NIETZSCHE E BRANDES: A MEMÓRIA DE UM RADICALISMO ARISTOCRÁTICO

 

Adilson Felicio Feiler[1]

 

Resumo: O pensamento de Nietzsche é recepcionado na Escandinávia, através do historiador dinamarquês Georg Brandes. O historiador é atraído pelo aspecto aristocrático, o qual se depreende da leitura que Nietzsche realiza sobre a cultura. A radicalidade, a originalidade e a minuciosidade psicológica, que se reconhece no espírito filosófico do pensador alemão, permeiam a leitura que Brandes faz do autor de Zaratustra. O próprio Nietzsche dá testemunho do quanto seu nome, graças a Brandes, passa a ser conhecido na Dinamarca, em suas diversas cartas e outros escritos, atestando, inclusive, um correto entendimento de seu pensamento. Esta proposta tem o intuito de averiguar o papel que a memória, em seu sentido aristocrático, tem a contribuir na recepção nietzschiana, efetuada por Brandes. Em que medida a mnemotécnica pode apontar caminhos para uma cultura aristocrática, no contexto da Dinamarca de Brandes?

 

Palavras-chave: Nietzsche. Brandes. Memória. Cultura. Aristocracia.

 

Introdução

            Com ânimo aberto, investigativo, e despido de preconceitos, o pensamento de Nietzsche é recepcionado em terras dinamarquesas, mediante o trabalho do brilhante historiador da cultura Georg Brandes. Motivado pela forma nova, original e desconcertante com que a escrita do filósofo alemão tem se manifestado, sobre os diversos âmbitos da vida, de maneira particular sobre a cultura, Brandes faz de suas conferências sobre o pensamento de Nietzsche, na Universidade de Copenhagen, verdadeiras obras-primas. Nietzsche deixa entrever, em suas cartas, que o interesse em sua filosofia é muito mais forte na Dinamarca do que na Alemanha. Por essa razão, o filósofo de Naumburg chega a afirmar que, em grande medida, o motivo está na correta compreensão de seu pensamento, por parte dos dinamarqueses, o que já não se pode atribuir igualmente a seus compatriotas alemães.

Diante deste fato, somos levados a nos questionar sobre o que estimulou os dinamarqueses a se interessarem tanto pelo pensamento de Nietzsche, em detrimento de um quase desprezo, no dizer do próprio filósofo, por parte dos alemães? Em diversas passagens de seus escritos, o filósofo alemão atribui à disposição de ânimo, ao perfil afirmativo e otimista que compõe um espírito verdadeiramente aristocrático, o que motivou o povo da Dinamarca a aderir ao seu pensamento. O otimismo, por estar motivado a uma disposição psicológica afirmativa, a tudo é capaz de enfrentar com disposição de ânimo e força; por essa razão, liga-se ao um espírito aristocrata. Não se trata de um otimismo no sentido conformativo e comodista, mas que se abre a um aumento de força, que inspira assenhoramento.

            O contexto da Dinamarca de Brandes possui, outrossim, diversas semelhanças com o contexto da Alemanha de Nietzsche, como é o caso do pietismo protestante, um dos alvos mais fortes da crítica do filósofo. A forma pela qual Nietzsche se coloca diante da manifestação religiosa, mediante a qual o Cristianismo aparece, de maneira particular, a institucional protestante, servirá de base para diversos escritos de Brandes nessa linha, como Jesus: um mito, escrito em 1926. O texto tem muitos aspectos que reverberam na análise nietzschiana sobre o descompasso que há entre o tipo psicológico Jesus, tido como um espírito livre, e aquele pregado pelas primeiras comunidades cristãs, principalmente por Paulo de Tarso, como se apresenta em Anticristo, a encarnação de uma moral decadente.

É bastante curioso o fato de Brandes ser compatriota de Søren Kierkegaard (1813-1855), filósofo existencialista que possui uma produção intelectual, a qual, em diversos aspectos, se aproxima da de Nietzsche, seja pela estilística, seja pela crítica mordaz e irônica a diversos setores da sociedade e da cultura, de maneira especial, à instituição religiosa cristã, movida por um sintoma de moral de rebanho. Este último aspecto é enfatizado por Ernst Behler, quanto à análise de aproximação entre Nietzsche e Kierkegaard feita por Brandes:

No esforço de Nietzsche rumo ao individualismo, Brandes descobre uma correlação com Kierkegaard. Eventualmente, contudo, Brandes volta-se a Para a genealogia da moral, pois esse texto faz uma crítica em um alto nível muito mais profundo, ao questionar a validade e a autoafirmação de nosso mundo moral, derivando-as de longos processos subterrâneos. (BEHLER, 1917, p. 346).

 

Embora ambos os filósofos, Nietzsche e Kierkegaard, não tenham se conhecido, em Brandes,[2] há um elo bastante interessante, pois este último os conheceu, e neles pode constatar elementos de parentesco muito fortes, o que, de alguma forma, nos faz levantar como uma das possíveis hipóteses, com base na qual o nome de Nietzsche irá ser lembrado entre os dinamarqueses. Isso porque, de acordo com os pensamentos de Nietzsche e de Kierkegaard, há diversas semelhanças e parentescos, principalmente com relação à crítica ao Cristianismo moral institucional.

            O trabalho de Brandes, como escritor, poeta, filósofo, historiador e jornalista, constituiu um legado de importante monta para se questionar uma cultura, como a escandinava de sua época. De modo especial, as reflexões de Brandes se impuseram sobre normas repressivas, autoritárias e hipócritas que se estabeleciam na cultura da Dinamarca. Por essa razão, a sua investigação serviu de inspiração para muitos escritores, historiadores e críticos da cultura que lhe sucederam. Não faltaram círculos conservadores que se levantaram contra ele, com o fim de aviltar seu nome e sua produção. Na acepção mais acertada, autoaplicada por Nietzsche, Brandes é considerado um extemporâneo, cujo pensamento se adianta a, pelo menos, dois séculos. O dinamarquês é atraído pela obra de Nietzsche, não apenas por seus aspectos formais, a saber, sua estilística, porém, sobretudo, pelo elemento aristocrático que se depreende de seu pensamento, por tudo aquilo que aponta para uma disposição de força e afirmação.

            Quando uma cultura atinge um nível de decadência cultural muito elevada, não investindo mais em originalidade e criatividade, mas apenas repetindo aqueles velhos e populares chavões, muitos destes, inclusive externos, como é o caso na cultura da Dinamarca de Brandes, a injeção aristocrática deverá ser forte, radical. Para tanto, muitas palavras não são suficientes, mas palavras fortes, marcantes, escritas com sangue, que emoldurem a memória. Ora, a memória só será trabalhada a partir de elementos novos, quando passar por uma desconstrução de tudo aquilo que até então a povoou: de todos aqueles elementos culturais vulgares. Urge, por isso, a necessidade de uma verdadeira limpeza, de uma transvaloração dos valores, os quais motivaram aqueles antigos padrões culturais, para investir em uma cultura marcada pela memória de uma aristocracia radical, tal como Nietzsche, na Alemanha, e Brandes, na Dinamarca.

            Nossa investigação se orienta por um percurso que se dá em três momentos. Iniciamos apresentando pistas que pensem a necessidade de uma radicalidade aristocrática, para a crítica da cultura dinamarquesa, de acordo com a recepção que Brandes faz de Nietzsche, em terras escandinavas. Intitulamos esse primeiro movimento “A emergência de uma aristocracia radical”. Na sequência, damos um passo além, de sorte a mostrar as incursões filosóficas de Brandes, em busca da elevação da cultura, de modo a evidenciar que uma verdadeira crítica cultural se pode fazer por elementos originais, e não mais com base naqueles velhos chavões vulgares. Atribuímos a esse segundo momento o título “A aristocracia em sua originalidade do espírito”. Finalmente, em nosso último movimento, mostramos como Brandes irá recepcionar o pensamento de Nietzsche, em seu intento de crítica cultural, com o trato minucioso dos aspectos psicológicos. A este, atribuímos o título “A aristocracia cultural em seus aspectos psicológicos fundamentais”. Em cada um desses momentos, acima mencionados, demonstramos a necessidade da técnica da memória. Ou seja, evocamos a necessidade de procedimentos e mecanismos que ativem a capacidade de recordação da força, como algo que marca profundamente a vida, como ferramenta necessária, a fim de promover a aristocracia da cultura pela sua radicalidade, originalidade e minuciosidade psicológica.

 

1 A emergência de uma aristocracia radical

            Em diversas passagens de seus escritos, Nietzsche apresenta uma concepção positiva da guerra (Krieg), (FW/GC[3], Prefácio da Segunda Edição, 2, KSA 3.348), da revolução, de comoções mundiais, de lutas, enfim, sobre tudo o que demanda força, o que, basicamente, caracteriza a sua filosofia: uma concepção de forças. Portanto, guerra aqui é compreendida em ambos os sentidos, literal e figurado. Pela guerra, literalmente falando, um povo se compromete a constantemente ultrapassar obstáculos e a impor guerra; figurativamente falando, impõe-se guerra a todo cansaço e degenerescência instintual. E, com base nessa concepção, para que uma força se mantenha em seu estatuto de força, faz-se necessário que esta esteja a todo o momento em oposição a outras forças, numa verdadeira luta, num campo agonístico, no qual, a todo o momento, essas mesmas forças vão alcançando pontos mais culminantes de potência (Macht-Höhepunkte).[4] A guerra evoca uma disposição psicológica afirmativa, de modo que nela não há espaço para quaisquer sentimentos de fraqueza e declínio. Nessa posição de luta contra o seu oponente, o que se almeja é assenhorar-se, atingindo uma posição mais elevada, na hierarquia das forças. Ora, se o alcance de patamares mais elevados da potência é o que basicamente mantém aceso o desejo de continuar vivendo, uma forma de afeto (Form des Affektes), de vontade de potência (des Willens zur Macht),[5] servindo assim como veículo de afirmação da vida, então, tudo o que inspira diminuição da potência conduz a estágios de degenerescência da vida e a sua consequente negação.

            Por meio da radicalidade das citadas expressões, que conduzem à promoção da força, Nietzsche afirma a guerra, com repercussões para o incremento da cultura. Brandes, em sua produção escrita, especialmente dedicada à vida e obra de Nietzsche, escreve: “Para Nietzsche, como nós sabemos, os conceitos de cultura e cultura homogênea são equivalentes. A fim de ser homogênea, uma cultura deve ter alcançado uma certa idade e se tornado forte suficiente neste caráter particular para ter penetrado todas as formas de vida.” (BRANDES, 2014, p. 12). O filósofo constata que, somente pelo uso de expressões fortes, marcantes, que imprimam sua recordação na memória, se é possível investir numa mudança quanto à maneira de pensar a mentalidade, a vida, a cultura, pois, assim como as diversas técnicas de memória têm impresso doutrinações, medos, mandatos que direcionam as forças para dentro, inibindo-as, ou seja, atando como interdito às mesmas, também podem atuar no sentido contrário, a saber, de direcionarem as forças para fora, de modo a torná-las criativas.

A criatividade de Nietzsche implica, no dizer de Brandes, além de um profundo interesse, ao mesmo tempo, uma certa dificuldade de compreensão. “Nietzsche teve suas debilidades, porém estas eram pequenas e se dissolveram na grandiosidade de um estilo ao qual dedicou toda a sua vida.” (BRANDES, 2008, p. 123). Eis porque Brandes reconhece que, ao proferir uma primeira conferência em Copenhagen, sobre Nietzsche, pôde contar com um público pequeno, de uns cento e cinquenta ouvintes. Por essa razão, Brandes resolve publicar um artigo a respeito de Nietzsche, de modo que, em sua segunda conferência, o público aumenta para trezentos ouvintes. Brandes reconhece que nem tudo em Nietzsche lhe é claro, assim como se lhe apresenta discordância, em alguns pontos, como este que se depreende de uma carta: “Parece que tens te equivocado com esta comparação: ‘gótico’ nada tem a ver com gut (bem) nem com Got (Deus). A origem é outra.” (BRANDES, 2008, P. 105). Nietzsche tem em mente fazer comparação etimológica com o “godo”, que ele menciona em Para a Genealogia da Moral,[6] ao enfatizar a situação de barbárie que a cultura sofre com ataques de inimigos como os godos.

Com esse expediente criativo, Nietzsche veicula grande parte de suas mensagens, como, por exemplo, ao afirmar que sua escrita se dá com sangue. “De tudo escrito, amo apenas o que se escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue e verás que sangue é espírito.” (Za/ZA, I Do ler e escrever, KSA 4.48). Não apenas essa passagem do Zaratustra, mas a sua obra inteira é um escrito marcado com o sangue, no sentido de ser um texto marcante, com um excurso poético de nem sempre fácil assimilação[7]. Zaratustra é introduzido nessa discussão, para mostrar a força que as palavras ganham em Nietzsche, a qual faz com que a linguagem receba contornos de musicalidade e dança. “Na linguagem de Nietzsche, a dança é sempre a expressão da nobre ligeireza da alma” (BRANDES, 2008, p. 63), e tem a intenção de que sua mensagem jamais se apague da memória de seu leitor. O sangue marca, indica sofrimento, luta, morte, mas é também, e acima de tudo, movimento, dança, nobreza, vida. O sangue é força, é vida, da qual demanda o sentido de uma memória aristocrática.

Essa memória é assinalada em Nietzsche, de maneira especial, pela grandiosidade de seu estilo de escrita, ao qual dedicou grande parte de sua vida. Em situações consideradas limítrofes, de maneira particular, o sangue é evocado; nelas, a mais alta expressão de força é despendida, para dela emanar a vitória. Não necessariamente a vitória daqueles que vencem o adversário, porém, daqueles que, ao vencerem o medo, alcançam a capacidade mais alta de superação. Uma nação que luta, que tem a firme consciência do valor da guerra é capaz de, a todo instante, superar-se e assim afirmar a vida. Uma nação guerreira se define por, acima de tudo, não se resignar a um niilismo passivo, incapaz de se superar, mas que, a todo o instante, se propõe superação e assenhoramento. Pela guerra, as forças despendidas ativam a capacidade de autoafirmação, o que caracteriza a grande riqueza do espírito de um indivíduo e de um povo, contributo a uma cultura aristocrata.

Por essa razão, a dimensão da força e do poder, dos quais demanda uma cultura aristocrata, não se dá apenas pelo cultivo do indivíduo, mas também do povo, mediante as diferentes formas de interação estabelecidas no interior da polis, como Christa Davis Acompara se expressa:

Mas tal poder não pertence apenas ao indivíduo: quando o vencedor retorna a sua polis, estende e redistribui seu poder para a cidade através do ritual da cerimônia de coroação, do reingresso do vencedor na cidade e dos memoriais poéticos e estatuários. Tal economia reflete as negociações políticas da aristocracia em comunidades que cada vez mais valorizavam o governo do demos, os cidadãos livres comuns. (ACOMPARA, 2018, p. 61).

 

            Das considerações acima, percebemos o quanto as referências nietzschianas estão voltadas à dimensão da cultura, no sentido de pensá-la em sua dinâmica de ascendência e elevação. Como Nietzsche, inúmeros expoentes, não apenas da filosofia, contudo, também da literatura, da história e do jornalismo, mantêm seu foco de preocupação na cultura, como é o caso de Georg Brandes[8], com quem Nietzsche mantém um vínculo epistolar estreito[9]. O pensamento de Nietzsche ocupará, dentro das análises de Brandes, um espaço de destaque[10], inclusive, como recorda Bernd Magnus, “[...] a apresentação das primeiras conferências[11] públicas sobre a filosofia de Nietzsche por Georg Brandes, conferências que o apresentaram como radicalmente aristocrático.” (MAGNUS, 2017, p. 30). Portanto, esse espaço será devido, sobretudo, pela dimensão aristocrática de Nietzsche.

A expressão Radicalismo Aristocrático (aristokratischer Radikalismus)[12], utilizada por Brandes para caracterizar o pensamento de Nietzsche, agrada tanto ao filósofo alemão que, em resposta imediata a sua primeira correspondência a Brandes, escreve: “A expressão ‘radicalismo aristocrático’, da qual você se serve, é muito boa. Ou seja, com todo o respeito, a palavra mais esperta, que eu até agora tenho lido sobre mim” (Carta a Georg Brandes de 02 de dezembro de 1887, 960, KGB, VIII, 960, 8.206). Essa expressão faz jus à necessidade de mudanças radicais, pois não basta apenas tocar em problemas que necessitam ser tratados, curados, mas é necessário saná-los, nem que para isso se o faça com sangue. De maneira formal, Brandes põe em prática essa necessidade de cura da cultura, a qual se tornou doente pela sua degenerescência fisiológica e espiritual, através da escrita. O ato de escrever traz consigo a missiva de interpor uma destruição de todas aquelas bases que até então sustentaram a cultura, a saber: a paz, a passividade o contentamento. Através da escrita, o historiador interpõe um ataque à cultura da Dinamarca, a partir de suas bases, de modo que cada palavra e expressão contenha a memória indelével da guerra, da ação e do anseio por mais.

Em seu livro O mundo e guerra, de 1917, apresenta a situação de decadência econômica, cultural e social da Europa. Para tanto, ele descreve o papel que a guerra tem desempenhado no contexto de cada nação e como esta tem contribuído para todo o continente. Brandes nota que foram em situações de dificuldades, caos, tragédias, que uma nação pôde se armar, no sentido de crescer em sua capacidade de resiliência, de despender um quantum sempre maior de potência. O historiador dinamarquês alude a uma situação de resiliência concreta, com relação à rendição da Prússia frente às tropas napoleônicas: “[...] quando a Prússia foi humilhada por Napoleão, na realidade representa a era mais brilhante e gloriosa da Alemanha. Naquele tempo o espírito germânico cresceu para se tornar um poder e conquistar o mundo.” (BRANDES, 1917, p. 07). A memória da dor de ser humilhada, rechaçada e calcada aos pés pelo seu opositor fizera com que a Alemanha já não fosse mais a mesma, uma vez que, por causa dessa situação, ela foi capaz de elevar-se para se tornar uma nação que passou a confiar em seu potencial guerreiro, altivo e conquistador.

Com um potencial desses, a Alemanha se tornou tão forte e lembrada, que Brandes se pronuncia: “Indubitavelmente a Dinamarca é obrigada a apresentar considerações para a sua vizinha do Sul.” (BRANDES, 1917, p. 07). Por isso, além de esse historiador acentuar a dimensão de radicalidade aristocrata, mediante a formalidade escrita, também o faz através de uma radicalidade concreta, a qual se dá pela guerra. Assim, na concepção do historiador dinamarquês, tanto a escrita como a guerra e ainda outros aspectos que afirmam a vida, em sua dimensão de elevação até os mais altos níveis da potência, a noção de força constitui o ingrediente fundamental da radicalidade da aristocracia cultural. De fato, segundo Brandes, “[...] está fundada na parte mais durável da alma humana, da inteligência – a consolidação da força.” (BRANDES, 1917, p. 15-16). A força constitui o elemento central do aristocratismo do espírito, aspecto este que decorre diretamente da concepção nietzschiana da vida. “A vida mesma vale para mim como instinto de crescimento, de duração, de acumulação de forças, de potência: onde falta a vontade de potência há declínio.” (AC/AC, 6, KSA 6.172).

Nesse sentido, todo o sintoma de rendição, de acomodação, de paz, dentro da concepção das forças de Nietzsche, inspira cansaço da vida, o que implica seu esgotamento e degenerescência. A paz, aqui evocada, se refere a um comodismo passivo e conformista, o qual inspira um sentimento de que tudo como está posto é o suficiente. Não é possível, com base nessa compreensão, sair da pequena política de Nietzsche, a política do rebanho, para caminhar em direção à grande política, a política da vontade de potência, que é a política do indivíduo, de onde se fomenta o domínio do espírito, da cultura. Logo, a atividade humana, para que possa crescer em direção a sua saúde, necessita de força, “[...] de uma nova saúde, mais forte, alegre, firme, audaz que todas as saúdes até agora [...] para isso necessita mais e antes de tudo uma coisa, a grande saúde – uma tal que não apenas se tem, mas constantemente se adquire e é preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e é preciso abandonar [...]” (FW/GC, 382, KSA 3.639). A saúde é força, e força não é algo que se tem de uma vez por todas, todavia, que se deve buscar constantemente, como uma eterna conquista, avançando sempre em direção a patamares mais elevados.

Em grande medida, o que caracteriza a guerra é um insaciável desejo de mais, de ímpeto, “[...] guerra é a mais alta e santa expressão da atividade humana.” (BRANDES, 1917, p. 24). Por isso, “[a] paz deve ser reconhecida como um fator no desenvolvimento da cultura real, mas na visão do [...] progresso cultural é de menos valor para a Alemanha que a proeza militar.” (BRANDES, 1917, p. 24). Por mais que a paz seja considerada como um valor fundamental para a cultura e sua relação com as nações, ela também pode exercer um papel de perversidade, no que diz respeito à ativação das forças, pela promoção no direcionamento oposto das mesmas: da interiorização para a exteriorização, no sentido nietzschiano de descarga Entladung, de modo que sejam verdadeiramente criativas.

Por isso, a guerra é o que melhor promove a ativação das forças: “Sem guerra e contínua preparação para a guerra, as nações crescem fracas e apáticas.” (BRANDES, 2017, p. 24). Quando não ativadas, as forças se atrofiam, logo, se tornam incapazes de promover vida. Tanto o excesso das forças como seu atrofiamento, ao se expressarem, por exemplo, no pensamento e na literatura, constituem fatores fundamentais na promoção ou degeneração de outras manifestações culturais.

O historiador dinamarquês encontrou, no trabalho dos alemães Ernst Haeckel e Friedrich Nietzsche, elementos que vão ao encontro de diversos alvos de seu interesse, no que concerne à reflexão acerca de uma cultura aristocrata. E, quando se trata de aristocracia, não podemos prescindir de outro traço fundamental, que é o cosmopolitismo, a capacidade de estar em sintonia com os grandes marcos da cultura mundial, estabelecendo diálogo com os mesmos. E os alemães, como recorda Brandes, possuem um perfil cosmopolita. “E como um cosmopolita o alemão parece um radical. Pensadores como Haeckel e Nietzsche[13] são mais admirados que filósofos como Eucken, James, ou Bergson.” (BRANDES, 1917, p. 48). Ernst Haeckel (1834-1919), como naturalista, filósofo e artista, recepcionou o pensamento de Darwin na Alemanha, principalmente pela retratação, em pinturas, da natureza, como uma grande arte em si.

Como Nietzsche, Haeckel desenvolveu um pensamento influenciado pelo Romantismo e, por essa razão, sua filosofia é um monismo, pelo entrelaçamento entre ética, política, economia, religião e ciência. Tal como hierarquização, decorrente do desenvolvimento dos organismos, em seus estágios evolutivos, Nietzsche concebe que a “[...] elevação do tipo ‘homem’ foi, até o momento, obra de uma sociedade aristocrática – e assim será sempre, de uma sociedade que acredita numa longa escala de hierarquias e diferenças de valor entre um e outro homem.” (JGB/BM, 257, KSA 5.205).

Essa diferença na hierarquia de valores é um traço fundamental do pensamento evolucionista de Darwin, que tanto Haeckel como Nietzsche recepcionam na Alemanha, servindo como base para a aristocracia de seu próprio pensamento. Brandes, por sua vez, concebe o pensamento de Darwin, via recepção que dele fazem Haeckel e Nietzsche, como meio para se fundamentar o papel que a guerra ocupa numa sociedade aristocrata: o “[...] darwinismo na Alemanha foi a base do culto da guerra” (BRANDES, 1917, p. 50). Se a guerra passa a ser vista como um culto, então, seu papel, dentro da visão cultural aristocrata, é radicalizado. Seguimos nossa reflexão, aprofundando como essa dimensão de radicalização pela qual a aristocracia, recepcionada por Brandes, no pensamento de Nietzsche, foi se desenhando no contexto cultural dinamarquês.

 

2 A aristocracia em sua originalidade do espírito

            A radicalidade da aristocracia cultural se evidencia, para além de grandes eventos e comoções, como a guerra, em manifestações que revelam a originalidade do espírito, como na arte e no intelecto. Brandes aborda o imenso contingente de originalidade cultural de que a Alemanha é detentora. Por essa razão, a vitória na batalha cultural não se dá apenas pela força bélica, como o foi no caso dos romanos, no entanto, acima de tudo, pela força do espírito, a qual se expressa no conhecimento, como foi o caso dos gregos. Assim, a originalidade de um povo e de uma raça constitui um passo a mais no sentido de elevação cultural aristocrática, tendo, portanto, o conhecimento um espaço privilegiado.

Esse louvor da raça, evocado por Brandes, pode revelar, como pretendemos aprofundar em estudos posteriores, um elemento importante na recepção que ele faz de Nietzsche, na Dinamarca: o de dar azo a uma interpretação nazista do pensamento do filósofo alemão. O próprio Nietzsche se revela avesso ao próprio germanismo, como se expressa em diversas passagens de seus escritos, os quais desmentem algo do acento que Brandes apresenta do filósofo. O historiador dinamarquês cita vários expoentes representantes alemães dessa aristocracia do espírito, entre eles, Nietzsche. Aquele mesmo esforço, em termos de elevação cultural, realizado na Alemanha por Nietzsche, é também desenvolvido por Brandes, na Dinamarca. O ingrediente principal de ambos os esforços é o do investimento no verdadeiro espírito que eleva a cultura até os seus mais altos níveis aristocráticos. Para atingir esse estágio, o espírito deve ser original, segundo Nietzsche se expressa:

Toda ação individual, todo o modo de pensar individual, suscitam arrepio; não podemos deixar de levar em conta o que precisamente os espíritos mais raros, mais seletos, mais originais, em todo o decurso da história, tiveram de sofrer por serem sempre sentidos como os maus e perigosos, e mesmo por sentirem assim eles próprios. Sob o domínio da eticidade do costume a originalidade de toda espécie adquiriu má consciência. (A, I, 9, KSA 3.24).

 

A eticidade do costume, expressão que faz referência à Fundamentação da metafísica dos costumes, de Kant, é utilizada nesse aforismo de Nietzsche para contrapor aquilo que, na visão do filósofo de Naumburg, impede a manifestação original de um indivíduo e de um povo. Enquanto se mantém na posição de obediência aos costumes estabelecidos, moldando o comportamento individual de acordo com os parâmetros éticos, não é possível se investir naquilo que Nietzsche acentua com a expressão “espírito” – o ingrediente fundamental para que uma cultura alcance os patamares mais elevados da aristocracia. O padrão ético, estabelecido pelos costumes rigidamente impostos, impede a manifestação do elemento original de cada indivíduo, em suas práticas e ações. Nesse sentido, uma ação ética, quando perde o seu perfil original, faz com que a força reoriente a sua direção, de seu sentido externo, criador para seu sentido interno reprodutor. Todo indivíduo, ao renunciar à força, que, pelo seu extravasamento, crie valores, a experimenta como contenção, fraqueza, resignação.

Portanto, é uma força que se coloca contra ela mesma, o que, consequentemente, faz de todo o que a experimenta um espécime mau e perigoso, dominado pela má consciência. Diante disso, ao indivíduo, mergulhado em sentimentos de incapacidade, letargia e degenerescência, só lhe cabe esperar pela instauração de padrões de costumes ditados por esferas institucionais. Toda inciativa individual, por essa razão, é concebida como anárquica e, por isso, se constitui como sendo má.

O historiador dinamarquês, em diversas passagens de seus escritos, reconhece o quanto a influência de filósofos como Kant contribuíram para proporcionar uma cultura europeia de paz, devendo, para tanto, sacrificar no altar da lei e do dever as mais altas capacidades de criação individuais. “Enquanto o darwinismo na Inglaterra foi interpretado para significar a sobrevivência dos mais ajustados sem especial referência para a seleção feita na guerra, o darwinismo na Alemanha foi feito a base do culto da guerra. Lessing e Kant, Herder e Goethe, foram amantes da paz – Kant foi um pacifista.” (BRANDES, 1917, p. 50). Se, para Kant, tudo deve ser sacrificado em prol da paz perpétua, para Nietzsche, tudo deve ser oferecido em prol da promoção da força, mesmo que seja pela guerra, porque tudo deve contribuir para a ativação das forças, papel este exercido pela oposição que se trava, de modo especial, num clima de guerra. Para os padrões culturais aristocráticos, somente sobrevivem aquelas espécies que não sucumbem ao nivelamento vulgar. Estas são espécies capazes de elevar-se, para além de todo e qualquer nivelamento, estão habituadas a não se entregar a padrões de costumes, mas a cultivar a solidão, onde encontram as forças necessárias para o exercício da originalidade. O cultivo da solidão refere-se ao cultivo de si, do indivíduo, para além da massificação, contudo, o si aponta para um campo anímico, de luta.

Ora, exercitar a originalidade é exercitar o espírito, a marca única irrepetível de cada indivíduo. Para além de modismos vulgares inconsistentes, os promotores da aristocracia, aqueles que se lançam no campo anímico pela busca de assenhoramento, investem em uma memória que permanece, a qual é sempre a mesma, em seu conteúdo, todavia, sempre original pela maneira como se a experiencia, ou seja, cada indivíduo realiza uma experiência nova e singular sobre uma mesma realidade. Essa originalidade da memória se expressa na capacidade que tem, ao dar atenção aos detalhes, os quais, vistos em seu conjunto, proporcionam instantes de plenitude. Desses instantes, é possível atingir-se pontos culminantes potencias, ou seja, níveis mais altos na hierarquia que compõem a esfera orgânica e que se expressam na dimensão aristocrata. Por essa razão, um indivíduo ou uma nação que não atenta aos detalhes da memória incorre em sérias deficiências para alcançar êxito em seus projetos. O historiador dinamarquês, ao analisar alguns conhecimentos fundamentais que se deve ter, na guerra, indaga se os dinamarqueses conhecem as águas do mar Báltico tão bem quanto os alemães e, por isso, assinala: “A Inglaterra desdenha ou negligencia tais detalhes. O homem da guerra inglês não é familiar com as nossas costas. E esta foi a primeira vez na memória do homem que as frotas inglesas visitaram o forte.” (BRANDES, 1917, p. 12-13).

Portanto, a arte da guerra conta, necessariamente, com a capacidade de compreender as coisas em seus detalhes. Se a memória dos detalhes vale para a guerra, deve valer muito mais para outros campos, como a arte e outras expressões de uma cultura aristocrata. Nietzsche, como filólogo, assume a causa de se ater ao máximo aos detalhes que compõem as coisas. E é graças ao trato atento sobre tais detalhes que o filósofo foi capaz de apresentar uma leitura profunda e perspicaz. O filósofo alemão demostra essa atenção aos detalhes, em como uma leitura correta e acurada pode contribuir para a ciência. “Toda ciência só ganhou continuidade e constância quando a arte da leitura correta, isto é, a filologia, chegou a seu auge.” (MA/HH, 270, KSA 2.223). Quanto mais acurada for uma leitura, tanto mais detalhes se poderá auferir e tanto mais profunda e, assim, digna de crédito será. Ora, a leitura que se desenvolve desse modo contribui para a constituição de uma técnica de memória que permite o avanço do conhecimento, pois é uma memória sempre original, a qual atua como uma força que atinge o instante em sua plenitude, e não como um momento fragmentário. Por isso, não há memória sem a dimensão de continuidade, constância, harmonia e dedicação atenta aos detalhes. No filão dessa trajetória, a cultura pode se enriquecer, se tornar forte, capaz de superar aqueles obstáculos promovidos pelo descompasso e desarmonia que deterioram e degeneram os instintos.

No entanto, quando se pensa em continuidade e harmonia, não se quer aproximar à passividade e à ausência de conflitos. Muito pelo contrário, os elementos de continuidade e harmonia implicam incessante embate, conflitos e guerras, já que é graças à constância, em meio a esse clima beligerante, que se pode garantir a força que produz elevação e vida. Nesse sentido, o marasmo, a passividade e a reprodução fidedigna de modelos sagrados, a exemplo daqueles ideais platônicos, são inimigos da originalidade, em uma cooperação a uma aristocracia cultural. A força se impõe como algo que inspira originalidade, para além do enquadramento do rebanho e, por isso, Dionísio vem contemplado no pensamento de Nietzsche como contraposição às ameaças a tudo o que é singular e original. Como herói trágico, Dionísio concentra em si uma multiplicidade de máscaras, as quais trazem à memória a garantia de sua originalidade:

De fato, eles parecem ter sentido assim; do mesmo modo que em geral a distinção e a valorização platônicas da "idéia" em contraposição ao "ídolo", à cópia, estão profun­damente entranhadas na essência helênica. Para servir-nos da terminologia de Platão, poderíamos dizer, das figuras trágicas do palco helênico, mais ou menos isto: o único Dioniso verdadeiramente real aparece em uma pluralidade de figuras, sob a máscara de um herói combatente e como que emaranhado na rede da vontade individual. (GT/NT, 10, KSA 1.71-2).

 

Apesar de múltiplo em suas máscaras, ou seja, em sua forma, continua sendo o mesmo Dionísio, com a garantia de sua originalidade, identidade e autoafirmação. Tal como no mimetismo do ideal grego, também o fenômeno do mimetismo das formas francesas, na Alemanha, é um sintoma que Nietzsche aponta como responsável pela decadência cultural, o que ele chama de décadence. “A filosofia grega significa já um instinto de décadence.” (Nc/FP, outubro-novembro de 1888, 24[1], KSA 13.626). O fenômeno mimético revela inanição, degenerescência, incapacidade de criar; por isso, as forças recuam, direcionando-se para dentro. Nessa perspectiva, não há descarga, pois as forças percorrem um movimento contrário àquele de sua realização criadora, qual seja, o de sua externalização e transbordamento, porque somente onde há transbordamento há vida. Esse fenômeno de expressão transbordante revela o que há de mais original, extrapola os padrões estabelecidos e perverte os preconceitos morais. Estes últimos são responsáveis por contaminar a esfera espiritual, o ingrediente fundamental, a conferir originalidade a todos os projetos, tanto em nível cultural individual, como em nível cultural coletivo.

Na medida em que aquela esfera espiritual, mais original e livre de toda a sorte de pressupostos, sofrer influências da moral, com todos os seus preconceitos, tanto mais nefastos serão seus efeitos sobre a cultura. Em seu ensaio sobre o radicalismo aristocrático de Nietzsche, Brandes atesta que “[...] sua produção literária alcança um ponto culminante com a análise da gênese das noções morais. Por outra parte, Nietzsche teve a intenção e a esperança de dar uma crítica sistemática dos valores morais, um exame do valor destes valores.” (BRANDES, 2008, p. 13). Nesses valores, Nietzsche vê a origem da degenerescência das forças e decadência cultural. Ao invés de uma cultura orientada por forças que promovem transbordamento, elevação e assenhoramento, fenômenos característicos da vivacidade, são impetradas aquelas forças que se recolhem para dentro, inibidas pelos preconceitos morais que se erigem por palavras de ordem, como a igualdade, o direito e a justiça. A leitura desses sintomas é ilustrada pelo historiador dinamarquês, em situações concretas, como aquela marcada pela maneira como duas nações concebem a guerra: a Alemanha e a França.

Na Alemanha durante os últimos anos a guerra tem sido continuamente declarada como a mais alta e santa expressão da atividade humana, a maior benfeitora da humanidade, o único teste de habilidade universal o qual constrói, reforça e mantém o estado e a sociedade. Do território francês os soldados alemães fazem ressoar o som: “Alemanha, Alemanha acima de tudo!” E a França pergunta: “Acima do direito, da justiça, da liberdade, da humanidade?” O povo francês não quer guerra. (BRANDES, 1917, p. 70-71).

 

O historiador dinamarquês constata a importância da guerra, como a atividade espiritual humana mais alta. Através dessa bagagem espiritual, é possível se investir em aristocracia, ou seja, dispor da força necessária que alavanque os dispositivos psicológicos afirmativos. Esses dispositivos concentram a marca do caminho cultural que permite extravasar as forças, de modo que os obstáculos que se interpõem às mesmas sejam desencadeadores de um quantum ainda maior de força. No fundo, o autor dinamarquês, seguindo as sendas nietzschianas, pretende alavancar um impulso cultural, na Dinamarca. O investimento desse potencial reside na originalidade de tais forças, promovendo o que há de mais original e próprio de cada cultura: a direção da força que descarrega, extravasa, transborda. O espírito, na concepção nietzschiana, é aquele que, liberto do sentido de peso, para quem a vida constitui um fardo, a afirma, com toda a sua originalidade, liberdade e singularidade, portanto, nele não há nenhum tipo de divisão, como seria aquela entre corpo e alma: o espírito inspira unidade.

            O transbordamento da força, em sua originalidade do espírito, reside naquela disposição de ânimo, própria de cada tipo psicológico. Nesse sentido, damos um passo além em nossa pesquisa, para aprofundar a forma como Brandes recepciona esse traço nietzschiano, dos tipos psicológicos, e como estes implicam alavancar a aristocracia cultural.

 

3 A aristocracia cultural em seus aspectos psicológicos fundamentais

            Em seu pensamento sobre a cultura, Nietzsche procura centrar-se nos seus tipos psicológicos, ou seja, na disposição de ânimo que se depreende daqueles que são confrontados a responder às diversas situações do dia a dia. Dado o fato do niilismo, de acordo com a leitura do filósofo, a questão está em como se procede diante do mesmo. Nietzsche concebe duas formas, para dispor-se diante dessa situação: com passividade resignada, ou com altivez afirmativa. Dessas duas disposições psicológicas, o filósofo conclui duas formas de niilismo: ativo ou passivo. Para se perfazer um caminho em direção à ascendência cultural, isso somente pode ser possível através das sendas de um niilismo ativo, isto é, mediante o desenvolvimento de uma disposição de ânimo afirmativa, capaz de, além de afirmar, querer o fato tal qual se manifesta, por mais duro e aparentemente intransponível que seja. Um exemplo desses tipos psicológicos ativos o filósofo alemão detecta na figura histórica de Jesus de Nazaré, falsificada, posteriormente, pela recepção que essa teve entre as primeiras comunidades.

O tipo psicológico diz respeito àquela disposição interna mais íntima, àquilo que corresponde ao ensinamento, à existência, à prática, à morte, ao sentido da morte, para além de tudo aquilo que se faz presente no desenho que dele se fez, nas lendas dele contadas. Por isso, Nietzsche constata que o tipo psicológico Jesus foi falsificado em torno daquilo que veio a se denominar Cristianismo, deixando-se de aproveitar o que constitui o seu tipo – a sua vida e prática –, para agarrar-se à sua morte e ressurreição. A aristocracia, apontada em Jesus, concerne à força que se depreende de sua tipologia psicológica afirmativa, diante do fato da vida.

Jesus é um ideal ativo para a cultura, ou seja, o que mais importa não é aquilo que ele fez ou deixou de fazer, mas o que a sua figura representou e continua a representar, para gerações e povos. Ele é um tipo psicológico que, tal como Tell e outros personagens mitológicos, personificam o ideal de amor pela liberdade e pela pátria, pois o legado que ele deixou marca profundamente o espírito de cada um que se deixa inspirar por ele:

Cristo figura como um ideal de superioridade espiritual, de amor pela humanidade, de caridade e pureza, fora muitos séculos de homens mais velhos do que o velho galileu de nobre espírito, que dezenove séculos atrás, foi dito para dar personificação histórica para este protótipo. A mesma figura sobrevive por muitos séculos vindouros, mesmo se ele, como agora parece igualmente, nunca deveria ter existido. (BRANDES, 1926, p. 26).

 

A figura Jesus representa não apenas um tipo, mas um protótipo, quer dizer, um tipo original; seu ideal continua avançando em inspirar a prática e o ideal de muitas pessoas, em grande parte do mundo. Ele inspira ideais de superioridade, os quais possuem durabilidade. Brandes recepciona a leitura que Nietzsche faz do Nazareno, como a de um tipo psicológico original, visto que somente um tipo original, psicologicamente falando, poderá caminhar no sentido de implantação de uma cultura aristocrática. A personificação psicológica de Jesus permite que ele, em todo o momento, surpreenda, como é o caso das respostas desconcertantes que dá a seus adversários. A força de espírito, de suas palavras e de seus ensinamentos, que compõem a sua prática de vida, confere ao seu tipo uma característica eminentemente aristocrata.

               O cultivo de um tipo psicológico aristocrata exige, na compreensão do filósofo alemão, tempo, isolamento, reflexão. Tal foi o que fez Zaratustra, ao permanecer por tanto tempo isolado na montanha, distante da turba, período no qual foi crescendo na compreensão daquilo que lhe cabia realizar. O amadurecimento, na compreensão daquilo que se é, bem como na afirmação de si mesmo e de sua missão, requereu, entre muitas coisas, o cultivo de si, e isso Nietzsche vê como possível de ser realizado, quando não há contato com o rebanho. “Depois de falar essas palavras, Zaratustra olhou novamente para o povo e calou. ‘Aí estão eles e riem’, falou para seu coração, ‘não me compreendem, não sou a boca para esses ouvidos’.” (Za/ZA, Prólogo, 5, KSA 4.18). O profeta Zaratustra entende que a cultura somente poderá empreender seu caminho de elevação, na medida em que proporcionar subsídios suficientes que atuem no sentido de cultivar tipos psicológicos avantajados, ornados pela originalidade de sua disposição em acolher jubilosamente o fatum, por mais desafiador que seja, um entrelaçamento entre prazer e dor “[...] – tão rico é o prazer, que tem sede de dor, de inferno, de ódio, de injúria, de aleijado, de mundo - pois este mundo, oh, vós o conheceis, sim!” (Za/ZA, IV A canção bêbeda, 11, KSA, 4.403). Tais tipos, assim compreendidos, ativam ao máximo suas forças, as únicas capazes de criar e, por isso, afirmar a vida. Nesse aspecto, Brandes parece distanciar-se de Nietzsche[14], já que Nietzsche, ao realizar essa associação entre prazer e dor, a faz ao nível puramente intelectual, afastando-se do nível fisiológico. Por essa razão, o historiador dinamarquês concebe como contrassenso essa associação nietzschiana, pois ignora “[...] que a dor ou ‘desprazer’ mais baixo e mais comum é a fome, a incapacitação física, o trabalho excruciante destrutivo para a saúde, e que não existe nenhum gozo arrebatador que possa compensar tais sofrimentos.” (BEHLER, 2017, p. 347).

               Por mais que Brandes se aproxime de Nietzsche, por seu projeto de radicalismo aristocrático, baseado nas forças, deste se distancia, na medida em que, ao conceber a realidade das forças no plano intelectual, concebe o sofrimento, a doença e a dor como desencadeadores da força: essa questão, para o historiador dinamarquês, é impossível. Para ele, da dor e do sofrimento não se pode alavancar força, no entanto, vemos que o interesse de Nietzsche é estabelecer uma argumentação em nível psicológico, e é nesse domínio que seus temas se inscrevem, ultrapassando qualquer nível de controle científico e racional. Além disso, um outro ponto se destaca, nesse distanciamento de posição entre Nietzsche e Brandes: ora, Nietzsche, embebido desse sentimento de radicalismo aristocrático, é avesso à compaixão e ao amor ao próximo – “A política de Nietzsche é aristocrática na medida em que defende uma sociedade elitista e baseada em classes, mas é radical na medida e que advoga uma nova configuração social aristocrata, ao invés de conservar aquela já existente.” (WOODWARD, 2011, p. 172). Brandes, por sua consciência social desenvolvida, reconhece a importância de formar a cultura pela sua sensibilidade à responsabilidade social. Contudo, o historiador dinamarquês reconhece no filósofo alemão uma mente altamente esclarecida, quanto à caracterização de uma nova filosofia, marcada pelo radicalismo aristocrático, presente, sobretudo, em tipos psicológicos.

               Ests característica prototípica psicológica está impressa não apenas em indivíduos, mas também em nações, como é o caso da Polônia, na compreensão de Nietzsche. O próprio filósofo se reconhece como descendente de poloneses, contudo, essa tese nunca foi confirmada[15], o que provam inúmeros estudos desenvolvidos sobre ela, inclusive no Brasil. Esta é uma crença que permaneceu apenas no desejo do filósofo alemão, tal como ele mesmo se expressa, com orgulho, pela forma como era reconhecido em uma carta: “Há muitos poloneses aqui e estes - é estranho - me consideram polonês, me abordam com saudações polonesas e - não acreditam em mim quando me identifico como suíço.” (Carta a Heinrich Köselitz de 20 de agosto de 1880, KGB 4.37). Ainda em seus Fragmentos Póstumos, o filósofo se expressa: Foi-me confirmado com bastante frequência que minha aparência até agora era do tipo polonês; no exterior, como na Suíça e na Itália, eu era frequentemente chamado de Polônia; em Sorrento, onde passei o inverno, meu nome era il Polacco.” (Nc/FP, Verão de 1882, [21]2, KSA 9.681). Nietzsche se expressa, em uma carta ao próprio Brandes, sobre sua descendência polonesa, nestes termos: “Meus ancestrais eram nobres poloneses (Niëzky); parece que o tipo está bem preservado, apesar de três ‘mães’ alemãs. No exterior, geralmente sou considerado um polonês; neste inverno, a lista de turistas de Nice me registrou como comuna polonesa,” (Carta a Georg Brandes de 10 de abril de 1888, 1014, KGB 8. 288).

               Em suas reminiscências sobre Nietzsche, Brandes atesta a alta consideração do filósofo alemão pela nação polonesa: “Sem dúvida, ninguém durante a década de 1890 a 1900 causou tamanha impressão e recebeu tanta atenção quanto esse filho de um pastor do norte da Alemanha, que de toda maneira queria ser considerado um aristocrata polonês.” (BRANDES, 1903, p. 337). Apesar de Nietzsche sustentar com tanto orgulho sua descendência polonesa, esta, como mostra Curt Paul Janz, nunca de confirmou. “As pesquisas minuciosas realizadas por Max Oehler, primo de Nietzsche, sobre seus antepassados – e que aqui nos servem como referência – comprovam que essa tradição romântica é completamente insustentável.” (JANZ I, 2015, p. 30)[16]. O caráter destemível e corajoso do povo polonês talvez fosse o que motivasse Nietzsche a se autorreferir como descendente polonês. O povo polonês se distingue pela força de sua coragem e entusiasmo, em busca de sua liberdade, enquanto nação.

               Apesar de todo o seu sofrimento, perdas, destruições, os poloneses jamais se entregaram resignadamente frente aos grilhões que os espreitaram. Brandes, como Nietzsche, reconhece nesse povo um tipo distinto e nobre:

Se ama a Polônia, não como se ama a França, a Alemanha ou a Inglaterra, mas como se ama a liberdade. Para o que isso significa amar a Polônia, mas amar a liberdade, simpatizar com o sofrimento e admirar coragem e entusiasmo radiante! A polônia é um símbolo de tudo o que é amado pelos melhores da humanidade e dos ideais pelos quais a humanidade vive e lutou (BRANDES, 1917, p. 114).

 

               A Polônia é reconhecida pelo historiador dinamarquês como o povo da liberdade. Ela jamais se cansou de lutar em busca da liberdade e, por essa razão, continuou, a despeito de todas as suas derrotas e destruições, resistindo com firmeza e tenacidade. Portanto, a Polônia é um exemplo de grandeza de alma, psicologicamente falando, o que se reflete tanto em seus tipos individuais, de pessoas, como em seu coletivo como nação. Consequentemente, o que contribui para a elevação da cultura é uma tipologia psicológica dada à luta, que não se retrai frente às ameaças, mas que, a todo o momento, está disposta a lutar. Esses tipos psicológicos amam o que em outros pode causar pavor, medo ou insegurança, pois são afirmativos.

               Como tipologia psicológica individual, conforme já mostrado, temos Jesus de Nazaré, em seu empreendimento afirmativo diante da vida, e, como tipologia psicológica coletiva, também, segundo já demostrado, temos o povo polonês, o qual, mesmo com seu país destruído em diversas guerras, nunca se cansa de lutar e reconstruir. Esse caráter afirmativo é considerado por Brandes como a chave do melhoramento da humanidade, no sentido de que se dispõe a alimentar ideias nobres, não como o fazem aqueles que vivem neste mundo em função de um depois, mas, sim, vivem neste mundo em função, única e exclusivamente, deste mundo, afirmando-o em todos os seus aspectos. Porque estão acostumados a enfrentar situações limites, esses tipos elevados depositam confiança na força que redime e transfigura. Eles têm sempre diante de si a memória dos grandes adoradores do ‘Sim’, da vida e do mundo; por essa razão, a recordação de seus feitos promove ânimo e coragem, alimenta a esperança.

               O historiador dinamarquês, na esteira do pensamento nietzschiano, acredita que a renovação da Dinamarca, no sentido de alcançar patamares sempre mais elevados da cultura, só poderá fazê-lo na medida em que alimentar o grande amor, que é o amor a si mesmo, a afirmação de si, acreditar que se é capaz. Esse amor a si é o ingrediente principal na constituição do tipo psicológico elevado, aquele que atuará na consecução de fomentar a cultura aristocrata, pautada pela originalidade singular, que a todo o momento busca atingir pontos mais culminantes da força.

 

Considerações finais

               O percurso realizado permitiu perceber que a recepção que Brandes faz de Nietzsche, na Dinamarca, está fundada na memória de uma aristocracia, a qual tem o intuito de alavancar uma elevação cultural que se apresenta em sua radicalidade, originalidade e minuciosidade psicológica. O historiador dinamarquês empreende esse projeto de elevação cultural aristocrática, na Dinamarca, valendo-se de um procedimento, também tematizado por Nietzsche, a mnemotécnica. Embora, como vimos, não seja o filósofo alemão o fundador de tal procedimento, ele se mostra atraído por este. Seja para criticar como para pôr em prática, Nietzsche entende as diversas técnicas de memória como, em última análise, impossíveis de se desatar. O grande problema, na visão do filósofo, é quando estas impedem a descarga da força, por prenderem, aqueles que delas experimentam, a eventos que desencadeiam sentimentos de culpa. Contudo, a memória é fundamental, uma vez que suscita a força, como é o caso da recordação dos feitos de personalidades aristocratas; estas inspiram ações que visam à elevação da cultura.

               Brandes foi especialmente inspirado pelos trabalhos de Nietzsche, no que estes apontam para o alvorecer de uma nova era, a de espíritos livres, amantes de tudo o que incita a força. Esses espíritos livres são particularmente caracterizados pelo filósofo alemão como aqueles que amam a guerra e de todas as formas procuram escapar de situações que conduzem à paz, pois estas estancam a capacidade de ativar as forças, as únicas que produzem elevação fisiológica e, por isso, afirmam a vida. É tão marcante em Brandes a recepção de Nietzsche, pelo seu culto à guerra, que ele dedica um livro especialmente voltado a esse tema. Entre as diferentes figuras recordadas por Brandes, em seus escritos e conferências, estão aquelas, as quais, em tudo, buscaram desenvolver o cultivo de aspectos originais. Para tanto, tiveram que travar uma verdadeira batalha contra o rebanho que uniformiza, mata a criatividade e, por essa razão, impede a ativação das forças. O quanto mais originais forem, tanto mais poderão contribuir com a sua capacidade criativa, para a promoção de uma cultura aristocrata. A grandeza de tais figuras, na cultura, é avaliada não especialmente pelo que elas fizeram, porém, particularmente pelo seu tipo psicológico, ou seja, como estas se colocam diante das diversas situações que as espreitaram, qual a sua disposição de ânimo em enfrentar tais situações.

               Na medida em que tais tipos psicológicos se destacam, no sentido de acolherem com jubilosa afirmação o fato, tal como se apresenta, tanto mais servirão como meio de elevação da cultura. Desse aspecto de afirmação do sofrimento, da dor como propulsores do prazer da força, bem como da aversão à compaixão e o amor ao próximo, percebemos um distanciamento quanto à posição de Brandes. Para este último, a dor não pode resultar em força, contudo, deve levar à fraqueza, que, por sua vez, não se coaduna com o ideal de amor ao próximo. O ideal de radicalidade aristocrata, tal como Brandes pensou para a Dinamarca, se alcança pelo cultivo de tipos psicológicos amparados no prazer e na responsabilidade social. Esses tipos psicológicos afirmativos são espíritos livres e, por isso, inspiram aristocracia, dado que esta última não constitui um ideal realizado, mas uma transição, passagem, disposição para o aumento de força.

               Por isso, o aristocrata não se refere aqui àquela imagem nietzschiana da burguesia alemã, a qual, em seu comodismo e autossatisfação decadente, perdeu o gosto de lutar. O historiador dinamarquês avalia esses tipos individuais, como o tipo Jesus, para além de uma figura mitológica, como um tipo que inaugura uma forma, um jeito de ser singular, pela maneira original e afirmativa como se coloca diante dos desafios. Além disso, a avaliação aristocrata de Brandes dirige-se para tipos coletivos, nações, como a Polônia, que, apesar de todas as ameaças e destruições vividas, jamais se resignou, entretanto, como fênix, sempre ressurgiu das cinzas.

               A radicalidade aristocrática aponta para um quantum de força que transborda e, com isso, se eleva a níveis sempre mais altos, porque, a cada desafio superado, novos são apresentados, por essa razão, jamais se conforma em uma resignação pacificada. A cada instante em que a força é descarregada, um sentimento de plenitude é desfrutado, mas um instante único e original. Esses instantes originais proporcionam espíritos primordiais, livres, capazes de criar e, por conseguinte, tornar a vida sempre nova. Eles vivem a vida como experiência singular, e não como cumprimento de normas fixadas pela padronização do rebanho. Portanto, são espíritos solitários, dados à vida nas alturas, distantes da turba, que cultivam um espírito original, criador, por meio do qual se estruturam em tipos psicológicos fortes e singulares.

               Esses tipos constituem a base de onde pode nascer uma cultura aristocrata. Brandes, a partir de sua leitura de Nietzsche, faz memória desses tipos singulares e originais, para encomendar uma cultura aristocrata elevada até o seu nível mais radical. Por essa razão, a guerra ocupa espaço fundamental em suas análises. Através da guerra se avalia em que medida um indivíduo ou uma nação é capaz de resistir e, assim, se manter sempre mais forte, de onde, na leitura do historiador dinamarquês, resultará uma cultura aristocrata. Essa leitura pode incitar, como pretendemos explorar em estudos posteriores, uma leitura nazista de Nietzsche, contudo, distante de seu sentido e intenção originais.

               A recepção de Nietzsche, na Dinamarca, por Brandes, se deu via uma necessidade – a de acreditar que a Dinamarca seria capaz de se superar, alcançado níveis mais altos de força. Essa mesma necessidade inspirou o próprio Nietzsche, em seu pensamento, a fazer com que a Alemanha acreditasse mais em si mesma, confiando em sua capacidade de superação. Diversas passagens dos escritos de Nietzsche revelam o quanto ele notou, em Brandes, alguém que, de fato, compreendeu o seu pensamento, ultrapassando, inclusive, os seus próprios compatriotas alemães. Logo, Nietzsche constata, na própria atividade de recepção, um elemento fundamental para a aristocracia cultural: a mnemotécnica, isto é, da recepção se depreende uma técnica a ela intimamente ligada, a técnica de memória. Brandes faz memória, na Dinamarca, da figura do filósofo alemão e de seu pensamento, inclusive, como o mesmo filósofo incita a seus compatriotas fazerem memória dos grandes tipos psicológicos que assinalaram gerações inteiras, deixando-se por eles inspirar, para produzir um movimento aristocrático cultural radical.

 

NIETZSCHE E BRANDES: THE MEMORY OF AN ARISTOCRATIC RADICALISM

Abstract: Nietzsche's thought is received in Scandinavia through the Danish historian Georg Brandes. The historian is attracted by the aristocratic aspect that emerges from Nietzsche's reading of culture. Radicality, originality and psychological detail, which can be seen in the philosophical spirit of the German thinker, permeate Brandes' reading of the author of Zarathustra. Nietzsche himself testifies to how much his name, thanks to Brandes, comes to be known in Denmark in several of his letters and other writings, even attesting to a correct understanding of his thinking. Our proposal is intended to ascertain the role that memory, in its aristocratic sense, has to contribute to Brandes' Nietzschean reception. To what extent can mnemotechnics point the way to an aristocratic culture for the Denmark’s context of Brandes?

 

Keywords: Nietzsche. Brandes. Memory. Culture. Aristocracy.

 

Referências

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BEHLER, Ernst. Nietzsche no século XX. In: Nietzsche. MAGNUS, Bernd; HIGGINS, Kathleen H. (org.). Trad. André Oídes. São Paulo: Ideias & Letras, 2017.

BRANDES, Georg. Formas e pensamentos. In: Ensaios. Munique: Albert Langen, 1903. 337-340.

BRANDES, Georg.The world at war. Translated by Catherine D. Groth. New York: The Macmillan Company, 1917.

BRANDES, Georg. Jesus a myth. Translated by Edwin Björkman. New York: Albert & Charles Boni, 1926.

BRANDES, Georg. Nietzsche. Un ensayo sobre el radicaliso aristocrático. Trad. José Liebermann. Madrid: Sexto Piso, 2008.

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JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche. Uma biografia. V. I: Infância, juventude. Os anos em Basileia. Trad. Markus A. Hediger e Luís M. Sander. Petrópolis: Vozes, 2015a.

JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche. Uma biografia. V. II: Os dez anos do filósofo livre (Primavera de 1879 a dezembro de 1888). Trad. Markus A. Hediger. Petrópolis: Vozes, 2015b.

JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche. Uma biografia. V. III: Os anos de esmorecimento, documentos, fontes e registros. Trad. Markus A. Hediger. Petrópolis: Vozes, 2015c.

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WOODWARD, Ashley. Nietzschianismo. Trad. Diego Kosbiau Travisan. Petrópolis: Vozes, 2011.

 

Recebido: 08/7/2021

Aceito: 30/11/2021

 

 



[1] Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7352-927X. E-mail: afeiler@unisinos.br.

[2] Curt Paul Janz recorda: “Em 11 de janeiro de 1888, ele chama a atenção de Nietzsche para Søren Kierkegaard, como um ‘dos psicólogos mais profundos que existem’, mas lamenta que as obras de Kierkegaard existem apenas em dinamarquês. Mesmo assim, Nietzsche acata a sugestão: ‘Pretendo ocupar-me com o problema psicológico de Kierkegaard em minha próxima viagem para a Alemanha’, O destino não lhe deu tempo para isso. Portanto, permanece duvidoso se o filósofo Kierkegaard teria despertado o interesse de Nietzsche ou até mesmo se ele o teria compreendido.” (JANZ II, 2015, p. 443).

[3] Para as citações das obras de Nietzsche, adotamos a Edição Crítica Alemã Colli & Montinari: KSA (Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe) e das Cartas KGB (Sämtliche Briefe Kritische Studienausgabe); após a sigla indicando a obra, em alemão/português: GT/NT – Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia), MA/HH – Menschliches Allzumenschliches (Humano demasiado humano), M/A – Morgenröte (Aurora), FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência), Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra), JBM/BM – Jenseits von Gut und Böse (Para além do bem e do mal), GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral), AC/AC – Der Antichrist (O anticristo), EH/EH – Ecce Homo (Ecce Homo), GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos ídolos), Nc/FP – Nachlass (Fragmentos Póstumos), segue o número, em romano, indicado o capítulo, se tiver, o número do aforismo, KSA ou KGB, o número do volume e a página.

[4] Nietzsche utiliza a expressão Macht-Höhepunkte, para se referir a Deus, dentro de seu projeto de transvaloração dos valores: “‘Deus’ como momento culminante: a existência é uma eterna deificação e idolatrização. Porém nisto não há nenhum ponto culminante de valor senão pontos culminantes de potência.” (Nc/FP, Outono de 1887, 9[8], KSA 12.343).

[5] “A mais espiritualizada forma de vontade de afeto (de vontade de potência)” (Nc/FP, Outono de 1887, 9[8], KSA 12.343).

[6] Cf .GM/GM, I, 11, 5.275.

[7] “Brandes aponta corretamente para um erro cometido ainda hoje pela maioria dos leitores de Nietzsche: o de começar pelo Zaratustra. Esse excurso poético (ou excurso para a poesia) deve ser lido por último. O próprio Nietzsche aponta o caminho na carta a Carl Spitteler quando diz que a leitura deve começar por ‘Além do bem e do mal’, pois seria esta a obra que contém a chave. Mas Brandes também não erra quando decide começar pelas primeiras obras” (JANZ II, 2015, p. 443).

[8] Curt Paul Janz traz, a respeito de Brandes, em sua biografia de Nietzsche, as seguintes informações: “Georg Brandes (na verdade, Morris Cohen) nasceu em Copenhague, em 4 de fevereiro de 1842, como filho de um comerciante judeu.” (JANZ II, 2015, p. 442).

[9] Ademais, Curt Paul Janz recorda que, entre aqueles com quem Nietzsche mantém vínculo epistolar constante, está “[...] Malvida von Meysenburg, Hippolyte Taine, Overbeck e, [...] Georg Brandes.” (JANZ II, 2015, p. 384).

[10] “O maior ganho desse tempo, porém, foi sem dúvida alguma Georg Brandes, o respeitado docente da Universidade de Copenhague, que agora começava a se interessar vivamente por Nietzsche.” (JANZ II, 2015, p. 428).

[11] “Georg Brandes (um dos críticos mais inteligentes do nosso tempo), que, no inverno passado, fez preleções sobre a filosofia de Nietzsche diante de mais de 300 ouvintes, propagando assim o nome e os problemas de Nietzsche em toda a Escandinávia.” (JANZ III, 2015, p. 222).

[12] “Brandes caracterizou a filosofia de Nietzsche com a expressão ‘radicalismo aristocrático’, e certamente todos os brâmanes, Alexandres, Césares, Napoleões ou Leonardos da Vinci concordariam com os imperativos de Nietzsche se tivessem expressado seus instintos dominantes em palavras e fórmulas. Duvidamos apenas se teriam conseguido fazê-lo... na forma com o faz Nietzsche.” (JANZ III, 2015, p. 222).

[13] “Friedrich Nietzsche aparece para mim o mais interessante escritor na literatura alemã no tempo presente. Mesmo sendo pouco o conhecimento sobre ele em sua própria cidade, ele é um pensador de alta ordem, quem merece completamente ser estudado, discutido, contestado e dominado. Entre muito boas qualidades que ele tem é a de comunicar seu humor para outros e pondo seus pensamentos em movimento.” (BRANDES, 2014, p. 10).

[14] “Ele não é ‘discípulo’ de Nietzsche. Brandes reconheceu a agudez extraordinária do espírito de Nietzsche, as teses de Nietzsche o interessam, mas ele não as acata e defende de forma acrítica.” (JANZ II, 2015, p. 442).

[15] O próprio Nietzsche se expressa sobre a sua suposta descendência polonesa; assim, em uma carta a Jean Bourdeau, de dezembro de 1888, assinala: “Ouso dizer que meus ancestrais, quarta geração, eram nobres poloneses; que minha bisavó e avó do lado paterno pertencem à época de Weimar em Goethe: razões suficientes para ser o alemão mais solitário hoje em um grau inimaginável.” (Carta a Jean Bourdeau de dezembro de 1888, 1196, KGB 8.533).

[16] “[...] o trisavô de Nietzsche, que viveu mais ou menos de 1675 a 1739, não foi membro da szlachta polonesa. Christoph Nietzsche era sim tabelião imperial público e inspetor general do príncipe eleitor em Bibra (distrito de Eckartsberga), ou seja, um fiscal saxônico. Conhecemos até seu pai, que também se chamava Christoph: era um pequeno fazendeiro e açougueiro em Burkau na Alta Lusácia.” (JANZ I, 2015, p. 30).