COMENTÁRIO A “MÉTODO E QUESTÃO JUDAICA EM HANNAH ARENDT”

 

Paulo Eduardo Bodziak Junior[1]

 

Referência do artigo comentado: Pinheiro, Romildo Gomes. Método e questão judaica em Hannah Arendt. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 210 - 230, 2022.

 

No artigo “Método e questão judaica em Hannah Arendt”, Romildo Gomes Pinheiro (2022) propõe revisitar Origens do Totalitarismo, obra que inaugura o pensamento político amadurecido da autora judia, após suas experiências de formação filosófica, fuga do nazismo e exílio definitivo nos Estados Unidos. Sua proposta é pertinente, porque, ao buscar uma interpretação das questões mobilizadas na obra, a partir de sua própria estrutura, permite olhar para o texto de 1951 sem o fardo de iluminar toda a obra arendtiana, como já se tornou cânone desde a publicação de Hannah Arendt: a reinterpretation of her political thought, por Margareth Canovan, em 1992.

Embora a intérprete inglesa estivesse certa sobre os ganhos de compreensão sobre a obra arendtiana, quando deslocamos seu eixo de leitura da teoria da ação, como preferiam Bhikhu Parekh e George Kateb[2], para uma teoria do totalitarismo, também é verdade que a mudança ocorreu ao custo de se privilegiar com mais atenção a terceira parte de Origens do Totalitarismo, especialmente seu último capítulo, “Ideologia e Terror”, em detrimento das duas primeiras partes. Desse modo, o fato elementar de explorar e trazer à discussão os pensamentos de Arendt, nas condições inerentes à obra de 1951, já é merecedora de leitura atenta.

Para explicitar os movimentos do pensamento arendtiano, em busca de compreensão, especialmente quanto às raízes históricas da “questão judaica” e seu papel na ascensão do nazismo, Pinheiro (2022, p. XX) explora a existência de um “regime de historicidade”, termo de François Artog, localizado entre o totalitarismo e os eventos que o precederam. Espera, assim, sustentar sua interpretação de que o período aberto pela Revolução Francesa e encerrado na “formação nacional das sociedades retardatárias” instalou uma situação de “atraso” em certas sociedades, como a russa, a alemã e a italiana – nações nas quais a modernização e a realização das inovações trazidas Revolução Francesa não ocorreu pelas mãos da sociedade civil, mas “pelo alto”, através de uma aliança entre o Estado e os Intelectuais oriundos da aristocracia decadente –, o que teria permitido a ascensão totalitária. Segundo o autor, a constatação de regimes de historicidade como o definido pelo “atraso” unificaria cada uma das partes de Origens do Totalitarismo, e as três entre si, sob um “princípio metodológico” (Pinheiro, 2022, p. XX) do pensamento arendtiano, na obra de 1951.

Como pretendo expor, neste breve comentário, a relação pretendida por Pinheiro entre método e sua hipótese do “atraso” traz dificuldades que, todavia, podem se tornar secundárias, quando a ambição metodológica passa a coadjuvar a “análise em termos históricos” (ARENDT, 2008, p. 418), pretendida por Arendt. A partir daí, podemos vislumbrar o que considero ser a maior contribuição do texto de Pinheiro: o conceito de “atraso” como categoria de compreensão, o qual, como também veremos, é usado pela própria Arendt, para explicar o uso político do antissemitismo.

O conceito de “atraso” é apresentado por Pinheiro (2022, p. XX) em contornos metodológicos para capturar o modo pelo qual a autora procederia, em sua obra de 1951, na compreensão dos elementos que dão origem à experiência totalitária. Para isso, propõe uma dualidade pensada a partir do conceito arendtiano de “lacuna”, que articula evento histórico e processo de sua origem, nos termos de um encontro entre passado e futuro. Pinheiro compreende a temporalidade histórica a partir da experiência que Arendt descreve, em Entre o passado e o futuro e em A vida do espírito, como interrupção do fluxo contínuo do tempo (ARENDT, 1992, p. 152; 2011, p. 37).

Para a autora alemã, essa lacuna corresponde à posição do homem em sua luta constante contra o tempo, que o separa do passado e do futuro, mas também definindo cada um deles e instalando o próprio presente. Todavia, nosso intérprete traz essa experiência ao escopo do período histórico, referindo-se ao período da Revolução Francesa ao início do século XX como um intervalo entre rupturas. Com isso, almeja explicar que o nascimento do novo – o evento totalitário –, em meio à “conservação da ordem antiga”, configura a “lacuna” descrita por Arendt, enquanto um “regime de historicidade”. Em suas palavras: “Arendt engrena presente, passado e futuro numa ordem do tempo que funciona por sua capacidade de explicar os regimes totalitários.” (PINHEIRO, 2022, p. XX).

Assim, peço licença para divergir dos contornos metodológicos atribuídos pelo intérprete à noção de “atraso”, sem descartar o termo em si. É perfeitamente plausível compreender um intervalo histórico descrito em Origens do Totalitarismo como uma “lacuna” no tempo, afinal, toda a obra corresponde a um exercício de pensamento. Como afirma Odílio Aguiar,

[...] o importante não é a reprodução, o espelhamento descritivo do que ocorreu, mas a fidelidade total às experiências geradoras dos pensamentos em pauta e isso eles não podiam questionar na obra arendtiana. Eles não entenderam que Origens do Totalitarismo não é para ser lido como livro de ciência, mas de filosofia. Nele, a autora está pensando e não apenas reconstituindo os fatos. (AGUIAR, 2008, p. 74).

 

Por isso mesmo, os intervalos históricos descritos por Arendt são exercícios de pensamento, instalados na “lacuna” já indicada por Pinheiro, mas não possuem predicados de antiguidade, conservação ou novidade. Estes pertencem à temporalidade histórica, à qual não se aplicam as metáforas de interrupções, apropriadas apenas à experiência do pensamento. Nessa linha, Arendt afirma: “Aplicadas ao tempo histórico ou biográfico, nenhuma dessas metáforas pode absolutamente ter sentido, pois não ocorrem aí lacunas.”[3] (ARENDT, 2011, p. 39).

Não convém estabelecer parâmetros de caráter metodológico ao que Arendt realiza, em Origens do Totalitarismo, ao menos não no sentido de um procedimento prévio e externo ao objeto de interesse, simplesmente porque isso exigiria uma generalização tão ampla que o princípio metodológico buscado coincidiria com a atividade de pensar em si. Assevera a autora: “[...] o próprio pensamento emerge de incidentes da experiência viva e a eles deve permanecer ligado, já que são os únicos marcos por onde pode obter orientação.” (ARENDT, 2011, p. 41). Logo, importa mais à autora adquirir experiência sobre como pensar que estabelecer um método de pensamento.

Tais ponderações sobre o caráter metodológico do conceito de “atraso” não o invalidam como categoria de compreensão. O Caso Dreyfus, analisado por Arendt em Origens do Totalitarismo, mostra que o “atraso” não foi produzido apenas em países como Rússia e Alemanha, os quais tiveram dificuldades de implantação das conquistas revolucionárias, mas teve um caso emblemático na própria França. O mal causado ao oficial judeu Alfred Dreyfus, condenado arbitrariamente, provocou rumores até mesmo na Alemanha do Kaiser e na Rússia czarista, tamanho o êxito de expansão do princípio de igualdade, todavia, apenas a França, perpetradora da ato arbitrário, foi, nas palavras de Arendt, “suficientemente moderna” para tratar o assunto como uma questão política.

Nota-se, portanto, que o descompasso entre as modernas instituições políticas e a sociedade, ainda formada por parcelas remanescentes do ancien régime, é explorado por Arendt, em sua análise do uso político do ódio aos judeus, como lembra a autora: “Não era nem a vida militar, nem a honra profissional, nem o sprit-de-corps que mantinha unidos seus oficiais para formar um baluarte revolucionário contra a República e contra as influências democráticas; era simplesmente o laço de casta.” (ARENDT, 2001, p. 122). Ou seja, o Exército francês era mantido como espaço da aristocracia no Estado, o que também o aproximava do clero. No Parlamento, repousavam os interesses mais fluidos da burguesia, enquanto o Judiciário buscava se afirmar como poder independente, na sociedade francesa. Cada parcela da sociedade procurava acomodar seus interesses em parcelas do Estado, a despeito das promessas universalizantes do esclarecimento.

Portanto, a tese trazida por Pinheiro, com referências a Marx e Gramsci, que instigam estudos sobre novas relações de Arendt com tais pensadores, é precisa e proveitosa, em sua leitura de Origens do Totalitarismo, ainda mais quando liberada do fardo de responder a problemas externos ao escopo histórico da obra. Afinal, o Caso Dreyfus nos permite sustentar que a tese do “atraso”, para pensar a relação entre Estado e sociedade, é efetivamente um pano de fundo eficaz na compreensão da gênese do papel político do racismo. Nele, vemos operar com clareza o elemento de convivência do novo com estruturas antigas, tal como foi destacado pelo intérprete.

 

Referências

AGUIAR, O. A tipificação do totalitarismo em Hannah Arendt. Dois Pontos, Curitiba, São Carlos, v. 5, n. 2, p. 73-88, out. 2008.

ARENDT, H. A vida do espírito. Trad. Antônio Abranches, César Augusto e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992.

ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Trad. Roberto raposo. São Paulo: Perspectiva, 2011.

CANOVAN, M. Hannah Arendt: A reinterpretation of her political thought. New York: Cambridge University Press, 1992.

KATEB, G. Hannah Arendt: politics, conscience, evil. Oxford: Martin Robertson, 1984.

PAREKH, B. Hannah Arendt and the search for a new political philosophy. London: Macmillan, 1981.

Pinheiro, R. G. Método e questão judaica em Hannah Arendt. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 210 - 230, 2022.

 

Recebido: 26/02/2022

Aceito: 15/3/2022

 



[1] Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9018-8104. E-mail: paulo.bodziak@gmail.com.

[2] Refiro-me aqui aos clássicos: Hannah Arendt and the search for a new political philosophy e Hannah Arendt: politics, conscience.

[3] Arendt repete essa sentença com as mesmas palavras, anos mais tarde, em A vida do espírito (1992, p. 158), indicando que seu posicionamento sobre o tema não havia sofrido mudanças.