COMENTÁRIO A “MARX TEM UM MÉTODO DIALÉTICO PRÓPRIO?

 

Fernando Frota Dillenburg[1]

 

Referência do artigo comentado: Nakamura, Emmanuel. Marx tem um método dialético próprio? Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 64 - 79, 2022.

 

Nakamura (2022) lança a hipótese de que seria infundada a crítica de Marx à dialética de Hegel, tendo o autor d’O capital sido inclusive incoerente, ao “praticar exatamente aquilo que criticou na dialética hegeliana”, uma vez que “uma suposta dialética materialista também precisaria, de alguma forma, ‘transfigurar’ o ‘existente’ ao reproduzi-lo como ‘totalidade do pensamento”.’

Essa “transfiguração das relações sociais existentes” atribuída a Marx por Nakamura (2022) é operada, segundo o autor do artigo, a partir da ideia de liberdade, uma ideia que, em Marx, seria “turva e indeterminada”, uma liberdade proporcionada pelo aumento do tempo livre pessoal, portanto, uma “liberdade (abstrata) no sentido hegeliano”. Segundo Nakamura, Marx não possuiria, por conseguinte, um método dialético próprio, sendo este mera continuidade, sem qualquer inversão, da dialética hegeliana.

Para debater a tese de Nakamura, nada melhor do que partirmos daquilo que o próprio Marx nos legou, deixarmo-nos ser conduzidos pela lexis, pela Darstellungsweise, pelo modo de representação ou de exposição por ele produzido.[2]

No capítulo IV do Livro I d’O capital, Marx nos diz que sua obra é uma obra dramática, que retrata as transformações dos personagens do drama (dramatis personae). (MARX, 1983a, p. 145). Somos, então, estimulados a acompanhar as modificações ocorridas nos personagens que o autor nos apresenta.

Já no primeiro capítulo, facilmente encontramos o protagonista. São os produtos do trabalho humano, que, enquanto mercadorias, são as cidadãs (Bürger) desse mundo, “o mundo das mercadorias” (Warenwelt). (MARX, 1983a, p. 64) Estamos diante do feitiço absoluto dos produtores, os quais sequer se reconhecem enquanto tais, tamanha a dominação que os produtos de suas próprias mãos, no papel de mercadorias, exercem sobre eles.

No capítulo II, os produtores já se reconhecem entre si (MARX, 1983a, p. 79), o que nos leva a pensar que estaria aqui o início da superação do feitiço da mercadoria, ilusão que é desfeita no capítulo III, quando o dinheiro, ao recusar-se a estabelecer uma relação amorosa com a mercadoria, não a prejudica, mas ao proprietário dela (MARX, 1983a, p. 96) Percebe-se, assim, a dificuldade de superar o fetichismo.

A transformação dos personagens continua e, através dela, a difícil superação do fetichismo da mercadoria. No capítulo IV, aquele impulso aparentemente voluntário dos produtores ao mercado, exposto no capítulo II, é superado. Nesse capítulo IV, onde ocorre a passagem da instância da circulação para a instância da produção, os possuidores de mercadorias já não aparecem mais enquanto iguais. De um lado, está agora o capitalista (Kapitalist), enquanto proprietário dos meios de produção e, do outro, o trabalhador, como proprietário de sua força de trabalho (Arbeitskraftbesitzer). (MARX, 1983a, p. 145). No capítulo IV, ocorre, pois, um dos grandes saltos dialéticos do Livro I: surgem as personificações (die Personifikationen) das classes sociais.

Ao ingressarmos na instância da produção, no capítulo V, eleva-se o antagonismo entre as classes. Nosso personagem é aqui um operário fabril, o qual, ao mesmo tempo que transforma algodão em fio, produz mais-valia (Mehrwert), enriquecendo, com isso, o capitalista (MARX, 1983a, p. 160).

Por sua vez, no capítulo VII, Marx nos mostra os personagens já em luta, polemizando a respeito da possibilidade de reduzir a jornada de trabalho sem que o lucro do capitalista seja totalmente eliminado. Nesse momento, entra em cena um inspetor de fábrica (Fabrikinspektor), o qual enfrenta os capitalistas, defendendo os interesses dos operários: “Meus Cavalheiros!” (Meine Herren!), alerta nosso inspetor. “A perda [da última hora] não vos custará o lucro [...]” (MARX,1983a, p. 182-184).    

Em seguida, no capítulo VIII, é a própria classe operária que se ergue, não apenas em palavras, mas em greve, o que a impulsiona a construir seu comitê (Komitee). E contra o que luta a classe? Contra o “[...] prolongamento excessivo (maßlose Verlängrung) da jornada de trabalho.” (MARX, 1983a, p. 189). Através dessa luta, afirma Marx, “[...] nosso trabalhador sai do processo de produção diferente do que nele entrou” (MARX, 1983a, p. 237), salientando que a consciência é o resultado de um processo histórico. Aquele produtor do capítulo I, o qual só se reconhecia nas mercadorias, sofreu uma profunda transformação, ao superar a posição individual, atomística, uma vez que o operário se espelha em outro operário, ao “[...] reunirem suas cabeças e como classe conquistar uma lei estatal.” (MARX, 1983a, p. 238).

E assim segue a dialética de Marx. Depois de ingressar na instância da produção, além de se defender do prolongamento excessivo da jornada de trabalho, a classe trabalhadora se defende também do aumento da intensidade (Intensität) do trabalho (MARX, 1983a, p. 270), assim como das várias formas de redução do salário (MARX, 1983b, p. 127-148).

Ao retornar à instância da circulação, no capítulo XXI, o qual inaugura a Seção VII, última seção do Livro I, através de sua vivência na luta de classes descrita durante todo o caminho até aqui percorrido, a classe operária consegue perceber que a propriedade privada capitalista nada mais é do que parte de seu próprio trabalho, aquela parcela da jornada que não lhe foi paga pelo capitalista, ou seja, a propriedade capitalista nada mais é do que mais-valia capitalizada (kapitalisierten Mehrwert) (MARX, 1983b, p. 156).

No capítulo XXII, realiza-se mais uma revelação. Desvela-se que o intercâmbio de equivalentes entre capital e trabalho é realizado apenas na aparência (MARX, 1983, p. 166), isto é, que o capitalista paga o salário do mês atual com a mais-valia do mês anterior. Já no capítulo XXIII, a competição entre os trabalhadores mostra a eles que somente unindo os empregados com os desempregados, numa ação conjunta e planejada (eine planmäßige Zusammenwirkung), será possível se defender da redução salarial e do desemprego (MARX, 1983b, p. 206).

Finalmente, no capítulo XXIV, esse longo percurso de luta e organização da classe trabalhadora cria as condições para que ela retire do esquecimento a história de sua separação em relação aos seus meios de produção (MARX, 1983b, p. 262), tornando-se apta, assim, a expropriar os expropriadores, expropriar aqueles que a expropriaram. Os expropriadores são expropriados (Die Expropriateurs werden expropriiert) (MARX, 1983b, p. 294). Nesse sentido, podemos perceber a transformação daquele personagem individual, que, inicialmente, se encontrava totalmente enfeitiçado pela mercadoria, num personagem social, na própria classe operária, a qual se tornou, depois desse longo processo de luta, uma classe revolucionária.

Como se vê, a superação do capitalismo ganha outro significado, quando se lê O capital de maneira imanente. Ao seguir a lexis deixada por Marx, mais do que uma tentativa de superar o caráter místico da dialética hegeliana, O capital se apresenta como uma obra dialética, “crítica e revolucionária” (kritisch und revolutionär) (MARX, 1983a, p. 21), uma obra que conta o drama da vida dos milhões de trabalhadores deste planeta, aqueles cuja única mercadoria que restou para vender foi a sua força de trabalho. Mas esse drama chamado O capital não se furta de indicar um caminho a esses “pobres laboriosos” livres (MARX, 1983b, p. 292), um caminho antitético, negativo, contraditório, conflituoso, um caminho para a sua completa emancipação em relação à “serpente de seus tormentos” (die Schlange ihrer Qualen) (MARX, 1983a, p. 238), o capitalismo.[3]

 

Referências

BENOIT, H. Da lógica com um grande “L” à lógica de O Capital. In: TOLEDO, Caio Navarro de (org.) Marxismo e Ciências Humanas. São Paulo: Xamã, 2003.

BENOIT, H. Platão e as temporalidades: a questão metodológica. São Paulo: Annablume, 2015.

MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, v. I, tomo 1, 1983a.

MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, v. I, tomo 2, 1983b.

NAKAMURA, Emmanuel. Marx tem um método dialético próprio? Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 64 - 79, 2022.

 

Recebido: 08/02/2022

Aceito: 20/02/2022

 



[1] Doutor em Filosofia e professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3006-8490. E-mail: ffrotadillenburg@gmail.com.

[2] Esse “acompanhar da lexis faz parte do método desenvolvido por Benoit (2015). Já sobre o método dialético em O capital de Marx, ver Benoit (2003).

[3] Consideramos que o Livro I d’O capital já é uma totalização, embora ainda abstrata, do caminho a ser trilhado pela classe trabalhadora para a sua emancipação. Nos Livros II e III, esse caminho se mostra cada vez mais determinado. Devido aos limites de espaço deste comentário, a leitura imanente desses dois livros terá que ficar para outro momento.