Referência do artigo comentado: ANDRADE, André Dias de. Da síntese de um disparate: Saussure repete Deleuze. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 38 – 56, 2022.
O método estrutural possui uma faceta filosófica muito difundida em nossa Filosofia acadêmica. As missões francesas trouxeram para cá, na constituição do curso de Filosofia da USP, o tal método. Victor Goldschmidt, com o Tempo Histórico e Tempo Lógico na Interpretação dos Sistemas Filosóficos, e Martial Gueroult, com Lógica, Arquitetônica e Estruturas Constitutivas dos Sistemas Filosóficos (Gueroult, 2007) são alguns dos exemplos que podemos encontrar desse tipo de orientação metodológica. Um primeiro motivo para que o texto de Andrade (2022) possa ser lido reside no fato de que precisamos estudar as variações estruturalistas e extrair delas possibilidades, ao invés de apenas repetir, muitas vezes intuitivamente, um método de leitura nos nossos trabalhos de curso, dissertações, teses e artigos.[2]
Gilles Deleuze tinha uma relação complexa com o estruturalismo, em sua fase inicial de produção filosófica, porque, ao mesmo tempo que escreve dois artigos elogiosos ao método – Em que podemos reconhecer o estruturalismo? e Espinosa e o método geral de Martial Gueroult –, o filósofo chegou a afirmar:
Sou de uma geração, uma das últimas gerações que foram mais ou menos assassinadas com a história da filosofia. A história da filosofia exerce em filosofia uma função repressora evidente, é o Édipo propriamente filosófico: "você não vai se atrever a falar em seu nome enquanto não tiver lido isto e aquilo, e aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo". Na minha geração muitos não escaparam disso, outros sim, inventando seus próprios métodos e novas regras, um novo tom. (DELEUZE, 1992, p. 14).
Será que o estruturalismo era o agente repressor que nos prende ao comentário de textos canônicos, ou seria ele a invenção de um método? Parece que seria uma invenção, haja vista que os artigos elogiosos são seguidos de duas obras que, de certo modo, são “estruturalistas”: Diferença e Repetição e Lógica do Sentido. E, nesse sentido, o trabalho de André de Andrade volta a ser digno de elogios, ao articular as obras de Saussure e de Deleuze. É um desafio enorme articular a “estrutura”, ou “sistema”, da gênese linguística de Saussure com a estrutura da ideia e a gênese ontológica da diferença, em Deleuze. Principalmente porque Deleuze não o cita, entre os “estruturalistas” (são citados R. Jacobson, Claude Lévi-Strauss, Jacques Lacan, Michel Foucault, Louis Althusser, Roland Barthes e o grupo literário da revistal Tel Quel, citados explicitamente Philippe Sollers e Jean-Pierre Faye), nos quais se pode reconhecer o estruturalismo, mas dá razão àqueles que o consideram a origem.
Mas o que justifica minha pergunta é que Deleuze, ao encontrar Felix Guattari, este um notório crítico ao estruturalismo lacaniano, muda o campo conceitual, faz sua filosofia variar para outro lugar, nesse caso, para as máquinas. Depois dessas obras iniciais, Deleuze não mais tratará de ideias e estruturas.
Eis o lugar em que insiro minha leitura do artigo de Andrade: sua procura de correlação entre Saussure e Deleuze são uma explicação consistente, para quem se interessa pela gênese da diferença, pela relação diferencial, pela estrutura da ideia como diferenç/ciação. Apesar de notar que o artigo não confere atenção à noção de “díspar”, definido como percursor sombrio da diferença de intensidade, ele não é trazido para a articulação, mesmo tendo “disparate” no título e um possível gancho para tal, sendo que o díspar é que põe em relação séries heterogêneas. O artigo procura então encontrar aproximações e diferenciações entre o Curso de linguística Geral de Saussure e a estrutura da ideia de Diferença e Repetição, em Deleuze, passando pela questão de como o estruturalismo seria uma ponte entre ambos os sistemas de pensamento.
Porém, a fase estruturalista é um marco conceitual que passará por uma variação ao longo da obra de Deleuze, e a isso não se faz referência no artigo.
As máquinas formam acoplamentos heterogêneos, o sentido deixa de ser apenas linguístico e somos apresentados aos assignificantes, as máquinas desejantes, aos corpos sem órgãos, ao rizoma, à criação conceitual. Anti-Édipo e Mil Platôs são os conceitos operando como máquinas, literalmente, sem metáforas. E isso tudo culminará em O que é a filosofia?, onde a “estrutura da ideia” cede lugar à complexa “criação filosófica de conceitos” como invenção de agenciamentos entre elementos heterogêneos, processo ligado à criação de uma plano de imanência, de personagens conceituais e de zonas de vizinhança intensiva entre tais elementos. Tudo animado por problemas que vêm de fora e que forçam a pensar.
Esse fora é um caos. Do caos, o filósofo traz variações. Gilles Deleuze e Félix Guattari afirmam um caos, e o pensamento precisa atravessá-lo. Caos definido como aquele no qual as determinações se criam e apagam em velocidades infinitas. O caos caotiza, desfaz toda consistência nessa velocidade infinita que dissipa tudo o que nele se esboça. O filósofo pode estabelecer uma relação de criação com esse caos, ou seja, pode criar com consistência, mas o mantendo como fonte de variações no seu pensamento.
Acoplamentos, assignificantes, caos, variações... o vocabulário muda com o maquínico, pois muda a imagem do pensamento. Não mais uma imagem estruturante do pensamento, mas uma imagem maquínica do pensamento.
Referências
ANDRADE, André Dias de. Da síntese de um disparate: Saussure repete Deleuze. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 38 – 56, 2022.
DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed 34, 1992.
GUEROULT, M. Tradução: Lógica, arquitetônica e estruturas constitutivas dos sistemas filosóficos. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 30, n. 1, p. 235 - 246, 2007.
Recebido: 12/7/2021
Aceito: 28/7/2021
[1] Professor na Universidade Federal do ABC (UFABC), Santo André, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1111-5052. E-mail: la.salvia@ufabc.edu.br.
[2] Observações importantes sobre o “método” de se fazer Filosofia, no Brasil, podem ser encontrados tanto em Oswaldo Porchat, Discurso aos estudantes sobre a pesquisa em Filosofia, quanto em Paulo Marguti, Sobre a nossa tradição exegética.