, porque não é a soma de impressões do para-si, nem objetiva, já que não é apenas um conglomerado de coisas, mas ele mesmo enquanto comprometido nas coisas. Por conseguinte, “[...] a situação é o sujeito inteiro (ele não é nada mais do que sua situação) e é também a ‘coisa’ inteira (não há jamais nada mais do que as coisas.” (SARTRE, 2007a, p. 594). Logo, a situação é a imagem própria da transcendência nessa facticidade. A isto Sartre denomina “estrutura primitiva da situação”:

É pelo ultrapassamento (dépassement) mesmo do dado rumo a seus fins que a liberdade faz existir o dado como sendo este dadoanteriormente não haviam nem isto, nem aquilo, nem aqui -, e o dado assim designado não é formado de qualquer maneira, é existente em bruto, assumido para ser ultrapassado. Mas, ao mesmo tempo que a liberdade é ultrapassamento deste dado, ela se escolhe como sendo este ultrapassamento do dado. A liberdade não é um ultrapassamento qualquer de um dado qualquer; mas, assumindo o dado em bruto e conferindo-lhe seu sentido, ela se escolhe ao mesmo passo: seu fim é justamente mudar este dado, da mesma forma como o dado aparece como sendo este dado à luz do fim escolhido. Assim, o surgimento da liberdade é cristalização de um fim através de um dado, e descoberta de um dado à luz de um fim; essas duas estruturas são simultâneas e inseparáveis. Com efeito, veremos mais adiante que os valores universais dos fins escolhidos somente se desprendem por análise; toda escolha é escolha de uma mudança concreta a ser provocado em um dado concreto. Toda situação é concreta. (SARTRE, 2007a, p. 553, grifos nossos).

 

Ademais, essa indicação não é apenas restrita a O ser e o nada, mas é o horizonte próprio que, em sua filosofia, tomará a figura do universal singular. Toda situação é histórica, porque alude a essa facticidade mundana que me ultrapassa, não somente enquanto polarizada pela contingência, porém, pela dimensão mesma da facticidade, como já apontado. O fato é que cada objeto, sobretudo a partir da Crítica, enquanto fato social[13] ou prático-inerte, carrega essa condição de universalidade interiorizada pela dialética entre a materialidade passiva e o projeto existencial humano.

Por isso, o universal não será tomado apenas como valor impossível (em-si-para-si), nem como algo que subsiste por si, num hiperurânio, no entanto, como algo que só é dado finitamente e interiorizado finitamente: “O universal ou essência, como eu mostrara (E.N.), só pode aparecer a partir de uma limitação de ponto de vista. O universal ou possibilidade de ultrapassar perpetuamente minha finitude.” (SARTRE, 1983, p. 509, grifos nossos). Ultrapassamento que não é outra coisa que a retotalização constante de meu ser, enquanto singularização dessa finitude, numa radicalidade que a singularidade exige enquanto tal: todo universal é universal singularizado, jamais puro ser. E como é ultrapassamento de si, só posso ultrapassar em direção a minha finitude. Paradoxalmente, sou minha própria transgressão, cujo refluxo é a singularização dessa finitude. Ultrapassar o universal é requerê-lo apenas por sua especificidade. Assim, não há universal senão na própria finitude em seu ultrapassamento, isto é, como singularização. Em suma, o universal singular é singularização.

E se ele é o próprio projeto existencial, essa interiorização já passa por um crivo próprio que é a personalidade do indivíduo que vai assimilar segundo seu modo de ser e exteriorizar consoante a escolha própria, pois essa interiorização “[...] contém e sustenta estruturas abstratas e universais, mas deve ser entendida como a fisionomia singular que o mundo nos oferece, como nossa oportunidade única e pessoal.” (SARTRE, 2007a, p. 595, grifos nossos). Trata-se, assim, de minha oportunidade, mas ela implica o mundo com tudo aquilo que a conjura. Se não compreendemos a multiplicidade (a partir da nadificação e da exterioridade), não podemos entender como algo novo (como nova aventura, portanto, horizonte novo de liberdade e de configuração do humano enquanto singularização) possa ocorrer no mundo histórico ou como poderia esse mesmo mundo se diferenciar.

Além disso, Sartre ainda pensa a situação isolada em O Ser e o Nada e apenas na Crítica a insere numa aventura mais ampla (SARTRE, 2002a, p. 158), daí a ideia de alargamento da situação proposta por Donizetti da Silva (2010, p. 105). Por conseguinte, sem a historialização, a negação seria apenas “[...] um nexo categorial e ideal que eu estabeleço entre eles, sem os modificar no que quer que seja, sem os enriquecer ou os empobrecer da menor qualidade” (SARTRE, 2007a, p. 211), porque o que se teria, então, é a determinação do transcendente como objeto[14], mas este como objeto qualquer, numeração tal que corresponde apenas à adição indiferenciada e não singularizada de vários istos quaisquer; em suma, estrutura geral e abstrata, e não como esse objeto na conjuntura de uma situação singular confluente ao mundo, tal como assumida por Sartre, sobretudo a partir da Crítica.

Embora a ontologia apresente essas estruturas abstratas, é apenas devido ao seu movimento de análise, pois, reiteramos, a filosofia de Sartre sempre assume essa dimensão sintética entre transcendência e facticidade. Uma melhor tradução desse acontecimento, enquanto ato ontológico na determinação de suas estruturas[15] para o acontecimento enquanto universal singular, encontramos em Defesa dos Intelectuais:

[...] um fato que carrega uma ideia, quer dizer, um universal singular, porque limita a ideia carregada, em sua universalidade, por sua singularidade de fato datada e localizada, que tem lugar a um certo momento da história nacional e que a resume e a totaliza, na medida em que é seu produto totalizado. (SARTRE, 1994b, p. 37).

 

Há, assim, uma determinação um pouco diferente na noção de acontecimento, tal como colocada em O ser e o nada, como ato ontológico e assumida depois do “encontro” com a História. Tal diferença é que essa aventura individual é tomada na sua concretude histórica, da qual é impossível ser dissociada, pelo fato de agora se assumir a facticidade como História ou Época. Poderíamos dizer que só ali a fenomenologia encontrará o seu fenômeno próprio, a finitude na História como acontecimento concreto. Minha vida como paixão na história, como processo singularizador, ultrapassa tanto a dimensão de uma alienação insuperável (ao menos como possibilidade ontológica e histórica) quanto a ideia de uma totalidade fechada, mesmo que a verdade se faça devinda como Época.

Para Sartre, todo esse processo histórico não tem outra inteligibilidade senão o indivíduo em sua irredutibilidade, isto é, em sua finitude, na forma como os universais são singularizados. Por isso, qualquer sombra de totalidade é subjugada ante a finitude: ela, na sua livre invenção de fins (SARTRE, 2007a, p 612), é quem determina a concretude dos universais. Essa determinação revela que o acontecimento absoluto só pode se dar como acontecimento histórico, donde resulta que, na finitude mesma desse acontecimento, se denote o fenômeno como totalidade histórica, mas totalidade que remete às vidas que os totalizam na sua totalização vivida[16], conforme o exemplo de Valéry, na Crítica, que não pode ser reduzido ao seu ser-de-classe, a qual justamente é posta em questão pela vida singular desse indivíduo. Isso não quer dizer que os universais sejam subjetivos, contudo, que é a aventura mesma dos indivíduos que os animam e não o contrário, senão por uma condição de má-fé. Por isso, seria incoerente pensar o mundo com suas instituições, firmes e solidificadas, animadas por algo que não o próprio projeto existencial e humano.

Mas é o que encontramos como exigência, nas análises de Mészáros sobre a ideia de totalidade em Sartre. Sua acusação é justamente sobre o problema da mediação entre esses universais. A primeira crítica que ele dirigia à totalidade era com respeito ao dualismo que a fraturava, segundo seu dualismo imanente, do em-si e do para-si, fazendo dessa distância a sua lei ontológica (MÉSZÁROS, 2012, p. 108), de modo que “Sartre, porém, nunca tenta seriamente enfrentar a alternativa monista, pois esse tipo de confronto iria briga-lo a tentar justificar suas próprias suposições.” (MÉSZÁROS, 2012, p. 110). Sem mediação ante o dualismo, o que restava para Mészáros era uma “[...] ontologia de uma totalidade radicalmente dilacerada, na qual a mediação é eliminada, com as antinomias necessariamente inerentes a esse dilaceramento.” (MÉSZÁROS, 2012, p. 110).

Todavia, Mészáros critica justamente o que aqui se procura afirmar, o ser na sua unidade sintética e, portanto, a vida concreta como mediação. Se o indivíduo é esse medium entre ser e nada, universal e singular, de modo que ele vive o universal como particular, Mészáros (2012, p. 121) alude à pseudomediação que tal ideia traz, porque tal ideia evita o que para ele é o verdadeiro problema da mediação: “[...] como é possível viver o universal como particular?” Segundo ele, seria apenas por “[...] mediações específicas (o que, certamente, requer a identificação precisa dessas especificidades) e não ‘vivendo-o’ – que é a resposta de Sartre – , o que é incorrer em petição de princípio.” Mas viver não é tomar um modo geral pendente de especificidades exteriores que medeiam o que sou e o que interiorizo de fora como meu eu. Viver não remete senão a essa singularidade mesma que é a existência própria do indivíduo.

A mediação é condicionada pela própria finitude, porque o universal não se dá senão por essa singularidade que o vive, contudo, viver para o para-si é interiorizar sua facticidade, imprimindo nele a condição própria da Época, seja para mantê-la e prolongar o momento da História, seja para alterar esse mesmo momento, tal qual como ocorre segundo a situação vivida. Nesse caso, não é o particular que medeia, mas é a singularidade a condição de mediação e de universalização, de modo que não há universal, senão por sua mediação. Não há, per se, instituição sólida. Portanto, se aludimos à vida como mediação, o indivíduo como mediação, não é simplesmente porque ele representa uma estrutura específica, porém, é que a vida enquanto finitude irredutível requer para si mesma qualquer especificidade, justamente por ser o motor da finitude, isto é, aquilo que confere a especificidade às coisas, mediando as estruturas gerais homem-mundo e, com ela, os universais enquanto vida singular neste mundo. Por conseguinte, o conflito entre universais não é outro a não ser a relação própria entre os indivíduos em suas singularidades, as quais, na trama da história, confluem ou não segundo o mesmo passo. Como muito bem esclarece Rizk,

[...] as universalidades singulares são fundadas sobre as mesmas significações gerais, no sentido de condições práticas, sociais, culturais, que afetam um conjunto prático. Estas significações são, contudo, vividas em uma pluralidade de microtemporalizações. Isso quer dizer que estas microtemporalizações, próprias das existências singulares, se modificam, se opõe e se complementam. (RIZK, 2011, p. 233).

 

É por isso que o plano situacional não é constituído tão somente por minha situação, mas por uma “pluralidade situacional” (SILVA, 2004, p. 125). Essa malha de situações é que constitui a Época. Disso se inferem os conflitos existenciais como conflitos estritamente práticos e associados às relações que se têm concretamente com o outro, na História. Sartre expressa isso tanto horizontalmente, pelas relações concretas, como verticalmente, pelo conflito das gerações. Em todo caso, o outro, mas que frente à singularidade que apontamos nos exige dizer os outros, aparecem não somente como istos particulares, mas como “[...] centros de escoamento de realidades” (SARTRE, 2002a, p. 215), e a relação do dois é vista não mais como entre duas substâncias ou seres, ou particulares, mas como “[...] dois deslizamentos centrífugos e divergentes no âmago do mesmo mundo”, constituindo uma relação de reciprocidade que “[...] transcende minha própria percepção” (SARTRE, 2002a, p. 216). Sob esse aparente enigma ontológico, encontramos, no Cahiers, um ponto decisivo:

O Ser puro não é amável na sua total exterioridade de indiferença. Mas o corpo do Outro é amável enquanto ele é a liberdade na dimensão do Ser. E amar significa aqui absolutamente outra coisa que desejo de apropriar. É, a princípio, desvelamento-criador: aqui, também, na pura generosidade eu me assumo como perdendo-me para que a fragilidade e a finitude do Outro exista absolutamente como reveladas no mundo. [...] Mas eu não me limito a dar-lhe uma outra dimensão de ser: em outras palavras, eu me faço o guardião da sua finitude. (SARTRE, 1983, p. 523, grifos nossos).

 

Isso se torna crescente na filosofia de Sartre, na qual o não tematizado não será o indiferente e o contingente, mas fará com que a facticidade seja integrada à História, para a qual a contingência apenas intensificará a liberdade, enquanto possibilidade histórica, e não somente enquanto falta de sentido do objeto por sua opacidade. Estes passam a ser determinados enquanto relacionados à História, a qual subjaz à situação particular e a confina na pluralidade situacional como Época. A História, assim, me pertence, porque sou ela, mas me escapa, seja porque o outro também a faz (SARTRE, 2002a, p. 75), seja pela materialidade inerte e passiva do prático-inerte, seja pelo fundo da contingência que a calca sempre no inesperado. A indiferença do ser, assim, aparece como um revés da coisa historicamente constituída, a qual é inserida na multiplicidade situacional da Época. Para o homem, nada escapa à História, embora tudo ainda seja ontologicamente contingente, no entanto, a única forma de eu assumir essa contingência é fazendo-me na história enquanto sua singularidade pela finitude que sou. Assim, o indivíduo não é confinado em sua solidão, mas integrado numa multiplicidade de relações e situações que ele exige para sua própria composição situacional e singularização. É sobre essa forma que Sartre assumirá a dialética como [...] a lei de totalização que faz com que existam vários coletivos, várias sociedades, uma história, isto é, realidades que se impõem aos indivíduos; mas, ao mesmo tempo, deve ser tecida por milhões de atos individuais.” (SARTRE, 2002a, p. 156).

Ora, o que passa a ser, então, tal existência frente a esse todo, cujo fundo revela uma multiplicidade histórica como teia de relações, na qual eu sou minha própria relação e situação como projeto, o qual, ao mesmo tempo, resgata e dá unidade à História, na medida mesma em que, para ser essa relação, exige seu ultrapassamento? A resposta só pode ser a singularização, contanto que essa relação implique, justamente, a própria nadificação enquanto essa singularização, enquanto negação qualificada. É essa nadificação que possibilita a abertura, enquanto essa abertura, que, sendo ao mesmo tempo escolha, é singularização. Assim, mais que a imagem de uma totalidade-destotalizada, e com isso a própria imagem do nada como um buraco no ser (SARTRE, 2007a, p. 115, 531), tal fissura pela nadificação é a imposição de uma existência na ordem do mundo. Só se move a História, só se abre o campo de possíveis pela negatividade, quando um possível se erige no mundo, por sua singularização. Por isso, a possibilidade nunca é abstrata, pois ela exige, para abalar tal malha da História, a singularização como presença real e concreta nessa História. Aqui tal negatividade aparece em toda sua concretude e o fenômeno em seu acontecimento.

Observamos que a interiorização não pode ser tomada apenas como um processo íntimo, mas como minha condição de relação, tal que o mundo seja essa pluralidade de relações que me escapa e me obsidia, sob o fundo da contingência do ser. A relação ao todo não é o fechamento por uma unidade, porém, uma abertura enquanto modo (instauração de um possível concreto) de assumir os universais históricos (que não subsistem por si e por essa necessidade só aparecem singularizados), ante a teia de relações singulares das quais minha existência conflui e, por sua vez, singulariza-os por sua própria medida. Assim, esse nada que irrompe a totalidade e a impede de ser é a própria singularização enquanto forma pela qual o mundo se abre a seus possíveis. É por isso que, seja a aventura individual, seja a aventura histórica como aventura mais ampla (SARTRE, 2002a, p. 158), ambas são um processo cujo invólucro é a finitude:

A relação original ao mundo não poderia ser dada, nem pode existir em potência nem permanecer em suspenso em algum flutuamento inerte: é preciso que ela seja vivida, existida; isso quer dizer que cada realidade humana deve se fazer ela mesma e sempre (à neuf), relação singular ao Todo. O ser-no-mundo é um ultrapassamento da pura contingência singular rumo à unidade sintética de todos esses acasos; é o projeto de jamais tomar a aparição particular senão sobre o fundo do Universal e como uma certa limitação concreta do todo. (SARTRE, 2007b, p. 94 e 95, grifos nossos).

 

ADessa maneira, como movimento sem pausa nem intervalo de mediação, sendo ele próprio mediação, pois o para-si não é um termo da relação, mas é ele próprio a relação (SARTRE, 2007a, 672), ainda que não seja uma relação recíproca com o em-si, ele é, por conseguinte, relação singular. Por isso, mesmo que o para-si seja “[...] interiorização da sua própria finitude” (SARTRE, 1983, p. 549) e que, com isso, “[...] seus limites existem na liberdade profunda de seu ser”, no sentido de que “[...] existir sua própria finitude é fazer-se como não sendo o Todo do Ser” (SARTRE, 1983, p. 549), esse fazer alude a essa condição múltipla e singularizante que é tal movimento. Se a existência é fluxo, ela jamais pode ser um particular de um universal. E se há algum sentido de solidão é apenas porque o para-si se torna absolutamente “responsável por sua maneira de ser” (SARTRE, 2007a, p. 593), enquanto subsume “[...] as formas de eu ser meu próprio nada” (SARTRE, 2007a, p. 490), uma vez que o homem não cria o ser, mas se cria enquanto maneira de ser (SARTRE, 1983, p. 543).

Essa maneira, enquanto singularidade, que na finitude é um processo e uma limitação ou ponto de vista (SARTRE, 1983, p. 509), pressupõe, então, que as situações são relações, e a própria finitude para se finitizar na sua singularização exige essa dialética das relações. Assim, somos levados à assunção da ambiguidade da totalidade apontada em O ser e o nada: nem síntese, nem coleção, mas os dois ao mesmo tempo (SIMONT, 1998, p. 137). Síntese e dispersão: diáspora, em outras palavras, relações: “[...] não há senão homens e relações reais entre os homens; desse ponto de vista, o grupo em certo sentido não passa de uma multiplicidade de relações e de relações entre essas relações.” (SARTRE, 2002a, p. 67).

E, se nessa trama social, sobretudo pelo grupo, apontará Sartre na Crítica, o indivíduo comporá não uma comunhão com o outro, mas uma relação de ubiquidade, é porque nela acontecem “[...] relações novas entre os indivíduos que não são atomizados, mas se totalizam para tecer uma resposta inédita a uma situação original.” (REIMÃO, 2005, p. 339). Ora, é pela abertura enquanto negação do todo e não pelo próprio todo que essa teia situacional enquanto História é possível, e não mais por um fundamento que unifica, como o Ser-Deus, enquanto “[...] consciência-testemunha exterior que realiza sua própria unidade como consciência-testemunha de uma exterioridade de indiferença (esta exterioridade de indiferença das unidades acabadas que é a pluralidade).” (SARTRE, 1983, p 163). É por isso que o peso sobre a maneira de ser recai no próprio para-si enquanto relação e por isso o peso é a própria finitude como responsável por sua maneira de ser, por sua singularização, enfim, por sua “livre invenção” (SARTRE, 2002a, p. 622; 2007a, p. 612) ou por seu nada de fundamento.

É o que bem nos recorda Simont, contra a psicologia empírica e contra a psicologia substancialista, de que a pessoa humana deve ser considerada uma “livre unificação” (1998, p. 170). Assim, por mais que a negação seja sempre ao todo, isso não alude nem à totalidade da contingência, que nos é inapreensível pelo limite do fenômeno, nem à tomada da História e da facticidade, numa opacidade absoluta e invariável, contudo, ao contrário, na multiplicidade que minha abertura exige pelo fato mesmo de que a situação supõe que o para-si, enquanto relação singular, denote que “[...] essas relações são moleculares porque só existem indivíduos e relações singulares entre eles.(SARTRE, 2002a, p. 121, grifos nossos).

Nem sujeito de identidade, nem mundo idêntico a si, mas uma abertura singularizante, eis a forma da mediação, eis a relação ao Todo:

O Ser me reenvia ao que eu sou pois, uma vez que sou a Relação, quanto mais o mundo é múltiplo, mais eu me perco para que esta multiplicidade exista, eis minha riqueza (je suis riche). Assim, nós encontramos, na pequenez (humilité) da finitude, o êxtase da Criação divina. (SARTRE, 1983, p. 513, grifos nossos).

 

Dessa feita, Sartre assevera a impossibilidade de separar a causa sui da causa mundi (SARTRE, 1983, p. 542), uma vez que, tal como o deus aristotélico não poderia encontrar motivação para criar fora de si (SARTRE, 1983, p. 542), o para-si só pode ser neste mundo. Logo, essa criação não é uma assunção ontológica, senão ontológico-ôntica (SARTRE, 1983, p. 533), o que assegura que a facticidade é condição imprescindível para que o ser se dê nas suas maneiras de ser e como sua finitude, na pluralidade situacional. Sendo a causa sui, ipso facto, causa mundi, a condição ôntica não é menosprezada pela ontológica, mas justamente a ontológica a requer como condição múltipla, concreta e finita. Só salvaguardando o aspecto ôntico no ontológico é que a multiplicidade das relações como mundo encontra todo o seu peso, ante a finitude, e a finitude sua dimensão de finito, por sua singularização. Do contrário, cair-se-ia num abstracionismo intangível, e da incomunicabilidade das consciências passaríamos à incomunicabilidade dos seres. Nesse ponto, a separação das dimensões apenas traria um prejuízo, não só ao ôntico, mas também ao ontológico, que faria da própria fenomenologia aquela fenomenologia sem fenômenos de que Barbaras acusava Sartre.

Claro que não se trata apenas da consideração ôntica, pois, como já alertava Bornheim (2003, p. 242), “[...] não existe problema filosófico que possa sê-lo fora da consideração ontológica.” E filosófico não apenas no sentido reflexivo, mas existencial, pois, do contrário, seria também entregar a existência à sua absurdidade fáctica, cujas relações e ela mesma enquanto relação se perdem na indiferença do ser. Também não se trata de considerar a extensão do mundo, porque a totalidade aparece como limite da minha finitude, na qual, portanto, a diversidade ôntica não é considerada na sua numeralidade nem infinidade, contudo, como possibilidade múltipla sempre latente no mundo, enquanto fato desse mesmo mundo na trama de suas relações históricas e conjuradas ante minha situação enquanto finitude.

Daí porque a consideração dialética seja ontológica e ôntica, mas numa ontologia que não é antes da condição ôntica, nem a ultrapassa como Espírito ou Natureza, porém, que se exerce como práxis histórica e humana. É justamente disso que o método regressivo-progressivo deveria dar conta, porque, como o lembra Donizetti da Silva (2010, p. 295, grifo nosso), essa má dialética se dá por conta não da oscilação entre ser e nada, nem de um idealismo ou realismo, mas porque “[...] a totalização é sempre parcial, trata-se do homem em sua práxis, e Sartre é o primeiro a reconhecer que a história só é história se estiver inconclusa.

Assim, o aspecto ontológico e ôntico se complementam e se limitam. Complementam-se porque, já que o ontológico não conduz a uma totalidade, para não cair no absurdo dos princípios, ele exige a concretude ôntica como multiplicidade fáctica, isto é, qualitativamente diferenciada – finitude singularizada. Esta, por sua vez, para não cair na totalidade de indiferença do ser, exige o movimento de diferenciação que resguarda o Ser como História, no campo material e fáctico, como reflexo das relações singularizadas. Mas também se limitam, porque a multiplicidade ôntica assegura que a dialética não caia no abstracionismo ontológico, e o aspecto ontológico impede que essa dialética ôntica se reporte à irracionalidade da natureza que Sartre rejeita em Engels.

            Tal é a coroação da finitude, esse ponto de singularização do Ser, no qual o “[...] chassé-croisé do ser e do nada é projetado na serenidade (calme) do Ser” (SARTRE, 1983, p. 534), o todo do ser; ou

[...] “o mistério em plena luz” ou a “face escura da lucidez”. Há, com efeito, um inconsciente no coração da consciência. Ele não é alguma potência obscura e nós sabemos que a consciência é consciência de ponta a ponta. É a finitude interiorizada. Mallarmé é afetado e esmorecido até ao coração de sua intimidade pelo que nós sabemos hoje, mas ele não sabia (SARTRE, 2007b, p. 89, nota do autor, grifos nossos).

 

Ora, a impossibilidade da identidade entre o Ser e a totalidade sugere não apenas uma ausência metafísica, mas a tomada do ser próximo a algo que Sartre sempre rejeitou, a saber, o inconsciente. Todavia, como salienta Simont (1998, p, 185), este em nada tem a ver com o inconsciente dos analistas. É todo o efeito desconhecido que, desde o surgimento da criança de sorte[17] na sua condição de necessidade da liberdade e, portanto, de interiorização do seu meio[18], vai “às cegas” adentrando ao campo fáctico pelo transcorrer de sua vida. Desde essa condição de constituição passiva até a revolta personalizante e o limite vivo do projeto, é na própria consciência pré-reflexiva (SIMONT, 1998, p. 185) que prefigura tal inconsciente, na medida mesma em que o horizonte fenomenológico é, ao mesmo tempo, um horizonte centrífugo (pois o ser é sempre sem relação e, por isso, exterioridade de indiferença) na tomada centrípeta da consciência enquanto finitude singularizada ou processo de finição. Uma vez que ele designa um “[...] vivido original, ele é obrigatoriamente pré-lógico e não pode ser deduzido, mas apenas encontrado (récontré).” (SIMONT, 1998, p. 171, grifo nosso).

Entretanto, o que se interioriza e o que escapa não é a contingência inócua, senão a própria materialidade histórica, meu horizonte presente e seu transcorrer temporal. Assim, seja sincronicamente, seja diacronicamente, o para-si se faz “[...] interiorização da finitude histórica” (SIMONT, 1998, p. 185):

A ambiguidade desta relação vem de que ela não é [relação] do Todo a si mesmo, mas pro-jeto de uma certa realidade contingente e acidental, perdida no âmago dos fenômenos, e que se constitui como ultrapassamento de si rumo à totalidade que o esmaga; é, portanto, ao mesmo tempo, explosão de uma singularidade que se projeta sobre o infinito dos fenômenos e que se perde para que possa existir alguma coisa como um Mundo [...] É ao mesmo tempo abdicação da finitude original e a resolução de se fazer anunciar esta finitude pelo mundo como uma existência particular que aparece sobre o fundo obscuro da Totalidade. (SARTRE, 2007b, p. 95, grifo nosso).

 

            Justamente por isso não se poderia fazer da finitude uma totalidade isolada ou do ser uma totalidade perdida. Esse processo de finição, que é a singularização existencial, é o “[...] modo de viver o puro fado contingente de nosso ser-aí e uma maneira de ultrapassá-lo.” (SARTRE, 2007b, p. 95). Porém, uma vez que tal finitude arroja sua concretude fáctica, não apenas como seu limite, mas como sua condição pela qual sua transcendência se configura na sua facticidade enraizada como seu ultrapassamento, ao reclamar a finitude do acontecimento, esse acontecimento não é apenas uma irrupção como origem, todavia, todo deslizar como singularização concreta. E porque o Todo só aparece na universalidade singularizada, ou finitude interiorizada, essa realidade “contingente e acidental” (SARTRE, 2007b, p. 95), como “maneira de viver e de se fazer existir” (SARTRE, 2007b, p. 95), é a nossa forma de “saborear” o mundo. E, enquanto relação singular ao Todo que me compõe e me escapa, nesse processo, nossa “[...] atitude em relação ao Ser se desvela aos nossos olhos como nossa qualidade pura e inefável, aos olhos dos outros como nosso indefinido estilo. Resumindo, é a estrutura a priori de nossa afetividade.” (SARTRE, 2007b, p. 95). Tal é a tarefa que uma psicanálise existencial e uma fenomenologia devem visar a constituir: a singularidade ou a finitude do finito, como sempre o reclamou Bornheim (2003, p. 193), mas que o mesmo acusava faltar à ontologia fenomenológica sartriana. Cremos que, pelo movimento de nosso trabalho, tal tarefa se torne mais legítima e, quiçá, a tarefa própria de tal filosofia.

Ora, que deve isso à solidão ontológica? De fato, a totalidade nos escapa, e só entra em nosso horizonte como nossa própria totalização enquanto conflui à temporalização histórica tecida pelos “[...] milhões de atos individuais.” (SARTRE, 2002a, p. 156). Não experimentamos esse sem-fundo da contingência, porque somos seu ultrapassamento enquanto singularização como resultado dessa negação do Todo, tal é a condição de absoluto da consciência intencional. Um todo que nos escapa e constitui apenas enquanto nossa totalização, a qual é interiorização do fundamento como ser que é responsável por seu próprio nada e dispensa o homem da necessidade analógica do ser. Entregue a si mesmo, responsável por seu ser, ultrapassamento do Todo, assumindo a criação divina pra si, ele parece, assim, encarnar a própria solidão divina. Tal é o sentido absoluto da revolta e da liberdade. Essa condição centrífuga do real (seja pela nadificação mesma do para-si, seja pelo para-outro, seja ainda àquilo que, pela facticidade, adentra conjuntamente à minha nadificação) alude ao mesmo tempo à total responsabilidade sobre o que entra em minha vida, mas, ao mesmo tempo, à total gratuidade dessa dispersão sempre recomeçada, que é o real e a História.

            Bornheim (2003, p. 151) afirmava que a filosofia de Sartre é aquela que levava às últimas consequências a crise do fundamento pela assunção da finitude do finito, embora criticasse o filósofo por não ter atingido tal finitude, mas que, em nosso trabalho, cremos ter apontado como o oposto. Essa finitude enquanto singularização alude a si mesma como o corolário do Ser. Se é sempre pelo jogo do ser e do nada que o real é posto, Sartre sempre requer a unidade desse lance, isto é, a raiz fáctica da transcendência, cujo ato unitário no lançar desses dois dados exige a singularidade do processo ou lance como seu ser, ou melhor, seu nada de fundamento. A finitude do finito traduz a filosofia de Sartre àquelas que, como resposta a tal crise do fundamento, erigem o humano como esfera própria do ser. Para lembrar Mallarmé, diríamos que o lançar dos dados é a finitude desde seu princípio, sob o fundo da contingência e da História, os dados o ser (em-si) e o nada (para-si), e o movimento único entre o lance e o resultado é a singularização. No entanto, o jogo, para nós, é totalmente humano. Partindo do fundo inconsciente da exterioridade de indiferença, traduzidos já no imediato em nossa facticidade pela malha da História com seus universais, jogando e dançando entre o ser e o nada, deslizamos por esse movimento como nossa singularização. Finitude de ponta a ponta, a liberdade enquanto singularização é a nossa vitória pela finitude.

Novamente nos deparamos com aquele gosto da solidão ontológica. Mas, frente à abertura do todo, uma vez que basta um ato, um acontecimento, para que tudo se rasgue, se rompa, e que esse acontecimento mesmo sou eu (SARTRE, 2006, p. 74); que liberdade por vir e que condição humana poderá nos aparecer, no irromper de uma vida humana? Nesse sentido, uma solidão, que é abertura do humano por sua existência mesma, já não é totalmente solidão, mas, justamente, possibilidade do absolutamente Outro (no) homem: “Que glória, se bastasse que Genet começasse um sonho para que todas as consciências fossem por ele afetadas, para que a humanidade inteira perdesse a bússola, abandonasse o leme e se deixasse deslizar para o impossível.” (SARTRE, 2002b, p. 397, grifo nosso).

 

Totality and finitude: on singularization in Sartre

Abstract: This article aims to analyze the problem of totality in Sartre in its relation with finitude. We begin with the problem of ontological solitude by which we analyze Being as the exteriority of indifference and the event of the it-self or ontological act. Postulating this event as a process of singularization and the life of the individual, we show how the finitude affects totality as totalization and singularization. Image condensed by the singular universal, the finitude, then, is not taken as an isolated totality, but is understood by its opening of the human in the singularization of a life.

Keywords: Ontology. Phenomenology. Finitude. Totality. Singularity.

 

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Recebido: 19/4/2022

Aceito: 20/6/2022

 



[1] Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5180-6053. E-mail: marceloprates1@gmail.com.

[2] Tal é a síntese da tese ontológica: “O ser, com efeito, onde quer que seja, de onde quer que venha, e sob qualquer modo que seja considerado, quer seja ele o em-si ou o para-si ou o ideal impossível do em-si-para-si, na sua contingência primeira, é uma aventura individual.” (SARTRE, 2007a, p. 644, grifos nossos). Veja-se que não se trata de Ser e Nada, porém, de modos distintos de um mesmo Ser, pelo seu fundamento primeiro que é a contingência. Nesse caso, o mundo como resultado da relação entre em-si e para-si na sua unidade sintética não deveria ser tomado pelo princípio do Ser e do Nada, mas por sua aventura individual, isto é, sua finitude. Assim, é a finitude que subsume os princípios – e não o contrário. Embora apareça como um “buraco no ser”, tal imagem não é o resultado do jogo de princípios superiores, todavia, dado no coração mesmo da finitude, na imanência de um indivíduo como sua aventura.

[3] É essa condição que leva à separação entre ontologia e metafísica, em Sartre, isto é, entre o caráter estrutural da ontologia e o caráter genético da metafísica (PRADO JUNIOR, 2006, p. 33; 1989, p. 217). Esta última seria tomada não num sentido heideggeriano, mas resguardando “[...] algo do sentido quase negativo que recebera na Crítica da Razão Pura de Kant. Não o sentido de uma ciência ilusória (delírio da Razão), mas antes o de uma heurística que não deixa de ter sentido sem ser constitutiva, algo como um raciocínio hipotético que se diferencia do caráter apodítico da ontologia fenomenológica.” (PRADO JUNIOR, 2006, p. 33).

[4] Nesse sentido, é apenas porque o fenômeno se apresenta como totalidade que é hipostasiado o ser como totalidade, além de que, sendo o mundo resultado da mediação entre o ser e o nada, sendo o nada totalidade destotalizada e o mundo totalidade totalizada, o Ser só pode ser compreendido como reflexo dessa mesma totalidade, enquanto síntese impossível: “O para-si, que se mantém frente ao ser como sua própria totalidade, sendo ele mesmo o todo da negação, é negação do todo. Assim, a totalidade acabada, ou mundo, revela-se como constitutiva do ser da totalidade inacabada pela qual o ser da totalidade surge ao ser. É por meio do mundo que o para-si faz-se anunciar a si mesmo como totalidade destotalizada, o que significa que, por seu próprio surgimento, o para-si é revelação do ser como totalidade, na medida em que tem de ser sua própria totalidade de maneira destotalizada.” (SARTRE, 2007a, p. 217).

[5] O termo jogo convém mais para nomear tal relação, pelo fato de não haver totalidade a priori a dimensionar a forma mesma da liberdade e do fenômeno, senão pela quase-totalidade, a qual, como vimos, aponta à finitude do empreendimento. O resultado desse jogo ao qual se exigem nossos lances (já que somos nossa livre invenção), essa relação ontológica entre facticidade e transcendência, é a finitude singularizada.

[6] Observemos: “[...] a negação que sou e que desvela o isto tem de ser à maneira do ‘era’. Essa pura negação que, enquanto simples presença, não é, tem seu ser atrás de si, como passado ou facticidade. Enquanto tal, é preciso reconhecer que ele jamais é negação sem raízes. Ao contrário, é negação qualificada, se quisermos entender com isso que traz sua qualificação atrás de si como o ser que tem de não ser sob a forma do ‘era’. A negação surge como negação não-tética do passado, ao modo da determinação interna, enquanto faz-se negação tética do isto.” (SARTRE, 2007a, p. 238, grifos nossos). Assim, a negação é sempre uma tomada conjunta com a facticidade e não algo que se opera sobre ela. Mesmo que haja uma anterioridade lógica do Ser, o surgimento do nada é o próprio surgimento do e do mundo. Só por abstração é que podemos purificar esses princípios, os quais, na realidade, são sintéticos.

[7] Isso porque “esta desvela-se a mim pelo fato de que a negação que sou é uma unidade-multiplicidade, mais que uma totalidade indiferenciada. Meu surgimento negativo ao ser fragmenta-se em negações independentes que só tem como nexo entre si o fato de serem negações que tenho de ser, ou seja, que tomam sua unidade interna de mim, e não do ser” (SARTRE, 2007a, p. 226 – negrito meu). Disso se segue: “Assim, a unidade e a pluralidade supõem originalmente um ser que realiza a unidade e a pluralidade no Ser, isto é, que seja ele mesmo sua própria relação. Portanto, o Ser não é antes do surgimento da falta, nem uno nem múltiplo. Não que ele seja outra coisa, mas simplesmente porque um ser só se manifesta como um ou como plural com a aparição do “há”. Nós poderíamos opor à teoria da unidade progressiva a coesão do Em-si. Mas este não é unidade – pois a unidade supõe justamente a diversidade – ela é pura densidade ou compressão. É precisamente a descompressão que, criando o recuo, produz ao mesmo tempo a quase-pluralidade. Mas é ela também que coloca a pluralidade e a exterioridade, pois o Para-si se determina como não sendo o conjunto dos seres” (SARTRE, 1983, p. 163, negrito meu). Observamos que é sempre pelo para-si que a exterioridade se torna essa pluralidade que invade o campo prático, mas que, por ter seu ser próprio (tese da transfenomenalidade do ser), ele não é constituído em seu ser pelo para-si, mas se constitui concomitantemente na situação.

[8] Complementamos: “Sartre não está alheio à multiplicidade que compõe o objeto de sua análise; no entanto, compreende que o múltiplo apenas pode fazer sentido caso se constitua como um todo. Essa exigência se aplica devido ao método progressivo-regressivo, afinal, o sentido da análise se encontra na síntese, isto é, a partir do existente apenas se justifica a totalização dialética. A totalização é responsável pela organização e unificação da pluralidade, e ela apenas se possibilita num cenário humano” (SILVA, 2010, p. 216).

[9] Acrescentemos: “[...] concebemos bem o que isso significa: se nós supomos a unidade antes do todo do Ser (absoluto espinozista), nós não poderemos descender à nenhuma determinação particular, pois não há nenhum meio para a plenitude absoluta conter nela mesma sua própria negação de um ponto de vista individual (que seria o modo). De outra parte, do ponto de vista próprio da negação pura, nós só podemos conceber que ela apareça sobre o fundo de uma unidade absoluta, porque, então, é preciso ao mesmo tempo negar a unidade na sua simplicidade própria. De resto, a unidade é necessariamente unificação. E não é jamais um dado, mas um ato. O dado é necessariamente plural e ele apenas aparece como um dado a um ser que é sua própria unidade.” (SARTRE, 1983, p. 162).

[10] Na verdade, é sobretudo pela tese da História na filosofia de Sartre que tal afirmação ganha mais legitimidade e fundamento. Trata-se de tese complexa, que exigiria maior trabalho e foge ao escopo proposto; apenas a indicamos mais à frente, neste trabalho.

[11] “Assim, o mundo, como correlativo de uma totalidade destotalizada, aparece como totalidade evanescente, no sentido de que jamais é uma síntese real, mas limitação ideal obtida pelo nada de uma coleção de istos. Assim, o contínuo como qualidade formal do fundo deixa aparecer o descontínuo como tipo da relação externa entre o isto e a totalidade. É precisamente esta evanescência perpétua da totalidade em coleção, o contínuo no descontínuo que nós chamamos espaço.” (SARTRE, 2007a, p. 219, grifos nossos). Encontramos aqui, ainda, os resquícios de idealismo de tal ontologia pela determinação do mundo como ideal. Não obstante, com a determinação dialética do mundo e a entrada da História, é um lugar-comum no pensamento de Sartre aceitar essa posição e a sua reparação posterior. Em todo caso, para maior aprofundamento, veja-se o trabalho de Donizetti da Silva, aqui utilizado.

[12] Novamente, o fazer pressupõe a autonomia da consciência se se quer enquanto fazer, sobretudo como práxis: “Se estou em condições de poder fazer qualquer coisa em geral, é necessário que exerça minha ação sobre seres cuja existência é independente da minha existência em geral e, em particular, da minha ação [...] a liberdade, portanto, encerra a existência de arredores a modificar, obstáculos a transpor, ferramentas a utilizar.” (SARTRE, 2007a, p. 551).

[13] Embora o objeto entre em minha trama existencial, ele é tomado em geral na sua indiferença social e histórica: “Com efeito, no campo prático-inerte, é a indiferença a tônica de nossa (falta de) percepção cotidiana do outro: só o notamos, de fato, quando ele interfere diretamente em nossa vida, nossos interesses, etc. No dia a dia, presos ao modo de vida serial, praticamos efetivamente aquele “solipsismo de fato” pelo qual se definia ontologicamente a indiferença em O ser e o nada.(SANTOS, 2014, p. 182, grifo nosso).

[14] “[...] é impossível para mim ter qualquer experiência do objeto, como objeto distinto de mim, sem constitui-lo como objeto.” (SARTRE, 2007a, p. 212).

[15] Com relação a isso, é preciso observar, em O Ser e o Nada, a noção de ante-historicidade: “Também meu ser-para-outro, tal como o surgimento ao ser de minha consciência, tem o caráter de acontecimento absoluto. Uma vez que este acontecimento é ao mesmo tempo historialização – pois eu me temporalizo como presença ao outro – e condição de toda história, vamos denominá-lo por historialização ante-histórica.” (SARTRE, 2007a, p. 322). Ante-histórica, não no sentido de um tempo anterior à história, “[...] mas que faz parte desta temporalização original que se historializa e torna a história possível.” (SARTRE, 2007a, p. 322). Com isso, não que essa dimensão fáctica esteja ausente, pois é dada conjuntamente, mas por conta desses resquícios idealistas ou mesmo pelo grau de abstração em alguns momentos da obra, costuma-se relegar tal dimensão sintética.

[16] Acrescentamos: “[...] o cenário humano é o campo específico que totaliza a pluralidade, mas a totalização está sempre em curso; ainda que o objetivo almejado seja a totalidade, apenas são alcançadas totalizações parciais e deficitárias, porque a totalidade se define ontologicamente por um ser que não é a simples soma de suas partes. Por exigir reconhecer-se inteira e em cada uma de suas partes e necessitar de contato consigo mesma na relação entre suas partes e na relação dessas partes consigo, a totalidade apenas existe no âmbito do imaginário. A totalidade é correlata de um ato de imaginação e é, ao mesmo tempo, o objetivo almejado das totalizações presentes.” (SILVA, 2010, p. 216).

[17] Tal é a empreitada psicanalítica (e, dizemos, ontológica e fenomenológica) realizada em O Idiota da família: “O que procuramos aqui, nós, é a criança de sorte, o encontro de certo corpo com certa mãe: laço não-compreensível visto que duas séries se encontram sem que possamos explicar o cruzamento; e, ao mesmo tempo, compreensão primeira, fundamento compreensível de toda compreensão: de fato, essas determinações elementares, longe de somarem ou afetarem uma à outra em aparência, são imediatamente inscritas no campo sintético de uma totalização [...] Por fim subimos o curso dessa vida até o seu começo: nós a interrogamos sobre o primeiro acaso ultrapassado, isto é, sobre a característica fundamental de seu destino.” (SARTRE, 2013, p. 59, grifos nossos). Observemos que, com isso, o processo não é de todo conhecido, totalidade impossível para um ser que é totalização, mas totalidade compreensível, na medida em que sou essa totalização. Por isso, “[...] a compreensão refere-se sempre a um processo, e é a antítese do saber absoluto.” (SILVA, 2003, p. 57, grifos nossos). Portanto, “[...] a compreensão nada mais é que minha vida real, isto é, o movimento totalizador que reúne meu próximo, eu próprio e o meio ambiente na unidade sintética de uma objetivação em andamento.” (SARTRE, 2002, p. 116, grifos nossos). Assim, se enfatizamos a singularização como vivência e a vida como essa mediação vivida, é porque o que o vivido aponta é justamente a sua compreensão e não o seu conhecimento: “Quando eu mostro como Flaubert não se conhece por ele mesmo e como ao mesmo tempo ele se compreende admiravelmente, eu indico o que eu chamo de vivido, isto é, a vida em compreensão consigo mesma, sem que seja indicado um conhecimento, uma consciência tética. Essa noção de vivido é uma ferramenta que eu me sirvo mais que eu ainda não teorizei. Eu o farei em breve. Se vocês querem, em Flaubert, o vivido é quando ele fala das iluminações que ele tem e que o deixam em seguida na sombra sem que ele possa reencontrar os caminhos. De uma parte, ele está na sombra antes e na sombra depois, mas, de outra parte, há o momento onde ele vê ou compreende alguma coisa sobre si mesmo.” (SARTRE, 1976, p. 111).

[18] Reiteramos: “Ignorância multiforme que se apossa de minha liberdade e a aliena sem que ela seja avisada, a partir dos espessos deformantes da matéria ou das novas verdades dos séculos porvir. O inconsciente, esta discordância inaparente entre o investimento unívoco de minha subjetividade em tal ou tal escolha e a objetividade plurívoca que a petrifica e a desvia – sincronicamente pela contra-finalidade, e diacronicamente pela inevitável infidelidade do mundo depois do amanhã e das gerações futuras.” (SIMONT, 1998, p. 186, grifos nossos).