Comentário a “Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático”

 

João Henrique Salles Jung[1]

 

Referência do artigo comentado: FEILER, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 08 - 31, 2022.

 

O trabalho de Adilson Feiler (2022), professor de Filosofia da Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS), captura com maestria a discussão que aborda o aristocratismo presente na filosofia nietzschiana, ao mesmo tempo que se utiliza desse elemento para remeter a uma identidade apurada entre Friedrich Nietzsche e sua recepção na Dinamarca. Na verdade, Feiler (2022) sai do lugar comum que normalmente circunda tal assunto, pois desenvolve seu trabalho, ao absorver o elemento da aristocracia mais enquanto uma ferramenta de transformação psicológica, caracterizada pela radicalidade, do que enquanto um modo de assoberbamento social – como geralmente tratada. Eis que entra a figura do segundo grande nome desse trabalho, a do historiador e crítico literário Georg Brandes, responsável pela divulgação do filósofo alemão, em terras danesas. Através de ambas as personalidades, é encontrada a marca da ruptura com o pensamento socialmente estabelecido, seja na Alemanha, seja na Dinamarca, o que reserva lugares especiais tanto a Nietzsche quanto a Brandes, enquanto vetores de respiro intelectual, impulsionados pela correspondência mantida entre si.

O artigo desenvolvido por Feiler (2022), dividido em três seções, resgata magistralmente a filosofia nietzschiana, ao tocar em seus pontos centrais, de modo a demonstrar ao leitor, didaticamente, a grandiosidade da contribuição de Nietzsche à crítica filosófica – influência que se estende, de forma ampliada, no decorrer do século XX, principalmente em pensadores como Martin Heidegger e Michel Foucault. Nisso se percebe que Nietzsche, através da ruptura, deixa seu legado tanto aos seus conterrâneos quanto àqueles que partiam de raízes filosóficas distintas. O caso da Dinamarca, explorado no artigo, é um bom – e não tão comum – exemplo.

A primeira parte do artigo de Feiler (2022) circunda a expressão Radicalismo Aristocrático [aristokratischer Radikalismus], cunhada por Brandes, de modo a se referir ao pensamento de Nietzsche. Resgata-se uma série de terminações nietzschianas – como vontade de potência, transvaloração dos valores, degenerescência, entre outras – em vias de sintetizá-las no radicalismo aristocrático representado por Nietzsche, o qual, em última instância, propõe uma nova concepção de vida. Sobre essa ideia, é interessante notar a forma com a qual Nietzsche rompe com a tradição filosófica do idealismo alemão – amplamente criticada por ele, como é possível ver, de modo dedicado, no Crepúsculo dos ídolos[2] (NIETZSCHE, 2016).

Em termos de comparação, na filosofia hegeliana (possivelmente o mais bem acabado sistema da tradição supracitada), percebe-se a concepção de vida enquanto necessidade à realização da ideia do Conceito [Begriff]. No último volume da Ciência da Lógica [Wissenschaft der Logik], Hegel (2018) apresenta a vida como estágio anterior ao desenvolvimento da ideia absoluta, teleologia da própria Lógica. Há um contraste em Nietzsche (2015), quando este aponta à vida enquanto uma forma de afeto [Form des Affektes], elevada através da vontade de potência – a qual tem uma das suas maneiras de expressão no radicalismo aristocrático. Interessante notar como Hegel (2018, p. 245) argumenta que uma dimensão psicológica na hermenêutica da vida se mostra meramente enquanto aparecimento, carente de Conceito. Assim, é possível apontar que, na filosofia anterior, há uma vinculação entre vida-verdade, rompida por Nietzsche em prol da manifestação dos afetos como expressão da vida.

Outra interessante comparação surge da noção de espírito [Geist]. Feiler (2022) dedica a segunda seção de seu artigo a explorar a relação entre espírito e aristocracia; uma passagem citada de Nietzsche (apud FEILER, 2022, p. xxx) traz:

[...] não podemos deixar de levar em conta o que precisamente os espíritos mais raros, mais seletos, mais originais, em todo o decurso da história, tiveram de sofrer por serem sempre sentidos como os maus e perigosos [...] Sob o domínio da eticidade do costume a originalidade de toda espécie adquiriu má consciência.

 

O espírito, conforme o idealismo alemão, se desenvolveria em um sentido coletivo; resumidamente, através de um impulso moral que fundamentaria o direito (KANT, 2004), ou em uma comunidade ética que se estabeleceria por meio de diferentes esferas[3] (HEGEL, 2010). Em Nietzsche, há uma clivagem, a ponto de indicar uma dimensão individual do espírito, sendo a própria individualidade a condição de desenvolvimento deste. O movimento coletivo na apreensão nietzschiana produz uma moral de rebanho, a qual representa justamente a degenerescência da vida, por sua natureza dócil – conceito bem explorado por Foucault (1987). Se a paz é a intenção de Kant enquanto realização do espírito, a guerra, segundo, é a atividade espiritual mais alta em Nietzsche.[4]

Sendo Hegel e Kant anteriores a Nietzsche – e tendo este já comentado criticamente ambos os autores –, entende-se que a intenção deste é justamente a de subverter o conhecimento anterior, sendo inovador, principalmente, em sentido epistemológico e axiológico. É justamente isso que interessa a Brandes, na recepção de Nietzsche, ao destacar o kantismo enquanto culpado do sacrifício das capacidades individuais em prol da lei e do dever; enfim, a moralidade [Moralität], a qual, com Hegel, se desenvolve em eticidade [Sittlichkeit]. Aqui entra o elemento da memória, caro ao desenvolvimento do trabalho de Feiler (2022). A memória, no sentido apresentado, é a própria condição de desenvolvimento de uma cultura aristocrática; os detalhes tornam-se o centro de uma memória capaz de individualizar, ao mesmo tempo que dá continuidade à formação aristocrática.

Na última seção de desenvolvimento do trabalho, Feiler (2022) aborda a dimensão psicológica do niilismo, dividida entre uma posição ativa ou passiva. A pessoa de Jesus é tomada como maneira de demonstrar como uma psicologia ativa – a de Cristo – pode ser falsificada e tornada passiva, o que foi realizado pelo cristianismo. A psicologia aristocrática é aquela ativa, mas que, ainda assim, demanda reflexão e isolamento; afastar-se do rebanho enquanto forma de elevação é uma máxima da filosofia nietzschiana. A figura de Zaratustra (NIETZSCHE, 2016) é o tipo-ideal dessa questão. Interessante notar que, aqui, Brandes demonstra um afastamento em relação a Nietzsche, pois o primeiro, ao trazer uma dimensão fisiológica, não considera que questões como a dor e o sofrimento podem resultar em elevação (FEILER, 2022, p. xx). De certo modo, percebe-se uma argumentação sobre o fato de o radicalismo aristocrático ser mais radical em Nietzsche do que em Brandes.

O texto de Feiler (2022) faz uma ótima reconstituição da filosofia nietzschiana, ao mesmo tempo que acrescenta a recepção desta por Brandes, no contexto dinamarquês. Trata-se de um texto filosófico de extremo vigor; ressalva-se apenas que o artigo poderia ser enriquecido se explicasse melhor o contexto dinamarquês da época, o qual não é possível compreender apenas pelas passagens do texto. Por configurar uma questão central – pois revela o próprio interesse de Brandes em Nietzsche –, dedicar parte do escrito a explorar o aspecto histórico-social sobre a conjuntura dinamarquesa seria uma ótima opção, porque auxiliaria o leitor a compreender melhor as motivações de Brandes. No texto de Feiler (2022), é citada apenas a influência compartilhada entre Alemanha e Dinamarca, em relação ao pietismo protestante, entre alguns outros pontos aludidos de maneira superficial. Negligenciam-se, assim, as transformações políticas e econômicas vivenciadas pela Europa, no período em questão, especialmente, o nacionalismo dinamarquês e a Guerra do Schleswig, fatos importantes para o processo de unificação alemã (1871). Tendo em vista o conteúdo filosófico explanado, os pontos supracitados mostram-se importantes, contudo, sua ausência não prejudica o esforço do texto, o qual é fortemente recomendado à leitura.

 

Referências

FEILER, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 08 - 31, 2022.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

HEGEL. Georg W. F. Introdução à filosofia do direito. Tradução de Paulo Meneses, Agemir Bavaresco et al. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2010.

HEGEL, Georg W. F. Ciência da lógica: 3. A doutrina do Conceito. Petrópolis: Vozes, 2018.

KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes: princípios metafísicos da Doutrina do Direito. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2004.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Martin Claret, 2015.

NIETZSCHE, Friedrich. Götzen-Dämmerung: oder Wie man mit dem Hammer philosophiert. Berlin: Hofenberg Verlag, 2016.

 

Recebido: 13/01/2022

Aceito: 31/01/2022

 

 



[1] Professor do Curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS – Brasil. Doutorando em Filosofia pela FernUniversität in Hagen em cotutela com a PUCRS. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9234-6866. E-mail: joaojung@outlook.com.

[2] Título geralmente traduzido ao português da obra Götzen-Dämmerung: oder Wie man mit dem Hammer philosophiert, originalmente publicada em 1889.

[3] As três esferas da eticidade [Sittlichkeit] hegeliana são a família, a sociedade civil-burguesa e o Estado nacional.

[4] Curiosamente, Hegel aqui se mostra mais próximo de Nietzsche do que de Kant, como é possível visualizar na última seção da Filosofia do Direito.