Comentário a “A ruptura da epistemologia histórica francesa com o neokantismo: Bachelard e Canguilhem”: “Zurück zu Dilthey!”

 

Lucas Alessandro Duarte Amaral[1]

 

Referência do artigo comentado: SOUTO, C. A ruptura da epistemologia histórica francesa com o neokantismo: Bachelard e Canguilhem. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 60 – 77, 2022.

 

O artigo de Souto (2022) busca investigar certas consequências epistemológicas, éticas e políticas nas filosofias dos mencionados autores, a partir de uma cisão com o movimento neokantiano – como evidencia seu título. Essa proposta é levada a efeito no artigo, através de uma análise acerca dos diversos textos que compõem esse amplo e rico arcabouço: os neokantianos da escola de Marburgo e de Baden (nomeadamente: Cassirer, Windelband e Rickert) e os atores que fizeram parte desse processo de desdobramento/ruptura com esse movimento filosófico na França. Isso é feito, ademais, com base nas filosofias dos dois autores que encabeçam o título do artigo, em diálogo com aqueles outros autores que fizeram parte de seu contexto mais próximo: Brunschvicg, Lagneu, Alain, entre outros.

Do ponto de vista de um leitor interessado, podemos afirmar, primeiramente, que a análise e a reflexão levadas a efeito pelo artigo em pauta cumprem de maneira engenhosa suas promessas, ainda que tais considerações cubram um amplo contexto do debate, levando em consideração uma vasta gama de atores e temas. Outro mérito do texto é sua leitura fluida: trata-se de um ensaio agradável, com respeito a uma temática complexa, diga-se. Se, por um lado, ter em mente algumas noções do contexto neokantiano do lado alemão já é um trabalho complicado, a tarefa – bem executada pelo artigo – de trazer ao debate a ruptura dessa tradição, por parte dos autores francófonos, Bachelaerd e Canguilhem, por outro, é algo que adiciona novas dificuldades. E quem lê o artigo nota o quão bem executado isso é feito.

Agora, se é indubitável que o artigo possui uma unidade sólida e entrega sua promessa de modo adequado e embasado na literatura primária e secundária, o mesmo texto pode ser discutido ou desdobrado, a partir de pelo menos outras duas frentes: quanto as suas origens ou seus desdobramentos. Aqui, nosso caminho seguirá a primeira perspectiva. De particular importância aos nossos fins, teremos em conta alguns aspectos do pensamento de um autor decisivo para a filosofia do quarto final do século dezenove e que colabora em muito ao contexto amplo de discussão do artigo, a saber, o filósofo alemão Wilhelm Dilthey (1833 - 1911).

É claro que, em um breve comentário como este, não existe a menor possibilidade de tematizar a totalidade do pensamento de Dilthey, tal como ele merece. Todavia, isso não é impeditivo para que possamos fornecer ao menos alguns indícios acerca de seu papel a uns poucos elementos que fazem parte do contexto mais amplo debatido no artigo. Acreditamos ainda que isso pode ser de alguma valia, tanto a quem já possui alguma noção (seja ela maior ou menor) com respeito a Dilthey quanto a quem ainda não teve contato com o autor.

Nesses termos, por intermédio de um enfoque direcionado inicialmente mais à parte da epistemologia[2] do pensamento filósofo alemão e tentando fazer os vínculos existentes com o artigo, podemos apontar ao menos quatro pontos da filosofia de Dilthey, que passamos a analisar.

 

1 A distinção Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften

Uma das mais importantes lições ensinadas por Dilthey, em sua obra Introdução às ciências do espírito,[3] é aquela referente aos dois campos, por assim dizer, do saber: o das ciências da natureza (Naturwissenschaften) e o das ciências humanas (Geisteswissenschaften).[4] Toda a tradição posterior ao filósofo – e ainda hoje trabalhamos em certo sentido em função dessa divisão – se valeu de sua distinção metodológica. O artigo, que também trata dos âmbitos teóricos, práticos e políticos nas filosofias de Bachelard e Canguilhem, pode ser lido, sob esse ponto de vista, como um desdobramento dessa clássica divisão que tem sua origem em Dilthey. Seu projeto de distinção metodológica e justificação epistemológica das duas áreas em questão é base para praticamente toda investigação a respeito dos métodos e objetos de investigação desses saberes.

Nesse sentido, importantes questionamentos surgiram ao debate da época, desde a emancipação e a consolidação de disciplina particulares frente à filosofia – ponto a ser tratado a seguir – até o surgimento da hoje também consolidada tradição hermenêutica.

 

2 Geisteswissenschaten e a emancipação das disciplinas particulares

O século dezenove é o “século das ciências”: foi um período marcado pelo desenvolvimento e a emancipação das disciplinas particulares.[5] No campo das ciências humanas, isso é decisivo: psicologia, história, economia, entre outras disciplinas, começam a se desvencilhar da alçada da filosofia. Agora, essas disciplinas eram portadoras de métodos próprios e objetos de investigação específicos.

Nesses termos, a soberania do método científico enquanto o universal é colocada em xeque. Seria ele o único possível? Em outras palavras: seria ele capaz de dar conta de todas as esferas do saber? São essas as questões, espraiadas na filosofia do nosso autor, que condicionam o item a ser tratado a seguir.

 

3 Crítica ao positivismo: uma opção alternativa (a vida como caráter originário da significação)

Dilthey aparece, ao cenário de seu tempo, em diálogo crítico com a tradição que defendia a tese de que o método das ciências naturais deveria ser aplicado a todos os ramos do saber humano, na qual a figura de A. Comte é decisiva. Seu monismo metodológico defende a tese de que tanto os fenômenos naturais quanto os humanos devem receber o mesmo tratamento metodológico.

Reagindo a isso, Dilthey sustentou que não existe apenas um método científico, mas que esse é determinado pelo tipo de experiência. Para o filósofo, o tipo de experiência que temos, num fenômeno natural, e.g., a ebulição da água, é de tipo diferente daquelas experiências que temos com outros fenômenos da nossa cultura, e.g., uma cerimônia religiosa. É justamente a peculiaridade de cada experiência que vai determinar o método de investigação científico do fenômeno.

Novamente, em Introdução às ciências do espírito, Dilthey afirma que existem dois tipos de experiência: a “experiência externa” (äußerer Erfahrung) e a “experiência interna” (innerer Erfahrung), as quais estão na base da diferenciação dos tipos de ciência e de seus respectivos métodos. A experiência externa é aquela que delimita o âmbito das ciências naturais (Naturwissenschaften). Por experiência externa Dilthey entende aquilo que é dado nos sentidos, ou seja, as percepções. Já a experiência interna é aquela que delimita o âmbito das ciências humanas, que, como já sabemos, Dilthey chama de “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften). A experiência interna será entendida por Dilthey enquanto vivência.

Na vivência, ou experiência interna, têm-se não só percepções provenientes dos sentidos, mas também os sentimentos e desejos do sujeito, o que, para Dilthey, constitui a experiência em sua integralidade e, nesse sentido, a vida entra em cena e assume um papel decisivo: o caráter originário da significação. Portanto, é preciso que levemos em conta, além das ciências naturais e seus fenômenos, os sistemas de culturas e a organização externa da sociedade, em que entram em cena esses novos aspectos apontados anteriormente. Essas estruturas têm origem nas interações entre sujeitos psicológicos orientados por determinados fins.

Complementar a isso, Dilthey estabelece, por fim, uma distinção entre explicar (Erklären) e compreender (Verstehen). A partir dela, duas abordagens se diferenciavam, quanto ao estudo da ação humana. Uma abordagem, digamos, mais “positivista”, que investia na compreensão de significados, a partir de uma reconstrução lógica das intenções ou propósitos dos atores. Assim, o aspecto científico torna possível a construção de hipóteses explicativas que deveriam ser incorporadas às teorias gerais sobre e verificadas ou testadas através de métodos seguros de observação. E uma outra abordagem, dita mais compreensiva, argumenta que tais acontecimentos não poderiam ser adaptados unicamente à lógica das ciências naturais, porque a compreensão interpretativa tem um papel diferente, nas ciências. Logo, compreender um fenômeno, uma dada ação ou credo é um trabalho científico que precede a explicação do porquê da ocorrência da ação. A construção de hipóteses explicativas e seus testes empíricos se tornariam problemas de interpretação dependentes de uma pressuposição específica de como é o evento a ser explicado e, portanto, de como ter acesso ao significado.

Nessa abordagem, na qual, como já foi tocado logo acima, a vida desempenha um papel central, Dilthey nos mostra os elementos diferenciais de sua filosofia, que pode dialogar em conjunto com alguns elementos do artigo, tais como o papel desempenhado pelo ser humano nesse fazer filosófico, o qual retorna com muita força no pensamento de Dilthey.

 

Considerações finais: a importância de figura de Dilthey nas origens da filosofia contemporânea

Sem dúvidas que as ciências do espírito desempenham papel central dentro da temática do artigo. Lembremos, por exemplo, que o projeto do neokantiano Ernst Cassirer – autor discutido no artigo – também pode ser lido como uma ampliação da análise transcendental, que inicialmente esteve em estreita vinculação com o tratamento das Naturwissenschaften, ao campo das Geisteswissenschaften – tal como ele nos alerta, no prefácio do primeiro volume de Filosofia das formas simbólicas. (FSF, I. P. 4). Isso só reitera o importante papel assumido por Dilthey, dentro desse contexto, ao lançar luz ao mencionado campo de análise.

Se a “tradição hermenêutica”[6] pode se iniciar com a figura de Friedrich Schleiermacher (1768 - 1834) e segue forte até um autor como Hans-Georg Gadamer (1900 - 2002), o papel intermediário de Dilthey[7] nessa esteira não deve ser negligenciado. Todo esse contexto, cuja origem historicista é inegável, colabora para toda tradição posterior. Sua filosofia coloca em cena temas decisivos as origens da filosofia contemporânea: desdobrando certos assuntos tratados por aquele primeiro e servindo de pensamento-base para o posterior desenvolvimento, no segundo.

Claro está que aqui não demos conta de explicitar a totalidade da filosofia de Dilthey e sua importância para a tradição que o sucede. Este nunca foi o objetivo de nosso breve ensaio. O que fizemos, e é sob essa lente que este texto deve ser lido, foi tecer algumas notas que podem instigar o leitor a buscar mais sobre esse autor tão decisivo para as filosofias que surgiriam no final do século dezenove e início do século vinte. Vimos aqui com maior ênfase seu decisivo papel no campo das ciências do espírito e seu desenvolvimento na hermenêutica. Ambas tiveram grande importância às origens da filosofia contemporânea, bem como ao contexto geral do artigo, A ruptura histórica francesa com o neokantismo: Bachelard e Canguilhem, enquanto muitas outras poderiam ainda ser apresentadas e discutidas. Reiteramos que o artigo que deu ensejo à execução deste ensaio não cometeu nenhum tipo de falha, pelo fato de não trazer ao debate a figura de Dilthey, mas certamente sua temática mais geral dá uma abertura para ampliarmos o leque, a fim de pensarmos no nome do filósofo alemão e inserir alguns de seus bons insights a esse debate.

A história nos ensina diariamente que boas ideias (sejam elas mais originais, sejam até mesmo desdobramentos de boas ideias) são possíveis sempre e quando se tem presente uma certa tradição pressuposta, quer escrita, quer oral. O pensamento de Dilthey atua nas duas frentes: da mesma maneira que ele desdobra a tradição que o precedeu, ele inova e revoluciona o pensamento de sua época e é influência direta a autores centrais da filosofia contemporânea.

E Dilthey foi um mestre nesses (e muitos outros) assuntos de sua época, que tocam as esferas do saber humano. É por isso também que devemos voltar ao seu pensamento.[8]

 

Referências

DILTHEY, Wilhelm. Gesammelte Schriften. V. I - XXI. Stuttgart: B. G. Teubner: V&R, 1997.

KÖHNKE, Klaus Christian. The rise of neo-kantianism: German academy between idealism and positivism. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

LESSING, Hans-Ulrich. Wilhelm Dilthey: Eine Einführung. Viena: Böhlau, 2011.

MAKKREEL, Rudolf A. Dilthey: philosopher of the human studies. Princeton: Princeton University Press, 1992.

ORTEGA Y GASSET, José. Kant Hegel Dilthey. Madrid: Revista de Occidente, 1972.

RICKMAN, Hans. Peter. Wilhelm Dilthey: pioneer of the human studies. Berkeley: University of California Press, 1979.

SCHNÄDELBACH, Herbert. Philosophy in Germany 1831 - 1933. Londres: Cambridge University Press, 1984.

SOUTO, C. A ruptura da epistemologia histórica francesa com o neokantismo: Bachelard e Canguilhem. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 60 – 77, 2022.

 

Recebido: 18/12/2021

Aprovado: 22/12/2021


 



[1] Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP – PNPD/CAPES), São Paulo, SP –Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2897-1648. E-mail: lucasadamaral@gmail.com.

[2] Veremos que isso não se limita ao campo da epistemologia, mas também toca outros pontos a respeito da cultura como um todo.

[3] Einleitung in die Geisteswissenschaften, de 1883.

[4] Nós nos valeremos de algumas traduções possíveis ao termo Geisteswissenschaften: ciências do espírito (a tradução mais fiel), ciências humanas e, eventualmente, humanidades.

[5] Aqui apontaremos unicamente ao desdobramento das ciências humanas. Se fôssemos trazer ao debate as ciências da natureza, haveríamos que abrir um leque extenso para tratar do desenvolvimento da química, biologia, enquanto disciplinas autônomas, e inclusive abordar o desenvolvimento das matemáticas (geometria e aritmética) e suas relações com a nova lógica daquele tempo.

[6] Obviamente, a hermenêutica tem uma origem que pode remontar à figura de Aristóteles, em Da interpretação, e ser tratada no período da Idade Média. No entanto, aqui nos preocupamos em trazer ao debate a figura de Dilthey e alguns elementos próximos que o circundam, e não fazer uma exegese do tema.

[7] Deve-se mencionar, ao menos, que entre Dilthey e Gadamer tivemos na história a figura de Heidegger, outro autor central a essa temática. Pelas mesmas razões de limite mencionadas na nota anterior, não pudemos explorar sua figura e papel, neste debate.

[8] Tanto o título quanto o fechamento deste ensaio, com esse apelo a uma volta ao pensamento de Dilthey, tiveram como influência o livro do filósofo alemão Otto Liebman (1840-1912), Kant und die Epigonen, em 1865. Em sua obra, ao final de cada capítulo, ele sempre finalizava com a exortação: “[...] devemos voltar a Kant!” Obviamente, seu propósito era outro e sua análise muito mais rica do que esta – a qual é muito mais modesta –, mas de que nos valemos, em nosso comentário. Seja como for, que fique explícita a fonte de nossa ideia.