Comentário a “Linguagem e denúncia da interioridade em Nietzsche e nas Investigações filosóficas de Wittgenstein”

 

Sebastião Alonso Júnior[1]

 

Referência do artigo comentado: KRIEGER, S. Linguagem e denúncia da interioridade em Nietzsche e nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 179 - 200, 2022.

 

O artigo de Krieger (2022) tem o mérito de estabelecer uma convergência entre o pensamento de dois filósofos caracteristicamente distintivos. De fato, as filosofias de Friedrich Nietzsche e Ludwig Wittgenstein apresentam pontos de contato. Essa possibilidade de aproximação é explorada pelo autor via uma discussão clássica na epistemologia moderna, a saber, a interioridade do sujeito. Nietzsche posiciona o problema no advento da modernidade e trata-o como produto de uma interioridade caótica de conteúdo, traço marcante do homem moderno. Por certo, o pensamento de Nietzsche sintetiza a crise moderna dos grandes valores, como uma época de tensão e destruição. Entretanto, é na fecundidade da filosofia madura do austríaco Wittgenstein que importa ressaltar alguns aspectos relativos à questão da “interioridade”.

No artigo “Linguagem e denúncia de interioridade em Nietzsche e nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein”, o autor nos oferece um fio condutor que percorre os parágrafos 143 a 184 das Investigações Filosóficas de Wittgenstein, qual seja, a discussão sobre “compreensão e habilidade”. Segundo Krieger (2022, p. 14), Wittgenstein sustenta que a “compreensão” não pode ser resumida a um estado ou processo de ordem mental e, portanto, privado. “Compreender” remete mais a um tipo de habilidade em realizar ações futuras.

No mencionado bloco de parágrafos, é estabelecida uma discussão dialógica que revela um cuidadoso esforço em afastar a ideia de “compreensão” das ocorrências ou processos de natureza mental. Tal empenho decorre do descontentamento do filósofo austríaco frente a uma argumentação que resume o “compreender” a uma ocorrência interna e, por conseguinte, como um fenômeno de natureza mentalista. Nesse caso, vale a pena notar a importância estratégica do parágrafo 151, no contexto em discussão. No parágrafo indicado, é focalizado um modelo descritivo que correlaciona a autoatribuição exclamativa “agora compreendi!” a “algo que surge em um instante”, como uma “sensação” ou uma “leve e rápida aspiração”. Observe-se o trecho a seguir:

Agora, existe também este emprego da palavra “saber”: nós dizemos “Agora eu já sei!” – e, do mesmo modo, “Agora eu já consigo!” e “Agora eu já compreendo!”. Imaginemos este exemplo: A anota séries de números; B o observa e tenta encontrar uma lei na sequência de números. Ele consegue, e então exclama: “Agora eu posso prosseguir!” — Essa capacidade, essa compreensão, é, portanto, algo que ocorre em um instante. [...] Talvez ele tivesse uma sensação que se pode chamar de “isto é fácil!”. (Uma sensação como essa seria, por exemplo, uma ligeira e rápida retração da respiração, semelhante a quando se toma um leve susto.) (WITTGENSTEIN, 1997, parágrafo 151).

 

A passagem indica a posição que Wittgenstein rejeita, repetidamente, em face do modelo explicativo mentalista de ocorrência de “compreensão”. Essa é uma visão herdada do modelo dualista clássico e precisa ser afastada. Da mesma maneira, há outros trechos (parágrafos 152, 153, 154), nos quais o filósofo austríaco reforça o quão enganadora é a versão mentalista de “compreensão”. Há uma forte inclinação no imaginário popular em supor que uma autoatribuição com função exclamativa (“agora compreendi!”; “agora eu já sei!”) é instantânea a uma “vivência” mental que corresponda à compreensão. Nesse sentido, é preciso ter em mente que a “experiência característica”, a qual, supostamente, acompanha o proferimento exclamativo, não é essencial nos esforços de caracterização.

Na ótica wittgensteiniana, o ponto de vista descrito acima está eivado de senso comum, o que acaba por afastar a possibilidade de um entendimento filosófico. Isso se deve à predisposição intuitiva em determinar uma relação entre a declaração de compreensão e uma ocorrência interna. É como se houvesse uma experiência mental característica, que, concomitante ao enunciado “agora eu já sei fazer!”, fosse capaz de representar a fonte do entendimento que o declarante afirma possuir. Para o filósofo vienense, mesmo que haja uma ocorrência privada que acompanha os casos nos quais o declarante autoatribui entendimento, isso não consiste na compreensão. Do mesmo modo, tal vivência não garante que o autoatribuidor tenha, efetivamente, compreendido a série numérica.

Da mesma forma, o filósofo vai rechaçar uma variação do mesmo argumento, ou seja, a caracterização da “compreensão” agora como um processo mental. Ocorre que Wittgenstein oferece argumentos bem próximos daqueles já mencionados na fracassada tentativa de redução da ideia de “compreensão” a uma ocorrência instantânea, por outras palavras, nenhuma experiência mental característica é logicamente necessária, ou essencialmente condicionada à compreensão. No caso de uma ocorrência processual em desdobramento na mente do indivíduo, os mesmos problemas de ordem lógica se impõem: como identificar o processo? Como comparar o “meu” processo mental de compreensão com aqueles que se dão em outras (e insondáveis) mentes?

Há, nos parágrafos 152 e 153, uma boa mostra da inquietação que esse traçado argumentativo causa, ocasião na qual o filósofo alerta: mesmo que algo (instantâneo ou processual) supostamente aconteça na mente de um falante, que, repentinamente, entende uma série numérica, não faz sentido comparar se o que acontece na mente de um é o mesmo que ocorre na mente de todos os outros. Segundo Wittgenstein, “[...] mesmo supondo que tenha encontrado algo que acontecesse em todos aqueles casos de compreensão – por que isto seria a compreensão?” (parágrafo 153). É um erro supor que a “compreensão” possa, simplesmente, ser resumida a tal ocorrência. Da mesma maneira, é enganoso supor que haja um “processo mental” (seelische Vorgänge), ou um “processo oculto” (Vorgang versteckt)[2], por trás da evidência externa comportamental da compreensão.

Por certo, não poderia ser exaustivo, quanto à perspectiva do Wittgenstein das Investigações Filosóficas, com o espaço de que disponho neste comentário. A intenção é, de fato, destacar que o posicionamento mentalista rechaçado pelo austríaco é produto de uma confusão cujas raízes estão fundamentalmente conectadas à tradição filosófica. Além disso, o senso comum fortalece demasiadamente essa visão, em virtude da disposição natural em procurar atribuir uma relação de correspondência entre dimensões distintas (física e mental). É como se o mesmo tratamento semântico dispensado à realidade objetiva pudesse ser estendido à pura subjetividade. Em resumo, os tratamentos instantaneísta e processual-mental rejeitados por Wittgenstein são equívocos que procuram resumir a ideia de “compreensão” a vivências de natureza mental.

 

REFERÊNCIAS

ALONSO JÚNIOR, S. Contribuições da ideia de "autoridade epistêmica" na viabilidade de uma linguagem privada na filosofia de Wittgenstein. Peri. Florianópolis, v. 11, n. 2, p. 1 - 17, 2019.

BAKER, G. P.; HACKER, P. M. S. Wittgenstein: understanding and meaning (part II - Exegesis). V. 2. Oxford: Blackwell, 2005.

BUDD, M. Wittgenstein's Philosopy of Psychology. 2. ed. Padstow: Routledge, 1993.

HACKER, P. M. S. Wittgenstein: mind and will. Oxford: Blackwell, 2000.

KRIEGER, S. Linguagem e denúncia da interioridade em Nietzsche e nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 179 - 200, 2022.

WITTGENSTEIN, L. Remarks on the Philosophy of Psycology I. Oxford: Basil Blackwell, 1980a.

WITTGENSTEIN, L. Remarks on the Philosophy of Psycology II. Oxford: Basil Blackwell, 1980b.

WITTGENSTEIN, L. Philosophische Untersuchungen/Philosophical Investigations. Translated by G. E. M. Anscombe. 2. ed. Oxford: Blackwell, 1997.

 

Recebido: 20/9/2021

Aceito: 05/10/2021


 


 

 


 

 


 

 



[1] Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7411-1358. E-mail: junioralonso17@gmail.com.

[2] Nos parágrafos 152 e 153, o filósofo alude, ainda, a “fenômenos/acompanhamentos ocultos” (Begleiterscheinungen versteckt) ou “processos concomitantes” (Begleitvorgäng), “manifestações” (Äusserung).