COMENTÁRIO A “O FASCISMO TRANSINDIVIDUAL”

 

Mariana de Toledo Barbosa[1]

 

Referência do artigo comentado: VEIGA, Ádamo, B. E da. O fascismo transindividual. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 08 – 32, 2022.

 

Ádamo B. E. da Veiga, em “O fascismo transindividual” (VEIGA, 2022), desdobra a íntima relação entre o que nomeia “filosofia do transindividual” e o fenômeno político do fascismo, compreendido sobretudo a partir de Deleuze e Guattari. Nessa articulação, percorre diversas facetas dos temas, explora conceitos do díptico “Capitalismo e esquizofrenia”, e, me parece, é bem-sucedido em seu principal objetivo de caracterização do fascismo como transindividual.

Como o próprio Veiga admite, esse aspecto do fascismo já estaria posto em Deleuze e Guattari, o que se deve, diz ele, à apropriação que os autores fazem da obra de Gilbert Simondon, autor da “primeira formulação do transindividual”, nos termos apresentados pelo artigo. Sem qualquer prejuízo à inquestionável relevância de Simondon na obra de Deleuze, com e sem Guattari, nem à originalidade de sua proposta, gostaria apenas de destacar, com um pouco mais devagar, outro grande personagem em cena, que é inclusive mencionado, mas não exatamente no que se refere ao transindividual: Espinosa, o qual inspira os filósofos franceses também com sua concepção pouco convencional de indivíduo.

É certo que alguns pensadores situados por Veiga na linhagem da “filosofia do transindividual” são espinosistas, a começar por Étienne Balibar, grande referência no tema, que justamente propõe uma relação entre Simondon e Espinosa. Mesmo assim, parece-me válido retornar ao próprio Espinosa, mais especificamente à sua “pequena física”, que se encontra no longo escólio da proposição XIII da parte II da Ética, para explicitar, mais uma vez, que o príncipe da imanência não apenas inaugura o problema fundamental da filosofia política, de acordo com os autores de O Anti-Édipo (DELEUZE; GUATTARI, 1972, p. 36 - 37) – a saber, por que os homens combatem por sua servidão como se se tratasse de sua salvação, fórmula que figura no prefácio do Tratado teológico-político –, como só é capaz de fazê-lo em função de um conceito bastante heterodoxo de indivíduo.

Isso se dá, pois a política e a ética em Espinosa dependem de uma ontologia em que o indivíduo, modo pensado inicialmente sob o ponto de vista da extensão, é, por definição, infinitamente composto e, mais do que isso, é um plano de composição que se expande até abarcar a Natureza inteira. Nesse sentido, cabe lembrar a afirmação de Deleuze, no curso de 17 de março de 1981, segundo a qual Espinosa foi o primeiro, na história da filosofia, a fundar e a desenvolver uma relação entre a ética e a ontologia, e que qualquer um que seguisse por esse caminho seria espinosista. Nada menos contraditório com a filosofia deleuziana, ou deleuzo-guattariana, do que prolongar tal afirmação, dizendo que Espinosa igualmente fundou e desenvolveu uma relação entre a ontologia e a política. E tampouco surpreendente notar o quanto os próprios Deleuze e Guattari são espinosistas a esse respeito, e seu conceito de fascismo não escapa disso.

Na “pequena física” de Espinosa, o indivíduo, compreendido como indivíduo corporal, é justamente caracterizado como uma relação ou proporção de movimento e repouso, rapidez e lentidão entre corpos simples (ou uma relação característica que constitui o eixo cinético do corpo, como costuma formular Deleuze) e como afetando e sendo afetado por outras relações ou proporções de movimento e repouso, de rapidez e lentidão (ou uma capacidade afetiva, um poder de afetar e ser afetado, que é o eixo dinâmico do corpo, segundo Deleuze). Marilena Chaui (2016, p. 168 - 169) destaca:

União de indivíduos, [o indivíduo corporal] é um sistema dinâmico complexo de movimentos internos e externos que pressupõe e afirma a intercorporeidade porque ele é, enquanto um ser singular, uma união interna de corpos e porque se realiza na comunicação e coexistência com outros corpos externos, conservando-se ao mudar e perecendo quando a mudança atinge sua forma, isto é, sua proporção interna.

 

Não à toa, nesse ponto, Chaui cita o celebrado trabalho de Balibar. Em suma, a forma individual é um ritmo, inseparável de um dinamismo afetivo no encontro com outras formas individuais.

Toda a ontologia maquínica apresentada no primeiro capítulo de O Anti-Édipo é fortemente marcada pela pequena física espinosista, a máquina desejante entrando no lugar do indivíduo corporal e respondendo, em seu dinamismo, pela gênese do real. Evidentemente, para que a ontologia construtivista deleuzo-guattariana comece pelas máquinas desejantes, as quais, conectando-se, produzem o real como plano de composição da Natureza, já está pressuposta a torção que Deleuze impõe à ontologia de Espinosa, insinuada desde Diferença e repetição e sistematizada em Espinosa: filosofia prática, em que a substância passa a se dizer dos modos, ou seja, em que a identidade e a unidade da substância são efeitos da diferença e da multiplicidade dos modos (BARBOSA, 2020).

Tal concepção de um desejo maquínico que é princípio imanente da gênese do real permite compreender todos os investimentos do desejo, inclusive sua repressão, isto é, o próprio fascismo. Reich é convocado, nesse momento da discussão, pois relança o problema fundamental da filosofia política em seus próprios termos: por que as massas desejaram o fascismo? A grande questão de Psicologia das massas do fascismo, uma vez inserida por Deleuze e Guattari em um plano imanente do desejo que não admite qualquer realidade externa, transcendente, não pode mais ser respondida, aludindo-se a uma ação sobre o desejo que lhe seja exterior ou superior, ou a uma realidade sociopolítica paralela à realidade libidinal. Não há fora do desejo. Há uma única economia, a um só tempo política e libidinal. Há uma só realidade imanente e desejante, embora haja dois regimes de funcionamento dessa realidade, produção desejante e produção social, no que os autores chamam de univocidade do inconsciente. O fascismo se inscreve nessa realidade única, entre esses dois funcionamentos: é um investimento de desejo no socius, em que o socius se esforça para reprimir o desejo. O problema fundamental da filosofia política é reformulado pelos autores de O anti-Édipo: como o desejo deseja sua própria repressão?

Concluindo meu pequeno adendo ao interessante artigo de Veiga (2022): o fascismo é transindividual, pois só pode ser pensado a partir de uma concepção espinosista de indivíduo, a qual é a base da ontologia deleuzo-guattariana do desejo. Assim, Espinosa se mostra indispensável aos autores de O Anti-Édipo, tanto para compreender a concepção do transindividual, aí presente, quanto para esclarecer a recusa da ideologia em benefício do desejo, na explicação que oferecem para a adesão das massas ao fascismo, sendo por isso considerado o primeiro a pôr o problema fundamental da filosofia política. E essas duas questões estão intimamente articuladas, pois, tanto em Espinosa quanto em Deleuze e Guattari, a política é pensada com a ontologia. Em compensação, para Espinosa, é preciso partir da ontologia para se pensar a política, começar pela substância para se chegar aos modos e à relação entre eles, ao passo que, para Deleuze e Guattari, em concordância com seu projeto de subversão de qualquer fundamento, de qualquer identidade ou unidade primeiras, inicia-se com os modos, que se compõem traçando o plano de imanência do real, ou seja, a política é a condição prática da ontologia ou, em suas palavras, “[...] antes do ser, há a política”. (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 249).

 

Referências

BARBOSA, M. T. A ontologia espinosista de Deleuze: univocidade, imanência, diferença. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 32, n. 56, p. 463 - 481, maio/ago. 2020.

CHAUI, M. A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa, volume II: Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

DELEUZE, G. Sur Spinoza: cours Vincennes-St Denis, cours du 17/03/1981. [1981]. Webdeleuze. Disponível em: https://www.webdeleuze.com/textes/43. Acesso em: 05 jun. 2021.

DELEUZE, G. Différence et repétition. Paris: PUF, [1968a] 2005.

DELEUZE, G. Spinoza et le problème de l’expression. Paris: PUF, [1968b] 2005.

DELEUZE, G. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Minuit, [1981] 2006.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille Plateaux: capitalisme et schizophrénie II. Paris: Minuit, [1980] 2006.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. L’Anti-OEdipe: capitalisme et schizophrénie I. Paris: Minuit, [1972] 2008.

ESPINOSA, B. Traité théologico-politique. Présentation, traduction et notes par Charles Appuhn. Paris: Garnier-Frères, [1670] 1965.

ESPINOSA, B. Ética. Tradução de Grupo de Estudos Espinosanos. São Paulo: EdUSP, [1677] 2015.

REICH, W. Psicologia das massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, [1933] 1988.

VEIGA, Ádamo, B. E da. O fascismo transindividual. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 1, p. 08 – 32, 2022.

ZOURABICHVILI, F. O vocabulário de Gilles Deleuze. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Sinergia; Ediouro, 2009.

 

Recebido: 28/10/2021

Aceito: 05/112021



[1] Professora do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ – Brasil. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Deleuze: filosofia prática". orcid: https://orcid.org/0000-0002-1589-0021. E-mail: mari_tb@hotmail.com.