Referência do artigo comentado: Feiler, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 08 - 31, 2022.
A fecundidade de uma obra filosófica não depende exclusivamente de razões internas a ela – que diriam respeito apenas à sua força compreensiva, explicativa e expressiva –, mas também da boa fortuna em encontrar receptores que, trazendo-a, do anonimato à publicidade – seja ela a da cena pública, seja do debate público propriamente dito, seja ainda da mera possibilidade de inserção no debate, justamente pelos indícios da sua existência – dão-lhe uma “atualidade” que ainda falta ao puro texto, a saber: a da destinação, do envio, e, sobretudo, da preservação, do não ter sido destruída. Todo escrito preservado por quem o escreveu é o atestado de um desejo de pertença. A linguagem em mim, ou a linguagem que eu sou, já é uma comunidade, e o suposto monólogo da consciência é apenas o plano mais retraído do teatro dos signos.
Georg Brandes foi um desses receptores, um dos primeiros a captar a força, a intensidade, a profundidade e o alcance do pensamento de Nietzsche, e, como ele próprio declara, em uma carta a Nietzsche, de 23 de novembro de 1888, um propagador e propagandista da sua obra. Graças a isso, Nietzsche reconheceu, na expressão “radicalismo aristocrático” cunhada por Bandes, a caracterização mais adequada do seu pensamento. Feiler (2022) reconstituiu a interpretação que Brandes faz de Nietzsche, a partir do espelhamento entre a realidade histórica, cultural e política da Dinamarca de Brandes e da Alemanha e da Europa de Nietzsche, balizadas pela interpretação de Brandes dos conceitos nietzschianos de cultura, aristocracia radical, guerra, memória, espírito e psicologia.
O maior mérito do artigo consiste em tratar de um capítulo, embora bastante importante e peculiar do nascimento da influência do pensamento de Nietzsche, ainda assim, um tanto quanto negligenciado na pesquisa Nietzsche; peculiar, não apenas por Brandes ter sido o primeiro que se dedicou, de um modo determinado e sistemático, a estudar e a divulgar o pensamento de Nietzsche, por meio da promoção de palestras destinadas ao grande público, ministradas na Universidade de Copenhagen, mas também por ter dado destaque ao conceito nietzschiano de cultura, em seus escritos e palestras, e, por fim, e principalmente, por ter pensado tal problema em função de uma interpretação bastante questionável e problemática da associação entre cultura, guerra, aristocracia e povo/raça.
Provavelmente, os pontos mais questionáveis do artigo resultam do seu caráter excessivamente descritivo, identificável especialmente no fato de que, embora tenha feito uma instrutiva reconstrução da apropriação de Nietzsche por Brandes, nenhum contraponto, nem histórico, tampouco conceitual, lhe foi apresentado. Se, em tese, essa opção poderia ser desculpada a um texto com pretensões meramente reconstrutivas, parece-me que, quando se trata de uma interpretação (a de Brandes) que associa o conceito de “radicalismo aristocrático” ao tema da “originalidade de um povo e de uma raça” e a vincula aos temas da aristocracia e do valor da guerra, a mera reconstrução perde a grande oportunidade de inserir o necessário contraponto crítico. E isso, pelo simples fato de que aqui se encontra, em estado nascente, naquela que foi a primeira apropriação com promoção pública do pensamento de Nietzsche, a delicada aproximação entre o pensamento nietzschiano da cultura com as questões políticas da raça.
Triste destino este que fez com que a fecundidade filosófica da obra de Nietzsche estivesse marcada, desde o seu início, por uma recepção na qual a crítica de uma cultura empobrecedora da paz foi confundida com um apoio irrestrito da guerra, da promoção da força, à qual, segundo Nietzsche, como o próprio autor do artigo afirma, “tudo deveria ser sacrificado”. Nesse particular, teria sido necessário, mesmo que pontualmente, recorrer às preciosas e luminosas lições de Wolfgang Müller-Lauter e, principalmente, de Mazzino Montinari, sobre o tema.
Porém, ao autor do artigo não falta percepção dos problemas inerentes à interpretação de Brandes, pois, no primeiro parágrafo do item 2. A aristocracia em sua originalidade do espírito, ele afirma: “Este louvor da raça, evocado pro Brandes, pode, como pretendemos aprofundar em estudos posteriores, revelar um elemento importante na recepção que ele faz de Nietzsche na Dinamarca: o de dar azo a uma interpretação nazista do pensamento do filósofo alemão”.
Contudo, essa breve nota não apenas não enfrenta a associação, insustentável em Nietzsche, entre germanismo (raça/povo) e aristocracia do espírito/cultura, como mantém intocadas algumas outras ideias recorrentes no primeiro item do artigo, intitulado 1. A emergência de uma aristocracia radical, quais sejam: a direta vinculação entre o “culto à guerra” e o conceito de aristocracia em Nietzsche (o “radicalismo aristocrático”, de Brandes); a diferença entre a Realpolitik e a “Grande política de Nietzsche”; a unilateralidade de se conceber o “culto à guerra” sem as devidas problematizações que levariam, no mínimo, à indicação, em Nietzsche, da passagem do “coletivo dos povos e nações no âmbito da política” para o “coletivo que constitui cada indivíduo/a”.
No item 3. A aristocracia cultural em seus aspectos psicológicos fundamentais, é abordado o modo como Brandes interpreta algumas tipologias psicológicas cunhadas por Nietzsche, como uma via afirmativa de superação do niilismo, uma espécie de promoção do radicalismo aristocrático: o tipo psicológico de Jesus e também os espíritos livres representariam ideais ativos para a formação e o cultivo de uma cultura aristocrática. Esse ponto, extremamente instigante, infelizmente não é aprofundado. Em Nietzsche, ele se confunde com um problema central em toda sua obra, qual seja, o problema da formação (Bildung). Como se forma uma cultura aristocrática? Para essa pergunta, nenhuma resposta é oferecida, porque a própria pergunta não é encarada diretamente.
Após indicar uma diferença pontual, mas importante, entre Nietzsche e Brandes, a respeito do sentido da dor e do sofrimento – tópico muito pertinente para quem aborda o problema da guerra, pois apenas espíritos absolutos ou sujeitos transcendentais não sentiriam dor na guerra, no máximo um desconforto, uma tensão, resultante de um impasse do sentido –, chega-se, ao final do item, ao tópico “Polônia” e à suposta ascendência polonesa de Nietzsche. Sou da opinião de que se trata de mais um dos vários capítulos da “autoencenação de Nietzsche”, tópico da pesquisa Nietzsche bastante desenvolvido nos últimos tempos, inclusive no Brasil, e que seria produtivo acionar para pensar o problema.
Quanto à questão da memória, mais precisamente, da memória de um radicalismo aristocrático (subtítulo do artigo), pareceu-me um problema subutilizado, tanto no momento da leitura do original para a elaboração do parecer ao artigo, quanto agora, em sua releitura.
Por fim, resta aguardar a concretização da promessa do autor de que as questões, algumas delas aqui pontuadas, serão aprofundadas em estudos posteriores. Caso se trate de um projeto mais amplo de estudo/pesquisa, do qual o presente artigo constitui apenas o primeiro momento, possivelmente parte considerável das ponderações críticas aqui apresentadas perderão sua vigência. Se for o caso, o simples fato de abordá-las já terá tornado proveitoso e produtivo este exercício de comentário crítico e, por isso, quero crer, justificado.
Referência
Feiler, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 08 - 31, 2022.
Recebido: 12/02/2022
Aceito: 22/02/2022
[1] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, PR – Brasil, Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8402-7224. E-mail: jweber@uel.br.