Referência do artigo comentado: Oliveira, J. R. de. Para uma ethical turn da tecnologia: por que Hans Jonas não é um tecnofóbico. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 165 - 179, 2022.
Gilbert Simondon (1924-1989) é um filósofo francês que se dedicou ao estudo filosófico da técnica, deixando uma contribuição original nessa área, a qual é retomada hoje, na França, por alguns estudiosos. Sua contribuição vai na direção não somente de se compreender o que é a técnica, mas também ao modo como ela se relaciona com outros aspectos da existência humana. Não pretendo discutir aqui se Jonas é tecnofóbico ou não, mas contrapor à sua visão da técnica uma outra visão que me parece mais tecnofílica, embora admita que Jonas também visualize a técnica como uma aliada inevitável no alívio do sofrimento humano, o que ao menos atenua a visão dos que veem nele uma atitude desfavorável à técnica. Não julgo ser acertado atribuir a Jonas a mesma tecnofobia que os críticos veem em Heidegger. Aliás, seu objetivo, como bem acentuado por Oliveira (2022), é pensar uma ética para a civilização tecnológica, apontando que a técnica não pode ser vista como eticamente neutra. Daí a advertência de Jonas, em sua heurística do temor, que convida à prudência no uso da tecnologia, de sorte que ela não venha a provocar danos irreversíveis à natureza humana.
Tentarei reunir, de forma muito resumida, alguns elementos que nos ajudam a entender a reflexão de Simondon sobre a técnica, a partir das noções de concretização, individuação, progresso técnico, essência da tecnicidade, relação homem-natureza, natural e artificial e a diferença antropológica, tal como ele a compreende. Faço uso da obra pela qual ele se tornou conhecido, Du mode d’existence des objets techniques, que consiste numa descrição do modo de existência dos objetos técnicos, assim como de escritos posteriores reunidos recentemente, em obras como Sur la Technique e Imagination et Invention, em que ele aborda os aspectos psicossociais da técnica, além de recorrer a alguns de seus mais conhecidos intérpretes. A filosofia de Simondon, escrita no contexto dos anos 1960 e 1970, viu nascer duas crescentes correntes: a dos tecnocratas e a dos primeiros ecologistas. Crítico ferrenho dos primeiros, aproxima-se da reflexão da ecologia, mostrando-se simpático ao respeito dos ecologistas pelos ciclos naturais e à luta pela preservação das espécies, mas rejeita o antagonismo que vê neles entre ciência e tecnologia. Encontramos nele uma análise positiva e otimista – por que não dizer também humanista? – da técnica, cujo desenvolvimento é para ele fundamentalmente integrativo, além de uma outra visão da natureza.
Simondon não concebe o objeto técnico como algo dado, mas como algo que tem uma gênese ou um processo pelo qual ele alcança a perfeição. Não são a utilidade e a lucratividade que garantem seu sucesso. Tais critérios são secundários. Para Simondon, é o processo de concretização que deve ser analisado – e nisso consiste a novidade de sua tese. A concretização começa com uma forma abstrata, quando o inventor tem a ideia do objeto e imagina mentalmente seu funcionamento. Nessa primeira fase, cada unidade material e teorética é tomada como absoluta. A invenção tecnológica é que vai reunir, num sistema coerente, todos os elementos dispersos. No processo de concretização, cada elemento adquire uma pluralidade de funções, deixando de servir a uma única função. Assim, o processo de concretização traz não apenas novas propriedades, mas também funções complementares. Mesmo que uma invenção tenha se realizado, visando a alcançar um objetivo específico ou responder a um problema, seus efeitos são imprevisíveis e fogem à mera tentativa de resolver o problema proposto. Logo, o processo de concretização unifica certos elementos dispersos, como sinergia, funcionalidade, coerência, ressonância interna e formalização.
Simondon analisa também o modo de existência do objeto concreto, o qual, quando entra em operação, se separa do seu inventor, bem como das intenções iniciais com que ele foi criado. Ele se guia a partir daí por uma coerência interna, isto é, por suas próprias regras e limites, ganhando autonomia sobre seu criador. Simondon concebe um artifício imbuído de uma força própria. Para ele, classificar um objeto como artificial ou natural não depende mais de sua origem, todavia, o que interessa é se o modo de existência do objeto é abstrato ou concreto. O objeto técnico abstrato é artificial enquanto o objeto técnico concreto se aproxima do modo de existência dos objetos naturais. Dessa maneira, modificações genéticas introduzidas nos objetos naturais, retirando-lhes seu ritmo natural, fazem deles objetos artificiais, já que eles não são mais capazes de seguir sua própria evolução natural, ficando, pois, na pendência do homem que neles introduz modificações. Simondon define artificialidade como “[...] o que é intrínseco à ação artificializadora do homem, quer essa ação afete um objeto natural ou um objeto que é inteiramente feito pelo homem.” (Simondon, 2012, p. 57).
Simondon foge à rigidez de algo concebido como duradouro e propõe a concretização como uma tendência no desenvolvimento de objetos técnicos, embora o objeto retenha vestígios de suas origens abstratas e artificiais, não deixando nunca de pressupor um objetivo concebido e executado por seres humanos (Chabot, 2003, p. 17). Assim, ele aproxima as distinções entre o artificial e o vivo. As invenções tecnológicas não buscam adaptação ao mundo, porém, a construção de algo inteiramente novo, a partir da integração de elementos distintos e desintegrados. É dentro de um todo relacional que as potencialidades escondidas dos objetos podem ser conhecidas, e não no isolamento de cada objeto, fora dessa rede de relações. A invenção consiste, por conseguinte, na resolução de um problema não resolvido ou deixado em aberto pelas etapas anteriores, estabelecendo uma coerência entre o que antes estava desconexo. Logo, concretizar um objeto é encontrar uma forma de funcionamento coerente com relação às suas próprias leis. Consequentemente, a técnica não é vista como um conjunto de ideias concretizadas, mas como um conjunto de coisas concretas, com suas próprias leis. Não se trata de uma autonomia das técnicas em si mesmas, entretanto, do fato de que o objeto resulta de vários fatores: a ideia inicial do objeto, sua materialização e o mundo socioeconômico ao qual o objeto deve se integrar (BARTHÉLÉMY, 2005b, p. 168ss).
Além da concretização, a filosofia de Simondon tem como um dos eixos centrais a noção de individuação, a qual se aplica tanto aos seres físicos, vitais, psicossociais e técnicos. Individuação designa o processo pelo qual um indivíduo se torna aquilo que ele é. Simondon vê o indivíduo como produto de uma relação, isto é, ele nasce da relação entre energia e estrutura. A concepção substancialista exclui toda gênese do objeto, enquanto a hilemórfica pressupõe uma gênese. Ambas relacionam o ser individual a um princípio de individuação anterior à própria individuação, capaz de explicá-la, produzi-la e conduzi-la. O indivíduo não pode, no entanto, ser tratado como uma realidade absoluta e isolada, mas como uma realidade relativa e parcial, que supõe, antes de si, uma realidade pré-individual, cujos potenciais não se esgotam com a individuação, que, aliás, faz aparecer a relação indivíduo-meio. A individuação supõe um sistema metaestável (no limite entre estabilidade e instabilidade) rico em potenciais, onde há uma tensão entre dois reais díspares ou uma diferença de potencial no interior do sistema (Chateau, 2008, p. 47-48; BARTHÉLÉMY, 2005a, Chap. 3).
Não há unidade no ser pré-individual nem fases, pois, no ser individuado, há uma resolução que aparece pela repartição do ser em fases (devir). O devir aqui não é o que vem ao ser (isso seria ainda entender o ser como substância), contudo, é uma dimensão do ser ou a “operação mesma de individuação em vistas de se realizar pelo aparecimento de fases no ser que são aliás as fases do ser”(CHATEAU, 2008. p. 48) Esse caráter de “devir do ser pelo qual ele se torna aquilo que ele é enquanto ser” é designado ontogênese. Na ontogênese, o ser pré-individual se individua sem esgotar no ser individuado toda sua pré-individualidade, pois a operação de individuação de um ser faz aparecer no mesmo gesto seu meio associado (milieu) (CHATEAU, 2008, p. 48). O estado do ser pré-individual é, portanto, o de potencialidade, tensão, incompatibilidade, disparidade e diversidade de possibilidades de resolução e que, nessa condição, se articula com o ser já individuado que está, ele mesmo, em relação com seu meio, determinando todo esse conjunto a operação individuante (CHATEAU, 2008, p. 49). Não há um princípio ou um acontecimento de individuação, mas há, entretanto, um processo de determinação.
Isso faz a operação individuante, segundo Simondon, indefinida, indeterminada, sem um princípio de individuação, que deixa todos os determinismos atuarem sem, no entanto, se confundir com eles e, ao mesmo tempo, sem se confundir com a gênese empírica que pode ser conhecida cientificamente, com base na série de causas e efeitos que faz passar de um estado determinado a outro. Assim, o indivíduo é o resultado de um estado de ser no qual ele ainda não existia nem como indivíduo nem como princípio de individuação. E a ontogênese continua seu processo após a determinação e individuação do ser determinado, vindo sempre do ser indeterminado e pré-individual ao qual o ser individuado permanece aberto. O conhecimento objetivo da ciência não é nem o conhecimento do pré-individual nem o conhecimento da individuação, embora o conhecimento objetivo não esteja excluído dessa apreensão reflexiva do processo de individuação do pensamento do sujeito cognoscente, o qual permite apreender a individuação, e não conhecê-la (Chateau, 2008, p. 50).
O objeto tem uma história, a história dos sistemas técnicos, a qual começa na fase artesanal que transmite o aprendido de uma geração a outra, em que o trabalho segue o ritmo da natureza. A fase seguinte é a da enciclopédia, que consiste na difusão de um saber racionalizado. A terceira fase é a das revoluções industriais, as quais fazem nascer uma cultura tecnocrática e uma moral do rendimento. A última fase da evolução técnica é a da cibernética, caracterizada por uma alta capacidade de transmissão da informação. De acordo com Simondon, a partir desse ponto, homem e máquina se tornam complementares. As máquinas não substituem a atividade humana, mas garantem o seu prolongamento. A passagem de um sistema técnico ao seguinte guarda os traços do sistema que o precedeu, porque as habilidades artesanais convivem com a mentalidade enciclopédica e com as atividades industriais.
Contrariando a mentalidade vigente em sua época que acreditava que o progresso técnico era limitado, Simondon sustenta, ao contrário, que ele é ilimitado e imprevisível. Para ele, cada período da história é marcado pela escolha de um domínio. Todavia, o progresso depende do que se transmite de uma fase à seguinte, pois o homem constrói sobre a herança recebida. Após um entusiasmo inicial, marcado pela criatividade, cai-se no automatismo ou no formalismo verbal. Ao seu ver, a técnica conheceria ainda um progresso lento, contínuo e profundo, sendo que suas potencialidades não se esgotam. Um progresso, entretanto, não consiste em novidades técnicas constantes, mas na capacidade do sistema em manter a ressonância homem-técnica.
Simondon quer descrever qual é o modo de existência próprio do objeto técnico, o seu ser próprio e não sua utilidade, que não é uma categoria propriamente técnica. Um objeto técnico não precisa necessariamente ser comercializado ou mesmo produzido por razões comerciais ou de lucro e, mesmo assim, pode permanecer eficaz e adaptável por um utilizador qualquer. As finalidades práticas, as condições de uso e de custo de um objeto podem determinar as condições de sua fabricação ou de sua comercialização, contudo, isso não determina sua essência de objeto propriamente técnico. O que define seu ser propriamente técnico é sua concretização, isto é, “[...] uma relação a si mesmo de tudo que, nele, nasce e se desenvolve no sentido de sua coerência e de sua unidade” (CHATEAU, 2008, p. 31ss).
É sua concretização ou sua gênese que o faz existir como solução de um problema, para atender a uma necessidade interna que é propriamente técnica. Ou seja, é o conjunto das condições que o fazem funcionar de uma maneira durável, estável e não autodestrutiva (Simondon, 2012, p. 26, 30), sendo que essa necessidade interna propriamente técnica se “[...] define por distinção e exclusão de causas extrínsecas” que são as causas econômicas, sociais, psicossociais que são distintas das causas internas ao objeto mesmo ou necessárias ao seu funcionamento. O que faz do objeto técnico um objeto técnico são suas condições de funcionamento ou sua consistência ontológica própria, e não a maneira como ele pode ser utilizado ou representado social e psicossocialmente, condições as quais podem ser decisivas para sua produção, comercialização ou mesmo obsolescência, mas que não definem sua essência (SIMONDON, 2012, p. 221ss).
O conceito simondoniano de objeto técnico excede o de dado imediato que corresponde a uma necessidade ou finalidade humana ou ainda como aquilo que serve à transformação da natureza. Objeto técnico e produto técnico se diferenciam. Enquanto o produto é aquilo que é fabricado pelas mãos do artesão ou pelas indústrias, colocando, por isso, o problema do trabalho e da produção, o objeto técnico é o produto separado de seu produtor e, em consequência, ele existe além do trabalho que o produziu ou fora da esfera do trabalho e da produção. É nesse sentido que ele existe de uma maneira independente da atividade fabricadora humana. Guchet ressalta que é preciso entender o que significa essa autonomia técnica de Simondon. Este assevera que o produto técnico se torna objeto ,quando ele se separa tanto do produtor quanto do utilizador, ganhando um tipo de autonomia. O termo que Simondon usa para descrever essa autonomia técnica é “existência espontânea”, que é o “começo de uma aventura livre”. No entanto, o comentarista de Simondon esclarece que essas noções de “espontaneidade, liberdade, existência” têm, em Simondon, uma significação meramente operatória e não significam um antropomorfismo da máquina.
O filósofo descreve a relação homem-máquina do ponto de vista humano e a vê como um sistema de operações coordenadas entre elas e suscetíveis de uma análise objetiva (Guchet, 2010, p. 143). Tais termos – liberdade, espontaneidade – significam que o produto técnico entra no universo social com um certo grau de espontaneidade e é reconhecido pela cultura onde ele ganha prestígio e valor econômico. Trata-se de uma liberdade provisória, uma vez que ele se desliga do produtor e independe de suas condições de utilização e não uma autonomia, como se ele se tornasse incontrolável e se voltasse contra seu próprio criador. Conforme o comentarista, a ideia de um desenvolvimento técnico fora do controle humano ou regido por suas próprias leis tão objetivas quanto as leis da evolução do homem é estranha a Simondon.
A evolução do objeto técnico a que alude o filósofo não é um processo autonormatizador ou autorregulado. Simondon caracteriza essa evolução técnica como autônoma quanto ao uso, caráter histórico e estrutura profunda da tecnicidade que são os três níveis de existência do objeto técnico. Pensá-lo nesse nível da utilização e da determinação psicossocial pela qual ele passa é suficiente para compreender que lhe faltam características propriamente humanas. O método de Simondon retira do objeto aquilo que é cultural e humano, de sorte a chegar à sua “interioridade dinâmica” de objeto técnico. Livre da cultura e da socialidade, o objeto se revela naquilo que ele tem de puramente técnico. Interessa a Simondon seguir os traços deixados pelo processo pelo qual o ser técnico, produzido pelo homem, se objetiva, ganhando mais e mais autonomia em relação ao seu produtor (Guchet, 2010, p. 146).
A invenção técnica não pode ser reduzida a operações do entendimento, já que a concretização técnica faz passar de uma concepção da relação homem-natureza, centrada sobre a ação humana e suas características (transformação direta da natureza, necessidades a satisfazer, desejo de potência), a uma concepção dessa relação como sistema operatório objetivado, descentrado das atividades de intervenção direta sobre o mundo natural (Guchet, 2010, p. 165). Trata-se de um sistema de operações coordenadas que se torna objetivo, à medida que se distancia do sujeito da ação e o insere no processo de causa e efeito. São os “[...] esquemas de funcionamento da máquina concreta que coordenam as duas ordens inicialmente heterogêneas de fins humanos representados e de processos naturais.” (Guchet, 2010, p. 165). Se o objeto da tecnologia é um sistema de operações coordenadas, a tecnologia deve renunciar ao objeto ou ao instrumento, para abordá-lo a partir da fórmula força + matéria = instrumento, a qual faz do objeto exteriorizado o resultado desse processo.
Para o tecnólogo, o instrumento não é aquilo que permite ao homem agir diretamente sobre a matéria, mas o gesto que coordena num sistema de operações único a ação humana e as propriedades da matéria, avançando para uma direção cada vez mais perfeita do gesto operatório. Com a industrialização, o operário perdeu a capacidade que o artesão tinha, tanto de conhecer seu material quanto de se relacionar com ele, tornando-se o supervisor das máquinas, longe do produto. O amador de bricolagem se vê diante de máquinas convertíveis, as quais se adaptam a todas as tarefas e materiais, podendo ser alimentadas com toda espécie de corrente elétrica. Os objetos técnicos não impõem limitações ou constrições à imagem do amador de bricolagem, diferenciando-o do operário cujas atividades são regidas pelas características da máquina.
Com isso, tem-se a impressão ilusória de que o bricolador escapa à parcialização e à alienação do processo de produção e se mostra o acasalamento mais completo do homem e do mundo natural, sendo a relação entre o homem e a máquina, doravante, uma relação de informação e de comunicação, mas, ao não poder se apropriar da máquina, ela se lhe torna completamente estrangeira, o que é um fator de desumanização. Entretanto, Simondon não vê esse processo de distanciamento do operário em relação à máquina como uma perda. O operário, nesse ponto, não está mais encarregado de uma máquina e ganha uma função dentro de uma equipe. Mas as informações circulam de acordo com as linhas da hierarquia na empresa e não conforme os funcionamentos técnicos, e a empresa, como conjunto de objetos técnicos e de homens, deve ser organizada segundo seu funcionamento técnico. A organização deve ser pensada no nível da operação técnica (Guchet, 2010, p. 170).
O objeto técnico não pode ser visto sem alguma relação com o homem, pois, afinal, ele é um meio em vista de fins postos pelo homem. Por outro lado, ele também é visto como aquilo que não tem nada em comum com as realidades naturais. Na verdade, ele oscila entre o construído e o dado natural. Simondon estabelece outras fronteiras para diferenciar o natural e o artificial. A oposição entre natural e artificial não está na origem como aquilo que se faz espontaneamente e aquilo que é feito por mãos humanas, mas se encontra na maior ou menor autonomia do objeto técnico com respeito à atividade artificializante do homem. A artificialidade do objeto consiste “[...] no fato de que o homem deve intervir para manter este objeto na existência, protegendo-o contra o mundo natural, dando-lhe um estatuto à parte da existência.” (Guchet, 2010, p. 186). A artificialidade é “[...] aquilo que é interior à ação artificializante do homem, seja esta ação sobre um objeto natural ou sobre um objeto fabricado” (CHABOT, 2003, p. 17) Uma planta é natural, no entanto, é artificializada, quando ela tem necessidade da intervenção humana para existir, como o jardineiro, ao regular a água de que ela necessita, a luz, o calor, controle a que ela está sujeita, nos viveiros artificiais. Nessas condições, as regulações do objeto primitivamente natural se tornam as regulações artificiais do viveiro.
Nessa perspectiva, a concretização técnica transforma o objeto artificial em cada vez mais semelhante ao objeto natural, tornando o objeto concretizado comparável ao objeto produzido espontaneamente. Ele se libera do laboratório artificial original e o incorpora a si, no jogo de suas funções, e sua relação aos outros objetos técnicos ou naturais se torna reguladora, permitindo uma autorregulação das condições de funcionamento. Esse objeto, de início isolado e heterônomo, é associado a outros objetos e se torna autossuficiente. Assim, um objeto artificial, seja produzido pela natureza, seja pelo homem, tem suas condições de funcionamento num meio regulador exterior do qual ele é retirado, enquanto um objeto próximo da natureza incorpora em sua dinâmica funcional o meio regulador ou meio associado. O objeto autônomo é o objeto que chegou a um alto grau de concretude, ganhando sua sistemática funcional coerência em organização, quando a máquina incorpora os mecanismos reguladores de seu funcionamento, em sua própria sistemática. Uma flor artificial não é autônoma sobre um plano operatório, já que necessita da intervenção do jardineiro para garantir a coerência de suas funções. Já uma máquina industrial é autônoma, desde que ela assegure, por si mesma, através de sua integração ao meio associado de funcionamento, a coerência de suas próprias operações (Guchet, 2010, p. 187).
Simondon admite a existência de tecnicidade animal, havendo assim mediações objetivas no mundo animal. O que ele questiona, por outro lado, é a capacidade animal de objetividade técnica, isto é, de “[...] coordenação operatória descentrada em relação à intervenção direta do ser vivo sobre o seu meio” (GUCHET, 2010, p. 211). Para Simondon, a tecnicidade instrumental é própria do homem, mas cada animal é dotado de órgãos-utensílios que lhe permitem se adaptar ao meio, enquanto os homens não são equipados de algum órgão-instrumento especializado, sendo que a possibilidade de intervenção humana sobre a natureza é ilimitada, enquanto a do animal é limitada. Os utensílios humanos, além do mais, são exteriores ao homem, separados dele e podem ser abandonados quando isso lhe convém, ao passo que o animal não os pode abandonar, pois eles são parte integrante dele.
Há ainda a questão da representação antecipada do instrumento, isto é, do fim ou do objetivo a ser atingido (causa final), que evidencia que a fabricação do instrumento é um ato pensado que tem uma ideia prévia como sua causa, ideia também defendida por Kant e Bergson. Simondon não admite uma diferença de natureza entre atividade fabricadora humana e a tecnicidade animal. Para o filósofo, o instrumento não é a única manifestação da atividade fabricadora do objeto, quer no animal, quer no homem. O animal, por sua vez, não precisa de mediações instrumentais, já que ele é provido de órgãos especializados e pode usá-los sem precisar fabricar objetos, embora Simondon conceba que a tecnicidade animal não se limita à existência de órgãos-instrumentos, pois há coordenação operatória separada do organismo, também no animal. Já o objeto técnico, por seu turno, é uma mediação que torna possível a relação vital ao meio, construindo um sistema de operações coordenadas, através de autocorrelação e adaptação funcional.
Por conseguinte, a diferença entre o homem e o animal não é uma diferença de essência, mas uma diferença de grau “[...] entre as capacidades atuais de produção de objetos criados no homem e nos animais mais dotados.” Há uma “[...] multiplicação de mediações no homem entre o objeto criado e a natureza, de um lado, e entre o objeto criado e o operador, de outra parte; a rede de meios de acesso nos dois sentidos, da natureza em direção ao homem e do homem em direção à natureza comporta uma multidão de substitutos”, além de diferenças de ordem de grandeza colocadas em comunicação e em interação, as quais são, no caso do homem, mais importantes que no animal, que não dispõe de um encadeamento complexo de mediações (Simondon, 2008, p. 189). Concluindo, não é a objetivação técnica que distingue o homem do animal, mas a relação ao mundo do homem se objetiva, descentrando-se de maneira mais importante quanto à ação direta, à escala do organismo, sobre o meio. A mediação, no caso do homem, é como a de um organismo funcional (Guchet, 2010, p. 215).
Em que consiste, pois, a diferença humana? Para Simondon, não é a base espiritual nem a transindividualidade. A transindividualidade pode ser encontrada também entre os animais, como é o caso das formigas e das abelhas, contudo, o modo de existência em grupo é mais expandido entre os homens, e esse modo é o comunitário e não o meramente transindividual. De acordo com Simondon, os grupos humanos têm por base e função uma resposta adaptativa específica à natureza. No caso dos animais, a natureza social fica reduzida ao nível vital, sem criar “relação de interioridade de grupo”. O grupo social nos animais é uma adaptação às condições do meio, enquanto a “[...] reação coletiva da espécie humana às condições naturais de vida como aquela através do trabalho” é social natural, não sendo as comunidades humanas totalmente absorvidas pela relação vital ao meio (Guchet, 2010, p. 217). Guchet, em sua leitura de Simondon, sugere que somente, no caso do homem, o objeto técnico pode ser dito “[...] suporte e símbolo de objetivação social.” Ele afirma que símbolo é “[...] um instrumento de reconhecimento por aproximação e coincidência” e o objeto técnico é um símbolo. Mesmo que se reconheça concretização técnica na animalidade e mesmo a transindividualidade em grupos de animais, não há, no entanto, “[...] coordenação operatória entre os dois.” (Guchet, 2010, p. 219).
Conclui-se que o filósofo foge tanto ao mecanismo em que a máquina ganha autonomia em relação ao seu criador quanto ao utilitarismo que julga o objeto a partir de sua eficácia. O sentido do objeto não está encerrado nele mesmo, mas se conhece à medida que ele mantém uma relação à alteridade ou é afetado por ela. Ele se inventa em sua relação com seu meio associado. A concretização descrita por ele é o oposto da abstração, e o seu desenvolvimento constante é o que se chama progresso técnico, já que todos os seres, inclusive os técnicos, estão em constante devir ontológico, isto é, num processo de informação nunca acabado, o que nega também toda forma de automatismo capaz de encerrar o objeto em si mesmo, como realização de algo prévio e que o desliga da relação com outros.
O fundo de indeterminação a partir do qual o objeto técnico é pensado nunca se elimina, todavia, mantém as partes em relação umas com as outras, de sorte que cada parte desempenha uma pluralidade de funções: sinergia, autocorrelação, autorregulação, uma reforçando a outra. Toda essa operação denominada transducção (transduction), como o il y a de Levinas, nunca termina numa forma fixa. Ela é o próprio sentido! O objeto não pode ser compreendido sem a relação com os demais objetos ou sem a relação com o meio associado, porque ambos são parte do seu processo de concretização.
Um dos grandes méritos de Simondon parece estar em sua capacidade de reagir a um tecnofobismo que se pode traduzir como medo do novo ou do que é estrangeiro, do que se me apresenta como alteridade, aproximando-se sua filosofia, nesse sentido, da de Levinas que concebe o ser como hospitalidade e acolhida de outrem. O objeto técnico não ameaça necessariamente o ser humano, mesmo porque ele é parte integrante daquilo que nos faz humanos. Jonas afirma que é a técnica que nos instala no humano e Levinas, que ela nos permite pensar o humano fora do condicionante de lugar. As reações de Levinas e Heidegger diante da proeza de Yuri Gagarin, o primeiro russo a ir ao espaço, foram opostas. Enquanto Levinas exaltava a técnica como aquilo que permitia visualizar o humano fora do espaço, Heidegger demonstrava uma certa aversão ao homem desenraizado ou fora de um lugar. Simondon, por sua vez, mostra que não é possível pensar o humano sem o objeto técnico que não está submetido a ele numa condição de escravo, porém, como outrem que é componente integrante de sua própria identidade. É nesse sentido que Guchet e outros sustentam haver um humanismo tecnológico em Simondon.
Referências
Barthélémy, Jean-Hugues. Penser l’individuation. Simondon et la philosophie de la nature. Paris: L’Harmattan, 2005a.
Barthélémy, Jean-Hugues. Penser la Connaissance et la technique après Simondon. Paris: L’Harmattan, 2005b.
Chabot, Pascal. The Philosophy of Simondon. Between Technology and Individuation. London: Bloomsbury, 2003.
Chateau, Jean-Yves. Le Vocabulaire de Simondon. Paris: Ellipses, 2008.
Guchet, Xavier. Pour un humanisme technologique. Culture, Technique et Société dans la Philosophie de Gilbert Simondon. Paris: PUF, 2010.
Oliveira, J. R. de. Para uma ethical turn da tecnologia: por que Hans Jonas não é um tecnofóbico. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 165 - 179, 2022.
Simondon, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier, 2012.
Recebido: 16/01/2022
Aceito: 29/01/2022
[1] Docente na Universidade Federal Fluminense (UFF), Volta Redonda, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3505-2954. E-mail: ozanan.carrara@gmail.com.