Impulso criador e drama vital em Bergson

 

Rita Paiva[1]

 

Resumo: Ao voltar-se para a teoria de H. Bergson acerca do processo evolutivo, este texto toma como objeto de reflexão o caráter antinômico das tendências fundamentais do movimento vital: tempo puro e materialidade. Partindo da importância da imagem, nessa filosofia, debruça-se sobre a ontologia bergsoniana, problematizando tanto a noção de elã vital quanto o modo pelo qual a matéria advém e o tempo real nela se inscreve. Ao destacar a ambiguidade do papel desempenhado pela materialidade, no tensionamento das forças vitais, a discussão explicita que o impulso originário instaura, ele próprio, seu antípoda. Revela-se, assim, o caráter dramático que impregna o movimento intrínseco à história da vida, no qual esforço e luta são correlatos dos limites do impulso que a move e quesitos incontornáveis para o ato criador que a define.

Palavras-chave: Elã vital. Matéria. Obstáculo. Esforço. Criação.

 

 

INTRODUÇÃO

Na direção inversa àquela seguida pela tradição filosófica, Henri Bergson postula que a realidade última do ser, dentro e fora de nós, se altera permanentemente. O ser dura, confunde-se com a passagem do tempo. E, se esse devir se renova e abre as vertentes do indeterminado, é porque o passado nele se inscreve: “A duração é o progresso contínuo do passado que rói o porvir e que incha ao avançar.” (BERGSON, 2005, p. 5).

No limiar da obra bergsoniana, o objeto privilegiado será a duração subjetivamente vivenciada, e serão lançados os fundamentos que permitirão compreender a ação criadora do tempo, na consciência humana. A vida psicológica revela-se, assim, uma sucessão de mudanças incessantes, de estados que se conservam numa continuidade heterogênea, geradora de estados de alma imprevisíveis que avançam e se prolongam uns nos outros, inscrevendo-se num tempo futuro. Em tal escoar, a vida interior se traduz na memória contínua que garante a sobrevivência do passado no presente, sem a qual a realidade psíquica não seria mais do que uma sucessão de instantaneidades. Nesse momento, ainda que o autor postule a clivagem entre interioridade e exterioridade como necessária para a apreensão, a duração, a consciência, considerada apenas em sua “[...] dimensão subjetiva e finita” (PRADO JÚNIOR,1989, p. 117), é isolada de sua relação com a exterioridade; a natureza da extensão, em sua natureza última, aquela sobre a qual o eu deve atuar e agir, não é ainda submetida à investigação.

Com Matéria e Memória, a profundidade movente do eu, tal como constatada na inspeção bergsoniana acerca da natureza da consciência humana, encontra conexão com a consciência mais exteriorizada e espacializada pelas vias da memória, em suas formas múltiplas de manifestação. A lembrança constituirá, pois, o “[...] ponto de intersecção entre o espírito e a matéria.” (BERGSON, 2020, p. 5). A investigação psicológica acerca do modo pelo qual o corpo se relaciona com a vida do espírito conduz o autor a algo que, reitera ele mesmo, não poderia ficar em suspenso. Ou seja, a análise psicológica, ao revelar a distinção clara, bem como a irredutibilidade, entre matéria e espírito, a partir das considerações sobre a percepção pura e a vida mnemônica, explicita o modo de sua união.

A alusão aqui a esse problema tem o intuito de destacar que a reflexão acerca desse vínculo culmina na necessidade de compreender a realidade última da matéria; as teses metafísicas tecidas no terceiro livro bergsoniano vêm explicitar que a sua realidade última é mudança qualitativa; ela se nos desvela, quando nos esquivamos do caráter matemático e abstrato de nossas representações, bem como da natureza descontínua do ato perceptivo, e apreendemos o movente nele mesmo, enquanto transição de qualidades sensíveis. Captamos assim a mudança – a duração – como o fundo de toda a realidade. O movimento temporal, enquanto constitutivo da existência, em sua generalidade, vem revelar o caráter contínuo e qualitativo da extensão material, ainda que nesta ele se apresente com um tensionamento outro, mais distendido, com ritmos e graus diversos daqueles próprios à duração interna à consciência humana.

O horizonte totalizante da duração é assim desnudado; em todo o universo ela assume ritmos singulares, graus variáveis de tensionamento. A matéria, malgrado sua tendência a estender-se, será mobilizada por uma tensão interna, “[...] uma duração quase adormecida”, no dizer de Prado Júnior (1989, p.162). Ou em termos bergsonianos: “Em realidade, não há um ritmo único da duração; é possível imaginar muitos ritmos bem diferentes, os quais, mais lentos ou mais rápidos, mediriam o grau de tensão ou de relaxamento das consciências, e deste modo assim fixariam seus lugares respectivos na série dos seres.” (BERGSON, 2010, p. 243).

A evolução criadora (2005) aprofundará o viés aberto pela obra antecedente – a saber, “[...] a conciliação entre consciência e presença global”, ainda no dizer de Prado Jr. (1989, p.162). Particularmente com a imagem do elã vital, Bergson vislumbrará a expressão mais direta do princípio interior à vida, ou seja, nele, o filósofo encontrará a força que viabiliza a expansão da duração para a totalidade da existência. A imagem do elã vital vem, pois, alicerçar uma teoria da vida calcada numa nova ontologia, segundo a qual o ser coincide com movimento, duração. Decorre daí que a vida, produtora das formas objetivas e vivas, com sua natureza intrinsecamente psicológica, seja compreendida como uma consciência ou uma memória, pautada, tal como na vida subjetiva, pela interpenetração recíproca e contínua dos elementos temporais, cujo ímpeto – ou elã – se prolonga pelos seres, impulsionando o progresso evolutivo. Escreverá o autor, em seu terceiro livro: “Assim é minha vida interior e assim é também a vida em geral.” (BERGSON, 2005, p. 280). Sob esse registro, o dinamismo vital traz sem cessar algo novo ao mundo. Eis a ousadia dessa filosofia, a saber, decretar a impossibilidade de se pensar uma evolução que não seja criadora e situar no centro de sua reflexão o impulso que a move e garante sua marcha progressiva.

Eis o escopo destas linhas: problematizar esse avanço da vida, destacando que a força que a impulsiona estará sujeita a um percurso dificultoso. Seu progresso só se efetuará no embate com uma força outra – aquela da materialidade – que contradita seu dinamismo e retarda seu movimento. Gerada pela própria impulsão vital, essa força que antinomiza com o impulso vital constituirá simultaneamente impedimento para seu o avanço e condição não apenas para que as obras da vida se efetivem, mas para que vertentes inauditas continuem a aflorar no imprevisível movimento da duração. Procuremos fundamentar essa tensão central na filosofia da vida.

 

1 DAS IMAGENS: O ELÃ E O OBUS

Em A evolução criadora (2005), Bergson postula a tese de um princípio interior e fecundo, que viceja na origem da vida. Esse impulso, cuja natureza espiritual e força criadora é responsável pelo engendramento e pela variação das existências, prolifera a partir de si mesmo, num dinamismo, continuidade e progresso similar àquele que rege a consciência humana. Essa força de vida nada tem de germe primeiro com potencialidades cativas e prontas, mas se configura, antes, como potência de indeterminação e de invenção.

O avanço desse “fluxo de consciência” efetua-se por linhas que se diferenciam e se tornam cada vez mais incompatíveis entre si, à medida que delas se dissociam novas vertentes de criação. Não obstante, nessa crescente independência das vias seguidas por essa força que se divide – e cujos termos se encontravam inicialmente confundidos –, um mesmo princípio interno de direção continua a progredir, de sorte que, na produção sem número de diferenças e das formas engendradas em linhas díspares, se inscreva sempre algo do todo, uma permanente remissão a uma única e mesma origem. Sublinha o autor: “Por mais que se tenham produzido bifurcações, que se tenham aberto vias laterais onde os elementos dissociados se desenrolavam de modo independente, nem por isso deixa de ser pelo elã primitivo do todo que o movimento das partes se prolonga.” (BERGSON, 2011c, p. 108). Por outro lado, o irromper de cada nova diferenciação equivale, na verdade, a uma inédita invenção originada nesse fluxo vivo, o qual, no limite, se substancializa numa força que é querer pleno de vida. As direções por elas tomadas, no entanto, configuram-se como tendências imanentes ao princípio movente interior à vida.

Esse princípio movente irrompe nessa filosofia como uma noção pouco ajustada à pretensão de exatidão almejada pelos conceitos, mas, justamente por essa razão, traduzirá de modo mais preciso o processo criador no qual a vida se substancializa em nós e fora de nós. Menos um princípio de explicação universal e mais próxima de um personagem metafísico, para ficarmos com Jankélévitch, essa noção nos insere na atmosfera da evolução: “Uma impulsão, [...] quer dizer alguma coisa de dinâmica e de motor que deixa o campo livre a todos os caprichos da invenção, longe de impor a ela o desenvolvimento de um formulário analítico.” (JANKÉLÉVITCH, 2011, p. 136).

Com efeito, a imagem do elã será a que mais nos aproxima do dinamismo da vida. Antes uma imagem do que um instrumento conceitual propriamente dito, uma vez que, sustenta Bergson, conceito algum daria conta de traduzir essa realidade movente que escapa aos quadros fixos da inteligência, que a tudo esquadrinha e representa como conjunto de partes fixas justapostas. Embora a imagem tenha também suas limitações, esta em particular nos abre a perspectiva de um “[...] aparelho conceitual” (BERNET, 2012, p. 26) que trairia em menor medida o movimento vital. E aqui é preciso uma palavra acerca da relação entre esse caráter imagético do elã e o evocar de imagens que transbordam pelos textos bergsonianos.

O recurso às imagens escritas que peculiariza essa filosofia não concerne a uma estratégia meramente estilística que finda por aproximar o registro filosófico do literário, todavia deriva, antes, de uma imperiosidade metodológica provocada por um impasse intrínseco à linguagem. Esta última, coadunada à natureza operatória e prática da inteligência, permite representar as coisas todas em seus contornos fixos e estáveis, sacrificando a dinâmica da existência. Auxiliar da ação, a linguagem completa o trabalho do intelecto na transposição do real para o espaço representacional, com vistas à eficácia e à instrumentalidade; é seu papel estabilizar o movente e garantir que a duração se expresse em extensão. Os conceitos, por seu turno, resultantes do trabalho intelectual e recursos dessa mesma linguagem, são incapazes de coincidir com o âmago da realidade movente que a filosofia busca apreender e comunicar; eles visam à exatidão que só pode ser extraída de realidades regidas pela fixidez e apreendidas por um viés exterior e abstrato.

Ante tal impotência, ainda que não minimize o valor do esforço de conceituação e não abandone por inteiro esse registro, é a conceitos flexíveis que Bergson nos remeterá, a representações imagéticas, as quais, na sua diversidade e no jogo que tecem entre si, logram nos manter no concreto e operam a sugestão das experiências inconciliáveis, arredias aos quadros representativos do intelecto em geral. As imagens são ainda expressas com palavras, mas elas se instalam na cesura entre os sinais linguísticos e as significações por eles encarnadas, aspecto próprio da linguagem humana e do caráter convencional de seus símbolos, o que permite o deslocamento incessante dos significados, a reinvenção de sentidos cristalizados.

São, pois, as imagens, que, ao serem mobilizadas, tecem uma espécie de trama sugestiva de significações, que nos remetem às experiências concretas, à realidade movente da duração, e cuja visão direta apenas a intuição alcança: “Comparações e metáforas sugerirão aqui aquilo que não conseguiremos exprimir.” (BERNET, 2012, p. 45). Eis a motivação bergsoniana para uma escrita que mescla conceitos e imagens. Esse esforço, decerto, culmina numa inequívoca vizinhança da linguagem própria à poesia e à prosa, visto que é nessa região que a união convencionada entre os sentidos e os símbolos linguísticos é implodida, de sorte que esses últimos, libertos da instrumentalidade, se tornam mais aptos a fluírem com o movimento do real a ser expresso.

Nesse sentido, diferentemente da estabilidade com que tradicionalmente se revestem os conceitos filosóficos, nessa filosofia, noções cruciais, como duração, matéria, vida e liberdade, as quais remetem sempre a realidades em movimento, não se coadunarão com a exatidão almejada pela inteligência e seus instrumentos; em contrapartida, associam-se às imagens e dão lugar aos conceitos fluidos, os quais nos remetem às direções cambiantes do real e do ser. Conceitos derivados de um esforço intuitivo, aptos a moldar-se às sinuosidades do real e ao seu movimento interior. Ao aludir às imagens que transbordam em seu livro sobre a evolução da vida, Bergson escreve: “Fora da imagem, há apenas o conceito, quer dizer uma rubrica com a qual se classifica objetos diferentes. Se a vida é uma coisa única em seu gênero, ela não pode ingressar em nenhum conceito. [...] eu devia proceder por sugestões e a sugestão só é possível pelas imagens.” (BERGSON, 2011b, p. 862).

Assim ocorre com a imagem de elã vital, que escapa à vocação paralisante do pensamento e mais nos aproxima do dinamismo intrínseco à vida. Bergson alude à imperiosidade dessa imagem única e mediadora, a qual, por si só, evoca o movimento, ao observar que nenhuma outra representação imagética a ele teria se imposto como meio necessário para viabilizar a comunicação – ou a sugestão – de uma realidade que subverte a lógica espacial da inteligência:

Em todo movimento vital há sempre um poder de continuar esse movimento além do estado atual. É isto que quis exprimir e escolhi aquela do elã vital. Uma imagem que não é para mim um ornamento: é um modo de situar um problema em relação a outros problemas insuficientemente claros; esta imagem do elã vital esclarece um ponto obscuro do fato vital e faz sentir que esse movimento nele se prolonga. (Bergson, 2011b, p. 966)

 

Procuremos acompanhar a reflexão bergsoniana, no que concerne à relação entre as tendências que a vida traz em si e as razões da divisão primeira do impulso originário, sem negligenciar, contudo, sejam a imagem do elã ou as imagens outras que o autor evoca na construção de seus argumentos. Afinal, como o precisa Nicolas Cornibert, “[...] em Bergson tudo parte de e tudo retorna à experiência da imagem. Esta permanece, com a duração, da qual ela figura o conteúdo variável, o alfa e o ômega de todo seu pensamento.” (CORNIBERT, 2008, p. 524).

Ao refletir sobre a história da vida, o autor mobiliza a imagem perturbadora do elã, como uma totalidade simples e virtual, uma energia criadora perpassada por tendências múltiplas, cujo anseio por expansão provoca a sua divisão e instaura as vertentes, em forma de feixes pelos quais esse impulso avança. Notemos que, com a noção de virtualidade, Bergson nos remete a realidades múltiplas e imateriais que se interpenetram, as quais, seja na consciência humana, seja fora dela, tendem a se atualizar, mas só o logram, diferenciando-se das potências irrealizadas que trazem consigo.[2] Desse modo, o ímpeto vital, como assinala Deleuze, constitui uma “[...] virtualidade em vias de atualizar-se, [...] uma simplicidade em vias de diferenciar-se, [...] uma totalidade em vias de dividir-se: a essência da vida é proceder por dissociação e desdobramento, por ‘dicotomia’.” (DELEUZE, 1999, p. 75).

É preciso frisar também que a totalidade plena de virtualidades desse movimento mutante e criador não será jamais apreendida em sua completude; ela jamais estará plenamente dada, mas sempre em vias de se fazer, uma vez que o impulso originário e temporal que viabiliza a expansão da duração não apenas engendra novas formas ao avançar, mas continua a perpassá-las com suas tendências virtuais. Destarte, as formas que advêm do processo evolutivo e criador, ainda que pareçam se cristalizar em contornos fechados, ao atualizarem certas disposições virtuais numa existência específica, mantêm a abertura pela qual avança nelas o elã que carrega a totalidade das tendências originalmente fundidas. Bergson, outra vez: “Uma definição perfeita se aplica apenas a uma realidade feita: ora, as propriedades vitais jamais estão inteiramente realizadas, mas sempre em vias de realização; são menos estados que tendências.” (BERGSON, 2005, p. 14).

Não obstante, a fragmentação da vida em vertentes independentes e diversas não se deve apenas à carga explosiva das tendências instáveis, intrínsecas ao impulso vital, mesmo que esta seja a razão precípua de sua divisão. Outra série de causas, argumenta Bergson, contribuirá igualmente para tal acontecimento. Aflora aqui, inclusive, aquela que será a um só tempo condição de concretização da vida e grande ameaça ao prosseguimento de seu dinamismo criador e vital, a saber, a “[...] resistência que a vida experimenta por parte da matéria bruta [...]” (BERGSON, 2005, p. 107). Ao se deparar com os entraves fixados pela matéria, o elã vital não somente se divide, como nota o autor, mas tem a desenvoltura de seu avanço comprometida. Será preciso que o impulso, em sua imaterialidade, atravesse paulatina e vagarosamente os primeiros fenômenos físicos e químicos, inserindo neles, a despeito da vocação para a inércia que caracteriza as realidades materializadas, alguma vitalidade que desperte a vida animada em formas elementares e simples. A força expansiva e movente da vida será, então, contraditada por uma força outra que rejeita o movimento.

Nesse sentido, a imagem que mais nos aproximará da explosão originária do impulso vital e do caminho por ele seguido será a de um obus que explode e de cujos fragmentos lançados sucedem novas explosões e linhas divergentes, as quais vão se sucedendo e se multiplicando, no decorrer do tempo. Decerto, essa imagem já sugere o movimento, visto que o texto nos remete a um obus em processo de explosão e não ao seu estado anterior e estático. Não há elã senão em movimento, em ato de se criar a si mesmo e de engendrar o novo. Pontua Gouhier: “Não se saberia conceber um elã que não existe em ato, quer dizer, em processo de lançar-se, uma vida que não estaria em ação, quer dizer, em processo de viver.” (GOUHIER, 1961, p. 97).

Daí a pertinência dessa imagem, para sugerir a dinâmica vital. E cumpre atentar para a advertência bergsoniana, segundo a qual a imagem da explosão originária se associe a um obus e não a uma bala de canhão maciça, que teceria uma trajetória única e direta, na qual não haveria forças que contraditassem o impulso. Contrariamente a essa fluidez livre e plena, a imagem do obus que explode expressa o contraponto entre a força que tende ao desdobramento incessante de si mesma, “a força explosiva”, a qual tem seu correlato na pólvora – e aquela que resiste a esse movimento, contrapondo-se à lógica da pura alteração, evocando assim a matéria. Jogo entre forças antinômicas que não cessa de renascer nas novas vertentes instauradas por sucessivas explosões, por meio das quais se expande o impulso vital, em sua dilemática relação com a força que a ele se opõe.

 Situamo-nos, assim, no ponto fulcral de nossa discussão. Antes de enfrentá-lo, convém observar que, sob a letra bergsoniana, o impulso vital, enquanto fluxo temporal no qual a totalidade do passado adentra o presente, engendrando novas realidades, produz a partir de si mesmo as travas que interditarão a sua liberdade criadora. Tais travas, entretanto, constituirão também o pressuposto para que as invenções da vida se atualizem e realizem a tessitura de sua história.

 

2 A CRIAÇÃO DA MATERIALIDADE E A BIFURCAÇÃO DO MOVIMENTO VITAL

É ainda em seu terceiro livro, com argumentos concisos e enigmáticos, que Bergson se refere a uma espécie de descuido no dinamismo temporal – uma distensão no movimento da vida – com o qual o elã criador, aquilo que se faz, a pura multiplicidade imaterial ou espiritualidade que gera continuamente novas realidades, se inverte. Essa inversão, entretanto, decorre apenas de um relaxamento da vontade ocorrido no átimo de repouso que irrompe no dinamismo do próprio movimento, ocasionando uma flexibilização na impulsão vital. Uma espécie de contramovimento faz com que a vontade impulsiva – entendida como uma força criadora, “[...] capaz de desenvolver-se por si mesma” (BERGSON, 2011a, p. 491) – se interrompa, inserindo uma pausa na tensão entre as tendências.

Essa espécie de relaxamento no movimento tenso impõe uma cisão, uma descontinuidade. O que assim se delineia não vem a ser um ato propriamente positivo, mas, antes, como nota Frédéric Worms, uma súbita estagnação, um retorno do movimento, “um nada” que deriva do próprio elã ou de seu esforço inicial (WORMS, 2020, p. 194). Não há uma causa antecedente que articule essa virada ou essa estagnação. Nada de positivo a suscita, a não ser, o comentador o assinala, um lapso na concentração intrínseca ao movimento da duração, o qual interrompe sua inequívoca marcha para a frente. Dessa desconfiguração do frágil equilíbrio vigente entre as tendências vitais decorrerão corolários definitivos e irreversíveis.

É a partir desse lapso ontológico que o impulso criador empreende uma divisão entre direções opostas, as quais apontam para aspectos diversos da experiência. Por um lado, sua impetuosidade segue numa via ascendente, concernente à tendência para o espírito criador, para a imaterialidade e para o psíquico, sem que se configurem obstáculos quaisquer, porquanto ele mesmo – o espírito – se constitui como pura energia e visceral mobilidade; nessa vertente, prepondera a geração das diferenças qualitativas e a duração genuína, em sua permanente e intrínseca alteração. Nessa direção da duração pura, nada se delineará plenamente, uma vez que será prevalecente a interpenetração recíproca de tendências virtuais, heterogêneas, indistintas. Por outro lado, o movimento envereda por uma direção descendente, como um peso que cai; nessa direção, as formas sólidas se atualizam com contornos fixos, os fatos justapõem-se e se repetem, perfazendo uma multiplicidade distinta; eis o domínio do que permanece igual a si mesmo.

Numa palavra, o breve flerte com o repouso, no contrapelo do puro dinamismo, incitará o impulso movente, para além do seu avanço concentrado e imaterial, à criação de uma realidade que antagoniza com sua natureza movente e criadora. Gouhier é preciso: “Haverá, então, a vida que continua ser elã, que se desenvolve como potência de invenção, que avança de criação em criação; [...] haverá também a vida que perde seu elã, a vida na qual se extingue a potência de invenção, a vida que, cessando de ser criadora, tomba em torpor [...]” (GOUHIER, 1961, p. 97). Instaura-se, assim, em concomitância com a realidade da duração, uma realidade outra, que tende à cristalização, a qual admite graus, decerto, mas que será regida pelas leis dos processos físicos.

É, pois, com a interrupção do movimento concentrado e com o engendrar da materialidade pelo impulso criador que irrompe o fator impeditivo, para que o dinamismo da vida possa tecer um percurso similar àquele de uma bala de canhão, sem desvios ou alentecimentos. Não obstante, se as duas direções que se delineiam com o progresso do elã vital instauram o antagonismo que estará no cerne da vida e que retardará a sua marcha, o fato é que ambas não deixam de se imbricar na tessitura de um mesmo e único movimento. Logo, o peso que cai, ao distender a tensão virtual e consumar a passagem do inextenso ao extenso, não logra erradicar ou anular o dinamismo pelo qual a vida avança, visto que a impulsão originária – a consciência ou o princípio interior da vida – persiste, não só se lançando no sentido inverso àquele em que se consumará a materialidade, mas também a perpassando, como um foguete que, a um só tempo, deixa cair os destroços e os atravessa (BERGSON, 2005, p. 283).

Outra imagem é aqui mobilizada pelo autor: a do gesto que, movido por uma vontade, eleva o braço, o qual torna a cair. Malgrado a queda, o ato de querer que vivificou e realizou o movimento ascendente não se exaure no processo em que o braço vem abaixo; mesmo diante do peso e das dificuldades, o impulso subsiste, perpetua-se, esforça-se para uma nova ascensão, o que indica a continuidade de uma realidade movente naquela realidade outra, cuja tendência é inversa à da primeira. Sublinha Bergson: “E então veremos na atividade vital aquilo que subsiste do movimento direto no movimento invertido, uma realidade que se faz através daquela que se desfaz.” (BERGSON, 2005, p. 269). “[...] tal é, sem dúvida alguma, um dos traços essenciais da materialidade.” (BERGSON, 2005, p. 266). Insistamos: na direção da solidez e das formas extensas que se fixam de modo aparentemente inerte, o ímpeto vital ainda persevera numa tênue continuidade, que se traduz na distensão e no alentecimento, mas nunca se exaure por completo.

É importante observar que essa perspectiva, como mencionado inicialmente, já se anuncia em Matéria e memória (2010), momento em que Bergson defende a existência de diferentes ritmos da duração, com diferentes níveis de tensão. Enuncia o autor: “Entre a matéria bruta e o espírito mais capaz de reflexão há todas as intensidades possíveis da memória, ou, o que vem a ser o mesmo, todos os graus de liberdade.” (BERGSON, 2010, p. 261). O filósofo argumenta que a realidade última da matéria é a continuidade. Nossa percepção dos objetos, das coisas, e de tudo o que se estende fora de nós, entretanto, opera uma síntese das qualidades sensivelmente apreendidas, orientando-as ao uso, às nossas necessidades e às imposições de nossa vida prática. A extensão aparece-nos, assim, como uma realidade múltipla infinitamente divisível, suscetível de “[...] mudanças homogêneas e calculáveis.” (BERGSON, 2010, p. 211).

Sob esse prisma, a distância entre a heterogeneidade e os movimentos homogêneos, sujeitos a cálculos, soa para o pensamento inteligente como insuperável e a incomunicabilidade entre a realidade da consciência com suas sensações, e os movimentos no espaço parece selada. Em revanche, o autor enfatiza a artificialidade da divisão da realidade material operada por uma inteligência constrangida por suas urgências utilitárias, aos quais vem se contrapor uma percepção primitiva, na qual “[...] uma continuidade movente nos é dada, em que tudo muda e permanece ao mesmo tempo.” (BERGSON, 2010, p. 231). Sob esse viés, a extensão seria materialmente mutante e contínua, em sua totalidade. “[...] a estrita solidariedade que liga todos os objetos do universo material, a perpetuidade de suas ações e reações recíprocas, demonstra suficientemente que eles não têm os limites precisos que lhes atribuímos.” (BERGSON, 2010, p. 246).

Sob essa concepção bergsoniana da matéria, no lugar da solidez, a natureza da extensão concreta apresenta-se internamente mobilizada por perturbações, por diferentes tensões. Esse movimento íntimo e material será concebido como qualidade, como uma vibração temporal particular e indivisível, análogo à continuidade de nossa consciência – ou de nossa memória –, mas com ritmo próprio e específico. A defesa da presença da duração na matéria conduz o filósofo, como dizíamos, à tese dos diferentes graus de contração entre a duração de nossa consciência e aquela pertinente à materialidade. Nesse sentido, o universo da matéria caracteriza-se também por um tensionamento, ainda que as qualidades materiais se constituam com uma duração mais distendida e lenta, com uma tensão interior diversa daquela pertinente à nossa consciência.

Ancorado numa analogia com a memória humana, Bergson aponta para a existência de ritmos diversos de duração, o que o conduz a conceber, tal como na memória humana, a pluralidade das durações da existência e a “[...] vislumbrar uma ontologia geral e diversificada de acordo com os diferentes graus ou ritmos de duração, os quais se referem aos graus de ser ou de tensão próprio às coisas.” (TORRES, 2013, p. 78). Decerto, desde que aprendida de modo contraído em nossa memória imediata, a heterogeneidade diluída na realidade extensiva se solidifica em nossa percepção, bem como em nossas representações; não obstante, tal apreensão não logra jamais anular o fato de que a realidade material se perpetua numa continuidade de ritmos alentecidos, para além da “[...] moldura vazia inerte” (BERGSON, 2010, p. 214) na qual aprisionamos a unidade viva do movimento dentro e fora de nós, estabelecendo um abismo entre as realidades quantitativas e qualitativas.[3]

Voltando-nos para A evolução criadora, vemos que a diferença entre esses níveis do real é de grau, de intensidade de vida. Decorre daí que, a despeito dessas duas vertentes seguidas pelo impulso, vida e matéria não se dissociam; o fluxo temporal apenas muda de ritmo quando decai, de modo que uma duração menos tensa, em termos deleuzianos, exterioriza seus momentos e materializa-se. Nas duas direções, entretanto, é o mesmo elã, em sua virtualidade, que avança, explicitando as duas tendências da vida, as quais, em seu desenvolvimento e no processo de inversão, se diferenciam e divergem, porém, original e virtualmente, se encontram fundidas e comungam a mesma fonte.

Se, no processo vital, o impulso, por um lado, se lança para a direção contrária à da materialidade, perseverando em ritmos intensos, por outro, ao lançar-se na direção descendente, viabiliza que a vida se atém aos corpos vivos, como se almejasse, a um só tempo, ali se perpetuar e deles se desvencilhar. Com essa propensão autonomizante, a qual se traduz num esforço para reerguer o peso que cai (BERGSON, 2011c, p. 130), mesmo que logre apenas postergar o movimento descendente com um vestígio do querer que antes a mobilizava, a impulsão permanente da vida impede que a matéria se traduza em repouso absoluto ou em total necessidade, de sorte que “[...] se estenda no espaço sem estar nele absolutamente estendida [...]” (BERGSON, 2005, p. 222). Para uma percepção exterior, a materialidade oferece-se indubitavelmente sólida e imóvel; internamente, contudo, tal como ocorre no interior de uma crisálida, aponta o filósofo, seu movimento prossegue e “[...] ela vive e vibra em profundidade.” (BERGSON, 2010, p. 168).

A solidez incontornável e definitiva não deixa de ser apenas uma tendência à estabilização, às formas estanques, mas uma tendência que permanece inacabada e só se completa com a vocação do intelecto humano, para instaurar mundos abstratos e simbólicos e sobre eles atuar. O autor, outra vez: “[...] veremos que a matéria tem uma tendência a constituir sistemas isoláveis, que possam ser tratados geometricamente. E até mesmo por essa tendência que a definiremos. Mas não é mais do que uma tendência.” (BERGSON, 2005, p. 11). Notadamente, destaca-se aqui o caráter fluido que esse conceito assume, nessa filosofia, de maneira que não poderia se definir como um conceito fixo, um representante simbólico do pensamento que analisa exteriormente seus objetos.

Em suma, a ilusória solidez da materialidade, frisada por Bergson, vem reforçar ainda mais a ideia de que, entre matéria e espírito, se instaura uma diferença de ritmo e de tensão, como já destacava o autor de Matéria e Memória. Com A Evolução Criadora, o lapso de inversão operado pelo elã cinde o movimento vital em direções opostas. Delineiam-se, assim, distintas configurações de uma mesma experiência, a qual, num de seus extremos, aponta para a pureza da materialidade – ou do espaço – e, no outro, duração pura. Essa cisão, contudo, não obsta que a continuidade vital permaneça atuando como uma força que aponta sempre para a direção contrária àquela para a qual tende toda realidade sólida. Entretanto, ao avançar e viabilizar a expansão da duração, a qual culminará no engendramento das formas vivas, a impulsão que move a vida se depara com a outra causa de sua divisão: a resistência da matéria por ela mesma engendrada, a qual impõe a ela limites incontornáveis e finda por minimizar sua potência dinâmica. Decorre daí que, se o processo criador, tal como bergsonianamente compreendido, se efetua no interior de um mesmo movimento, não se deve minimizar o fato de que a criação é movida por um jogo entre forças que se opõem, jogo fecundo e não destituído de tensão e obstáculos.

 

3 O JOGO DRAMÁTICO NA MARCHA DA VIDA

Em A consciência e a vida (2009), Bergson sustenta que o princípio virtual – e, portanto, espiritual – por meio do qual a vida se expande e avança, materializando-se num contínuo processo de autossuperação, é norteado por uma espécie de antieconomia; sua tônica é o excesso. Enquanto virtualidade, a potência dessa força é a de crescer, a partir de si mesma, de sorte que sua natureza consiste em dar tudo e mais do que tem e, para além disso, dar o que não tem. Todavia, no confronto com a materialidade que ela própria engendra, a força que impulsiona a marcha da vida interrompe seu tino, perde-se de si, sacrifica tendências. Quando os impedimentos que as formas criadas oferecem para a continuidade da atividade criadora se revelam intransponíveis, o elã, muitas vezes fascinado com sua própria obra, adormece, submete-se à repetição, cede a armadilhas: “A matéria enrola-se em torno dela [a consciência], curva-a a seu próprio automatismo, entorpece-a em sua própria inconsciência.” (BERGSON, 2009, p. 19).

Eis porque, de acordo com Bergson, o movimento que, para além de engendrar, perpassa a matéria, é longo e exige um empenho árduo e obstinado ao avançar pelas diferentes vertentes. Essa lentidão indica que o impulso da vida, apesar das interdições – e graças ao seu excesso –, persiste; ele invade com suas tendências virtuais o reino da necessidade; quando já não logra prosseguir, contorna os obstáculos, instaura novas divisões e prossegue em novas linhas; advêm assim inauditas formas de vida, cada vez mais complexas e livres. Mas a criação de formas em que a liberdade se alarga, as quais, por vezes, constituem “verdadeiras obras de arte”, não impedirá que a materialidade volte a interditar a tensão criadora, de modo que a consciência vital finde novamente por sujeitar-se ao automatismo que a espreita em graus variáveis. De fato, a materialidade é tendência à distensão, ao repouso; por essa razão, nota Bergson, as obras criadas estão sempre atrasadas em relação à vida que as produz. Elas são reveladoras da desproporção ou da vertiginosa disparidade de ritmos à qual nos referíamos anteriormente, ou seja, entre a realidade virtual que o impulso traz consigo e os resultados que gera.

As dificuldades imanentes ao percurso da vida se devem substancialmente ao fato de que o processo em que a materialidade advém, e no qual afloram os seres vivos, nada tem a ver com uma remissão ao registro da transcendência. Não há uma potência sobrenatural a nutrir o elã, porquanto sua fonte não é outra que a vida mesma. Antoine-Miguel releva esse aspecto, ao enfatizar a coincidência entre o impulso interior da vida e o próprio tempo: “[...] não há uma flecha metafísica que orientaria os acontecimentos sem deles depender. Ao contrário, nós o vemos [o elán vital] aparecer [...] como uma tendência que é [...] o simples e puro efeito de uma certa maneira que os acontecimentos têm de se suceder no tempo.” (MIGUEL, 2010, p. 238). Ante a ausência de transcendências que o mobilizem, o elã revela sua força, sempre passível de esgotamento, de sorte que não logra consumar plenamente as potencialidades que traz em si. Ele “[...] encontra à sua frente a matéria, isto é, o movimento inverso ao seu.” (BERGSON, 2005, p. 272).

Assim, se o impulso vital dá mais do que tem e dá o que não tem, Bergson não deixa de enfatizar que as suas incessantes hesitações e a sua impotência para se esquivar da peleja com a materialidade são sintomas de suas limitações. O limite é inerente ao movimento evolutivo. O esforço de superá-lo inscreve-se na luta com a matéria e será travado em todos os níveis do mundo organizado, de maneira que as resistências e os transtornos que se contrapõem ao ímpeto vital constituirão, por vezes, um risco fatídico.

Revela-se, destarte, a tendência mortal que viceja no vivo. Certamente, a obstinação dessa corrente de consciência consiste em superar a impenetrabilidade de uma rocha, para evocarmos ainda uma imagem bergsoniana. Isso não impede que a matéria atue para negativar a potência criadora e se atualize com um permanente e incansável inimigo. Logo, na história da vida, sob lentes bergsonianas, assistiremos ao desenrolar de um verdadeiro teatro, com atos plenos de carga dramática. Lemos, em A evolução Criadora: “Mas o elã é finito, e foi dado de uma vez por todas. O movimento que imprime é ora desviado, ora dividido, sempre contrariado e a evolução do mundo organizado não é mais que o desenrolar dessa luta.” (BERGSON, 2005, p. 275). Ao instituir a repetição, a matéria destrói o impulso e coteja a vida com espectros mortais.

No entanto, se a matéria constitui uma tendência que negativiza a continuidade criadora e atua como uma contraforça vital, ela não deixa de ser a atualização de uma tendência intrínseca à dinâmica da vida. A materialidade que obsta o movimento, e que advém pela inversão desse mesmo elã ao qual ela se opõe, não deixa de incitar o impulso originário a resoluções inesperadas, para as tendências virtualmente esboçadas no esquematismo da duração. Daí deriva que, graças à sua potência limitada, como nota H. Fujita, algum tipo de acordo será tecido entre o princípio interior da vida e as forças que o contraditam (FUJITA, 2020, p. 279). Essa específica harmonização, em concomitância com um embate dramático entre forças opostas, encaminha-nos para o término de nossa reflexão.

 

4 ESFORÇO E DESAFIO: O FASCÍNIO DA MATÉRIA

Em A consciência e a vida (2009), Bergson indaga a razão pela qual o elã – ou a consciência coextensiva à vida –, mesmo se deparando com impedimentos por vezes intransponíveis, prolonga sua luta, seu esforço e persevera em seu afã criador, dividindo-se incessantemente e engendrando formas cada vez mais livres e complexas, inclusive aquela em que sua liberdade se amplia radicalmente, a saber, o homem. Sem dúvida, a materialidade deixada a si mesma jamais extrapolaria os horizontes da repetição; ao se atualizar no processo de inversão, ela se traduz em obstáculo e desnuda os limites do elã. Entretanto, é inequívoco que o impulso vivo e virtual, enquanto pura continuidade, interpenetração entre passado e presente, potência criadora que gera incessantemente o futuro, num estado incessante de fusão e concentração, por si só jamais se distenderia.

Por conseguinte, “[...] por uma derrisão singular a vida tem necessidade para se afirmar desta matéria que a mata [...]” (JANKÉLEVITCH, 2008, p. 175). Numa palavra, a vida engendra uma realidade que será, a uma só vez, impedimento do seu avanço e a condição que incitará permanentemente tanto sua força inventiva quanto seu esforço, estimulando-a a superar aquela que a interrompe. Eis a dupla conotação com a qual a extensão se reveste: ela é simultaneamente obstáculo e instrumento. Dessa forma, além da sedução da inércia para a qual tendem as obras geradas no movimento vital, há um apelo outro que emana da matéria, com o qual o ímpeto criador se deixa fascinar. Com a resistência que oferece ao movimento criador, a materialidade, advoga Bergson, constitui um desafio ao espírito, um chamado para a aventura da organização, cujos resultados são imprevisíveis, na qual tanto a matéria como o impulso que a atravessa cedem em suas disposições, para que o novo advenha.

Afinal, é por meio da materialidade que a vida mesma se revela e logra exteriorizar seu movimento, de modo que sua história seja tecida. Gouhier o pontua: “O elã vital cuja experiência íntima nos revela a natureza e do qual as ciências biológicas nos contam a história, este elã só é apreendido na luta com uma matéria que alentece sua potência criadora e comprime sua consciência.” (GOUHIER, 1961, p. 132). O confronto com forças propensas à inércia e que resistem à lógica da alteração sem fim açula o interesse do espírito por façanhas inesperadas e pela diferença, impele-o à ambição de ultrapassar os desafios que se configuram em seu percurso e ameaçam interditar o seu avanço. Decerto, perdas se consumam nesse embate, porquanto, ao se atualizar em formas vivas e exteriorizar-se em resultados concretos, o movimento intrínseco à vida, mesmo quando culmina em seres mais superiores e livres, sucumbirá a algum grau de imobilidade e será de certa forma aprisionado, permanecendo aquém das promessas intrínsecas às tendências que nele pulsam. Dito de outro modo, ao se curvar às exigências da matéria, a virtualidade espiritual das tendências revela sempre uma baixa na intensidade do querer, de sorte que algo na intensidade da energia criadora se perde ou se arruína.

Não obstante, esse refluxo da energia criadora, que degrada a potência da vida, cujas criações ficam aquém de seu ritmo e daquilo que a vida lograria gerar, se avançasse livremente, constituirá o fundamento crucial para que formas imprevistas advenham, as quais não se enunciavam nem mesmo nas tendências virtuais. A imagem bergsoniana que aqui nos aproxima desse processo, o qual é, a um só tempo, decaimento e realização, é a criação artística ou mais particularmente a da criação poética. A imaginação criadora que rege os atos dos artistas é repleta de tendências e de intuições originais, mas, no embate com a matéria na qual se atualizará a forma individualizada e por ele perseguida, muitas das promessas virtualmente acenadas permanecerão inatualizadas.

Na realização da obra, a realidade criada permanece aquém das promessas imanentes à potência virtual. Contudo, é nessa concreção minimizadora das potencialidades sonhadas que, de certo modo, negativiza a liberdade do espírito ou ante as exigências da necessidade, que a forma concreta advém, se organizando com as exigências materiais que a limitam. Uma espécie de jogo de imposições recíprocas assim se tece; nele, a atividade criadora do artista instaura sua realização genuína, a qual não encontrará equivalente nem mesmo no âmbito da virtualidade: “É assim que, acerca de um sentimento poético que se explica em estrofes distintas, em versos distintos, em palavras distintas, se poderá dizer que continha essa multiplicidade de elementos individuados e que, no entanto, é a materialidade da linguagem que a cria.” (BERGSON, 2005, p. 280).

A analogia com a vida é aqui inequívoca. As virtualidades concentradas, as tendências múltiplas que se interpenetram no elã só consumarão sua existência se lançando de modo incerto sobre os impedimentos com que se deparam, porquanto anseiam por inscrever neles as formas, os esboços e tendências temporais imbricadas e sempre virtuais que trazem em si, ainda que essas não permaneçam incólumes ao embate e se sujeitem a reconfigurações inesperadas. Nesse sentido, a consumação das tendências numa forma que permanece aquém do ensejado configura, a um só tempo, fracasso e apoteose. Nesse processo, a vida enobrece a matéria, espiritualizando-a; a matéria permite a exteriorização do trabalho temporal da vida, em formas concretas, infinitamente diversas e individualizadas. Na tensão entre a virtualidade múltipla que anseia avançar e uma materialidade que resiste, o esforço criador se consuma, atualizando a ação do elã vital, com a qual a virtualidade passará, enfim, de uma existência de direito a uma existência de fato.

Contemporizemos com P. A. Miguel. Para além de ser apenas tendência virtual, o elã vital adquire, em Bergson, uma conotação material, ao menos em parte, uma vez que é no confronto com a materialidade que há tensão, ou seja, sem extensão não haveria a tensão entre as forças geradoras da matéria e do movimento que a transforma: “Só há vitalidade na materialidade.” (MIGUEL, 2020, p. 231). A matéria condiciona a consumação da vida, já que a realidade de suas formas irrompe no confronto da diferença visceral entre duas tendências que fundamenta a realidade ontológica. A vida é, pois, uma tendência cuja apreensão exige a presença de sua contratendência, a qual se traduz na extensão material. Sem a materialidade, a vida seria talvez um processo de atuação intensa, mas que jamais abandonaria a condição de tendência; ela exige, pois, o seu antípoda, ainda que tal exigência implique sua limitação e um confronto permanente para transcender as leis que obstam sua virulência criadora.

Justamente por essa razão, o processo no qual a vida se consuma se revela uma façanha que exige imenso dispêndio de energia, um esforço intenso, sem deixar de ser uma aposta, porque tal aventura, a despeito de sucessos e retrocessos, é radicalmente indeterminada. O vingar das formas criadas e imprevisíveis estará à mercê das especificidades do compromisso estabelecido entre impulso vital e matéria, no qual se tece o enlace da organização recíproca. Sucesso que está diretamente ligado à potência da criação, bem como às interdições que a ela se apresentam. Como observa H. Fujita, os limites do elã, no fim das contas, é que garantem a eficácia do processo criador, porque a vida exige a alteridade para se efetivar: “[...] a vulnerabilidade, a fragilidade, a finitude do elã vital é em si mesma fonte de sua potência.” (FUJITA, 2010, p. 280).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No processo dinâmico da vida, a materialidade configura-se como resistência e forja impasses que interditam o afã criador, instaurando o drama do movimento vital; todavia, ela também se apresenta como um apelo sedutor que estimula e aguça o espírito, convidando-o a se inscrever nela, moldando-a no mesmo movimento em que testa sua força e concretiza sua aventura. O arranjo encontrado entre as forças antagonistas que se confrontam no âmago da vida é apontado por Bergson: “Na verdade, a vida é um movimento, a materialidade é um movimento inverso. [...] a segunda contraria a primeira, mas a primeira obtém, apesar de tudo, algo da segunda: disso resulta entre elas um modus vivendi que é precisamente organização.” (BERGSON, 2005, p. 271).

A vida impõe às forças que engendra e que a contraditam algum tipo de reconciliação. Ela atua, ratifiquemos, inserindo liberdade na necessidade, potencializado a energia para convertê-la em movimento ou, para voltarmos à imagem bergsoniana, acumulando a energia da pólvora até provocar a fagulha que fará explodir o metal: “A vida seria impossível se o determinismo a que a matéria obedece não pudesse afrouxar seu rigor.” (BERGSON, 2009, p. 13). Contudo, se algum equilíbrio assim se instaura, esse ensaio harmônico jamais se estabiliza por completo, porque não há avanço da vida sem confronto e sem esforço da impulsão vital para superar a resistência que com ela antinomiza.

Afinal, “[...] a vida toma seu impulso no próprio momento em que, pelo efeito de um movimento inverso, a matéria nebular aparece.” (BERGSON, 2005, p. 276). O drama com que se tinge essa espécie de conciliação antinômica, a um só tempo, impede que o movimento do elã – essa imagem que mais nos aproxima da vida – se assemelhe àquele de uma bala de canhão de trajetória unívoca e o transforma num esforço árduo que segue um caminho repleto de desarmonias, mas cujo norte reside na continuidade da explosão criadora da vida.

 

Creative Impulse and Vital Drama in Bergson

Abstract: By referring to H. Bergson's theory about the evolutionary process, this article reflects on the antinomic character of the two fundamental tendencies of the vital movement, which are pure time and materiality. Starting from the importance of the image in this philosophy, it focuses on the Bergsonian ontology, questioning the notion of vital elan and how matter comes and the real-time is inscribed in it. By highlighting the ambiguity of the role played by materiality in the tensioning of vital forces, the discussion explains that the original impulse establishes its antipode. Thus, it reveals the dramatic character that permeates the movement intrinsic to the history of life, in which effort and struggle are correlated to the limits of the impulse that moves it – and inevitable questions for the creative act that defines it.

Keywords: Élan vital. Matter. Obstacle. Effort. Creation.

 

Referências

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BERGSON, H. Introdução (primeira e segunda parte); Introdução à metafísica. In: BERGSON, H. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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BERGSON, H. Lettre à Henri Gouhier de 09.06.1932. Écrits (Le choc). Paris: Quadrige/PUF, 2011a.

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BERGSON, H. Memória e vida, textos escolhidos. São Paulo: Martins Fontes, 2011c.

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JANKÉLÉVITCH, V. Henri Bergson. 3. éd. Paris: Quadrige/PUF, 2008.

MARQUES, S. T. A busca da experiência em sua fonte: matéria, movimento e percepção em Bergson. Trans/Form/Ação, Marília, v. 36, p. 61-80, 2013.

MIGUEL, P.A. Comentaires. In: FRANÇOIS, A. (ed.). Études e comentairesL’évolution créatrice, de Bergson. Paris: Libraririe Philosophique J. Vrin, 2010.

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WORMS, F. Os dois sentidos da vida. São Paulo: Editora Unifesp, 2010.

 

Recebido: 22/02/2022

Aceito: 13/09/2022



[1] Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5146-4388. E-mail; rpaiva@unifesp.br. Esse artigo constitui um desdobramento de pesquisa financiada pela Fapesp processo 2014/08399-2.

[2] A noção de virtual concerne à experiência total da duração em seu processo contínuo de progresso e criação, cuja realidade é a do espírito. Deleuze o precisou: “Por que a diferenciação é uma atualização? É que ela supõe uma unidade, uma totalidade primordial virtual, que se dissocia segundo linhas de diferenciação, mas que, e cada linha, dá ainda testemunho de sua unidade e totalidade subsistentes.” (DELEUZE, 1999, p. 76).

[3] Como elucida Marques Torres, essa distância explicita a diferença entre o ser da matéria e o modo pelo qual a percebemos, afinal, a “[...] contração sendo obra nossa, refere-se a um ato de nossa duração e de nossa memória capaz de contrair numa intuição (um ritmo de duração muito estreito) os momentos múltiplos da duração material, de modo que, contraídos, estes (os ritmos naturais das durações) passam a vibrar de modo diferente.” (TORRES, 2013, p. 78).