Comentário a “Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático”

 

Clademir Luís Araldi[1]

 

Referência do artigo comentado: Feiler, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 08 - 31, 2022.

 

Feiler (2022) sustenta, com bons argumentos, que o dinamarquês Georg Brandes pretendia construir uma aristocracia cultural. Ele reconstrói, em seus traços principais, o diálogo entre o filósofo alemão F. Nietzsche e o pensador dinamarquês, ocorrido nos anos de 1887 e 1888. A aristocracia cultural de Brandes possui diferenças consideráveis em relação ao “radicalismo aristocrático” de Nietzsche, sobretudo pelos modos desde os quais o dinamarquês destaca a importância da sensibilidade e da responsabilidade sociais bem modernas, que se contrapõe em muitos aspectos à crítica do homem moderno, à democracia e às ideias de igualdade e direitos iguais do autor da Genealogia da moral.

As conferências de Brandes sobre Nietzsche foram proferidas na Universidade de Copenhagen, em abril e em maio de 1888, e se voltaram principalmente aos temas da Genealogia da moral, à procedência dos valores bom e mau e também às questões da memória, da dor, do castigo e dos costumes, temas da primeira e da segunda dissertação, portanto. Feiler mostra bem que Nietzsche estava mais preocupado com a recepção de seu pensamento na Dinamarca e na Escandinávia como um todo, ao passo que Brandes não pretendia somente apontar a importância do “Filósofo alemão Friedrich Nietzsche” em suas conferências, mas queria também defender seu próprio projeto de aristocratismo cultural. Nesse sentido, quero retomar essa questão posta no artigo de Feiler e salientar um ponto de ruptura decisivo entre os dois autores em diálogo.

Em seu Ensaio sobre o radicalismo aristocrático, Brandes esclarece já no título que Nietzsche demonstrou profunda simpatia à expressão “radicalismo aristocrático” (aristokratischer Radikalimus), em carta de 2 de dezembro de 1887[2], ou seja, pouco tempo depois da publicação da Genealogia da moral. As cartas de Nietzsche a Brandes dos primeiros meses de 1888 são ainda mais enfáticas, como a carta a F. Overbeck, de Nice:

Do mesmo modo, um dinamarquês espirituoso e polêmico, Dr. G. Brandes, escreveu-me várias cartas afetuosas: admirado, como ele se expressa, com o espírito original e novo que sopra de meus escritos para ele, e cuja tendência ele designa como “radicalismo aristocrático”. Ele me considera, de longe, o primeiro escritor da Alemanha. (NIETZSCHE, 2021, no. 984, p. 64).[3]

 

Entretanto, Brandes também expressava com sinceridade suas divergências em relação a Nietzsche. A crítica à etimologia de Goten (godos) é bem significativa. Brandes se contrapôs à equiparação entre Gote (godo) e Göttliche (divino), tal como Nietzsche fizera, em GM I, 5. Em seu Ensaio, após comentar a análise genealógica nietzschiana do valor bom, o dinamarquês coloca em nota sua discordância:

Nietzsche apoia sua hipótese em algumas etimologias duvidosas. A palavra latina malus, que ele equipara a mélas, preto, remete, segundo ele, aos habitantes pré-arianos do território da Itália, em oposição à raça de conquistadores loiros, arianos. [...] Sua etimologia do bom (gut) a partir do gótico (gothisch) é decididamente errada. Deus (Got) é garanhão (Hengst), homem (Mann). (BRANDES, 2004, p. 69).

 

Nietzsche simplesmente se esquiva dessa crítica, a qual Brandes havia também expresso em carta, com um comentário irônico: “Sou muito grato pela etimologia de Gote: a mesma é simplesmente divina!” (NIETZSCHE, 2021, 1038, p. 142).[4] Isso reforça bem os interesses específicos nas conferências de Brandes. Nietzsche estava preocupado com o início de sua “glória mundial”, que começaria da periferia (da Escandinávia) em direção à sua tão odiada e amada pátria, a Alemanha, que era onde ele mais queria ser reconhecido! Mas é preciso se ater ao que Brandes pretendia, com seu projeto de aristocratismo cultural, em seu tempo e em sua Europa.

Adilson Feiler defende que, à semelhança de Nietzsche, o escritor Brandes se apresentava como extemporâneo. Discordo dessa afirmação, pois, a meu ver, Brandes se revela como um escritor contemporâneo, o qual se apoia em literatos de seu atribulado século, com os quais ele simpatiza: Bourget, os irmãos Goncourt, Taine, entre outros. Nietzsche se refere, provavelmente, à obra de Brandes Die Litteratur des 19. Jahrhunderts in ihren Hauptströmungen. Vol. II. Die romantische Schule in Deutschland, (Leipzig, 1887), que ele possuía. Brandes pesquisou e escreveu bastante sobre a literatura europeia do século XIX, principalmente sobre a literatura francesa e sobre a literatura do Romantismo alemão. No ano de 1888, Nietzsche critica decididamente a literatura francesa contemporânea e, ainda mais, a literatura romântica, por ser decadente, seguindo em parte o diagnóstico de Paul Bourget. Além desse volume sobre a Escola Romântica, Nietzsche conhecia ainda a obra do dinamarquês: Moderne Geister. Litterarische Bildnisse aus dem 19. Jahrhundert (2. ed., Frankfurt a.M., 1887). Não encontramos, nos escritos de Nietzsche de 1888, discussões acerca dessas obras de Brandes. É aqui que os caminhos dos dois pensadores europeus se separam. Nietzsche coloca quase toda a literatura de seu tempo sob o signo da décadence, enquanto Brandes se dedica ao seu projeto de renovação da cultura de seu tempo, que deveria possuir um cunho aristocrático próprio.

Feiler destaca, de modo coerente, que Brandes era um escritor, poeta, filósofo, historiador da cultura e jornalista. As técnicas de memória seriam fundamentais para construir tipos originais e singulares (aristocráticos), para incidir na cultura de seu tempo. É aqui que Brandes se revela um pensador preocupado com seu tempo. Enquanto Feiler se ocupa mais com as intervenções literárias, culturais e políticas de Brandes na Dinamarca, temos que ter em conta que Brandes era cosmopolita, viajou muito pela Europa, escreveu em dinamarquês, sueco e alemão. Ele morou um tempo em Berlim, onde teve proximidade com Paul Rée e Lou von Salomé. Acerca da origem da consciência moral, Brandes discorda das críticas de Nietzsche a Rée, defendendo que elas são injustas e desconsideram os desenvolvimentos posteriores de Rée, p. ex., na obra de 1885, O surgimento da consciência moral. (BRANDES, 2004, p. 67ss.)

Brandes, com seu aristocratismo cultural, está bem mais próximo de Rée e de Salomé do que de Nietzsche, tendo em vista as preocupações com seu tempo, com a responsabilidade social, com o altruísmo e com a defesa de lutas sociais. Ambos, Brandes e Nietzsche, preocupavam-se com os rumos da cultura europeia, mas o autor da Genealogia da moral seguiu seu caminho solitário, com seu ambicioso projeto de “Transvaloração de todos os valores”. Esse diálogo, desenvolvido por Feiler, tem aspectos que merecem nossa atenção, não só pela relevância de temas sociais, literários e morais do séc. XIX, mas também por seus desdobramentos em nosso tempo.

 

Referências

BRANDES, Georg. Nietzsche. Eine Abhandlung über aristokratischen Radikalismus. Nachschrift. Berlim: Berenberg, 2004.

Feiler, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 08 - 31, 2022.

NIETZSCHE, Friedrich W. Digitale Kritische Gesamtausgabe. Werke und Briefe (eKGWB). Baseada no texto crítico de G. Colli e M. Montinari. Org. por Paolo D’Iorio. Berlim: de Gruyter, 1967. Disponível em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB. Acesso em: 10 dez. 2021.

NIETZSCHE, Friedrich W. Cartas de 1888. Tradução, apresentação e notas de Clademir Araldi. Curitiba: CRV/Moura, 2021.

 

Recebido: 14/02/2022

Aceito: 23/02/2022

 

 



[1] Docente na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, RS – Brasil e Pesquisador CNPq /. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8255-2946. E-mail: clademir.araldi@gmail.com.

[2] Cf. BRANDES, 2004, p. 25.

[3] Carta a Franz Overbeck, de 3 de fevereiro de 1888.

[4] Cartão postal a Georg Brandes, Turim, 27 de maio de 1888.