Comentário a “BERGSON Y EL ACONTECIMIENTO: EL CASO DE LA DEMOCRACIA”

 

Maria Adriana Camargo Cappello[1]

 

Referência do artigo comentado: Ruiz stull, m. Bergson y el acontecimiento el caso de la democracia. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 157 – 174, 2022.

 

 

A guerra, em sentido bergsoniano, pode ser pensada como uma variação do movimento da política, que se opõe à democracia, ou como a própria interrupção desse movimento?

 

O artigo de Ruiz Stull (2021) insere-se em um bem-vindo movimento de retomada da obra As Duas Fontes da Moral e da Religião, enquanto um desdobramento, no âmbito do social – e, portanto, também no âmbito da história e da política –, do conceito fundamental do pensamento bergsoniano, o conceito de duração. Integra-se a essa retomada, com a grande virtude de refletir a dinâmica própria à duração, no acontecer político, aqui batizado de “Acontecimento”. Tal dinâmica, justamente, envolve a atualização – ou, como quer o autor, a “presença efetiva”, que se impõe como irrefutável “constatação” – de uma realidade virtual, de uma “presença invisível”, “imperceptível”, “latente”; atualização do virtual, que, então, torce a “estrutura da experiência” habitual, muda o “rumo do nosso pensamento”, ressignifica nosso passado e abre nosso futuro. De fato, se seguirmos a dinâmica da duração, na interioridade da consciência de cada pessoa, na interioridade das consciências artísticas, no elã de vida interior à consciência cósmica, encontraremos esse movimento de atualização nas torções, ressignificações ou aberturas que emergem de nossos atos livres, das obras de arte, das múltiplas e diversas espécies vivas e de seus específicos modos de consciência. Por que não encontraríamos um movimento de atualização semelhante naquilo que baliza os modos de interação dos seres vivos reunidos em sociedade ou, em escala mais reduzida, naquilo que baliza os modos de interação das sociedades humanas, os chamados valores?

É certo que, para serem duracionais, esses valores teriam de ser a atualização mesma de uma realidade virtual criadora, assim como aquela que explode em ato livre, em arte, em espécies de vida, em formas de consciência. E, nesse sentido, tais valores teriam de ser aqueles que caracterizam o que Bergson considera como uma verdadeira moral, uma moral aberta, ou seja, uma moral impulsionada pelo sentimento religioso da fraternidade universal, o qual afirma o valor incondicional de cada pessoa e, nesse sentido, desafia as estruturas sociais fechadas, instituídas com o objetivo máximo da sobrevivência de seus membros. Uma moral aberta que, portanto, impulsionada por essa emoção da fraternidade, afirma a liberdade e reclama a igualdade. Moral aberta que, por fim, se insurge contra “[...] a autoridade, a hierarquia e a imobilidade” das monarquias e oligarquias, justamente porque proclama o ideal democrático sob a divisa republicana da “liberdade, igualdade e fraternidade.” (bergson, 2008, p. 300).

Eis aqui, a meu ver, mais uma das grandes virtudes desse artigo, a saber, colocar o caráter “ideal” e “religioso” do pensamento bergsoniano sobre a história e a política, sob a luz do plano de imanência no qual essa história se desenvolve e no qual a própria política se afirma enquanto movimento. De fato, ao nos apresentar esse estado de espírito que chamamos de democrático, segundo a dinâmica de uma “ontologia do ser enquanto variação”, isto é, enquanto presença invisível que se atualiza de modo incontestável, dando origem a significações absolutamente novas, Stull (2022) nos lembra que, se há um “ideal”, ou valores ideais pelos quais Bergson pensa as sociedades – tais como os valores da igualdade e da liberdade –, esse “ideal” nunca é modelo a ser seguido ou alcançado, mas “[...] direção na qual se encaminhar a humanidade” (bergson, 2008, p. 301); e que, se esse ideal possui um caráter religioso, o religioso, em Bergson, tampouco é transcendência, aspiração a um outro mundo, mas criação imprevisível de novos mundos, na imanência do mundo atual.

De resto, é o próprio Bergson quem define esse caráter religioso do ideal democrático, apontando para a indefinição de seus valores fundamentais. De fato, Bergson reputa as críticas ao que seria um caráter excessivamente “vago” da fórmula democrática justamente ao desconhecimento desse seu caráter religioso, para, na sequência, afirmá-lo, lançando, com certo tom de admiração, a seguinte questão:

 

[...] como pedir uma definição precisa da liberdade e da igualdade quando o futuro deve permanecer aberto a todos os progressos, especialmente à criação de novas condições nas quais se tornarão possíveis formas de liberdade e igualdade hoje irrealizáveis, talvez mesmo inconcebíveis? (bergson, 2008, p. 300).

 

E é exatamente para enfatizar essa facticidade própria à política, que é preenchimento constante do sentido dessa liberdade e dessa igualdade na imanência do movimento da história, que o autor nos diz, em relação à democracia proposta em As Duas Fontes, que ela “[...] estabelece e afirma [...] os traços sempre transformacionais das relações humanas, sobretudo ao tornar visíveis aquelas práticas que a estão sempre colocando em risco.”

            Contudo, justamente essa explicitação do caráter transformacional da democracia ou, poderíamos dizer, da verdadeira política, que então se colocaria ao lado da verdadeira moral e da verdadeira religião, levanta para nós uma questão, que, inicialmente, poderia ser assim enunciada: poderia essa mesma dinâmica da atualização de virtualidades, no sentido da criação de novos valores, ser aplicada não apenas à democracia mas também ao estado de guerra?

O autor aparentemente pensa que sim, se contarmos, por exemplo, a passagem em que ele caracteriza tanto a emergência da guerra quanto a emergência de práticas democráticas como Acontecimento:

[...] o Acontecimento às vezes aparece, seja como uma presença invisível que se espera contra todas as esperanças, como é o caso da guerra, seja como uma presença efetiva que incentiva novas formas de configuração comunitária que vão muito além da própria condição humana, práticas que, na visão de Bergson, quase imediatamente se tornam democráticas.

 

Essa impressão é reforçada, quando ele se refere ao caráter dúplice do Acontecimento, contando nele, mais uma vez, a guerra e a democracia:

[...] o Acontecimento é aquele que prossegue por hendíadis: uma presença invisível, como é o caso da guerra; uma presença efetiva, como é o caso da democracia; em ambos os casos, trata-se de tendências de um movimento atualizadas em virtude das condições dadas e que podem afetar a uma comunidade.

 

No entanto, se estamos compreendendo o Acontecimento como uma dinâmica duracional e, portanto, criadora da “imprevisível novidade”, não haveria um problema em considerar o estado latente ou emergente da guerra também como Acontecimento? De fato, o problema parece se colocar, se levarmos em conta que o estado de guerra é concebido por Bergson como um estado “natural” da humanidade “inteligente” e “fabricadora”, a qual se fecha em grupos sociais, para garantir os recursos necessários à eficácia técnica responsável por sua sobrevivência ou, ainda, se considerarmos que a inteligência é pensada por Bergson como uma forma de consciência coextensiva à matéria, cuja gênese se daria, juntamente com a da matéria, no mesmo sentido regressivo desta e, por conseguinte, oposto ao sentido do movimento criador do princípio cósmico-metafísico proposto no 3o capítulo de E. C. Ou seja, não haveria um problema em tomar o fechado e o regressivo como Acontecimento?

Em resumo, seria o estado de guerra, enquanto Acontecimento, um certo desenvolvimento da política e, nesse sentido, um “contrário complementar” à democracia, expressão algumas vezes utilizada por Bergson, e que implica uma realidade positiva que se opõe a outra realidade positiva da qual foi “separada” pela própria evolução de uma realidade ainda mais original da qual ambas decorreriam? Ou seria a guerra a própria estagnação da política, seu retrocesso ou, se quisermos, um contrário que é pura negatividade, pura ausência de Acontecimento? No que nos interessa aqui, seria a guerra, no âmbito de uma filosofia da duração, variação constitutiva do movimento da política ou seria a guerra interrupção e regressão da política?

 

Referências

BERGSON, H. Les deux sources de la morale et de la religion. Paris: PUF, 2008.

RUIZ STULL, M. Bergson y el acontecimiento: el caso de la democracia. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 157 – 174, 2022.

 

Recebido: 20/11/2021

Aceito: 01/12/2021


 

 



[1] Docente na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9982-2474. E-mail: adrianacappello@uol.com.br.