Referência do artigo comentado: FREITAS, J. H. de. Cinismo e indiferenciación: la huella de Glucksmann en El coraje de la verdad de Foucault. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 128 – 146, 2022.
No ano de 1984, Foucault dedica, naquele que seria seu último curso no Collège de France, algumas aulas para tratar do cinismo antigo. Como se sabe, o modo de vida cínico é evocado como exemplo notório do exercício da coragem da verdade – que dá título ao curso daquele ano. De fato, o cinismo antigo parece ser um ponto incontornável da genealogia da parresia, já que estabelece sua conduta sobre a prática “[...] do dizer-verdadeiro ilimitado e corajoso, que extrema sua coragem e ousadia até se transformar em intolerável insolência.” (FOUCAULT, 2009, p. 153). No entanto, há muito ainda a ser explorado sobre esse tema, nas pesquisas foucaultianas, o que justifica a escolha de Freitas (2022) em abordá-lo por uma entrada nada óbvia, chamando atenção para uma análise exterior à encontrada no curso de 84. Freitas (2022) parte de uma dimensão contextual, não tanto histórica, mas do estado da arte, da qual Foucault se serve, explicitada pelo próprio francês, no momento em que inicia suas considerações sobre o cinismo. Trata-se de uma série de textos, todos eles de autores alemães, exceto por um: Cynisme et passion (1981) de André Glucksmann.
O artigo pretende destacar a presença de Glucksmann nas considerações foucaultianas sobre o cinismo, fato que pode passar desapercebido em uma leitura apressada do curso de 84, porque Foucault apenas menciona o título do livro, no momento em que se desculpa pelo esquecimento em referenciá-lo. Para Horacio, esse acontecido parece indicar precisamente a importância do livro de seu contemporâneo. Apesar disso, Horacio não percorre um caminho centrado em nos demonstrar quais os pontos de aproximação e distanciamento entre os dois autores, esquivando-se de uma análise comparativa. O caminho do autor é muito mais profícuo, ao indicar que Foucault compartilha da leitura do modo de vida cínico no cenário francês, junto com Gluksmann. Dessa forma, o procedimento adotado no texto será o de evidenciar o “paralelo” entre o cínico glucksmanniano e o cínico foucaultiano, não significando, de modo algum, uma proposta de identificação entre um e outro. Essa opção metodológica é, ao nosso ver, bastante feliz, pois não força nenhuma interpretação aproximativa entre os autores.
Nessa abordagem, Freitas (2022) analisa o livro de Glucksmann, tomando o texto foucaultiano como pano de fundo, o que serve para estruturar os quatro pontos sobre os quais o paralelo entre os autores se forma: o cinismo como domínio de si; o platonismo como ponto de confrontação; a relação entre cinismo e a literatura de Sade; o cinismo moderno como desdobramento do cinismo antigo. Isso posto, queremos ressaltar, brevemente, neste comentário, alguns aspectos da análise de Foucault sobre os cínicos, os quais, no artigo de Freitas (2022), devido ao seu propósito, estão apenas indicados.
Acerca do cinismo como domínio de si, Glucksmann assinala o impulso de um sujeito em constante elaboração de práticas ascéticas, o que confere aos cínicos uma característica fundamental: o exercício do poder sobre si mesmo. Com efeito, o cínico produz uma filosofia que se expressa mais como ações em vez de doutrinas, sendo essa postura herdada de Sócrates.
Interessa perceber aqui o ponto de encontro com a perspectiva foucaultiana que entende a atitude do cínico como prática sobre si mesmo, uma ascese que produz a ativação de um modo de vida filosófico. Destaca-se a ideia de uma vida filosófica que persegue a verdade, não como um elemento teórico de iluminação para a vida, mas como algo que se produz na própria transformação e no exercício sobre si mesmo. Esse tema conduz à discussão da vida verdadeira, sendo o cínico aquele que encena a manifestação de sua vida (aleturgia). Com esse deslocamento, a coragem da verdade cínica é encarnada em seu próprio modo de vida, o que expõe de maneira radical a concepção de que a filosofia não é apenas logos. No limite, o cínico chega mesmo a dispensar o logos, pois a verdade que declara é manifestada em sua atitude e em seu corpo. O cínico manifesta a verdade até o ponto no qual a palavra não mais a suporta, até o ponto em que o discurso se torna excesso e a verdade se manifesta em seu corpo e em sua existência material.
A emergência da verdade do cínico, manifestada em sua forma de vida como uma aleturgia, é capaz, então, de alterar os valores morais. A alethes bios, pensada tradicionalmente como a vida virtuosa e conforme ao nomos, recebe do cinismo outro sentido, pelo fato de que o cinismo procura alterar o valor da moeda (parakharattein to nomisma). Com esse gesto, os cínicos esticam o entendimento da verdadeira vida até o seu limite, até o ponto de torná-la uma caricatura. Chega-se, assim, à ideia de que a “[...] vida verdadeira é a vida outra” (FOUCAULT, 2009, p. 153), uma vida que não aquela comumente aceita, inaugurando uma importante inflexão na história da filosofia e da ética ocidental, concernente ao abandono da perseguição de um outro mundo, o qual cede lugar ao propósito de afirmação, nesse mundo, de uma vida outra.
Sobre isso, Freitas (2022) ainda aponta que a abordagem de Gluksmann avança em suas considerações, ao indicar que o cínico procura dominar não apenas a vida, mas também a morte. A soberania do cínico se daria no exercício do domínio absoluto de si mesmo, de sorte a exercer poder sobre a morte (daí os exercícios de contenção da respiração). Nessa constante preparação para a morte, ao exercer um domínio sobre a vida, o cínico apaga as fronteiras entre uma e outra.
Tratando do segundo ponto, o enfrentamento cínico ao platonismo, Freitas (2022) enfatiza que essa tópica se desdobra, em Gluksmann e em Foucault, numa distinção entre intelectual acadêmico e o pensador cínico. Enquanto esse último vai falar em uma separação entre metafísicas da alma ligadas ao neoplatonismo e uma estética de si vinculada às escolas helenísticas, Gluksman se refere a uma separação entre “mentalidade órfica” e “mentalidade dionísica”. As duas leituras acabam por mostrar a novidade que essas duas vertentes de pensamento implicaram no modo de vida grego: a filosofia platônica vai se voltar aos aspectos elevados da natureza humana, enquanto o cinismo desce até a animalidade da existência.
Todavia, é na abordagem do cinismo moderno e da relação com Sade que o argumento de Horacio ganha força. Em Gluksmann, a figura do cínico é continuada no sistema monacal e até mesmo em Napoleão Bonaparte, aludindo também ao Inquisidor de Dostoievsky, a despeito do ateísmo comumente atribuído aos cínicos. Comum a todas elas está a prática de transformação de valores, de onde Gluksmann vai tomar a literatura de Sade como exemplo privilegiado de “radicalização do mesmo”, na Modernidade. Assim como o cínico torna inaceitável qualquer preceito filosófico, Sade herda a capacidade de tornar grotesca e infame qualquer tradição que se impõe.
O caráter transhistórico dado aos cínicos não deveria ser motivo de espanto para os leitores de Foucault, pois apenas erroneamente se pode dar a ele a prerrogativa de fundar-se na descontinuidade. Esse aspecto designa que a experiência cínica da parresia é capaz de assumir formas diversas e objetivos distintos, os quais perpassam a história do pensamento e da subjetividade no Ocidente.
Em nosso entendimento, essa continuidade precisa ser colocada sob a égide do projeto crítico foucaultiano. Nesse sentido, consideramos que a existência do cínico foucaultiano, na atualidade, se liga ao problema da verdade. O cínico assinala um modo de existência manifestado como dizer-verdadeiro capaz de fazer a crítica do jogo da política da verdade e seus efeitos de poder. Assim, Foucault percebe, na atitude do cínico, o exercício da fala livre e corajosa, ativado na filosofia, em nossos dias.
Em ambos os autores, o que permite afirmar uma atualização do cínico diz respeito a uma certa atitude. Dessa consideração, Foucault extrai muitos elementos para pensar o seu próprio projeto de construção de uma filosofia crítica. Está em jogo, portanto, não a afirmação de um atributo correspondente à natureza do cínico que teria permanecido ao longo do tempo, mas a constatação de que a prática inaugurada pelos cínicos é reativada em diversos contextos da história ocidental, trazendo como marca o enfrentamento às convenções às suas últimas consequências.
Ao fim do percurso conduzido por Horacio, nós nos lembramos de que o fazer-se de um trabalho genealógico devora, por onde quer que passe, pesquisas, registros históricos, arquivos. Entretanto, até que ponto Foucault se mantém mais ou menos fiel ao que vê não é possível afirmar. O olhar atento aos discursos produzidos se movimenta em espiral do presente para o passado, tentando entender a atualidade. O encontro com Gluksmann se realiza nesse trajeto de uma genealogia que procura, na história, nas produções discursivas, em diversas épocas, as condições de possibilidade dos acontecimentos.
Referências
FOUCAULT, M. Le courage de la vérité. Le Gouvernement de soi et des autres II: cours au Collège de France, 1983 - 1984. Paris: Gallimard/Seuil, 2009.
FREITAS, J. H. de. Cinismo e indiferenciación: la huella de Glucksmann en El coraje de la verdad de Foucault. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 128 – 146, 2022.
Recebido: 03/11/2021
Aceito: 11/11/2021
[1] Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1061-3818. E-mail: hcosta.fil@gmail.com.