REPRESENTAÇÃO, SOBERANIA E GOVERNO EM THOMAS HOBBES

 

Francisco Luciano Teixeira Filho[1]

 

Resumo: O texto trata do conceito de representação em sua relação com o conceito de soberania, em Thomas Hobbes (1588-1679). A obra estudada é o Leviatã, de 1651. O estudo apresenta que a soberania se funda através do ato jurídico originário, o qual estabelece uma pessoa artificial para representar a todos. Essa coisa artificial é o Estado. A sociedade política, porém, é diferente do seu governo, embora sejam funcionalmente a mesma coisa.

 

Palavras-chave: Representação. Soberania. Governo. Hobbes.

 

INTRODUÇÃO

John Stuart Mill (1806-1873) discorre sobre o clássico problema da melhor forma de governo, em suas Considerations on Representative Government (1861), optando pela democracia representativa (MILL, 2001, 2018). Também Paine (1737-1809), um dos pais da democracia americana, afirma, como principal distinção das formas de governo novas e das formas velhas, o fato de os novos modelos políticos serem totalmente representativos, daí superiores aos antigos (PAINE, 2005), na esteira de Constant (2007, p. 595s). Esses autores do chamado segundo liberalismo (estendido), que precisam lidar com os resultados civilizacionais da Revolução Francesa (ESTEVES, 2019, p.759ss), partem desse paradigma democrático-representativo, numa perspectiva quase de uma “religiosidade-secular” (MANENT, 2018, p. 149ss).

É fato que, de meados do século XIX até os dias atuais, se consolidou a concepção de democracia representativa como ganho alcançado e intransigível da civilização, ao menos nos países ocidentais. Com efeito, ninguém está muito disposto a renunciar à democracia, tal como chegou até o século XXI, exceto em discursos absolutamente deslocados e estranhos, embora não tão completamente destoantes ao crivo de uma camada significativa da opinião pública.

Todavia, uma reflexão filosófica sobre o termo democracia representativa leva a um arrepio. Não propriamente quanto ao conceito de democracia, que poderia ser interpretado como a experiência do πολιτού (político, literalmente, ou, numa tradução latina, república), na administração da cidade, ao modo que Heródoto e Tucídides aludem, ou como Platão e Aristóteles a pensaram, de forma não tão entusiasmada.[2] O incômodo vem com a qualidade que se dá a essa democracia, ou seja, o fato de ser representativa. Esse termo, que aparenta deslocamento dentro da clássica tradição grega, é o exclusivo objeto deste texto.

Pela circunstância de se ter testemunhas textuais bem mais antigas do termo democracia do que de democracia representativa, é notório, por isso, que a ideia de representação, no sentido da expressão “democracia representativa”, aparece bem depois do objeto qualificado. Portanto, o elemento a ser rastreado é a representação, no sentido político que recebe no termo acima. Nessa busca, em uma rápida olhada no dicionário de Raphael Bluteau (1728), o vocábulo representação tinha, ainda, maior relevância como terminologia teatral ou, até mesmo, pictórica e, apenas de forma muito derivada e secundária, aparecia no sentido do termo “representação jurídica”. Em inglês, segundo Pitkin (2006, p. 25s), um dos primeiros registros do conceito de representação aparece somente no quartil final do século XVI, com Thomas Smith (1906, p. XXXVI), na obra De Republica Anglorum, onde se lê algo como “[...] todo inglês deverá estar ‘comprometido’ - isto é, compreendido - a estar presente no parlamento, por ele mesmo ou seu representante.”[3]

É notável, no fragmento acima, que a ideia de representação apresentada por Smith é, ainda, alternativa à agência política direta. Essa cena mudará em meados do século seguinte, com a publicação da magnum opus de Thomas Hobbes (PITKIN, 1985, 2006). O Leviatã “[...] faz a primeira discussão sistemática e importante sobre representação”, que “desempenha um papel central na principal obra política de Hobbes.” (PITKIN, 1985, p. 15). Pitkin chega, então, à conclusão de que o tipo de representação defendida por Hobbes é “formalista”, a qual se define como uma representação “[...] que tem lugar no princípio, antes de que comece a verdadeira representação.” (PITKIN, 1985, p. 42). Nessa situação, resguardado o limite do que foi autorizado, “[...] a representação é uma espécie de 'caixa preta' conformada pela outorga inicial de autoridade, mediante a qual o representante pode fazer o que lhe agrada.” (PITKIN, 1985, p. 42).

Encontra-se, nesse momento, a inflexão que se buscava. Se a palavra democracia parece óbvia, depois de Hobbes, deve-se compreender o que é democracia representativa. Não se busca, aqui, uma definição completa da terminologia, mas apenas a qualificadora da democracia. Isso, evidentemente, porque não é Hobbes um autor da democracia representativa, como Mill, Constant ou Paine, mas, sem dúvida, é ele que cunha o conceito de representação, na sua forma genérica, o qual será, mais tarde, paradigma para os autores da democracia moderna, embora reformulado. Apesar de Hobbes registrar a possibilidade do sistema de governo democrático, sua concepção de representação ainda não se compatibiliza com as exigências liberais surgidas no pós-Independência dos Estados Unidos da América e nos anos seguintes aos da Revolução Francesa. Mesmo assim, vale rever Hobbes, pois é seu empreendimento teórico sobre o Estado Moderno que garante a persistência da prática representativa como a única alternativa para a atividade política hodierna.

Nesse sentido, o objetivo do presente texto é entender o conceito de representação dentro do ato jurídico originário do pacto social, no Leviatã (1651), de Thomas Hobbes (1588-1679). Esse objetivo, porém, parece ser inalcançável, se se desconsiderar duas questões: quem representa? Quem é representado? Essas perguntas aludem à fórmula tradicional da representação: X representa Y.

Uma resposta rápida é inequívoca, para quem já teve a oportunidade de ler o Leviatã: o soberano representa a Multidão, daí, então, algo que pode ser chamado de Povo, Nação ou Estado. Mas outras questões aparecem: quem é esse soberano? Que tipo de entidade é essa? A resposta também é evidente: o soberano fala e age na pessoa do soberano, ou seja, do indivíduo ou assembleia soberana. O leitor atento, todavia, perguntará: não aparece, aí, uma tautologia? Por que a segunda resposta separa “o soberano” da “pessoa do soberano”? Nisso consiste o ponto nodal da questão da representação, em Hobbes.

A seguir, o leitor encontra o desenvolvimento dessa questão, dividida em duas partes: na primeira, tratar-se-á do conceito de representação, em Thomas Hobbes. Em seguida, buscar-se-á o problema do Estado e do Governo, em Hobbes, procurando, ao mesmo tempo, delimitar um e outro e entender como a representação é abordada nos dois casos.

 

1 REPRESENTAÇÃO EM THOMAS HOBBES

            Qualquer leitor minimamente atento de Hobbes compreende que o autor concebe seu empreendimento teórico como uma primeira ciência civil, em distinção (mas não em oposição) à ciência natural (SKINNER, 2002, p. 73). Na verdade, o método das ciências naturais deveria ser empregado na ciência civil, contudo, os objetos de que tratam as duas ciências são distintos, supôs Hobbes.

            Limongi (2009, p. 35ss) localiza essa passagem da área da Filosofia, que é ciência da natureza, para aquela área filosófica, discernível como ciência civil, ainda naquele locus antigo da ciência das paixões. Na verdade, a autora é muito mais arguta: para “[...] tal teoria é reservado um dos lugares mais nobres do sistema: o dos princípios da ciência política.” (LIMONGI, 2009, p. 35).

            Ora, uma ciência é a compreensão dos corpos e dos seus movimentos. Nesse sentido, a ciência civil de Hobbes deve ser, como tal, uma ciência desses mesmos elementos. Mas, enquanto Galileu, no seu tempo, já havia estabelecido os princípios elementares dos movimentos dos corpos físicos, a agência que Hobbes celebra é exatamente a de demonstrar as leis dos movimentos dos corpos animados e racionais, como causa fundamental da ciência da política.

O corpo específico do qual a ciência civil deve dar conta é diferente daqueles observados pelos outros ramos das ciências, que são corpos naturais, animados ou inanimados. Por essa razão, segundo Hobbes (2009, p. 143), “[...] da física deve-se passar à moral”, ou seja, aos corpos específicos, dotados de paixões, causas dos seus movimentos.

A teia das relações dos seres apaixonados, em Hobbes, é bastante conhecida: a guerra de todos contra todos é o resultado imediato dos movimentos dos homens movidos pelo império da autopreservação, no estado de natureza. Mas também é óbvio, para Hobbes, que as paixões, nome dado ao movimento específico do homem, são mediadas pela imaginação, cálculos de interesse, acordos, contratos, pactos etc. É dessa compreensão que se pode partir do objeto fundamental de Hobbes, em sua ciência das paixões, para a sua ciência civil, no sentido pleno.

São os movimentos de desejo ou de aversão que levam o homem à guerra, porém, também à pactuação da paz. É do ímpeto egoísta que o homem cria entes artificiais, como o Estado, para o resguardar daquilo que ele mais teme: a morte. Pelo que foi dito, os corpos da ciência civil são, para Hobbes (2011, p.45), corpos artificiais ou convencionais. Todavia, o fundamento desses entes, ademais, estranhos à natureza, é a própria natureza apaixonado do homem – seu movimento.

            Os corpos artificiais, dos quais a ciência civil de Hobbes quer dar conta, são aqueles corpos formados a partir de um consenso ao redor de um interesse de dois ou mais homens (ou uma multidão). Pode-se dizer que se funda um corpo artificial, por exemplo, quando um indivíduo qualquer constitui e autoriza, em comum acordo, um advogado; ou quando uma multidão de indivíduos, em consenso, pactua um soberano para a governar.

            A tese básica de Hobbes é que a soberania se funda num estado de representação de uma multidão de pessoas por uma única pessoa (ou uma assembleia de pessoas), que não faz parte daquela multidão instituinte, mas que dela tem a autoridade. Em outras palavras, soberano é aquele que tem autorização de representar a totalidade dos pactuantes de um dado Estado (Common-Wealth é empregado como sinônimo de State, Leviathan e Civitas, em Hobbes).

            Ora, para compreender o que Hobbes quer dizer com isso, é preciso entender o que ele concebe por pessoa. Para isso, o Capítulo XVI de o Leviatã é central: “[...] pessoa é aquele cujas palavras ou ações são consideradas ou como suas próprias ou como representantes das palavras e ações de outro homem.” (HOBBES, 2011, p. 241). Em outros termos, pessoa é aquele ente ao qual se pode predicar o atributo de atuar conforme seu próprio discernimento, seja em seu próprio interesse, seja no de terceiros.

            O que se vê apresentar, diante dos olhos, é a inaugural teoria da representação, cujas raízes são profundas, entretanto, cujo primeiro fruto se verifica em Hobbes (PITKIN, 1985, 2006; SKINNER, 1995, 1999, 2007), em língua inglesa. Assim, pessoa, pelo que se pode notar, é aquele que age por si mesmo, sendo aquilo que Hobbes chamou de pessoa natural, ou que age em representação de um outro, sendo designado como pessoa fictícia ou artificial (HOBBES, 2011, p. 241). A diferença essencial entre os dois tipos de pessoas é que, no primeiro caso, aquele que é ator é, também, autor de suas ações. No segundo caso, com as pessoas artificiais, pode-se dizer simplesmente que o representante é ator, mas não o autor da ação.

            Trata-se, pelo que se pode perceber, de um ato jurídico de autorização. A pessoa natural, a qual institui um representante, transfere para outra pessoa, de forma limitada ou ilimitada, a autoridade de agir em seu nome, tornando o representante seu agente. Na verdade, a autoria permanece na posse daquele que expressou sua vontade no ato jurídico de transferência de poderes, mas a ação mudou de pessoa. Não é errado afirmar, pelo que foi dito, que o ato de instituir um representante é o ato de conceder autoridade a alguém, a fim de fazer ou dizer algo em nome de um autor. Fica definido, portanto, que um ato de uma pessoa natural é o que estabelece uma pessoa artificial, que passa a ter autoridade de ação, no limite expresso no ato inaugural.

Correndo-se o risco de ser deveras repetitivo, vale enfatizar: isso que está descrito é um ato jurídico em que uma dada pessoa natural estabelece uma pessoa artificial, que passa, do ato jurídico inaugural em diante, a representar os atos da pessoa natural representada. Um exemplo banal, talvez já demasiadamente desnecessário: se um dado indivíduo estabelece juridicamente um representante, a fim de que este compre dois quilos de arroz no mercado, aquele que representa é uma pessoa artificial que agirá, conforme determinação limitada, em uma troca comercial cuja autoria permanece na posse daquele indivíduo que instituiu a representação jurídica.

            Ora, o exemplo acima é de uma representação limitada, que instaura os contornos daquilo que o ator pode fazer em nome do autor. Todavia, é possível pensar uma enormidade de variações e limites para a ação do representante. Tudo depende, portanto, do grau de autorização de ação dado pelo ato jurídico (PITKIN, 1985, p. 18ss, 2006, p. 28ss). A questão que se levanta, porém, é que algo é sempre pressuposto, em cada pacto ou contrato de representação: quem autoriza o faz de boa-fé e não descumprirá o acordo firmado com o autorizado e, claro, que o autorizado não exercerá os poderes que lhe foram cedidos para o bem próprio, mas para servir ao interesse do autor da ação.

O dado concreto, ao qual o leitor já atentou é: o pactuante está em obrigação de cumprir cada pacto firmado e contrato assinado, em uma sociedade civil ordenada e com garantias civis e penais para a quebra dos acordos. Se é assim, das duas, uma: ou o civilismo é uma dádiva da natureza humana e, já na infância, o homem é um cidadão pela causa da própria natureza; ou, em algum dado momento, um ato jurídico, anterior a qualquer ato jurídico, deu garantias aos atos derivados. Evidentemente, Hobbes, como um contratualista, apoia-se na segunda narrativa.

Pense-se em um estado de guerra de todos contra todos, condição natural do homem, segundo Hobbes. Imagine-se, por conseguinte, que a razão calculativa desse homem verifica que suas únicas saídas para o terror do parabelo fossem: pôr a vida em risco, sem qualquer garantia de vantagens duradouras, ou renunciar parcialmente a seus direitos de natureza, constituindo uma sociedade de contratos, cujo poder e monopólio da violência seriam exercidos por uma entidade que governaria a todos e a todos protegeria. O cálculo, para o contratualista, não é difícil: melhor viver e gozar dos produtos do trabalho, do que morrer sem qualquer garantia. Está dada a força movente para o estabelecimento do Estado.

A fundação do Estado é o que se chama de ato jurídico originário. Sua pactuação não tem jurisprudência ou garantias anteriores, mas cria, na sua promulgação, todas as garantias e condições, não só para o cumprimento do pacto social, mas de qualquer pacto ou contrato que virão a ser formalizados. O pacto social cria uma representação soberana, como ator e vontade de todos os autores, ou seja, dos membros pactuantes do Estado, no ato jurídico originário. Dito de forma diferente, a constituição de um Estado é um ato jurídico originário (porque pressuposto em todo ato jurídico) no qual uma multidão pactua entre si a transferência de toda a autoridade soberana a um homem ou assembleia de homens, que se torna(m) representante(s) dessa multidão.

Deve-se perguntar, todavia, por qual razão um indivíduo ou uma multidão de indivíduos renunciaria à parte ou à totalidade de seus poderes, em prol de um terceiro. Sobre os motivos ou finalidades do homem, quando institui tal representação, Hobbes (2011, p. 251) afirma:

[...] a causa final, o objetivo e o desígnio dos homens (que naturalmente amam a liberdade e o domínio sobre os outros) ao introduzirem esta restrição a si mesmos (pelo qual os vemos viver em Estados) é a previsão da sua própria conservação, bem como a de uma vida mais tranquila.

 

Resta evidente que o ato jurídico originário é algo que deriva de uma decisão livre, capaz de dar conta de um problema concreto de insegurança, cujo estado de natureza precário não tem condição de resolver. A ausência de condições jurídicas e a violência difusa que o estado de guerra impulsiona movimentam o homem, amante de si mesmo, à lei da razão que lhe exige a paz, logo, movimentam-no ao ato jurídico originário (pacto social). No entanto, como “[...] os pactos, sem a espada, não passam de palavras, destituídos de qualquer força capaz de dar segurança ao homem” (HOBBES, 2011, p. 251), precisa-se entender quem é o eleito, no ato jurídico originário, para que se possa criar as condições de “terror” para que o pacto seja funcional e duradouro.

Pode-se ler, na segunda parte do Leviatã, que o Estado é o poder comum que reduz a pluralidade das vontades a uma só vontade. Isso equivale, segundo Hobbes (2011, p. 255), a “[...] nomear um homem ou uma assembleia para representar-lhes a pessoa. Além disso, cada qual deverá dar sua autorização e reconhecer-se autor de qualquer ato que provenha de seu representante.” É notório, portanto, quem elege, por que elege e quem é eleito, com a incumbência de afiançar a o pacto social.

Segundo Hobbes, o ato jurídico originário é a ação na qual cada indivíduo renuncia a seu direito sobre todas as coisas e, por conseguinte, seu potencial de poder, virtualmente ilimitado, em nome de um representante que o garanta a vida e o usufruto de sua propriedade privada, possível somente diante dessa renúncia. Esse representante, que age em nome de todos, é inimputável[4] por seus atos perante cada um dos representados, por suas ações e palavras, uma vez que cada indivíduo, a quem ele representa, é autor de todos os seus atos.

Para Hobbes (2011, p. 205), esse pacto é uma cessão de direitos, tendo em vista um bem futuro. No caso, o direito renunciado é aquele, de ordem natural, sobre todas as coisas; o ganho aferido é a proteção civil da vida e da propriedade, fruto do trabalho. Nesse diapasão, a renúncia ao direito natural sobre todas as coisas e, portanto, à liberdade virtualmente ilimitado do estado de natureza, é retribuída por uma estável e segura proteção contra o mal absoluto da morte e a garantia dos atos jurídicos, fundamentais para os negócios na sociedade civil. É, mais que isso, uma garantia da propriedade privada.

Esse pacto social originário, cuja repercussão é de longuíssimo prazo, não figura em papel ou palavras proferidas, contudo, é percebido somente por sua repercussão no próprio comportamento social dos pactuantes. A terminologia hobbesiana chama esse tipo de ato jurídico de “termos por inferência” (HOBBES, 2011, p. 207), pois deles se têm como aparentes somente as consequências das palavras, do silêncio, das ações ou da inação. A legalidade do pacto social, por consequência, é um direito inferido, não sendo possível romper com ele, sem que se cometa um crime contra o soberano. O fato de se estar em paz, sob a autoridade soberana de um Estado, já obriga a todos os homens ao contrato, cujo signo mínimo é o próprio status.

Três coisas ainda precisam ser ditas sobre a constituição dessa representação. A primeira delas é que o ato jurídico originário, como se pode notar, é pressuposto de todos os atos jurídicos posteriores, pois, no estado pré-civil, não se pode falar de propriedade privada, pactos ou mesmo de justiça, uma vez que cada um desses está sempre em risco, diante do estado de guerra. Nesse sentido, atos jurídicos posteriores são o caso, porque há um ato originário que estabelece a possibilidade da justiça, ou seja, “[...] a constante vontade de dar a cada um o que é seu.” (HOBBES, 2011, p. 219).

O segundo elemento restante dessa análise é que, para Hobbes, o pacto não é fixado entre os indivíduos e o soberano, mas apenas entre os indivíduos, ou melhor, entre a multidão de indivíduos. O soberano não está submetido ao pacto social, uma vez que ele é seu próprio garantidor. Se o soberano se submete às mesmas leis que os cidadãos, sua condição de balizar o pacto e sustentá-lo fica prejudicada. Nesse sentido, como aquele que institui as leis, o soberano está acima delas. Do contrário, seria impossível, para ele, modificar as leis sem cometer um crime.

Por fim, o terceiro esclarecimento que desfecha essa leitura do texto é que não se pode compreender o soberano como um mal, em Hobbes. Na realidade, a fundação pactuada da soberania é um bem pelo qual cada indivíduo se mantém protegido da guerra de todos contra todos e, além disso, galga o poder permitido pela lei civil. Ora, é translúcida a concepção de pacto: a renúncia de direitos, mediante a expectativa de um bem futuro. Se Hobbes tivesse em mente a tirania, qual bem seria esperado pelos pactuantes? Não ser morto por um igual, mas por uma pessoa artificial constituída como expressão da vontade da própria vítima? Isso seria, sem dúvida, uma contradição com a lei da natureza, a qual exige, de todos, a autopreservação.

Dessa forma, deve-se compreender que os atos do soberano têm uma finalidade específica: a sua própria autopreservação. Todavia, a autopreservação da soberania significa a preservação da paz entre os indivíduos do Estado. Assim, compreende-se que “[...] do direito à vida se define o ofício do soberano – cuja racionalidade está em fornecer os melhores meios para um fim, viver, que precede a socialização” (RIBEIRO, 2004, p.117) estabelecida pelo pacto.

É notório, pelo que se disse, que o Leviatã, como adverte Renato Janine Ribeiro (2004, p. 119), emprega um discurso do medo, que conduz as paixões para o pacto social, mas “[...] é esta, apenas, a linguagem exotérica, até moralista”, pois, de fato, “há outro discurso, cifrado, esotérico, para que o soberano conheça o seu ofício: que só é dever face a Deus, mas que se pode rastrear a partir do ‘direito à vida’.”

De fato, é preciso compreender o código retórico que permeia a obra, a fim de não perder o seu discurso sub-reptício e o verdadeiro conteúdo do estabelecimento de uma representação. Eu dou anuência, como pactuante originário, a um representante, pois eu mesmo me reconheço incapaz de alcançar o bem que desejo. O soberano representante, pelo contrário, é visto como aquele que tem autoridade para realizar o bem que eu mesmo sou incapaz de garantir.

Notoriamente, Hobbes está preocupado com a fragilidade do estado de paz, o que o leva a uma retórica do medo. No entanto, sua visível aspiração é um estado de paz, de prosperidade e de riqueza individual. Portanto, também há a retórica da esperança, em Hobbes. Essa condição é alcançada pela efetivação daquilo que ele chama de Common-Wealth, cuja tradução poderia ser de bem comum. É nessa chave que se deve ler o Capítulo XXX do Leviatã, sobre o encargo (office) do representante soberano: “[...] a consecução da segurança do povo, à qual ele está obrigado pela lei da natureza, e a prestar contas disso a Deus, autor dessa lei.” Disso, Hobbes prossegue: “[...] não se limita aqui o significado da palavra segurança a uma simples preservação; tem-se em vista também todos os outros confortos da vida que cada um possa adquirir para si próprio, sem perigo ou dano para o Estado.” (HOBBES, 2011, p. 471).

 

2 SOBERANIA E GOVERNO EM HOBBES

            Para Hobbes, como se mostrou, soberano é o que representa a todos, como se fosse uma só pessoa. Soberania se funda quando se institui o Estado, ou seja, “[...] quando certa multidão concorda e pactua, cada integrante com os demais, que, não importa a qual homem ou assembleia seja concedido pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles.” (HOBBES, 2011, p. 259). Disso se concebe que “[...] dessa instituição de um Estado (Common-Wealth) derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem é conferido o poder soberano pelo consentimento do povo reunido.” Ou seja, o Estado é a pessoa artificial criada pelo pacto social e “[...] quem se acha investido de tal pessoa é chamado soberano, de quem se diz que possui poder soberano.” (HOBBES, 2011, p. 257).

            Afinados os ouvidos, é possível escutar, aqui, que não é em condição própria que se diz que um monarca ou uma assembleia qualquer são soberanos. Diz-se isso em função do Estado, ou melhor, do corpo político, de onde derivam os poderes daquele soberano. Isso quer dizer que a instituição é soberana e o monarca ou assembleia, por derivação, se tornam soberanos, porque se togam da soberania do poder comum e da vontade de todos. Nesse sentido, parece correta, ao menos parcialmente, a afirmação de Skinner (2002, p. 177), de que “[...] a essência da teoria do poder público de Hobbes é, portanto, que a pessoa (person) identificável como o verdadeiro ‘sujeito’ da soberania em qualquer estado legal deve ser a pessoa do próprio Estado.”

            Aqui se apresenta uma certa duplicidade de uso do termo pessoa, à qual é necessário conferir uma especial atenção. No Capítulo XXVI de o Leviatã, Hobbes (2011, p. 381) dá um breve esclarecimento do que ele está pensando nessa relação entre Estado e Soberano: “[...] o Estado não é pessoa (is no person), e só tem capacidade de fazer algo por intermédio de seu representante”, este sim, uma pessoa que representa o Estado. Por representar o Estado, esse homem artificial pode ser chamado de soberano, posto que ele assume o governo de todos, em condição estatal.

            Ora, o reconhecido intérprete, citado acima, afirma que o Estado é a pessoa[5] da soberania, mas poucas linhas abaixo, lê-se o próprio Hobbes afirmar que o Estado não é uma pessoa. O leitor já deve ter percebido que paira uma nuvem nebulosa sobre esse assunto. Hobbes, muitas vezes, fala em “homem artificial”, ao modo da imagem cristã da Igreja, segundo a qual Cristo é a cabeça e o povo, o seu corpo.[6] Mas também faz afirmações lacônicas, como: “[...] nisso consiste a essência do Estado, cuja definição é: uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, por meio de pactos recíprocos entre seus integrantes, se fez ela própria autora.” (HOBBES, 2011, p. 257, grifo nosso).

            De fato, não é facilitado o ofício do intérprete, nesse caso. Mas desfiar esse novelo não é impossível. Embora Hobbes não seja, em todo caso, um autor hermético, o seu inglês, nesse caso, não foi tão evidente quanto poderia ser.

            Avance-se aos poucos, a fim de atinar para alguns pontos de luz. O Estado, enquanto coisa artificial, é um ente convencional, cuja vontade precisa ser personificada. O soberano, portanto, assume, como representante do Estado, a sua função como governante. Nota-se que aqui vale a máxima da representação de coisas inanimadas, segundo o Cap. XVI de o Leviatã (HOBBES, 2011, p. 243). A alma do Estado é a soberania, contudo, se não há quem represente a soberania do Estado, o que sobraria? Disso se segue que, da mesma forma que uma Universidade, para Hobbes, precisa que seus membros efetivos escolham um reitor, também se escolhe um soberano para se exercer a soberania do Estado, no ato jurídico originário (única vez em que há a necessidade de se ouvir a multidão sobre o seu governante; se a constituição do Estado prevê que haverá outro pleito sobre o soberano, isso se dá por vontade de um soberano anterior, que fez valer essa sua vontade como lei positiva).

Nesse sentido é que é necessário, para o exercício da soberania, um indivíduo ou assembleia de indivíduos que possam dar voz ao poder do Estado, pois esse ente artificial não se comunica por meios próprios. Mas, na mesma perspectiva, não se pode enclausurar o poder público nos indivíduos que se revestem da soberania, pois, nesse caso, esse poder estaria reduzido a uma pessoa natural, a qual não representa ninguém. O corpo fundado no pacto social é um corpo artificial, convencional, todavia, com poder e autorização incomensuravelmente maiores que qualquer individual natural, com a pretensão de ser eterno – “[...] an Artificiall Eternity of life.” (HOBBES, 2011, p. 284). Não é, portanto, na escala do indivíduo que se fala de Estado, porém, na proporção das multidões que se reúnem, em consenso sobre um interesse. Essa multidão, agora Povo, é, quando unida por um governo, um Leviatã, soberano, no sentido primeiro.

            Para que a paz seja duradoura (ou ao menos passe essa ideia), portanto, é preciso que o Estado seja, ele mesmo, duradouro, não subsumível a uma vida humana. Nesse sentido, a instituição estatal é, em Hobbes, a verdadeira soberania, no sentido estrito. O governante, por outro lado, é aquele que se investe da soberania, de forma precária, e pode variar, no lugar e no tempo, enquanto o corpo artificial do Estado permanece intocado em seu poder e autoridade, posto que a multidão, enquanto mantidas as regras de transição de governo, será sempre soberana. Ou seja, governo é aquele que detém a soberania de forma precária; Estado soberano é a reunião de uma multidão e seu governo.

O frontispício do volume original de o Leviathan é exemplar, no sentido de demonstrar o que Hobbes quer dizer com o corpo artificial, fundado no pacto social. O monstro estatal é concebido como um homem de proporções gigantescas, com coroa e cetro, cujo corpo é formado por uma multidão, que, na mirada do seu conjunto, aparenta lorica squamata[7] recobrindo o Leviatã. Trata-se, assim, de uma entidade ficcional, no sentido próprio da ciência civil de Hobbes, com toda a autoridade e o poder para eternizar o estado de paz decorrente do estado civil. Essa entidade artificial, desse modo, instituída em um ato jurídico originário (não expresso, mas inferido), excede as limitações de um mero corpo natural, podendo agir para se eternizar diante dos perigos internos e externos.

            Isso posto, é necessário distinguir soberania estatal, de um lado, e governante soberano, por outro. O que está em jogo é a relação entre Estado e governo. Soberano, no sentido pleno, é o Estado, corpo artificial que transcende seus próprios governantes, cujo governo é acidental. O governante é, também, soberano, mas num sentido derivativo, visto que assume a cabeça do homem artificial (Estado) e o personaliza, falando e agindo por ele. O soberano é o que é por estar investido do governo do Estado, este sim, soberano no sentido próprio. Os dois estão vinculados por representação. O Estado é a justaposição entre governante e todos os pactuantes sociais, com plena autorização destes. O governante, por sua vez, possui o ofício de representar o Estado, mas não é o Estado; ele pode ser chefe do Estado, mas nunca pode ser confundido com o próprio Estado, que é a justaposição do governo e o Povo.

            Essa disjunção aparece no tratado do Leviatã, de Hobbes (2011, p. 271), transitando entre a ideia de soberania do corpo político e do monarca ou da assembleia. Na verdade, é exatamente aí que se enxerga a real diferença entre governo e Estado: ao se referir ao absurdo da comparação entre o poder soberano e o poder do povo todo reunido, Hobbes adverte que se trata de uma comparação inútil, uma vez que a pessoa investida da soberania é, exatamente, um com o povo, não importando se essa pessoa artificial está vinculada a um monarca ou a uma assembleia.

            A interpretação hermenêutica defendida aqui, por conseguinte, é que a pessoa a quem Hobbes (2011, p. 257) se refere, em certas citações, como “[...] uma pessoa de cujos atos uma grande multidão” ou “[...] é uma unidade real de todos eles em uma única e mesma pessoa”, enfim, não são ao Estado, mas ao governo do Estado. O Estado é exatamente o corpo político íntegro, formado por um Povo (agora não mais uma multidão) que deixou seu estado de natureza e se colocou a serviço do soberano. Exatamente por isso, linhas depois, Hobbes novamente adverte: “[...] quem está investido de tal pessoa é chamado SOBERANO, de quem se diz que possui poder soberano; todos os demais são seus SÚDITOS.” (HOBBES, 2011, p. 257).

            Não se achou, nas linhas citadas acima, qualquer referência a uma pessoa diversa da definição de pessoa que o próprio Hobbes apresenta, no Cap. XVI da obra, já tão longamente citada. Pessoa é sempre uma pessoa natural que age ou fala por si ou por alguém. Nos dois casos, são pessoas naturais que atuam, mas, no caso da representação, a pessoa se torna artificial, porque a autoria de sua ação pertence a uma outra. Nada mais autoriza, assim, a supor que um ente inanimado tenha personalidade, exceto quando representado por alguém que governa.

            Dessa maneira, o Estado é um corpo constituído e unificado sob a cabeça de um governo que se toga da soberania. Por isso, soberano é o Povo formado somente a partir da submissão da multidão, pelo ato jurídico originário, ao seu monarca ou assembleia. Repito: a multidão não é soberana, um príncipe sem povo não é soberano, mas apenas a multidão pactuada sob o governo é o amálgama soberano. Essa imagem é repetida, de forma explícita, na definição hobbesiana de Igreja, instância de representação para quem a ciência política moderna deve muito, conforme já foi aventado. Veja-se: “[...] defino IGREJA como uma companhia de homens que professam a religião cristã, unidos na pessoa de um soberano, por cuja ordem devem reunir-se e sem cuja autorização não devem se reunir.” (HOBBES, 2011, p. 641).

            Note-se, nessa questão particular da Igreja, o funcionamento da ideia hobbesiana de modo mais claro: a Igreja é a reunião sob o báculo do soberano. Ela só é Igreja, porque está sob esse domínio soberano, do contrário, não seria. Trazendo água para o moinho, pode-se dizer o mesmo sobre o Estado: ele só existe sob o cetro de um soberano, mas aqui entra o fator de complicação: toda autoridade que o soberano venha a ter recebe do Estado, enquanto amálgama. O que esclarece é: não havendo esse soberano, a multidão estará dispersa e não haverá Estado nenhum. O contrário, porém, é válido: havendo pacto, há a instituição do governo soberano, o qual é soberano exatamente porque representa e governa o Povo reunido.

            É notável, portanto, que a forma do Estado – se monárquico, aristocrático ou democrático – não interfere na sua materialidade: o poder absoluto autorizado por todo o povo reunido. Esse poder é indivisível e intrasferível, embora, no aspecto central do que se está denominando governo, em última instância, haja uma multiplicidade de parlamentares, agentes, ministros e magistrados. Todos, no entanto, representam a pessoa única do soberano: o Estado.

Vale destacar, ainda em termos de argumentação, que a convicção maior dessa separação entre Estado e governo aparece na discussão desenvolvida no Leviatã sobre a vontade de todos e a vontade do soberano. Hobbes salienta o modo como a vontade do soberano se faz coincidir com a vontade de todos. Entretanto, por que seria necessária tal argumentação, se não houvesse uma separação entre um e outro?            O essencial é que o soberano, ou seja, um ou vários indivíduos envolvidos pela estola do Estado, é designado como representante de interesses gerais, coletivos: o bem comum. Quando se fala de Estado Absoluto, em Hobbes, tende-se a ver uma justificativa indiscriminada da tirania, mas o que há, de fato, é um discurso para a eternização da paz, pelo Estado que, por ser soberano, é absoluto, isto é, autoridade maior em seu próprio território.

Ao monarca, figura provável da tirania, em narrativas comuns sobre o tema, Hobbes adverte, com profundo respeito, contudo, com um certo tom ordinário: “[...] the office of the soveraign...The office, a missão, o cargo, enfim, não parece ser tanto algo a se dizer daquele dotado do Imperium, do direito medieval e romano, mas de alguém que recebeu autoridade para um dever. Assim, Hobbes acrescenta que aquele que tem o cargo do soberano recebe, por confiança e não em definitivo, “o poder da soberania” (HOBBES, 2011, p. 471). Nada está dito sobre o uso indiscriminado desse poder, mas a vinculação é explícita: a segurança do povo e tudo o que está incluído nisso, como se afirmou na seção anterior.

Essa questão é explicitada na teoria da representação trazida por Hobbes (2011, p. 243), no Leviatã, e desenvolvida por Pitkin (1985, p. 20). A relação entre Estado e Governo é posta, segundo a hipótese apresentada nesse trabalho, na forma de uma representação de um objeto inanimado. Ou seja, há uma terceira pessoa, a qual expressa a vontade do ente inanimado, capaz de constituir uma representação para este. Em outros termos, há alguém que fala pelo Estado, a fim de constituir seu governo, ou melhor, o representante do próprio Estado.

Num primeiro momento, a multidão, que institui o Estado, também define, por sua absoluta liberdade, sua forma de governo (HOBBES, 2011, p. 275). Todavia, após instituída essa soberania, o único com direito de designar a constituição do governo é o próprio Estado que, através do seu representante – o governo –, determinará a forma legal da sucessão, sem a qual o Estado acaba com a morte do soberano (HOBBES, 2011, p. 287). Se governo e Estado não fossem essencialmente diferentes, apesar de funcionarem unidos, não seria possível pensar a paz social, em longo prazo. Todo o esforço de autopreservação estaria vinculado à frágil vida de um monarca ou à efêmera estabilidade de uma assembleia.

Por isso, para Hobbes (2011, p. 277), o modelo do governo, que caracteriza a forma do Estado, se radica numa “conveniência ou aptidão para gerar a paz”, não no poder, uma vez que a soberania estatal é a mesma, em qualquer que seja a forma de governo e quem quer que seja o soberano. O poder comum, por conseguinte, que constitui o conceito hobbesiano de soberania, independe, como é perceptível no seu texto, de quem assume a soberania. As diferentes formas de governo são, tão somente, a expressão apropriada de se estabelecer a paz social.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este pequeno esforço buscou demonstrar o essencial de uma relação de representação, no que tange ao Governo e ao Estado. Tal esboço parece lançar luz sobre o termo estrangeiro identificável na fraseologia liberal mais recente: “Democracia representativa”.

O que se quer dizer, quando se fala em representante, em uma democracia? Parece algo que está em profundo antagonismo com a prática política que o termo democracia quer expressar. Se democracia é o exercício político do povo reunido, a interpolação de representantes não separa o povo da política? Além disso, a criação de um corpo político soberano, acima e além do povo, não tornaria a democracia uma impossibilidade? A separação entre estado soberano e governo é suficiente para reumanizar o lócus político?

Evidentemente, não é interesse, aqui, resolver todas essas questões. Busca-se, simplesmente, lançar luz sobre um problema que, em outros autores, é bem resolvido, mas em Hobbes, não tanto.

Acredita-se que a teoria da representação de Hobbes não funciona em linha reta, entre poder constituinte e líder. Há um efeito de prisma, no qual o Estado espalha sua soberania, de forma precária, sobre o soberano. Soberano, no sentido primeiro, é o Estado, figura da comunidade política, e o governante só se torna soberano de maneira secundária, por exercer o governo da comunidade política. E, mesmo assim, tendo uma finalidade bem delimitada: o bem-estar de todos.

Não. Hobbes não é um democrata ou um autor que pregue a soberania do povo. Longe disso. Hobbes é o autor que mais cabalmente pensou a forma com que esse Estado precário, no meio de guerras civis e revoltas, poderia se sustentar. A fórmula: um Estado absoluto, um governo racional, ciente de que governa um Povo.

 

REPRESENTATION, SOVEREIGNTY AND GOVERNMENT IN THOMAS HOBBES

Abstract: The text deals with the concept of representation in its relation to the concept and sovereignty, in Thomas Hobbes (1588-1679). The work studied is Leviathan, of 1651. The research presents that sovereignty is founded through the original legal act, which establishes an artificial person to represent everyone. This artificial thing is the State. The political society, however, is different from its government, although they are functionally the same.

 

Keywords: Representation. Sovereignty. Government. Hobbes.

 

REFERÊNCIAS

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RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

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Recebido: 12/02/2022

Aceito: 18/07/2022

 



[1] Professor do Curso de Graduação em Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7891-8896 E-mail: luciano.teixeira@uece.br.

[2] Evidentemente, deve-se levar em conta que o termo democracia, literalmente, não foi universalmente admitido, como se pode entender, no pensamento grego. Exceção dada a Tucídides, Heródoto considera o termo isonomia mais adequado ao que se chama democracia; Platão, por sua vez, critica a democracia e Aristóteles a concebe como uma forma desvirtuada da política. Guardada a retidão terminológica, refere-se, aqui, como democracia, à experiência política ática, nos anos que se seguem às reformas introduzidas por Sólon (e, principalmente, por Clístenes e Péricles), até o declínio, pós-Guerra do Peloponeso e o esfacelamento da experiência real, com a dominação macedônica.

[3] “[] every Englishman shall be ‘intended’ – that is, understood – to be present in parliament, by himself or his representative.

[4] Vale lembrar que, para Hobbes, o Soberano está sujeito ao julgamento de Deus, apenas. Também é de se notar, que o mau Soberano poderia vir a ser deposto pela Guerra Civil, mas ele é absolutamente intocável pela lei humana, a qual nada mais é do que a expressão de sua vontade racional.

[5] É claro que Skinner está ciente dessa questão. Linhas adiante, ele afirma: “[...] mas está longe da claridade o que ele quer dizer com esta afirmação, e ainda menos claro o que ele quer dizer ao acrescentar que essa pessoa também é a sede do poder.” (SKINNER, 2002, p. 178).

[6] “Tudo foi criado por ele e para ele e ele, existe antes de tudo; tudo nele se mantem, e ele é a cabeça do corpo, que é a Igreja.” (1Cl 1,17-18). Bíblia. Tradução Ecumênica. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2015.

[7] Antiga armadura, reconhecidamente usada entre os romanos, que era feita com pequenos segmentos de metal ou couro duro, costurados, formando uma proteção parecida com escamas.