Apresentação

Marcos Antonio Alves[1]

Com alegria, apresentamos o primeiro número do ano de 2022 da Trans/Form/Ação. Constituído de nove artigos, quatro são escritos em português, três em espanhol e dois em inglês, além de uma tradução. Os autores brasileiros são oriundos dos estados do Amazonas, Ceará, Goiás, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo. Do exterior, contamos com contribuições do Chile, Espanha e Venezuela.

Este fascículo traz ainda sete comentários aos artigos, uma modalidade de textos já com uma história na revista, com bastante aceitação na comunidade acadêmica. Trata-se de uma crítica construtiva, não mais da qualidade do artigo, uma vez que o processo avaliativo já foi ultrapassado. O comentador pode expor possíveis discordâncias de ideias, comparação de conceitos entre autores, perspectivas ou sistemas filosóficos, diferenças hermenêuticas, metodológicas, epistemológicas. É possível também construir uma ampliação, explicitação ou mesmo a inserção de algum conceito importante para a compreensão da linha argumentativa do artigo comentado, notas explicativas relevantes ou a posição do comentador a respeito da tese exposta. Nesse sentido, procuramos promover um diálogo entre ambos os textos, almejando o aprimoramento e a ampliação do conhecimento.

Conforme lembra Alves (2021, p. 13), “[o]s comentários também são uma forma de valorizar formalmente o trabalho dos avaliadores do periódico. Oferece-lhes oportunidade de publicação de material original e inédito, o qual pode, inclusive, ter tido origem a partir da análise do manuscrito avaliado.” Ao abrir a identificação dos avaliadores dos textos aprovados para publicação, tal modalidade de textos vai ao encontro de boas práticas do programa Ciência Aberta. Ademais, o comprometimento com a avaliação acaba sendo ainda maior, já que, de uma forma ou de outra, os avaliadores também passam a assinar, indiretamente, a publicação dos artigos.

Este fascículo abre com a publicação de “O fascismo transindividual”, escrito por Ádamo B. E. da Veiga e comentado por Mariana de Toledo Barbosa. Conforme o autor, o artigo versa sobre o problema político-filosófico do fascismo. O conceito tem mostrado crescente relevância, no cenário público nacional e mundial, figurando cada vez mais no debate leigo e especializado. O termo fascismo, hoje, é amplamente empregado, tanto na qualificação de movimentos políticos de diversos espectros quanto na grande mídia e revistas científicas. Barbosa busca utilizar o conceito de transindividual na compreensão do fascismo, a partir da teorização, ela mesma transindividual, do fenômeno, realizada por Deleuze e Guattari, através da sua compreensão do desejo. O transindividual caracteriza um movimento filosófico de dupla rejeição, em que se nega, simultaneamente, uma abordagem holista e individualista do campo social, procurando pensar o indivíduo e coletivo como coextensivos a um processo genético que produz a ambos, sem primado de um sobre o outro. Tal conceito vem se revelando uma ferramenta analítica de crescente uso e repercussão, no debate acadêmico contemporâneo. Nesse sentido, a utilização do transindividual, enquanto matriz teórica, na compreensão do fenômeno fascista ainda não foi feita de forma esquemática e, desse modo, recorrendo à compreensão transindividual do fascismo de Deleuze e Guattari, o autor pretende contribuir para o alargamento desse horizonte teórico.

O segundo artigo, intitulado “Da síntese de um disparate: Saussure repete Deleuze”, é de autoria de André Dias de Andrade e comentado por André Luis La Salvia. O autor explicita ter reconstruído a semiologia geral elaborada nos escritos inacabados e indiretos de Saussure, recolocando sua noção de sentido próxima à de Deleuze e explicando-a por meio deste. Ademais, defende que toda teoria baseada na noção de “diferença” precisa dar conta do processo de individuação e, junto disso, através da descrição de dois níveis de diferenciação. Ele mostra que isto é realizado por ambos os autores, para além e mesmo junto de suas divergências. Assim, o artigo recoloca a teoria do valor de Saussure na aurora de uma filosofia da diferença, evidenciando que este inaugura e mesmo “repete” as teses que Deleuze explicitamente defende, nos anos 1960.

Em seguida, apresentamos o artigo de Caio Souto, “A ruptura da epistemologia histórica francesa com o neokantismo: Bachelard e Canguilhem”, comentado por Lucas Alessandro Duarte Amaral. Segundo Souto, assim como o neokantismo, a fenomenologia e a filosofia analítica, também a epistemologia histórica francesa teve sua emergência no contexto da crise das ciências, na virada para o século XX. Por seus desdobramentos particulares, as obras de Gaston Bachelard e de Georges Canguilhem romperam, cada uma a seu modo, respectivamente com o neokantismo representado por Brunschvicg (no caso de Bachelard) e por Alain (no caso de Canguilhem). O autor propõe retirar algumas consequências epistemológicas, éticas e políticas dessas duas rupturas, analisando brevemente as particularidades de cada um dos dois casos.

O quarto artigo é escrito em inglês, por Daniel Pucciarelli, e comentado por Julian Alexander Brzozowski. Com o título de “Meaning and fate of critique in the ontological turn”, o objetivo do texto é escrutinar o sentido geral e o destino da categoria de crítica, no interior do pensamento ontológico contemporâneo, particularmente no quadro da assim chamada “virada ontológica” ou “giro especulativo”. Considerando que essas vertentes de pensamento pretendem reabilitar a ontologia em um ambiente filosófico não dogmático, o autor pergunta: em que se converte a crítica, em seu interior? Para tal, o artigo aborda primeiramente a questão de saber o que poderia dar consistência ao conceito de uma tal virada ontológica ora em curso, para então focalizar a relação tensa que vigora, desde Kant, entre crítica e ontologia. Por fim, investiga, a partir sobretudo da obra de Quentin Meillassoux, a possibilidade de se fundar uma ontologia a qual se queira simultaneamente não dogmática e imune à neutralização da ontologia efetivada pela crítica.

“La interpretación de Tomás de Aquino sobre la ‘visión escotópica’ en Aristóteles (De Anima ii 7)”, aparece em seguida, escrita em espanhol por Desiderio Parrilla Martínez. O autor lembra que a “visão da escuridão” desenvolvida por Aristóteles, em De Anima II 7, é a primeira formulação sistemática desse fenômeno-chave para as neurociências atuais. Na teoria aristotélica, surge uma aparente contradição entre o “compromisso ontológico” da escuridão como privação e o “realismo gnosiológico” que considera essa mesma escuridão visível. Tomás de Aquino, em sua Sententia libri De Anima, propõe uma interpretação que estabelece a relação analógica entre luz e escuridão, por meio da cor. Essa estratégia permite dissolver qualquer contradição e estabelecer uma percepção visual da escuridão em um sentido realista.

Também em espanhol, o sexto artigo é “Cinismo e indiferenciación: la huella de Glucksmann en el coraje de la verdad de Foucault”, escrito por Juan Horacio de Freitas e comentado por Helrison Costa e Miguel Ângelo Oliveira do Carmo. Freitas lembra que, em Le courage de la vérité, pouco antes da análise da filosofia cínica, faz-se referência a uma série de textos que abordaram, em certa medida, a questão da influência do cinismo helenístico para além das margens da Antiguidade. O único dos textos mencionados que não é alemão e cujo autor é alguém que pertence à cena intelectual de Foucault é Cynisme et passion, de André Glucksmann, obra que tem sido ignorada pelas diferentes investigações sobre a filosofia cínica e pelos estudos sobre o “retorno” foucaultiano aos gregos. Freitas busca, além de destacar a originalidade e a relevância da concepção glucksmanniana de cinismo, também mostrar os elementos nos quais se descobre um paralelismo entre essa concepção e o que Foucault sustentou, no último de seus seminários ministrados no Collège.

O sétimo artigo é intitulado “Bergson y el acontecimiento: el caso de la democracia”, escrito por Miguel Ruiz Stull e comentado por Maria Adriana Camargo Cappello. O autor visa a abordar aspectos essenciais do pensamento de Henri Bergson, na dimensão das práticas políticas. Especificamente, concentra-se em uma análise do significado de democracia em Les deux sources de la morale et de la religion, nos breves, mas decisivos trechos do texto em que ela é abordada. Sob esse objetivo, frisa Stull, será possível estender uma discussão aprofundada, de natureza ontológica, em torno da performance de uma noção de Acontecimento que pretende servir de reflexão de base em torno do domínio de um conceito do político atribuível a esse filósofo francês.

O penúltimo artigo é “Linguagem e denúncia da interioridade em Nietzsche e nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein”, escrito por Saulo Krieger e comentado por Rogerio Saucedo Corrêa e Sebastião Alonso Júnior. O autor traz à luz a convergência entre dois modos divergentes de superação do paradigma por excelência da filosofia moderna, qual seja, o da interioridade do sujeito, como pedra de toque epistemológica. Mais precisamente, Krieger pretende evidenciar o rito de passagem de um filosofar moderno para o contemporâneo, segundo a vertente que se convencionou chamar de “filosofia continental”, a aqui ser visitada com Nietzsche – equacionada a uma hermenêutica –, e a “filosofia analítica” ou “anglo-saxônica”, a aqui ser visitada com o Wittgenstein dos §§ 143 - 178 das Investigações filosóficas –, equacionada a uma filosofia da linguagem. Em um e outro caso, cada qual à sua maneira, vai se pôr em questão o que até então se tinha como consciência pensante, transparente a si mesma e com acesso a seus próprios fundamentos e conteúdos (Nietzsche), ou, então, uma interioridade, a qual, por um viés o mais das vezes mentalista, associa significado a entidades ou processos mentais (Wittgenstein). Dessa forma, assinala o autor, sujeito e pensamento, em vez de tomados por núcleos duros, passam a ser desvelados como funções das condições que os suscitam – de sobrevivência, no caso de Nietzsche, de condições práticas, ou seja, do uso, no caso de Wittgenstein.

Por fim, o nono artigo é escrito em inglês e intitulado “Postcolonial movement and philosophies of diference: a minimal map”, de autoria de Thiago Mota. O autor discute a relação entre as filosofias da diferença e o chamado movimento de pensamento pós-colonial. Suas fontes principais são, do lado dos estudos pós-coloniais, Frantz Fanon, Edward Said e Homi Bhabha, e, do lado das filosofias da diferença, Jean-François Lyotard, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mota aponta que os autores do movimento pós-colonial são, em grande medida, herdeiros de um pensamento já praticado pelos filósofos da diferença. No entanto, os autores pós-coloniais também reforçam o aparato conceitual das filosofias da diferença com contribuições originais e, sobretudo, uma consideração atenta do problema da diferença colonial, a qual permanece uma grande lacuna para o pensamento crítico. Tendo isso em vista, ressalta o autor, sem pretender abordar, de maneira aprofundada, a singularidade e a complexidade das ideias de cada um dos autores mencionados, traça-se um mapa mínimo dos pontos onde as filosofias da diferença e o pensamento pós-colonial se interceptam. Esse mapa também mostra pontos onde o movimento pós-colonial complementa a perspectiva das filosofias da diferença, abordando justamente um de seus pontos cegos: a questão colonial.

Fechando este primeiro fascículo do volume 45 da revista, publicamos a tradução de “Sistema do carecimento, economia estatal [System des Bedürfnisses. Staatsökonomie] nas lições sobre direito natural e ciência do estado em Heidelberg nos anos 1817 - 18 (conforme o manuscrito de P. Wannenmann - §§ 93 - 108)”, escrito por G. W. F. Hegel. A apresentação ao texto e a tradução são feitos por Thiago Ferreira Lion.

 

Referência

ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 9 - 20, 2021.

Recebido: 10/12/2021

Aceito: 21/12/2021



[1] Docente no Departamento de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Marília, SP – Brasil e Líder do Grupo de Estudos em Filosofia da Informação, da Mente e Epistemologia – GEFIME (CNPq/UNESP). Editor responsável da Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da UNESP. Pesquisador CNPq/Pq-2. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5704-5328. E-mail: marcos.a.alves@unesp.br.