Apresentação

 

Marcos Antonio Alves[1]

 

Com muita alegria, apresentamos o segundo número do volume 45 da Trans/Form/Ação. Este fascículo conta com dez artigos e sete comentários, modalidade de texto já consagrada na revista, que, como aponta Alves (2021, p. 13), é “[...] uma forma de valorizar formalmente o trabalho dos avaliadores do periódico.” Trata-se de textos originais e inéditos que buscam dialogar com os artigos produzidos e aprovados para publicação.

Os autores nacionais são oriundos dos estados da Bahia, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo e Distrito Federal. Já os estrangeiros são vinculados a instituições do Chile, Espanha, Portugal e Turquia. Um dos artigos é escrito em inglês e outros dois, em espanhol.

O primeiro artigo publicado é “Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático”, escrito por Adilson Felicio Feiler, com comentários de João Henrique Salles Jung, Clademir Luís Araldi e José Fernandes Weber. Segundo o autor, o pensamento de Nietzsche é recepcionado na Escandinávia, através do historiador dinamarquês Georg Brandes. O historiador é atraído pelo aspecto aristocrático, o qual se depreende da leitura que Nietzsche realiza sobre a cultura. A radicalidade, a originalidade e a minuciosidade psicológica, as quais se reconhecem no espírito filosófico do pensador alemão, permeiam a leitura que Brandes faz do autor de Zaratustra. O próprio Nietzsche dá testemunho do quanto seu nome, graças a Brandes, passa a ser conhecido na Dinamarca, em suas diversas cartas e outros escritos, atestando, inclusive, um correto entendimento de seu pensamento. Essa proposta tem o intuito de averiguar o papel que a memória, em seu sentido aristocrático, tem a contribuir na recepção nietzschiana, efetuada por Brandes. Adilson se pergunta: em que medida a mnemotécnica pode apontar caminhos para uma cultura aristocrática, no contexto da Dinamarca de Brandes?

Em seguida, publicamos “Deleuze e a escrita: entre a filosofia e a literatura”, de Christian Fernando Ribeiro Guimarães Vinci, comentado por Péricles Pereira de Sousa. Christian sonda as relações entre filosofia e literatura, no pensamento de Gilles Deleuze, a despeito de sua parceria conjunta com Félix Guattari, atentando tanto para as concepções de escrita, expressas ao longo de sua obra, quanto para o modo como essas concepções teriam influenciado o estilo de seus escritos filosóficos. Partindo da premissa deleuziana de que a escrita possui um acentuado lastro clínico, sendo a responsável pela elaboração de um diagnóstico das forças capazes de aprisionar ou calar a vida, Christian procura esmiuçar as ressonâncias desse lastro clínico, na concepção de filosofia como ato criativo, elaborada pelo autor. Como hipótese a ser trabalhada, o autor do artigo defende que a escrita deleuziana – compreendida como portadora de uma literalidade, conforme sustenta François Zourabchivili, ou como encrustada de uma poética imanentista, tal qual sugere Anita Costa Malufe – procuraria produzir uma zona de vizinhança ou indiscernibilidade entre a escrita filosófica, de caráter mais exegético, e a escrita literária, mais afectiva, de sorte a produzir um deslocamento na relação do leitor com o ato de pensar.

O terceiro texto é de Emmanuel Nakamura, intitulado “Marx tem um método dialético próprio?”, comentado por Fernando Frota Dillenburg. O artigo procura responder à pergunta se Marx possui de fato um método dialético próprio. A argumentação está dividida em três partes. Na primeira, busca mostrar que as críticas de Marx ao método absoluto de Hegel poderiam ser tomadas por este como meras explicações sobre o seu próprio método. Na segunda parte, são tecidas algumas considerações sobre o que é o método dialético de Hegel, com base nas figuras da imediaticidade e da imediaticidade mediada. Na última parte, o autor apresenta três exemplos de como Marx pratica, em sua crítica à Economia Política, exatamente aquilo que criticou, no método dialético de Hegel.

“Resistindo à ‘guerra às drogas’ a partir de Homero: a multivalência do phármakon na Odisseia” é escrito a quatro mãos por Erick Araujo e Gabriele Cornelli. Eles propõem uma leitura de três episódios da Odisseia, nos quais há o uso de um phármakon. São Helena, Circe e Hermes as personagens que administram as phármaka. Trata-se de leitura: 1) vinculada a um projeto: o levantamento e a interpretação de discursos que se distanciem e/ou questionem a perspectiva da “guerra às drogas”, algo como um projeto de extração de elementos textuais que possam servir como ferramentas teóricas, na construção de uma perspectiva menos mortífera em relação às substâncias; 2) guiada por três princípios, os quais podem ser ditos anticoloniais e antirracistas. Leitura centrada no phármakon, mas que o articula à comida floral dos lotófagos e à relação de xénia; dela, apresenta-se a proposta segundo a qual, no texto homérico, há a valorização de algo que pode ser chamado de multivalência.

O quinto artigo é escrito em inglês: “The ‘pink panther’ in architecture: the transdisciplinary approach and thought without image”, de Esen Gökçe Özdamar. Como um conhecimento in vivo, a metodologia transdisciplinar (TR) sugere ir além das disciplinas. Segundo Nicolescu, essa metodologia ocorre em distintos níveis de realidade (ontológica), em diferentes níveis de percepção (complexidade) e na lógica do terceiro incluído, que existem simultaneamente. Ao abordar esses níveis, o pesquisador é a correspondência entre o mundo externo do Objeto e o mundo interno do Sujeito. Na arquitetura, esse conhecimento surge por meio de uma variedade de disciplinas que precisam ser combinadas e fundidas com uma abordagem rizomática e nômade, levando ao pensamento sem imagem, como tratado por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Seguindo a metáfora da “pantera rosa”, para um pensamento sem imagem e abordagem em TR, o qual não imita ou reproduz outra coisa, o objetivo desse artigo é compreender a relação entre a metodologia TR, a teoria do pensamento sem imagem – uma abordagem que pode permitir a compreensão de arquitetura ambígua e problemas de projeto urbano.

Hugo Monteiro escreve “Sismografias: a, de Derrida” O artigo parte da letra A, da sua importância e da sua centralidade na Desconstrução de Derrida. Em função dessa letra iniciática, indício da “ironia muda” da différance como sincategorema do pensamento de Derrida, o autor busca acompanhar o modo como se apresenta à Filosofia Contemporânea como uma espécie de sismo, de abalo e de nova propulsão. Sismografias tenta então reconhecer, na postura e no desenvolvimento dessa letra “A”, a forma como o trabalho de Derrida abala pela base o território dos conceitos, convocando a urgência e a responsabilidade da filosofia, da escrita e do pensamento. Nesse sentido, Hugo acompanha as linhas de desenvolvimento de uma letra motriz, a qual pontuou, do início ao fim e em todas as direções, o pensamento de Derrida, como idioma, como revolução filosófica, como sismografia.

Escrito em espanhol por Francisco Javier Aoiz e Marcelo D. Boeri, “¿Cuán apolíticos fueron Epicuro y los epicúreos? la polis griega y sus ilustres ciudadanos epicúreos” aparece em sétimo lugar. Os autores argumentam que o fato de existirem cidadãos proeminentes de diferentes cidades gregas que aderiram ao epicurismo, sentiram-se epicuristas e foram reconhecidos como tal, mostra que, com certos slogans, como “viver escondido” e “não participar da política”, os quais sugerem a “Completamente apolíticos”, por parte de Epicuro e dos epicuristas, eles deturpam o verdadeiro significado de ficar longe da política contingente. O texto evidencia a interação entre Epicuro e os epicuristas e as cidades gregas, por meio da análise de documentos (alguns bem conhecidos – como o testamento de Epicuro, que revela as conexões do filósofo com a vida da cidade –, e outros menos conhecidos, epigráficos) relacionado a diferentes cidades antigas. Francisco e Marcelo frisam que, se o que eles argumentam for razoável, a ideia usual de que o epicurismo recomenda a apolítica deve ser descartada.

“Para uma ethical turn da tecnologia: por que Hans Jonas não é um tecnofóbico”, de autoria de Jelson R. de Oliveira, é comentado por Ozanan Vicente Carrara. O objetivo desse artigo é contrapor à acusação de tecnofóbico, erroneamente dirigida a Hans Jonas, a sua proposta de uma ethical turn da tecnologia, cujas bases estariam na capacidade ética de impor contenções ao avanço utópico do progresso técnico, algo que leva a ética da responsabilidade ao polêmico conceito de “heurística do temor”. Para tanto, o autor do texto parte de um exame sobre o projeto jonasiano de uma filosofia da tecnologia, cuja terceira perspectiva seria valorativa, sendo esta a que ele melhor desenvolveu. A partir daí, analisa qual seria o valor da tecnologia, com base no ponto de vista da vida (nos seus quatro âmbitos: presente e futura, humana e extra-humana). Em seguida, o autor examina, estrategicamente, a posição de Gerard Lebrun, para quem Jonas estaria entre os filósofos tecnofóbicos. O intuito, nesse caso, é mostrar a incoerência de tal interpretação, precisamente porque o pensador francês, com grande atuação no Brasil, confunde a proposta da reorientação ética (no sentido de um poder desde dentro da técnica) com a imposição de um poder exterior, de cunho paralisante.

O nono artigo, também escrito em espanhol, “Cuerpo y conciencia de ser en Miguel de Unamuno”, é da parceria entre Miguel Vicente-Pedraz e María Paz Brozas-Polo. Os autores investigam as respostas que Miguel de Unamuno (1864 - 1936) oferece ao problema da consciência do ser como parte essencial da construção biográfica. Tendo em vista algumas das suas obras mais representativas, mas, sobretudo, através da mais genuinamente existencialista, O Sentimento Trágico da Vida (1913), procuram clarificar os códigos argumentativos sobre os quais Unamuno desenvolve, por vezes, de forma abrupta, as ideias de memória, intimidade ou mesmice, assim como as tribulações que estas lhe causam, em relação a duas das áreas doutrinárias que mais o definem como filósofo: a doutrina do homem de carne e osso e a doutrina da imortalidade. Os autores constatam como ambas as doutrinas, singularmente construídas a partir da noção de consciência corporificada, se resolvem, através da consciência da singularidade e esta, por sua vez, como volição de sobrevivência corporal.

Fechando o fascículo, publicamos “Método e questão judaica em Hannah Arendt”, de Romildo Gomes Pinheiro, comentado por Paulo Eduardo Bodziak Junior. O artigo procura identificar o núcleo metodológico das Origens do Totalitarismo, na estrutura comparativa entre França e Alemanha, espécie de sociologia histórico-comparativa, na qual Arendt narra as origens do Nazismo e do Stalinismo. Nessa acepção, as origens ideológicas do III Reich e do Stalinismo devem ser buscadas no Racismo, e não na homologia estabelecida entre Nazismo e Comunismo, em função da equivalência entre a ideologia da luta de classes e da luta de raças e a prática do Terror. Desse modo, a ideia de ruptura ou novidade do Totalitarismo, a que se liga essa perspectiva, deve ser associada com a ideia de “atraso histórico”, espécie de articulação entre o novo e a conservação da velha ordem, na história das Nações Continentais. Sob essa ótica, Romildo afirma que Arendt mobiliza implicitamente a ideia de atraso histórico, a qual se encontra originalmente em Gramsci e Marx, a fim de dar conta de explicar não somente as homologias entre Nazismo e Comunismo, mas também como surgiram historicamente, no âmbito nacional e europeu, como ideologias políticas fundadas em movimentos de massas. A fim de explicitar essa perspectiva, o autor procura enfatizar como a ideia de “atraso histórico” opera no livro 1 das Origens do Totalitarismo, dedicado ao surgimento do antissemitismo.

Desejamos boa leitura e bom proveito, na reflexão dos textos aqui expostos.

 

Referência

ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 9 - 20, 2021.

 

Recebido: 10/01/2022

Aceito: 20/01/2022



[1] Docente no Departamento de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Marília, SP – Brasil e Líder do Grupo de Estudos em Filosofia da Informação, da Mente e Epistemologia – GEFIME (CNPq/UNESP). Editor responsável da Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da UNESP. Pesquisador CNPq/Pq-2. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5704-5328. E-mail: marcos.a.alves@unesp.br.