Comentário a “Linguagem e denúncia da interioridade em Nietzsche e nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein”

 

Rogerio Saucedo Corrêa[1]

 

Referência do artigo comentado: KRIEGER, S. Linguagem e denúncia da interioridade em Nietzsche e nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 179 - 200, 2022.

 

Em “Linguagem e denúncia da interioridade em Nietzsche e nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein”, Krieger (2022) pretende aproximar Wittgenstein e Nietzsche. À primeira vista, uma proposta desse tipo soa estranha, pois esses dois filósofos não parecem possuir nada em comum, do ponto de vista filosófico. Como o próprio título mostra, porém, há um elemento em comum entre eles. Na verdade, há dois aspectos em comum, que são a linguagem e a denúncia da interioridade. Isso o leitor infere, a partir do título do artigo. Nesse sentido, é uma virtude do mesmo, pois um título que torna claro o que o autor apresentará é muito importante.

O artigo contém sete seções, além da introdução e das considerações finais. Na primeira seção, intitulada “Signos e volatilidade em Nietzsche”, o objetivo é destacar as noções de interpretação e a volatilidade dos signos, pois elas articulam outras noções básicas do pensamento de Nietzsche, caras para as pretensões do artigo, e permitem que o leitor vislumbre certa familiaridade entre a perspectiva nietzschiana e a wittgensteiniana, uma vez que ambos rompem com a ideia de que a linguagem funcione como um rótulo que atribuímos aos objetos e que o significado é relativo ao mundo mental do sujeito.

Na seção “Signos e volatilidade em Nietzsche”, Krieger (2022) mostra que um pressuposto básico da filosofia de Nietzsche é que pensamento e palavra são signos e que eles não representam a realidade, porque ela é o pulsional e este é o movimento. Assim, se o pulsional é movimento, então ele não pode ser representado por signos, já que os signos são estáticos. Consequentemente, não há uma imagem mental que esteja nas sombras de um signo, pois o pensamento é signo de alguma outra coisa, que é inapreensível, dado que só se constitui como tal quando é buscada. Portanto, o uso dos signos é volátil, no sentido em que não há congruência entre nome e objeto. Se é assim, é necessário que exista, ou melhor, que tenha existido algo que substituiu a congruência entre nome e objeto, em algum momento, visto que esse substituto garantiu a sobrevivência da espécie humana. Tal substituto é a interpretação, a qual, no nível ontológico, é determinada pelas necessidades humanas, e, no epistemológico, impõe formas que estão a sua disposição, de acordo com as suas necessidades. Por conseguinte, a interpretação aproxima signo e objeto e o faz por causa da vontade de potência.

Em função desse último ponto, a seção “Vontade de potência e a comunicação como artimanha” analisa a relação entre vontade e comunicação. O sentido das palavras é uma função do uso, o qual está submetido à vontade de potência. Enquanto tal, a função do sentido é comunicar e não referir, ou seja, é tentar se apoderar do devir, por meio do uso dos signos que imobilizam o movimento. A comunicação tenta encapsular o movimento, por causa da consciência em função da qual o homem expressa, de modo coletivo e compreensível, suas necessidades.

A seção “A linguagem cobra seu preço” mostra que o surgimento da consciência proporcionou ganhos, mas também apresentou uma fatura a ser paga. Trata-se da perda da singularidade, porque o acesso ao singular e ao geral se tornou filtro da percepção do mundo e do particular. Do meu ponto de vista, essa tese não é clara e mereceria ser mais bem explicada. De qualquer forma, como consequência da perda da singularidade, o homem social mudou o uso dos signos. Os signos com os quais ele manipulava os objetos passaram a ser usados para descrever a interioridade dos homens. Com isso, o homem esqueceu que não é um mero espectador externo à construção linguística, contudo, é parte da mesma.

Com o problema acima em mente, a seção “Miragens, mitos linguísticos e a boa filologia” evidencia a importância da boa filologia, para Nietzsche. Do ponto de vista deste, tudo é texto. Como tudo é texto, a condição para se ler o texto é possuir uma boa filologia. Aqui, porém, o leitor só consegue entender o que é boa filologia por contraste com a má filologia. Nesse sentido, a boa filologia é ler o texto de sorte a não considerar a si mesmo como espectador externo do texto e ter consciência de que, ao lê-lo, se está interpretando.

A seção “Do tauma à questão do significado: Wittgenstein” descreve as mudanças que ocorreram da filosofia antiga até a contemporânea. A primeira mudança foi a passagem da ênfase nas investigações ontológicas da filosofia clássica para as investigações do conhecimento da filosofia moderna. A segunda mudança foi a troca do foco das investigações do conhecimento para a linguagem. Nietzsche e Wittgenstein enquadram-se aqui, pois o primeiro se dedicou à atribuição de sentido e valor, enquanto o segundo, ao significado. Nesse ponto, há mais um elemento em comum entre os dois filósofos. A atribuição de sentido e valor e a análise do significado separam-se do sujeito. Isso significa que a questão do significado, em última instância, é libertada do lastro mental.

Como o significado não diz respeito ao mundo mental do sujeito, a seção “Tornando leve o significado” esclarece que, para Wittgenstein, ele concerne a regras. Nessa perpectiva, entender ou compreender nada mais é do que agir com base em hábitos segundo regras. Por fim, a seção “Um problema de diferenciação categorial” aprofunda a discussão da seção anterior e frisa que, uma vez que a tradição filosófica correlacionou imagem mental e objeto, ela confundiu ações com estados mentais. Dito de outra forma, confundiu ações fundadas em hábitos como compreender e entender com experiências brutas.

Como afirmei no começo, o artigo de Krieger aproxima dois filósofos que aparentemente não possuem nada em comum. Em certa medida, essa aproximação é alcançada pelo autor, porque ele demonstra, por exemplo, que Nietzsche e Wittgenstein abordam a questão do significado desatrelado do lastro mental do sujeito. No entanto, Krieger não explica se, para Nietzsche, o sentido também diz respeito a regras, se o compreender está ancorado no hábito ou se ações diferem categorialmente de experiências brutas. Creio, portanto, que o leitor interessado pode partir desse texto para avaliar questões como as que menciono.

Por fim, penso que esse aspecto do artigo está relacionado a outro mais importante. Na verdade, a aproximação proposta pelo autor não é propriamente um objetivo, mas uma pretensão do mesmo. Como se trata de uma pretensão, é difícil avaliar o seu alcance. Não fosse uma pretensão, mas uma conclusão a ser defendida, o leitor poderia concordar ou não. Em outras palavras, se o artigo contivesse um argumento, o leitor poderia concordar ou não com ele. Não é o caso que o leitor possa concordar ou não. Logo, não é o caso que o artigo contenha um argumento. O que resta ao leitor é propor uma pincelada aqui ou acolá, uma luz aqui ou acolá, intensificar ou não uma cor aqui ou acolá. Tudo se passa como se Krieger e o seu leitor estivessem pintando uma tela.

 

Referência

KRIEGER, S. Linguagem e denúncia da interioridade em Nietzsche e nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 179 - 200, 2022.

 

Recebido: 22/11/2021

Aceito: 26/11/2021


 

 


 

 


 

 



[1] Docente na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3451-6446. E-mail: rogerio.saucedo@ufpe.br.