SOU UMA REDE DE NARRATIVAS: APROXIMAÇÕES ENTRE PAUL RICOEUR E ALICE MUNRO

 

Jerzy A. Brzozowski[1]

Ivone Maria Mendes Silva[2]

Janessa Pagnussat[3]

 

RESUMO: Neste artigo, pretendemos abordar o papel da memória e da narrativa na constituição da identidade pessoal, a partir de conceitos teóricos da obra de Paul Ricoeur (em especial O si-mesmo como outro) e da análise do conto “O urso atravessou a montanha”, de Alice Munro. Esse movimento nos permitirá sublinhar a ideia de que, contrariamente ao que parte da literatura sobre identidade e narrativa tem sustentado, não é só aquilo que poderíamos chamar de autonarrativa que cumpre um papel na manutenção da identidade pessoal. Ao invés disso, recuperamos a ideia ricoeuriana de uma rede de narrativas ou emaranhado de histórias, na qual auto- e heteronarrativas se imbricam mutuamente, servindo de sustentáculos para as identidades constituídas sobre ela.

 

Palavras-chave: Identidade. Narratividade. Doença de Alzheimer. Alice Munro. Paul Ricoeur.

 

[C]ada história de vida, longe de se fechar nela mesma, encontra-se enredada com todas as histórias de vida às quais está misturada. Em um certo sentido, a história de minha vida é um segmento da história de outras vidas humanas, a começar pela de meus genitores, continuando com a de meus amigos e, por que não, de meus adversários. (RICOEUR, 1996, p. 179).

 

INTRODUÇÃO

O cognitivismo sobre a ficção é a tese filosófica segundo a qual obras de ficção podem possuir, para além do seu valor estético, um valor cognitivo, ou seja, que de algum modo elas “[...] captam e transmitem verdades sobre o mundo” (GIBSON, 2008, p. 573) e, por essa razão, permitem que tenhamos interações cognitivas com elas. Se o cognitivismo sobre a ficção for verdadeiro, faz-se necessário explicar como é possível que o discurso ficcional, tão diferente do discurso científico em termos de nossas formas de engajamento com ele, tenha valor cognitivo. Por isso, Gibson (2006) propõe que o valor cognitivo da ficção, ao contrário daquele do discurso científico, não está no conteúdo literal do discurso ficcional, mas sim advém de nossos encontros interpretativos com os mundos, cenas e personagens criados nessas obras.

Conforme ressalta Gibson, “[...] uma marca da fala cotidiana é o uso da linguagem para descrever o mundo; uma marca da literatura é o uso da linguagem para criar um mundo” (GIBSON 2006, p. 443). Pode ser que o teor do conhecimento obtido através das obras de ficção seja sobre as ações e emoções humanas, talvez sobre a criação de consciência social, talvez sobre a natureza da justiça; mas será possível, a partir do encontro interpretativo com a ficção, nos apropriarmos de teses especificamente filosóficas?

Neste artigo, pretendemos responder afirmativamente a essa questão, argumentando que o conto “O urso atravessou a montanha”, de Alice Munro, ilustra e apresenta a tese, retomada por Ricoeur, com base em Schapp, de que as identidades narrativas estão entremeadas em uma rede que envolve não só os sujeitos em primeira pessoa, mas também todas aquelas pessoas que são seus próximos. Interessa-nos, aqui, o modo como Ricoeur tematiza as relações entre identidade pessoal, memória, narrativa e cultura, em obras como[4] Tempo e Narrativa (1994, 1997), Escritos e Conferências I (2010) e III (2016), O si-mesmo como outro (2014) e A memória, a história, o esquecimento (2007).

O segundo interlocutor do encontro teórico que pretendemos aqui promover é o conto “O urso atravessou a montanha”, da escritora canadense Alice Munro, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2013. Os contos de Munro destacam-se por suas abordagens profundas de temáticas da vida simples na região rural de Southern Ontario, no Canadá. A prosa é bastante direta, leve e irônica, e as personagens femininas criadas pela autora são sempre complexas. Em “O urso atravessou a montanha”[5], o foco é a personagem Fiona, a quem acompanhamos desde os primeiros indícios de um problema de memória, até a confirmação do diagnóstico de Alzheimer, e o que decorre desse diagnóstico, principalmente no que diz respeito à sua identidade tal como percebida pelos olhos de seu marido Grant.

Este artigo se propõe pensar o papel da memória e da narrativa, na construção da identidade pessoal a partir do conto de Munro e de alguns conceitos teóricos da obra de Ricoeur: gostaríamos de sugerir a ideia de uma rede de narrativas, na qual auto- e heteronarrativas se imbricam mutuamente, servindo de sustentáculos para as identidades nela capturadas. Justificamos esse uso da ficção literária para colocar em evidência essa dimensão reticular das narrativas pois o próprio Ricoeur subscreve tacitamente o tipo de cognitivismo sobre a ficção que permeia este trabalho, ao defender que a interpretação da vida humana é mediada por modelos narrativos tomados de empréstimo da literatura (RICOEUR, 1988, p. 295).

Julgamos que o resgate da “rede de narrativas” é importante porque o narrativismo sobre a identidade pessoal costuma ser interpretado, em especial nas críticas advindas da tradição analítica[6], como se estivesse centrado exclusivamente na primeira pessoa, ou seja, na autonarrativa. Em termos metodológicos, porém, ao invés de atacar diretamente tais críticas, pretendemos iluminar sua insuficiência ao mostrar a fecundidade das narrativas em rede. O trabalho que mais se aproxima do que pretendemos aqui é o de Daniela Feriani (2017), o qual, por meio de um olhar antropológico, se propõe pensar os significados do Alzheimer, em função de determinados conceitos, como o de trauma, testemunho e “verdade contrafactual”. Essa categoria, sugerida por Aleida Assmann (2011), pretende descrever a forma como certas memórias, a despeito de serem claramente fictícias e contrárias aos fatos (por isso, “contrafactuais”), ainda assim são verdadeiras em um outro plano. Feriani também mobiliza a ideia ricoeuriana de que, no Alzheimer, “a memória alucina”. Assim, não estamos interessados na memória por si própria, mas sim na maneira como “[...] a memória é incorporada à constituição da identidade por meio da função narrativa.” (RICOEUR, 2007, p. 98).

O artigo está dividido em duas seções principais: na primeira, apresentamos o conceito de identidade narrativa proposto por Ricoeur, bem como alguns de seus desdobramentos; na segunda, entraremos no conto de Munro, para ali apontar as pontes que podem ser feitas com o arcabouço teórico ricoeuriano.

 

1 RICOEUR: IDENTIDADE NARRATIVA E MEMÓRIA

Paul Ricoeur, um autor vinculado à fenomenologia hermenêutica, busca, em vários de seus trabalhos (1989, 1997, 2000, 2010, 2014, 2016), problematizar as relações entre “vida e narrativa” e “identidade e narrativa”. Ele propõe que apliquemos ao estudo do tema a máxima de Sócrates segundo a qual uma vida não examinada, ou seja, não narrada, não é digna de ser vivida e que, nesse sentido, “[...] a vida somente se compreende por meio das histórias que narramos sobre ela” (RICOEUR, 2010, p. 209). Nesse e em outros textos (RICOEUR,  1994, 2016), o autor defende que a ficção[7] é que tornaria a vida, no sentido biológico do termo, uma vida humana. Do mesmo modo, enquanto esta não é interpretada, reduz-se a um fenômeno biológico. Ficção e interpretação seriam facetas da função simbólica inerentes à atividade narrativa e essenciais a esse processo de humanização, pelo qual se torna possível ao ser humano ir além das possibilidades e limites impostos pela natureza.

Não se pode perder de vista que a proposta da identidade narrativa apresentada por Ricoeur está inserida em uma dimensão teórica mais ampla, a antropologia do “ser humano capaz” [homme capable]. Nessa visão, o ser humano é fundamentalmente enativo, na medida em que age, sofre, é marcado pela memória, é capaz de narrar sua história e dar sentido às narrativas. Assim, a narrativa é alimentada, acima de tudo, pela própria experiência vivida, pelas ações e paixões que tecem a trama de qualquer vida, defenderá o autor. Ricoeur recupera a definição de mimesis exposta por Aristóteles como sendo “imitação de uma ação”, do grego “mimesis praxeos” (RICOEUR, 1994, p. 59). O foco de suas considerações analíticas recai, no entanto, na tese de que narratividade se relaciona com a existência humana a partir do “[...] sentido que nós damos a nós mesmos” (MICHEL, 2016, p. 224).  Afinal, diferentemente dos animais, os humanos conseguem compreender de forma crítica e reflexiva suas ações e paixões, valendo-se da capacidade que possuem de fazer uso da linguagem e do arsenal conceitual disponibilizado pelas línguas para dar novos sentidos à experiência vivida. Além da possibilidade de colocar em operação essa “semântica da ação”, há a familiaridade humana com os enredos das histórias, adquirida no convívio com outros seres humanos e através da imersão em determinada cultura. Conforme destaca Ricoeur (2010, p. 206), “[...] se, efetivamente, a ação pode ser narrada, é que já está articulada nos signos, regras, normas; ela é desde sempre simbolicamente mediatizada”. É no processo de elaborar significados para as nossas experiências e partilhá-los com outras pessoas, por meio de narrativas, que engendramos nossas identidades.

Assim, a ideia de um si como ficção e do conhecimento de si próprio como interpretação, articulada à noção de identidade narrativa, ocupa lugar de destaque no pensamento de Ricoeur, o qual defende a compreensão da história de vida como “uma história fictícia” ou “uma ficção histórica”. Esse autor utiliza ainda as expressões “história não ainda narrada”, “história potencial” ou “história virtual” para fazer referência a esse campo de possíveis no plano das histórias que compõem as narrativas e que não necessariamente foram vividas (RICOEUR, 2000, p. 2).

Um exemplo muito elucidativo é apresentado por Ricoeur, a fim de ilustrar essa perspectiva: o dos relatos feitos a um psicanalista e que somente passam a ser considerados constitutivos da identidade pessoal do paciente, quando este os assume com tal sentido, ou seja, quando as histórias antes não narradas e recalcadas ganham o estatuto de histórias efetivas pelas quais o sujeito escolhe se responsabilizar. Desse modo, ele lança mão da noção de identidade narrativa, para afirmar ser a subjetividade não “[...] uma sequência incoerente de acontecimentos, nem uma substancialidade imutável inacessível ao devir”, mas aquilo que resulta da “composição narrativa” (mise en intrigue) e que somente esta pode criar por seu dinamismo. Os extremos que algumas perspectivas analíticas que enfocam o processo de construção identitária designam como “transformação pura” e “identidade absoluta” são criticados pelo autor, que propõe existir entre as duas alternativas a identidade narrativa (RICOEUR, 2010, p. 210).

Ricoeur também problematiza as filosofias do sujeito (que têm na filosofia cartesiana um expoente) por estas entenderem ser possível o sujeito ter acesso a um conhecimento imediato sobre si próprio, sustentado por uma espécie de “consciência pura ou imediata”. Logo no Prefácio de O si-mesmo como outro, o autor destaca essa crítica à ideia de um cogito exaltado ou substancialista (Descartes), assim como à de um cogito esmigalhado (Nietszche), considerando que, para Ricoeur, o cogito pode ser visto como “quebrado” (brisé) ou “ferido” (blessé) para a compreensão do si-mesmo. Nessa perspectiva, ele afirma existir a mediação dos signos da cultura na relação que o sujeito estabelece com o conhecimento de si. A narrativa, a qual tem sua constituição orientada ou moldada por esses signos, mediatiza a relação do sujeito consigo mesmo, com os outros seres humanos e com o mundo.

Além disso, nesse campo, não seria apropriado supormos a existência de uma essência ou substância previsível, coesa, unificada, mas de composições identitárias que se estruturam em torno de “variações imaginativas sobre nosso próprio ego”, por meio das quais buscamos depreender uma “compreensão narrativa” (RICOEUR, 2010, p. 211). Nesse sentido, Jeanne Gagnebin resume a temática central da obra de Ricoeur como a tentativa de uma “[...] hermenêutica do si pelo desvio necessário dos signos da cultura” (1997, p. 261, grifos no original). O próprio Ricoeur propõe o que ele chama de “[...] enxerto do problema hermenêutico na fenomenologia” (1978, p. 8) através do “caminho da via longa”, ou seja, o caminho que passa pelas ciências (humanas) dedicadas a estudar esses sistemas de signos culturais. Em uma nota de rodapé de O si-mesmo como outro, resume o raciocínio que o leva a percorrer esse trajeto investigativo:

[A] compreensão de si é uma interpretação; a interpretação de si, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, mediação privilegiada; esta última se abebera na história tanto quanto na ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia, ou, digamos, uma ficção histórica, entrecruzando o estilo historiográfico das biografias ao estilo romanesco das autobiografias imaginárias. (RICOEUR, 2014, p. 112-3n)

 

Recuperando a noção aristotélica de “pôr-em-intriga”, Ricoeur justifica o conceito de inteligibilidade relacionado com uma imaginação do sujeito de compor a trama narrativa. A relação da inteligibilidade com a narrativa ocorre sempre através de um viés cultural no processo de prefiguração narrativa. Uma ordem narrativa que faça sentido consistindo em sua “capacidade de ser seguida” (RICOEUR, 2012, p. 303) precisa ser inteligível por meio da dialética entre concordância e discordância. Assim, há a necessidade de contingências e peripécias, eventos concordantes e discordantes, para compor a intriga das histórias, pois a narrativa é configurada através da síntese do heterogêneo definida pela concordância discordante da história narrativa.

Mas é preciso ter em vista que o próprio Ricoeur descreve que há um excesso de racionalização da inteligibilidade para compor a trama da intriga (RICOEUR, 2012, p. 306)[8]. Conforme já mencionado, ele cita o exemplo do paciente que vai ao psicanalista e conta alguns fatos experienciados em sua vida, não descrevendo uma narrativa linear, mas evidenciando apenas alguns fatos os quais considera importante para a situação em que se encontra. Cabe à psicanálise “juntar” esses fatos, compondo uma narrativa que seja produtiva para o momento que o paciente esteja passando em sua vida. De acordo com Ricoeur (2012, p. 308), “[...] essa interpretação narrativa da teoria psicanalítica implica em que a história de uma vida proceda de histórias não narradas e recalcadas na direção de histórias efetivas que o sujeito poderia tomar em troca, e ter como constitutivas de sua identidade pessoal”.

Segundo a definição de Schapp retomada por Ricoeur, o que ocorre é que há um “emaranhado em histórias”, fatos que não possuem um enredo ainda definido e precisam ser configurados narrativamente, a fim de que possam fazer sentido. Assim, esse emaranhamento é composto por histórias contadas e não contadas que se enredam umas nas outras entre os sujeitos próximos. Ou seja, o emaranhamento é um pré-narrar, uma “pré-história”, antes mesmo de a narrativa ser configurada para que a história seja contada. Ricoeur (2012, p. 309) afirma que “[...] narrar, seguir, compreender as histórias não é senão a ‘continuação’ dessas histórias não expressadas”. Nesse sentido, pessoas próximas que fazem parte da identidade do sujeito podem narrar histórias que nem ele próprio consegue se lembrar, ainda que tenham ocorrido de fato e constituam sua identidade pessoal.

A identidade, não sendo substancial, pensada em nível ontológico, é um horizonte obscuro de histórias que ainda não foram narradas, um emaranhado de histórias em que as narrativas podem se refazer, contando diferentes relatos, dependendo do espaço e do momento nos quais o sujeito se encontra, não se restringindo ao tempo cronológico com que ocorreram. Assim, “[...] se cada história tem oscilações diferentes é porque cada um de nós, ao estar emaranhado nela, não segue esse esquema linear que o tempo, inevitavelmente, assume” (HELENO, 2002, p. 117).

Nessa linha, a relação entre o mundo e a história se dá por meio desse emaranhamento em que são desenvolvidas. Na perspectiva de Schapp, estamos constantemente envolvidos em um emaranhado de histórias, mesmo que elas não sejam narradas. Essa relação apresenta uma nova perspectiva para a constituição da identidade pessoal em Ricoeur: histórias não narradas também compõem a identidade de cada sujeito, cabendo a cada um configurar sua própria narrativa ou narrar histórias de alguém próximo, já que “[...] o fato de estar emaranhado em histórias pode significar que nem sempre sei ou posso construir uma trama sólida” (HELENO, 2002, p. 119). Portanto, nem sempre é possível configurar uma narrativa que permita uma história linear.

De sorte a entender os conceitos envolvidos nessa compreensão narrativa do si mesmo, vejamos com mais detalhes o contraste que Ricoeur aponta entre a discussão sobre a identidade pessoal na Filosofia Analítica (feita, segundo Ricoeur, na base da “ficção científica”) e os enlaces da identidade narrativa na “ficção literária” (RICOEUR, 1988, 2014)[9]. Na Filosofia Analítica, a discussão tem sido pensada a partir da busca de critérios necessários e suficientes que permitam decidir se uma pessoa, em determinado instante do tempo, digamos t1, é a mesma pessoa em um outro instante, t2.  O ponto de Ricoeur é que essa busca por um critério necessário e suficiente – seja ele físico, seja psicológico – que determine quando uma pessoa é a mesma se limita a uma única dimensão da identidade, a qual ele chamará de mesmidade (ou ainda identidade-idem). Na medida em que almejarmos resolver o problema da identidade pessoal apenas no plano da mesmidade, ou seja, procurando por alguma coisa ou substrato que permaneça ao longo da vida da pessoa, seremos levados, segundo Ricoeur, ou a desenvolver uma filosofia “substancialista” do si, como a de Descartes, ou a conclusões como as de Hume e Parfit, segundo as quais o si é uma ilusão e a identidade pessoal não tem importância.

Por isso, Ricoeur (1988; 2014) apresenta uma forma de se pensar a permanência no tempo que não seja redutível à permanência de um substrato: trata-se da ipseidade (ou identidade-ipse). A permanência através da ipseidade envolve a “[...] recusa da mudança (déni du changement)” e o cumprimento da palavra (RICOEUR, 2014, p. 125), na medida em que esse fenômeno ético só se deixa inscrever na dimensão de um “quem” irredutível a um “quê” (RICOEUR, 2014, p. 124). Ao fazer referência ao pronome latino “ipse”, Ricoeur pretende chamar atenção para o significado que esse pronome adquire em situações contrastivas. Enquanto “idem” tem a conotação de “a mesma coisa” e pode ser contraposto a “uma coisa que muda ao longo do tempo”, o pronome “ipse” seria mais bem traduzido como “a/o própria/o”, e se contrapõe a “outra pessoa”. Ou seja, “ipse” põe em evidência que se trata daquela pessoa e não outra, e pode significar ainda “por si mesmo e espontaneamente”[10]

Explica Botton (2014, p. 27):

Mas que tipo de unidade é possível senão através de um [substrato] invariante? Ricoeur tem em vista, ao tentar explorar o problema da identidade pelo viés da ipseidade, o tipo de permanência de si estabelecido nas relações interpessoais pelos compromissos de longa duração em que o que se mantém é a intenção de realizar no futuro o acordado anteriormente, a despeito da alteração das circunstâncias. Daí que a permanência sob o modo da ipseidade constitua uma identidade deliberadamente mantida apesar de sê-lo como manutenção de si (maintien de soi). O que não reivindica, de nenhuma forma, qualquer estrutura invariável, mas se fia apenas na disposição da vontade.

 

Ou seja, é preciso pensar que ser uma pessoa (quem?) envolve algo a mais do que ser uma coisa (o quê?), embora essa coisa possa ser imaterial (como uma mente, no sistema cartesiano); esse “algo a mais”, a ipseidade, foge às pretensões de uma ontologia substancialista e é um aspecto da permanência no tempo que se inscreve nos regimes da vontade e da alteridade. Porém, é claro que a própria ipseidade seria vazia se não encontrasse algum suporte na mesmidade: Ricoeur escreve que a mesmidade e a ipseidade interagem entre si através de uma dialética que se dá no plano da identidade narrativa (RICOEUR, 2014, p. 145). Apesar da afirmação de um eu ininterrupto, ocorrem mudanças físicas e psicológicas ao longo da vida de uma pessoa, e só é possível conceber a unidade do si se essas próprias transformações fizerem parte de uma narrativa.

Como ressalta Botton (2014, p. 28), o que Ricoeur diz a respeito do caráter e da palavra cumprida ajuda a entender a relação entre mesmidade e ipseidade. Ricoeur define o caráter como “[...] o conjunto das marcas distintivas que possibilitam reidentificar um indivíduo humano como sendo o mesmo” (2014, p. 118), ou, ainda, “[...] o conjunto das disposições duráveis pelas quais se reconhece uma pessoa.” (p. 121, grifos no original). Embora superficialmente o caráter seja um assunto apenas da mesmidade, o fato é que sua gênese traz elementos da ipseidade. Ele procura conceber o caráter dentro do horizonte da problemática da perspectiva e da abertura, como o polo finito da existência. Essa mudança de tônica tem a virtude de colocar novamente em questão o estatuto de imutabilidade do caráter, presente nas suas análises anteriores ao escrito O si-mesmo como outro. Assim, o caráter “[...] é a mesmidade no sempre-meu” (le caractère, dirai-je aujourd’hui, c’est la mêmeté dans la mienneté) (RICOEUR, 2014, p. 120), visto então como aquilo que designa o conjunto das disposições duráveis que permitem reconhecer uma pessoa e, sendo assim, o caráter constitui o campo da mesmidade em relação ao campo da ipseidade.

Afinal, dentre as disposições que compõem o caráter, estão as “[...] identificações a valores, normas, ideais, modelos, heróis, nos quais a pessoa ou a comunidade se reconhecem” (RICOEUR, 2014, p. 122). Esse tipo de identificação faz o caráter “[...] transformar-se em fidelidade, portanto em manutenção de si” – uma marca da ipseidade. Quer dizer, o conceito de ipseidade remete a tudo o que tem relação com a manutenção voluntária de “ser esta mesma pessoa” ao longo do tempo. Essa ideia de “manutenção de si” traz consigo uma dimensão teleológica: parte da condição de ser uma pessoa envolve um esforço ativo na manutenção da identidade, ou seja, “[...] a manutenção de si, para a pessoa, é a maneira de comportar de tal modo que outrem pode contar com ela. Visto que alguém conta comigo, eu presto contas de minhas ações perante outrem” (RICOEUR, 2014, p. 177). Assim, a relação da ipseidade com a manutenção de si se relaciona com a questão ética através da responsabilidade da palavra dada, como os termos citados “contar com” e “prestar contas de”.

Porém, segundo veremos adiante, podemos conjecturar que essa é uma dimensão da identidade que se perde em pessoas com condições como o Alzheimer. Portanto, na impossibilidade de narrar-se a si mesmo, um sujeito próximo se responsabiliza pela narrativa. Conforme aponta Michel (2016, p. 228), “[...] as observações feitas pelos neurologistas nos pacientes que sofreram lesões nas áreas do córtex responsáveis pela memória de longo prazo atestam precisamente que estes pacientes são incapazes de reconhecer-se, de identificar-se, de narrar-se”. Adotando uma “postura de substituição narrativa”, o terceiro narrador assume a trama narrativa daquele que não consegue mais narrar, ou seja, que apresenta a impossibilidade de narrar devido a aspectos psíquicos que acometem a capacidade de autonarrar-se. Logo, a trama narrativa se constitui em terceira pessoa, restituindo a ipseidade e a experiência do Si, já que “[...] à perda do poder de narrar se acrescenta, portanto, a negação do reconhecimento de si” (MICHEL, 2016, p. 239).

A identidade narrativa se baseia na posição adotada pelo sujeito como personagem de uma história, em que os acontecimentos de sua vida são configurados de acordo com o repertório simbólico cultural no qual ele está inserido, compondo um enredo (MICHEL, 2003, p. 127). Ou ainda, nas palavras do próprio Ricoeur (2014, p. 149), “[...] a identidade da personagem é compreendida por transferência para ela da operação de composição do enredo antes aplicada à ação narrada; a personagem, digamos, é composta em enredo”. Esse processo ocorre através das três mímeses apresentadas por Ricoeur, ao longo de Tempo e Narrativa, e que envolvem eventos concordantes e discordantes. A pré-configuração embasada em aspectos culturais, simbólicos e temporais se justifica na ação a ser narrada; a configuração é a própria narrativa, o enredo, os acontecimentos de uma história que atribui sentido pessoal ao personagem; a reconfiguração se justifica pela interpretação da narrativa e pela apreensão desses acontecimentos contados de modo ficcional. Portanto, “[...] a identidade pessoal é essa perpétua re-configuração, essa constante aplicação reflexiva das múltiplas histórias verídicas narradas a si e sobre si própria” (FERNANDES, 2008, p. 81).

No fundo, poderíamos afirmar que a resposta narrativa para a pergunta sobre a identidade pessoal é relativamente simples: podemos dizer que uma pessoa em t1 é a mesma pessoa em t2 se e somente se puder haver alguma narrativa que relate as ações dessa pessoa, bem como as transformações pelas quais ela passou, entre t1 e t2. Poderíamos enunciar a seguinte conjectura, de inspiração ricoeuriana: uma narrativa determina a identidade pessoal através da síntese do heterogêneo que apresenta fatos concordantes e discordantes determinando o evento narrativo, ou seja, a inteligibilidade da narrativa necessária para que “o acaso da vida” seja “transformado em destino narrativo” (MICHEL, 2016; RICOEUR, 2014).

Na ficção literária ocorrem variações imaginativas sobre a identidade que permitem entrever a interação entre mesmidade e ipseidade. Ricoeur cita O Homem sem Qualidades, de Robert Musil, em que o protagonista Ulrich é um sujeito completamente indiferente em relação à vida, sempre ambivalente, ambíguo, destituído de qualquer “essência”. No personagem Ulrich, há um “[...] desnudamento da ipseidade por perda de suporte da mesmidade” (RICOEUR, 2014, p. 157; grifos nossos), e a essa perda de uma das dimensões da identidade corresponde uma “perda da configuração da narrativa”, a ponto de o livro de Musil chegar a perder suas características narrativas e se aproximar de um ensaio. O personagem Ulrich não consegue reconhecer sua própria narrativa de vida, a fim de afirmar sua identidade. Porém, “[...] na afirmação ‘eu já não sou nada’ há sempre um sujeito que se preserva, pois é sempre capaz de dizer algo sobre si, mesmo que esse algo seja o reconhecimento do seu próprio nada”[11] (FERNANDES, 2008, p. 87)[12].

Esses exemplos, oriundos de certo tipo de ficção literária cujo caráter é, por assim dizer, experimental, ilustram os extremos do não narrável. O conto de Alice Munro que examinaremos aqui é de uma prosa mais mundana, mas não menos rica em aberturas para a reflexão teórica acerca da identidade. Nossa discussão sobre identidade narrativa em Ricoeur até aqui se manteve em um plano do desenvolvimento de argumentos filosóficos sobre a identidade pessoal como identidade narrada; é preciso não perder de vista que as narrativas, é claro, não existem no vácuo, mas sempre em um espaço social. Uma questão que será central em nossa análise é: qual o tamanho desse espaço? Certamente existem grandes narrativas cujos personagens são nações inteiras, como a narrativa de Fernand Braudel sobre a identidade da França (RICOEUR, 2014, p. 123). No outro extremo, teríamos o gênero da autobiografia, uma narrativa cujo protagonista é uma única pessoa, o próprio autor. Mas o importante a se constatar aqui é que até mesmo a narrativa autobiográfica existe em um espaço social, ou seja, não é um solilóquio.

Levando em conta o tempo e a configuração da narrativa, o ato de narrar pode ter inúmeras variações imaginativas, a depender dos paradigmas herdados no espaço social e transcultural, pois “[...] não existe experiência humana que não seja mediada por sistemas simbólicos, e entre eles pelas narrativas” (RICOEUR, 2012, p. 308). Esses paradigmas fazem parte do processo de imaginação produtiva para a configuração da trama. Nesse sentido, as transformações culturais se baseiam na sedimentação e nas invenções de sistemas simbólicos para compor o processo de prefiguração da narrativa. Portanto, o conceito de transcultural utilizado por Ricoeur vai além da sedimentação das tradições culturais, pois implica o processo que se transforma lentamente na sociedade, solidificando essas tradições e visando a uma dependência das transformações culturais para a configuração da narrativa. Assim como afirma Ricoeur (2012, p. 306), os paradigmas transmitidos pela tradição “[...] mudam lentamente, e até mesmo resistem às mudanças na medida em que são as formas sedimentadas desse processo”.

Uma narrativa autobiográfica envolve, em alguma medida, conceber-se como “outro”, colocar a si próprio em uma perspectiva de terceira pessoa. Esse elemento está presente no título do livro de Ricoeur (2014) e é magistralmente explicado por Malufe: “[o] si-mesmo como um outro é este si-mesmo que se constitui na relação com o outro, com o fora de si, e é este si-mesmo que se identifica justamente ao se tornar outro” (2008, p. 406, grifos nossos). O que gostaríamos de sugerir aqui, a partir do conto de Munro, é que a identidade pessoal, concebida como identidade narrativa, se sustenta no plano da alteridade. Essa afirmação pode parecer paradoxal, afinal, o conceito de pessoa sugere uma autossuficiência ontológica que é captada nas “filosofias do sujeito” criticadas por Ricoeur, entre elas a perspectiva da Filosofia Analítica. Conforme mencionamos acima, essa falácia da autossuficiência já é abordada por Ricoeur em suas discussões sobre a “ficção científica” de Derek Parfit. Porém, a falácia persiste na literatura de Filosofia Analítica; em sua mais recente versão, é cometida por Galen Strawson em “Against Narrativity” (2004).

Reiteramos, por conseguinte, a questão: que amplitude pode ter uma pessoa? Afinal, a imensa maioria das pessoas não escreve autobiografias que são lidas por multidões. Com efeito, o ponto é que até mesmo aquelas pessoas que não têm suas narrativas amplamente divulgadas encontram na alteridade um suporte para sua identidade. A existência humana está implicada em relatos de fatos vividos durante o cotidiano enquanto nos relacionamos uns com os outros. O que vivemos no cotidiano sempre contamos a alguém próximo, e essa é uma forma de configurar a própria narrativa de vida, a partir de histórias e relatos do dia a dia, os quais, para além da ação, estão relacionados a sentimentos e responsabilidades do Si. Portanto, o diálogo cotidiano também faz parte da constituição da identidade pessoal por meio da narrativa, resultando na construção ética. Nesse sentido, Ripa (2015, p. 182, tradução nossa) afirma que a “[...] aposta é a de que a identidade narrativa de maneira central e definitiva repousa na pequena troca, parcial e muitas vezes ritual dos encontros cotidianos limitados”. Como exemplo, o costume de perguntarmos como foi o dia, para pessoas próximas, nos permite provocar o outro a descrever relatos vividos do seu dia. Apesar de a primeira resposta geralmente se limitar apenas a “bem”, “mal” ou “mais ou menos”, posteriormente, relatos dos acontecimentos vividos são narrados para explicitar a primeira resposta. Logo, “[...] tem-se ali uma experiência recente do dia vivido” (RIPA, 2015, p. 180, tradução nossa).

Isso ocorre por diversos mecanismos, mas o que focaremos aqui, e que será tema principal do conto de Munro, é a memória compartilhada. Ricoeur (2007) discute justamente se não haverá um plano público da memória que não é nem tão pequeno quanto as memórias de uma única pessoa, nem tão grande quanto o de uma nação inteira:

Não existe, entre os dois pólos da memória individual e da memória coletiva, um plano intermediário de referência no qual se operam concretamente as trocas entre a memória viva das pessoas individuais e a memória pública das comunidades às quais pertencemos? Esse plano é o da relação com os próximos, a quem temos o direito de atribuir uma memória de um tipo distinto. (RICOEUR, 2007, p. 141, grifos nossos)

 

Ou seja, esse plano intermediário de compartilhamento de memórias que a grande maioria das pessoas experiencia é o plano dos próximos[13], os quais são “[...] essas pessoas que contam para nós e para as quais contamos” (RICOEUR, 2007, p. 141). O que gostaríamos de sugerir, pois, é que as identidades pessoais são redes de narrativas, todavia, não redes de alcance global e nem mesmo nacional. Em suma, a identidade de uma pessoa é uma rede de narrativas tecida entre seus próximos, que pode subsistir mesmo se a própria pessoa deixa de contribuir para a manutenção dessa rede. Vejamos, a seguir, como isso ocorre no conto de Alice Munro.

 

2 O URSO ATRAVESSOU A MONTANHA

Nas primeiras páginas do conto de Alice Munro, “O urso atravessou a montanha” (2013), conhecemos Fiona, uma jovem mulher espirituosa, espontânea e decidida, que “[...] possuía a centelha da vida” (p. 306). Após uma cena em que Fiona pede seu futuro esposo, Grant, em casamento (“Acha que seria divertido se nos casássemos?”), é-nos dado um brevíssimo vislumbre, talvez da meia-idade de Fiona, em que ela repara em um detalhe insignificante do cotidiano e, então, somos prontamente apresentados ao início de sua terceira idade. Logo em seguida, sem perder o tom leve e dinâmico da prosa, Munro deixa transparecer a realidade insidiosa da condição que acomete Fiona: Grant começa a notar “[...] um monte de bilhetinhos amarelos afixados por toda a casa” (p. 307), lembretes que Fiona passa a escrever para si mesma.

Transcorridos alguns anos, Grant se convence da gravidade da doença de Fiona e decide, juntamente com ela, pela internação em uma clínica especializada (Meadowlake). Em função do regulamento aplicado aos novos residentes na clínica, nos primeiros trinta dias após a internação, Fiona não poderia receber visitas. Em cinquenta anos de casamento, eles nunca haviam se separado por um dia sequer, o que dá a dimensão do impacto sofrido por ele. É pela narrativa de Grant que conhecemos quem é Fiona e as mudanças que vão progressivamente tornando-a diferente ou mesmo irreconhecível aos olhos do marido. Ele descreve como ela inovou no corte de cabelo, algo até então inédito, e passou a ter outro gosto para roupas: “Quando foi que Fiona gostou de usar blusas floridas brilhantes e calça azul-ferrete?” – pergunta-se ele (p. 331). Mudou até o jeito de falar. Ela não costumava usar expressões floreadas antes, como as que agora empregava, quando interagia com Aubrey de modo carinhoso, chamando-o de “coração” (p. 337).

Contudo, as mudanças narradas por Grant não incluíam apenas aspectos que todos podiam ver (roupas, corte de cabelo, trejeitos linguísticos e gestuais), mas também características de personalidade, cujas oscilações mais sutis somente ele notaria. Até a forte conexão que sentiam, intermediada pelo humor e que, desde sempre, os levava a dar risada das mesmas coisas, se encontrava em processo de mutação. Grant percebia que estava pisando em ovos, especialmente nas situações relacionadas à doença, muitas delas engraçadas, mas não a ponto de ser tornarem objeto de riso ou piada. Quando ele pensava em compartilhar algo desse tipo com Fiona, ponderava: “[...] e se desta vez ela não achasse graça?” (p. 308).

É logo na primeira visita após a internação que Grant dá voz, em um diálogo com a enfermeira Kristy, à primeira (no sentido de primordial) inquietação que tem a ver com a manutenção dos laços narrativos: “Será que [Fiona] sabe quem eu sou?” (p. 323). Essa dúvida o tomou de assalto, durante a primeira visita — quando Fiona reagiu de modo incomum — e foi se tornando alvo de suas preocupações, pois a esposa passou a tratá-lo como a um estranho a quem ela tinha de suportar. A “gentileza distraída e sociável” com a qual ela o fazia impedia-o de lhe perguntar se ela se lembrava ou não dele como seu marido (p. 324).

É esse aspecto que gostaríamos de caracterizar como um enfraquecimento dos laços narrativos mutuamente constitutivos das identidades pessoais. Não está em questão apenas a identidade pessoal de Fiona, mas também a de seus próximos, principalmente Grant. O trabalho antropológico de Feriani (2017) relata uma imagem bastante apropriada: em uma reunião de um grupo de apoio a cuidadores-familiares, a coordenadora da ABRAz (Associação Brasileira de Alzheimer) explica que “[...] é como se os fios fossem se soltando aos poucos” (p. 534n). Esses “fios”, ousamos dizer, não são apenas neurológicos; são também fios da urdidura da trama narrativa.

A própria afeição que surgiu entre Fiona e outro residente, Aubrey, tornou a situação ainda mais surreal aos olhos de Grant. Fiona e Aubrey se tornaram inseparáveis, um verdadeiro casal: quando não estavam jogando bridge, caminhavam pelos corredores apoiados um no outro ou faziam longos passeios. Também assistiam a TV juntos, e Grant não se incomodava de acompanhá-los em alguma dessas atividades, esforçando-se para não cometer nenhuma intrusão, já que era uma pessoa alheia àquilo tudo, na maior parte do tempo. Para não incomodar Fiona, chega a restringir suas visitas a dois dias da semana apenas. Sentia-se patético por perseguir Fiona e Aubrey por toda parte e cada vez menos seguro de que tinha direito de estar ali, ao mesmo tempo que era incapaz de “sair de cena”.

No período em que transcorrem esses acontecimentos, pode-se dizer que Grant se torna a memória de Fiona, ou, em chave ricoeuriana, ele se torna o guardião da identidade pessoal dela. Grant acolhe a narrativa de sua esposa Fiona, tornando-se o terceiro narrador (tiers-narrant) ao conviver com ela. Ou seja, o conto é narrado por um terceiro narrador, Grant, e, quando Fiona perde sua memória, é como se dissesse “narre no meu lugar” (MICHEL, 2016, p. 238).

As lembranças que ele guarda de sua vida de casados (cinquenta anos de casados, conforme enfatiza) nos são comunicadas sem cessar, ao longo de todo o conto, e possibilitam que permaneça viva a identidade deles enquanto marido e mulher, Grant e Fiona. Se, como Ricoeur (1997), entendermos que a “conservação de si através do tempo” requer a interdição do esquecimento, Grant desempenha o papel de impedir que esse esquecimento ocorra, ao realizar o trabalho da memória pelos dois, de insistir que Fiona não se esqueça da sua existência, do passado que compartilharam, estando presente tanto quanto possível e até utilizando estratégias para fazê-la se lembrar de quem ela foi, de quem pode voltar a ser novamente. O fato de presenteá-la com o livro sobre a Islândia demonstra isso. E é justamente esse livro que Fiona está lendo quando, na cena final do conto, Grant vai visitá-la e descobre que ela voltara a ser a Fiona de antigamente, aquela que o reconhece como esposo, ignora quem seja Aubrey e o convida a irem embora juntos, confessando que temeu a possibilidade de ele abandoná-la ali.

Ricoeur (1997, 2007) afirma ainda que o trabalho da memória pode andar de mãos dadas com o trabalho de luto[14]. O luto é por ele definido como a reação a uma perda, ruptura ou mudança, a qual demanda do sujeito a reinvenção de si ou da relação com um objeto[15] amado. Esse processo é oposto à melancolia, que é complacente à tristeza, à perda da autoestima e à entrega à lamentação. A situação vivida por Grant poderia ser enfrentada por ele, com base nesses ou em outros caminhos. Sobre isso, o que constatamos é que ele busca manter seu relacionamento com Fiona, apesar de nem o relacionamento nem Fiona serem mais os mesmos. A elaboração do luto pelas perdas reais e simbólicas então sofridas pelo casal acontece de modo singular.

“Qual é o trabalho colocado em operação no luto?”, indaga Ricoeur (2007, p. 86), para responder, na sequência, recorrendo a um enunciado freudiano: “O teste da realidade revelou que o objeto amado deixou de existir, passando a exigir que toda a libido renuncie ao vínculo que a liga àquele objeto. É contra isso que se produz uma revolta compreensível”. Ricoeur segue argumentando que podemos entender o custo elevado de “[...] tempo e de energia de investimento que essa obediência da libido às ordens da realidade requer”, tendo-se em vista que, para o sujeito que se encontra nessa situação, “[...] a existência do objeto perdido continua psiquicamente” (RICOEUR, 2007, p. 86, grifos nossos). A libido permanece ligada, nesse caso, ao objeto perdido, por meio das lembranças e expectativas associadas a ele.

A narrativa construída por Grant deixa entrever sua relutância em aceitar “as ordens ditadas pela realidade”. Ele chega a confessar que não se acostumou com o jeito como as coisas passaram a ser, após o agravamento da doença de Fiona e sua internação. Isso nos é revelado, no conto, na já mencionada cena da primeira visita à clínica, quando Grant fica assustado ao constatar que Fiona parece não saber quem ele é. Numa tentativa de consolá-lo, a enfermeira Kristy afirma: “As coisas vão e vêm o tempo todo e não há nada que se possa fazer. Você vai ver como é, quando começar a vir aqui depois de algum tempo. Vai aprender a não levar tão a sério. Aprender a aceitar dia a dia” (p. 324). Grant não somente se mostra cético, diante dessa possibilidade (a de acostumar-se à situação), como começa a travar uma luta incansável para manter viva sua versão favorita da esposa. Podemos dizer que ele guarda em si vestígios da identidade pessoal de Fiona; esta é parte dele.

A reação de Grant aos acontecimentos descritos no conto é singular, pois traz as marcas de sua subjetividade e da história particular que ele partilha com Fiona, mas não é incomum. A negação da doença e/ou a resistência às mudanças que ela acarreta costumam se fazer presentes, num primeiro momento de enfrentamento desse tipo de experiência. O estranhamento de familiares em relação a pessoas com Alzheimer é expresso de maneira muito pungente e precisa, em um relato colhido por Feriani (2017, p. 551): a filha de um paciente de Alzheimer conta que “[...] minha sensação é de que meu pai já não existe mais, apenas outra pessoa no seu corpo, é muito estranho tudo isso”.

Quando Grant narra as mudanças de Fiona e as suas próprias é que conseguimos melhor captar a estreita ligação entre memória e identidade pessoal. Como bem coloca Ricoeur (2007, p. 94), a questão-chave é “[...] a mobilização da memória a serviço da busca, da demanda, da reivindicação de identidade”. Nesse sentido, a fragilidade da identidade residiria na fragilidade das respostas às perguntas “quem?”, “quem sou eu?”, quando estas “[...] pretendem dar a receita da identidade proclamada e reclamada” (RICOEUR, 2007, p. 94). Ele ainda argumenta que haveria três causas para a fragilidade da identidade, entre as quais destacamos duas que concernem mais diretamente à identidade pessoal: sua relação desafiadora com o tempo, a qual se embasa no resgate do passado, na avaliação do presente e na projeção do futuro; o confronto com outrem, percebido como uma ameaça para a identidade própria. Na verdade, o processo de inscrevermos nossas próprias identidades na “trama do viver-juntos” pode produzir em nossas autoestimas feridas reais ou imaginárias. Esse encontro com a alteridade e com o diferente não deixa de ser violento, em diferentes níveis (RICOEUR, 2007, p. 94-95).

Pode-se dizer que a grande questão do conto é levantada em torno desse luto parcial, suspenso e inacabado (inacabável?), que não consegue tomar forma. A questão, que recebe um tratamento sensível por Alice Munro, é a forma como a condição de Alzheimer impõe uma espécie de exílio, de deriva, às identidades (tanto da pessoa acometida quanto de seus próximos), expondo assim a frágil urdidura de laços narrativos da qual são compostas. O que o Alzheimer coloca é uma situação em que a permanência no tempo sob o modo da ipseidade é interditada, ou posta em suspenso, e, na melhor das hipóteses, deixa-se entrever apenas durante os lampejos de lucidez. A promessa do casamento, por conseguinte, é mantida de modo unilateral, por Grant, durante a maior parte do conto (embora haja flashbacks em que conhecemos seu passado adúltero); no exato momento em que Grant se dispõe a sair com Marian, esposa de Aubrey, Fiona tem um momento de lucidez, quando reconhece o livro sobre a Islândia que Grant lhe trouxera há tanto tempo.

A última cena do conto é um momento pungente de recuperação da ipseidade, por parte de Fiona. “Você poderia ter simplesmente entrado no carro e ido embora”, ela diz a Grant, “Simplesmente ido embora e me largado aqui. Largado. Largado.” (p. 357). Ao que Grant responde: “nem pensar”.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de Paul Ricoeur, podemos compreender que o problema da identidade pessoal requer que a permanência no tempo seja concebida em pelo menos duas maneiras distintas: aquela que se pergunta pela permanência de um substrato aos moldes das substâncias físicas (mesmidade), e aquela que tem a ver com a manutenção de um “si”, o qual se esforça ativamente em ser sempre o mesmo (ipseidade). Ainda com Ricoeur, podemos asseverar que há um plano de narrativa – o dos “próximos” – no qual são tecidas as tramas de narrativa que mobilizam mesmidades e ipseidades, de sorte a constituir as identidades pessoais das pessoas.

O conto “O urso atravessou a montanha”, de Alice Munro, permite entrever como essa rede opera no microcosmo de um casamento. No conto, a forma como a rede funciona é tematizada pelo que ocorre quando ela falha – a saber, quando um dos cônjuges é acometido pela doença de Alzheimer. A perda de memória, com a consequente perda do conteúdo narrativo sobre si e sobre os próximos, produz um enfraquecimento dos laços narrativos mutuamente constitutivos das identidades pessoais. Possuímos apenas emaranhados de histórias de Fiona que são narrados por um terceiro narrador, mas que não ensejam uma trama sólida de sua história por parte dela mesma.

Nesse sentido, a narrativa vai além da relação com o modo ficcional estabelecido por Ricoeur, trata-se de uma constante procura pela mediação fundamental de contar histórias, ou seja, a história de cada sujeito está sempre à procura de alguém que possa narrá-la, em que “[...] o sujeito tem necessariamente que descobrir ou redescobrir a sua identidade no seio da sociedade, na relação com os outros, e essa é, seguramente, a sua mediação fundamental - mais do que aquela que mantém com os textos” (HELENO, 2002, p.120). Ao final do conto, quando Fiona recupera sua memória, retoma sua identidade, reconhecendo novamente Grant como seu esposo, é como se ela redescobrisse sua identidade que até então era mediada por ele. Além disso, esperamos ter mostrado que a dimensão social, sob o aspecto da memória e narrativa, é um componente indissociável da identidade pessoal.

 

AGRADECIMENTOS

Agradecemos aos pareceristas anônimos, por suas contribuições e sugestões, as quais melhoraram muito este artigo. Jerzy Brzozowski gostaria de agradecer a Cristian Santiago Kraemer e Italo Lins Lemos pelas discussões sobre cognitivismo em filosofia da ficção.

 

I AM A NETWORK OF NARRATIVES: APPROXIMATIONS BETWEEN PAUL RICOEUR AND ALICE MUNRO

 

ABSTRACT: In this article, we intend to address the role of memory and narrative in the constitution of personal identity, based on Alice Munro's short story “The Bear Came Over the Mountain” and the theoretical concepts of Paul Ricoeur (especially in Oneself as Another). This movement will allow us to underscore the idea that, contrary to what part of the analytical literature on identity and narrative has held, it is not just what we might call self-narrative that plays a role in maintaining personal identity. Instead, we recover the Ricoeurian idea of a network of narratives or tangled of stories, in which self- and hetero-narratives are entangled, thus providing support to the identities it captures.

 

KEYWORDS: Identity. Narrativity. Alzheimer’s disease. Alice Munro. Paul Ricoeur.

 

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Recebido: 28/03/2022

Aprovado: 31/05/2022



[1] Professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8667-9530. E-mail: jerzyab@gmail.com.

[2] Professora associada da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Erechim, RS - Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0058-091X. E-mail: ivonemmds@gmail.com.

[3] Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9381-5097. E-mail: janessapagnussat@hotmail.com.

[4] A lista que segue está em ordem de publicação original das obras, com exceção de Escritos e Conferências, por se tratar de uma coletânea.

[5] Originalmente publicado sob o título “The Bear Came Over the Mountain”, em forma serializada, na revista New Yorker, entre 1999 e 2000. Aqui, faremos referência à tradução feita por Cássio Arantes Leite (MUNRO, 2013).

[6] Aqui, o exemplo mais representativo é certamente o “Against Narrativity”, de Galen Strawson (2004), que mencionaremos na seção 1, a seguir.

[7] Em Tempo e Narrativa I (1994), Ricoeur chama atenção para a possibilidade – que ele qualifica de equivocada – de emprego do conceito de ficção em duas acepções diferentes: a) “[...] como sinônimo das configurações narrativas” e b) “[...] como antônimo da pretensão que a narrativa histórica tem de constituir uma narrativa ‘verídica’.” Evitando o referido equívoco, o autor indica sua opção pelo uso do termo feito pela crítica literária, campo no qual a palavra ficção designa “[...] a configuração da narrativa cujo paradigma é a construção da intriga, sem levar em consideração as diferenças que concernem apenas à pretensão à verdade das duas classes de narrativa.” (RICOEUR, 1994, p. 101-102).

[8] Inclusive, diríamos que ignorar esse ponto é um dos erros cometidos por Strawson (2004).

[9] A distinção proposta por Ricoeur parece sugerir que a ficção científica não é literária, ou que é de menor valor estético. Se Ricoeur realmente quis dizer isso, deve ficar claro que não compartilhamos desse juízo. Apenas apresentaremos a distinção para poder explicar o ponto teórico levantado pelo autor.

[10] Sobre a interpretação de “ipse” em Ricoeur, vejam-se Étienne (1997), Corá (2004) e Grondin (2015, p. 100).

[11] De acordo com Ricoeur (2014, p. 178), “[...] a frase ‘Não sou nada’ deve manter sua forma paradoxal: ‘nada’ não significaria mais nada, se ‘nada’ não fosse atribuído a ‘eu’. Mas quem é ainda eu quando o sujeito diz que não é nada? Um si privado do socorro da mesmidade”.

[12] Um exemplo semelhante, da literatura brasileira contemporânea, é encontrado por Annita Costa Malufe (2008) no personagem Z do conto “Deslocamento”, de Juliano Pessanha. Esse personagem é alguém que vive no mundo “[...] como se a ele não pertencesse” (MALUFE, 2008, p. 402), sem memória, sem interligar um dia no outro, mas com uma “[...] secreta ambição de ser real” (PESSANHA apud MALUFE, 2008, p. 403). A existência de Z, poderíamos dizer, é inenarrável, é uma pura vontade de ser uma pessoa (ipseidade) sem o suporte material da mesmidade. Para ressaltar essa ausência de “narrabilidade” da vida de Z, Pessanha põe em cena um outro personagem: um bêbado, andarilho, que possui uma memória inesgotável de infinitas histórias para contar. O bêbado “[...] irrita Z profundamente, pois é um homem carregado de humanidade ao extremo, portador de uma identidade-idem bastante exemplar” (MALUFE, 2008, p. 404).

[13] Há um ponto de encontro entre a memória individual e a memória coletiva que é a memória dos próximos. Segundo Mouratian (2019), para Ricoeur, os próximos são aqueles que são importantes para nossa identidade, por fazerem parte da sua constituição pela troca recíproca e ajuda mútua.

[14] Ricoeur parte de dois ensaios de Sigmund Freud para construir suas considerações sobre a relação entre o trabalho da memória e o trabalho do luto, diferenciando este do estado de melancolia. Os ensaios são “Rememoração, repetição, perlaboração”, de 1914, e “Luto e Melancolia”, de 1915.

[15] Recorrendo à psicanálise, teoria com a qual dialoga Ricoeur nessa passagem, a noção de objeto pode remeter a uma pessoa, uma parte do corpo, uma ideia etc., podendo o objeto ser real ou fantasístico. Frequentemente, tem seu uso associado à noção de investimento. É comum, em psicanálise, afirmar-se que os sujeitos investem/ligam “[...] uma certa fração de energia psíquica a um objeto” (MEZAN, 1995, p. 55).