TRADUÇÃO

“O PENSADOR E O PINTOR: SOBRE MERLEAU-PONTY” - JACQUES TAMINIAUX[1]

Tiago Nunes Soares[2]

Resumo: Encontra-se, no título, a temática do artigo de Taminiaux: trata-se de uma abordagem sobre a relação entre filosofia e pintura, no pensamento de Merleau-Ponty. Ela desdobra-se em reflexões sobre seu projeto de superação das dicotomias clássicas sedimentadas na filosofia. O autor trata do tema a partir de três eixos, todos interligados ou entrecruzados, no interior da filosofia merleau-pontiana: a percepção, o pensamento e a pintura. O artigo é uma oportunidade para entrar em contato com a filosofia de Merleau-Ponty, particularmente em seu diálogo com o mundo da pintura, através do entrelaçamento entre pensamento e percepção.

 

Palavras-chave: Merleau-Ponty. Percepção. Pensamento. Pintura.

 

INTRODUÇÃO

O próprio título – O pensador e o pintor – sugere que, aos olhos de Merleau-Ponty, existe uma ligação, uma proximidade, um parentesco, entre a atividade à qual ele, enquanto filósofo, consagrou sua vida, e a atividade à qual os pintores dedicaram as suas.

Tal proximidade precisa ser esclarecida e explicada, porque ela está longe de ser óbvia. Basta lembrar, a esse respeito, que, para o fundador da tradição filosófica ocidental, as duas atividades das quais tratamos aqui são estritamente antinômicas. De fato, Platão sustenta fortemente, na República, que pintar é recusar-se a pensar e que a atividade de pensar exige um distanciamento com relação ao percebido, ao qual, por outro lado, o pintor nos conecta. Pintar é recusar-se a pensar, porque, para Platão, o pintor é, por excelência, aquele que toma partido pela aparência em detrimento do ser. Ele copia as aparências sem jamais considerar as essências, ou lida com as cópias sem jamais ter em vista seus modelos. Ele celebra o claro-escuro e os equívocos do sensível, tal como ele se entrega aos nossos olhos carnais, sem dar-se conta de que, para além dessa região confusa, é possível aos olhos do espírito, pelo pouco que ele se distancia da carne, ter acesso à ordem clara e distinta das ideias inteligíveis. Esse acesso, que é acesso ao ser além do aparecer e, mais precisamente, a um aparecer puro, livre das ambiguidades da aparência sensível, é reservado ao pensador. Ele permite ao pensador compreender com total clareza que aquilo de que o pintor se orgulha não merece outra coisa senão desdém: o trabalho ao qual ele devota tanto esforço é vão, pois, ainda que o pintor creia captar o que é verdadeiro, ele se deixa desviar pelo não ser. Desejando elevar as coisas sensíveis à glória do brilho pictural, ele só consegue a fabricação irrisória de cópias irreais de entes desprovidos de ser e de verdade, porque o sensível não é o meio pelo qual se oferece a verdadeira face das coisas. Os aspectos sensíveis das coisas são apenas os reflexos distorcidos de sua verdadeira fisionomia. Preso ao aspecto sensível das coisas, o pintor produz apenas reflexos dos reflexos.

Não cabe, neste momento, questionar as transformações que essa concepção platônica sofreu ao longo da história da filosofia, nem mesmo evocar sua persistência, sob diversas formas, nos escritos dos filósofos sobre a pintura.

Tais escritos são relativamente raros, porque apenas no início do século XIX, com Hegel e Schopenhauer, podemos encontrar análises de obras pictóricas elaboradas por filósofos de primeira linha. Limito-me a salientar que, embora esses pensadores dediquem bastante atenção à pintura e, por isso mesmo, pareçam reabilitá-la filosoficamente, concedendo a ela o estatuto honorável de uma forma de pensamento, suas análises continuam operando segundo as antíteses bimilenares elaboradas por Platão: a própria coisa e sua cópia, o real e o imaginário, a diversidade sensível e a unidade inteligível, o corpo e o espírito. Em outras palavras, o que essas análises restituem à pintura, por um lado, por outro a destituem. É assim que Hegel, contra Platão, argumenta que a arte tem relação com a Ideia, sendo sua manifestação. Mas ele imediatamente acrescenta, concordando profundamente com a distinção platônica entre o sensível e o inteligível, que o sensível, elemento no qual a arte produz suas obras, não é adequado à manifestação plena da Ideia. É dessa forma que Schopenhauer, contra Platão, também defende que a arte tem relação com a Ideia e a manifesta, o que não significa que a arte manifesta o caráter racional do real, como sustenta Hegel, mas, ao contrário, manifesta o caráter profundamente absurdo da coisa-em-si que é a vontade insaciável.

Todavia, Schopenhauer concorda profundamente com Platão, quando apresenta a ideia de que, embora seja uma forma eminente de pensamento por exibir a verdadeira fisionomia do real, a arte não é adequada para abordar aquilo que ela pensa, pela simples razão de ela continuar nos atrelando aos fenômenos sensíveis e, consequentemente, às emanações da vontade de viver, ao mesmo tempo que denuncia o absurdo de tais emanações. Apesar do abismo que os separa, Schopenhauer concorda com Hegel, seguindo Platão, quando afirma que o defeito da arte é o fato de ela nos amarrar ao sensível. E ambos continuam sustentando definitivamente, com Platão, a antinomia entre o pensamento e os laços com o sensível.

É justamente essa dicotomia que Merleau-Ponty recusará, do início ao fim de sua obra. Para ele, pensar não é desviar-se do percebido, mas reconhecer seu primado e habitá-lo, auscultá-lo, interrogá-lo, e a ele sempre retornar. E é justamente porque permanece fundamentalmente ligado ao percebido que o pensamento, no sentido em que Merleau-Ponty o entende exercer, liberta-se das dicotomias nas quais a tradição o aprisionou.

 

1 PERCEPÇÃO

Em que medida, então, o percebido convida o pensamento a livrar-se dessas dicotomias, fazendo-se tema privilegiado deste? Ora, na medida em que as dualidades de origem platônica não se aplicam ao percebido. As descrições husserlianas já haviam mostrado que a fenomenalidade específica do percebido entrecruza as antíteses que a tradição considerava heterogêneas, e Merleau-Ponty foi rápido em reconhecer o caráter inovador e bem fundado de tais descrições, comparando-as com a herança platônica, retomada e metamorfoseada por Descartes, em função do projeto científico da mathesis moderna. A tradição da filosofia moderna, seja ela racionalista, seja empirista ou kantiana, relegou o percebido ao regime da multiplicidade e da diversidade puras. Essa tradição sustenta que o percebido é refratário à unidade e à identidade.

Husserl reage contra essa tradição. Ele mostra que não é além ou acima da diversidade de seus aspectos — os famosos perfis husserlianos — que a coisa percebida adquire sua unidade e sua identidade. Essas características não ocorrem no objeto, posteriormente, vindas do exterior em função de um ato sintético do entendimento ou de uma repetição associativa. É no próprio coração da diversidade de seus perfis que se verifica imediatamente a unidade da coisa percebida. Eis, portanto, uma unidade que não é heterogênea à multiplicidade, pelo contrário, a requer e liga-se a ela estreitamente. A identidade, aqui, não é a antítese da diferença. O percebido perderia sua densidade perceptiva, sua carne; ele deixaria de ser percebido, se os aspectos que ele oferece não anunciassem outros, ainda não ofertados, latentes, os quais formam o horizonte dos primeiros. Uma coisa percebida de todos os lados de uma só vez não seria mais uma coisa percebida.

Enfim, o percebido escapa da antítese clássica entre o particular e o geral. O percebido nunca se dá como particularidade pura, como forma singular, como cor incomparável. Como observaram os psicólogos da Gestalt, subitamente a percepção generaliza: é verdade que nós vemos tal branco singular, e que o vemos como um exemplar da brancura. Subitamente, também, a percepção estiliza: é verdade que vemos uma árvore singular e que a vemos como um exemplar de árvore, e que, então, apreendemos ao mesmo tempo sua forma singular e o esquema nela que a relaciona com todas as demais árvores.

Além do entrecruzamento do particular e do geral, o percebido atesta ainda um entrecruzamento surpreendente do eu com o outro, uma sobreposição intersubjetiva. Como os perfis da coisa permanecem para mim na latência, na medida em que eu a inspeciono, a partir de meu ponto de vista, eu experimento imediatamente o fato de eles se mostrarem àquele que a inspeciona a partir de outro ponto de vista. E esses perfis não se apresentam a mim como imagens privadas ocorrendo na cena solipsista de meus estados de consciência, mas como os aspectos da coisa que testemunham sua consistência e que valem igualmente para aquele que está ao meu lado. A esse respeito, as descrições realizadas por Merleau-Ponty permitem que ele se aproprie das palavras de Husserl (Manuscrit K III1 III, p.19-20): “Nós vemos e ouvimos não simplesmente uns ao lado dos outros, mas uns com os outros (miteinander).”

É conveniente acrescentar a esses vários entrecruzamentos, que fazem o percebido ofuscar as antíteses clássicas, entrecruzamentos análogos, da parte do sujeito que percebe e na própria relação que ele mantém com o percebido.

Segundo um esquema tradicional firmemente estabelecido, a visão e o movimento são heterogêneos: uma coisa é ver, outra coisa é mover-se. Consequentemente, o sujeito que percebe é mais ou menos espontaneamente interpretado como um espectador que, além da capacidade de ver, teria também a capacidade de se mover. A fenomenologia da percepção abala essa distinção. Ela torna imperativo reconhecer que aquele que vê, ao passo que vê, e não por um acidente extrínseco, é “[...] um entrelaçamento de visão e movimento.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 16). Nesse sentido, ver é imediatamente ser capaz de juntar-se ao que se vê, de tê-lo a seu alcance, de restituir a capacidade de aproximar-se do que se vê. Conforme bem disse Merleau-Ponty, o “mapa do visível” se cruza com aquele de meus projetos motores e “[...] esse entrecruzamento extraordinário [...] nos impede de conceber a visão como uma operação do pensamento que construiria diante do espírito uma representação do mundo [...]” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 17).

Mas esse entrecruzamento da visão e do movimento, o qual ofusca os esquemas tradicionais, gravitando em torno da distinção da contemplação e da ação, acompanha outro “entrelaçamento”: aquele da visão e da visibilidade. O que o entrelaçamento da visão e da visibilidade recusa é outra distinção tradicional considerada como evidente: aquela da atividade e da passividade, mais precisamente, da espontaneidade e da receptividade. De fato, o titular do entrelaçamento da visão e do movimento faz parte do visível; ao mesmo tempo que o vê, ele é simultaneamente visível e vidente, e seu próprio corpo móvel, que faz parte do visível, é concomitantemente movido e movente, bem como é, ao mesmo tempo, tocante e tocado. Por isso mesmo, ele é sincronicamente descentralizado e centralizador e, paradoxalmente, é a mesma coisa dizer que “visível e móvel, meu corpo está entre as coisas, é uma delas”, e dizer, contrariamente:

Porque se vê e se move, ele tem as coisas ao seu redor, e elas são um anexo e um prolongamento de si, elas estão incrustadas na sua carne, elas fazem parte de sua definição plena e o mundo é feito do mesmo estofo do corpo. (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 19).

 

Além de recusarem as dicotomias tradicionais, esses entrelaçamentos, entrecruzamentos, essas reversões, também recusam a noção clássica de reflexão como cogito me cogitare, como presença a si da cogitatio no seu cogitatum. O que a fenomenologia da percepção ensina, contra essa noção clássica, é que existe uma reflexão no próprio coração da percepção, mas que tal reflexividade de modo algum faz da percepção um “pensamento de ver”, no sentido que Descartes dava a essa expressão. Por ser indissociável da “indivisão do senciente e do sensível”, a reflexividade nascida no próprio coração da percepção é esta de uma carne que permanece atrelada às coisas, ao mesmo tempo que se torna um para si. Há uma interioridade que, como ressalta Merleau-Ponty, “[...] não precede o arranjo material do corpo humano” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 20), porque ela ocorre graças a essa organização e, no entanto, “não deriva dela” como efeito de um conjunto formado pela soma de um certo número de partes. Dizer que a interioridade precede o arranjo do corpo significa que ela recai sobre ele como um espírito em um autômato e, por isso, “[...] o próprio corpo não tem um dentro e nem um ‘si’.” Dizer que a interioridade resulta do arranjo do corpo é concebê-la como efeito derivado da disposição das partes do corpo, é conceber esse arranjo partes extrapartes sem reconhecer no próprio corpo, em seu todo e em suas partes, e na relação destas com o todo, a possibilidade de refletir. É verdade que,

[...] se nossos olhos fossem feitos de tal forma que nenhuma parte de nosso corpo ficasse sob nosso olhar, ou se qualquer dispositivo maligno, deixando livre o movimento de nossas mãos sobre as coisas, nos impedisse de tocarmos nosso corpo - ou se simplesmente, como ocorre em certos animais, tivéssemos olhos laterais, sem uma sobreposição dos campos visuais - esse corpo, inapto para refletir sobre si mesmo, incapaz de sentir-se, esse corpo quase adamantino, que não seria exatamente carne, não seria mais um corpo de homem, e seria desprovido de humanidade. (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 20).

 

Mas isso não significa que a reflexividade corporal seja produzida pela disposição espacial dos órgãos, na qual cada um teria uma função estritamente determinada, pois essa disposição, precisamente por dar-se como partes extrapartes, também seria sem interseções, sem entrecruzamentos, sem entrelaçamentos. É preciso, então, admitir que esses entrelaçamentos são a base da qual nenhuma teoria mecanicista do corpo pode dar conta.

 

2 PENSAMENTO

Esses traços fenomênicos específicos do percebido e da percepção atribuem à atividade do pensamento, desde que este resolva dar direito àqueles e a eles permaneça unido, um ritmo bem diferente daquele assumido por ele, na tradição platônica ou na filosofia clássica moderna. Essa diferença é destacada no prefácio dos Signos, quase da mesma época do ensaio sobre “O Olho e o Espírito”.

Segundo a tradição cartesiana, o pensamento é pura atividade esclarecedora, diante da qual tudo aparece e que se identifica consigo mesma, sem nenhuma sombra, no regime identitário da pura presença a si. Não é mais dessa forma que se pode definir um pensamento que leva a sério o primado da percepção. “A filosofia de sobrevoo, diz Merleau-Ponty fortemente, foi um episódio, e ele acabou.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 20). À questão “o que é pensar?”, aquele que fez do mundo percebido sua casa não pode responder como Descartes ou Platão. Valéry se refere, em algum momento de sua obra, a um “corpo do espírito”. Entre outros temas, dois permitem que Merleau-Ponty destaque a adequação dessa concepção: o tempo e a linguagem. É a ligação intrínseca e concomitante entre o pensamento, o tempo e a linguagem que leva o pensamento a ser definido, assim como acontece com a percepção, em termos de entrelaçamento e entrecruzamento. Pensar, no sentido cartesiano, é intuir uma ideia clara e distinta, no instante presente: o pensamento se efetua no registro exclusivo do presente. E como esse pensamento é intuição pura, a linguagem não é essencial para ele, sendo apenas um instrumento destinado a preservar as intuições ou a relatar a outras pessoas as intuições que, como tais, transcendem a linguagem. Contra as concepções cartesianas, Merleau-Ponty ressalta a conexão intrínseca do pensamento, não com o presente, mas com o não atual. Se o pensamento se mantém, escreve o filósofo, é “[...] graças ao deslizamento que o joga no não-atual.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 21). Pensar é, de fato, apoiar-se sempre sobre um pensamento adquirido, o qual, por definição, é um passado, mas que em vez de simplesmente ser obsoleto, abre “[...] um advento do pensamento, um ciclo, um campo.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 21). Na atividade de pensar, compreendida dessa forma, o sucessivo e o simultâneo não são contraditórios, como eram em Descartes, pois se entrecruzam. Nesse sentido, Merleau-Ponty escreve:

“Se eu penso, não significa que eu saio do tempo, em um mundo inteligível, nem que eu recrio toda vez a significação a partir do nada, mas que a flecha do tempo leva tudo com ela, fazendo com que meus pensamentos sucessivos sejam, em um segundo sentido, simultâneos, ou pelo menos que eles legitimamente se entrecruzem. (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 21).

 

 Olhando mais de perto, há aqui um duplo entrecruzamento: aquele do sucessivo e da simultaneidade, e também aquele do passado (o adquirido) com o porvir (o campo do pensamento que pede para ser explorado). E, olhando ainda mais de perto, muitos outros entrecruzamentos se ligam a esses. O tempo, ao qual a atividade de pensar está ligada, não é o pensador que o institui, nem é dele o mestre: o pensador sofre seu empurrão; ele o recebe, é receptivo e sensível a ele. Dizer que “[...] meu pensamento não é outra coisa que o avesso de meu tempo” é dizer, ao mesmo tempo, que ele é o avesso “[...] de meu ser passivo e sensível.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 22). Mas reconhecer isso é reconhecer que não posso pensar sem permanecer atrelado ao sensível ao mesmo tempo em que dele me distancio para refletir. É também reconhecer que o solipsismo do ego cogito é apenas uma abstração. É verdade que é preciso isolar-se para refletir, porém, mesmo nesse isolamento, os outros permanecem implicados. Existe, então, um entrecruzamento do sensível e do pensamento e dos outros com aquele que pensa. Merleau-Ponty condensa esse entrecruzamento nesta fórmula admirável: “Mas se meu pensamento não é outra coisa que o avesso de meu tempo, de meu ser passivo e sensível, quando tento apreender a mim mesmo o que tenho é todo o estofo do mundo sensível, e os outros atrelados a ele.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 22).

Assim, pensar não é deixar o sensível para passar ao inteligível, mas é refletir e recuperar as estruturas de entrecruzamento que são aquelas do sensível. Assim como ver é já ter visto e, contudo, permanecer aberto àquilo que falta ver, também pensar é sempre já ter pensado, e ainda permanecer aberto ao que resta para pensar. Em ambos os casos se opera a mesma conexão com o tempo. Temos uma tendência espontânea de crer que a percepção é uma relação espacial de um “aqui” que percebe e um “lá” percebido. Contudo, o tempo anima secretamente essa relação. A coisa que eu percebo é vista como estando diante de meu olhar que pousa sobre ela e, nesse sentido, ela é passado. Mas ao mesmo tempo ela se doa a mim como futuro, como “coisa esperada”, diz Merleau-Ponty, ou seja, como solicitante do poder que tenho de explorá-la, de investigá-la por todos os ângulos. Minha percepção, nesse sentido, é entrecruzamento de um atual e de um não atual, ou ainda de um visível e um invisível. Nesse entrecruzamento, os outros estão implicados, pois aquilo que é invisível para mim é imediatamente apreendido por mim como visível, através daqueles que estão do outro lado da coisa percebida. Aparecer perceptivamente é aparecer não apenas para um indivíduo, mas para vários. E assim como a menor percepção testemunha a pluralidade humana, o menor pensamento testemunha a presença do outro. Portanto, o que é pensar, senão dialogar consigo mesmo? Em tal diálogo, nós somos conduzidos pelas palavras das quais não somos os autores, mas que nos foram transmitidas por outros.

Tanto quanto a aderência ao tempo, a aderência do pensamento à linguagem confirma a adequação do termo de Valéry sobre a “carne do espírito”. O fato de que não se pode pensar sem falar a si mesmo, e que as palavras despertam os pensamentos, revela um entrecruzamento que torna inconsistente a ideia cartesiana de um pensamento que, na sua solidão, assume a posição de legislador universal.

Esse entrecruzamento é diferente de um paralelismo entre duas ordens, aquela das idealidades ou do significado e aquele do código que as exprime, no qual cada uma seria completa em si mesma. Sobre isso, Merleau-Ponty escreve:

As operações expressivas ocorrem entre a palavra pensante e pensamento falante, e não como se diz levianamente, entre pensamento e linguagem. Não é por eles serem paralelos que nós falamos, mas é porque falamos que eles são paralelos. A fraqueza de todo “paralelismo” está no fato de ele doar as correspondências entre as ordens e mascarar as operações que os produzem primordialmente através do entrecruzamento. (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 26).

 

Pensar não é contemplar o inteligível, é apoiar-se sobre palavras adquiridas, uma tradição de palavras onde se entrelaçam os outros e nós mesmos, e que são tanto “dimensões de pensamento” quanto “[...] esteira que nós continuamos.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 26). Assim como minha visão do objeto ao longe encontra em meu corpo uma correspondência que é a arte de me aproximar dele e ter uma visão mais próxima, também meu pensamento encontra nesse corpo de palavras sobre o qual me apoio, e que me é legado por uma tradição, a arte de dizer aquilo que ainda permanece a ser pensado. No entanto, nessas condições, a posição do pensador não tem muito a ver com a realeza soberba do filósofo platônico ou com a solidão do ego cartesiano. Da mesma forma que perceber é ser pego pelo visível, ou seja, fazer parte dele, da mesma forma pensar é ser pego “[...] por uma Palavra e por um Pensamento que nós não possuímos, mas que nos possui.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 27). Enquanto o pensamento de sobrevoo tinha “[...] o mundo prostrado a seus pés” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 31), o pensamento que tem seus laços nos diversos entrecruzamentos, aqui mencionados apressada e esquematicamente, é capaz de restituir aquilo que Merleau-Ponty chama de sua “verticalidade” do mundo.

 

3 PINTURA

Acredito que já dissemos o suficiente para que possamos agora voltar nossa atenção à pintura. Mas, antes de fazê-lo, como a noção de entrecruzamento teve um papel particularmente insistente na minha proposta, permita-me ainda ilustrar, com um exemplo familiar a todos, a falha das dicotomias clássicas. Trata-se simplesmente do cruzamento de dois olhares. Quando dois olhares se cruzam, ocorre um entrecruzamento do observador e do observado, do qual a filosofia da reflexão — aquela que prioriza o eu penso — não pode dar conta, porque ela propõe a dualidade do mesmo e do outro, do cogito e da extensão ou, como em Sartre, do nada e do ser. Para a filosofia da reflexão, só pode haver aqui uma simples justaposição de duas consciências, na qual uma das duas consciências reduz a outra a um objeto, e também é reduzida a um objeto pela outra, de tal modo que há “[...] sempre apenas um cogito por vez.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 24.) A alternativa apresentada pela reflexão é simples: ou eu observo e, por isso, sou sujeito e o outro é objeto; ou eu sou observado e, assim, me torno objeto e, o outro, sujeito. O que a reflexão não pode compreender é que o cruzamento de dois olhares supera essa dicotomia: há um ajuste fino entre um e outro ou, como enfatiza Merleau-Ponty, “[...] dois olhares, um no outro.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 24).

A ideia central da meditação de Merleau-Ponty sobre a pintura, particularmente no ensaio sobre “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” e n’O Olho e o Espírito, é que todos os problemas da pintura se relacionam com os entrecruzamentos que evoquei, quando falei sobre percepção, entrecruzamentos, que, formando o tema central da obra de Merleau-Ponty, o levam a definir o próprio pensamento em termos de entrecruzamento.

Os pintores, como Dürer, frequentemente dizem que os traços de suas telas estavam na natureza, lá no mundo visível, e que eles se aplicam em decifrá-los, mas afirmam também que encontram esses traços neles mesmos. Assim, Cézanne declara que “[...] a natureza está no interior” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 22); ou aquele clássico chinês dizendo que, para pintar um bambu, é preciso fazê-lo crescer em si mesmo (cf. CHENG, François. Souffle-Esprit, Le Seuil, 1989, p. 158.) As duas afirmações não são contraditórias: elas devem ser tomadas conjuntamente. Juntas, elas dizem que o pintor não pinta simplesmente o visível, mas o entrecruzamento do visível e do vidente. As dimensões do visível são, como foi proposto, indissociáveis do vidente, do eco que elas suscitam em nosso corpo, na medida em que este as acolhe. É esse eco que o quadro torna visível. Nesse sentido, Merleau-Ponty questiona: “Esse equivalente interno, essa fórmula carnal de sua presença que as coisas suscitam em mim, porque ela não suscitaria um traço, ainda no domínio do visível, onde os outros olhares encontrariam os motivos que sustentam sua inspeção do mundo?” E ele responde: “Assim, aparece um visível em segunda potência, essência carnal ou ícone do primeiro.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 22). Há uma frase de Valéry que Merleau-Ponty gostava de citar: “O pintor emprega seu corpo.” Isso parece trivial: não podemos conceber um ser sem corpo, capaz de observar o motivo, de misturar as coisas, de segurar o pincel. A frase não tem nada de trivial, se ela significa que o pintor é aquele que exprime em sua tela o diagrama de uma das múltiplas relações de entrecruzamento que o visível mantém com nosso corpo.

Dessa forma, a tela nunca é um trompe-l’oeil, um duplo das coisas, uma cópia, um sistema de elementos ou de fragmentos ou de “dados visuais” emprestados do mundo dito “real”, para acessá-lo em sua ausência, como pensado por Platão com os gregos, ou Descartes, e também Pascal, no início da modernidade. A tela não é o duplo irreal do real: ela mostra ao olhar o diagrama bastante atual da vida das coisas, em nosso corpo. Isso nos faz compreender que, mesmo os artistas cuja obra está, à primeira vista, mais distante da percepção comum – um Giacometti, por exemplo –, podem escrever: “O que me interessa em todas as pinturas, é a semelhança.” E ele acrescenta, para destacar que tal semelhança nada tem a ver com um trompe-l’oeil: “[...] isto é para mim a semelhança: o que me faz descobrir um pouco o mundo exterior.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 24).

Nessas condições, o trabalho do pintor vem romper com o paradigma da distinção entre o real e o imaginário, sendo aquele verdadeiro e este ilusório e irreal. O que o trabalho do artista expõe ao nosso olhar não é um duplo irreal do real, mas aquilo que Merleau-Ponty chama, sem contradição, de “textura imaginária do real”. No entrecruzamento do visível com o vidente, há imediatamente o entrecruzamento imaginário-real. Tal entrecruzamento é expresso frequentemente pelos criadores mais inclinados a dar livre curso à fantasia. As palavras de Max Ernst, por exemplo, expressando todos os surrealistas: “[...] o papel do pintor é identificar e projetar aquilo que se vê nele.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 30-31). A cor também atesta esse entrecruzamento, se for verdade que, já no campo visual quotidiano e, consequentemente, na pintura, ela é indissociável do significado simbólico ou cultural nelas investidos, e não é definitivamente um puro “dado sensorial”, a não ser no laboratório do psicólogo.

Pode-se objetar: pode ser, mas esse diagrama que as coisas despertam no corpo do pintor só pertencem a ele, a seu mundo privado e, por isso, não é real. No entanto, o paradoxo é justamente o fato de que esse mundo alegadamente privado, tão logo é expresso, torna-se constitutivo de um mundo comum, e que o diagrama tornado tela desperta nos outros os ecos e impõe a cada um uma maneira de inspecionar o mundo. Proust observa, em La Recherche du Temps Perdu, que logo após os retratos femininos de Renoir terem suscitado sarcasmo e reprovação por causa de não semelhança com mulheres reais, as pessoas passaram a ver as mulheres sob a luz de Renoir. Pode-se dizer quase o mesmo sobre os retratos de Modigliani ou sobre os desenhos e papéis recortados de Matisse. Estranhas de início, essas obras logo reavivaram em cada um os ecos, as reminiscências carnais, e fizeram as pessoas reconhecerem os diagramas coletivos da feminidade.

Como podemos observar, o entrecruzamento do visível com o vidente toma corpo, por assim dizer, com o entrecruzamento do real e do imaginário e do privado com o comum.

Tudo se passa como se a pintura atestasse uma propagação generalizada do entrecruzamento. Mas retomemos o entrecruzamento entre o visível e o vidente. Ele opera, de fato, em duas direções. O visível, como acabamos de dizer, suscita naquele que vê um diagrama carnal de sua maneira de ser. É o mesmo que afirmar que o visível faz parte do vidente. Porém, inversamente, o vidente faz parte do visível. Essa noção é expressa por vários pintores que, como frisa Merleau-Ponty a respeito de Paul Klee, dizem sentirem-se “[...] observados pelas coisas.” (Cf. MERLEAU-PONTY, 1964, p. 31). É esse sentimento que é expresso iconograficamente, desde a época clássica, quando os pintores se representam em sua atividade pictórica (Matisse o faz em alguns desenhos), ou como em muitos interiores flamengos, ou holandeses, pela instalação de algum tipo de espectador no coração do visível, sob a forma de um espelho onde a cena é refletida. O espelho, sustenta Merleau-Ponty, é como um “[...] olhar pré-humano que é o emblema do olhar do pintor.” E ele acrescenta: “O espelho aparece porque eu sou vidente visível, porque há uma reflexividade do sensível que o espelho traduz e redobra”, e mais ainda, “Ele é o instrumento de uma magia universal que transforma as coisas em espetáculo, os espetáculos em coisas, eu em outro e o outro em mim.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 33-34). Se Merleau-Ponty fala aqui de magia, não é certamente por gostar do irracional, mas para marcar o contraste entre a visão efetiva e a reconstrução dela dada pelo pensamento analítico da filosofia da reflexão, como a de Descartes, por exemplo. Esse pensamento recusa, por princípio, a promiscuidade entre vidente e visível, de tal modo que

[...] um cartesiano não vê a si mesmo no espelho: ele vê um manequim, um “fora” que não é para ele a carne de sua carne, mas uma simples “imagem”, tomada pelo pensamento como um reflexo mecânico de seu próprio corpo, um reflexo ao qual o pensamento atribui, como a um efeito, alguma semelhança com sua causa. (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 38-39).

 

Os entrecruzamentos dos quais tratei até aqui estão longe de serem os únicos expressos pela pintura. De fato, o que a pintura expressa mais fortemente é o entrecruzamento recíproco de todas as dimensões do visível: luz, sombras, cores, reflexos, linhas. Não é necessário dizer que, para um pensamento de estilo cartesiano, linha e cor são distintos, como o são a forma e o conteúdo: a linha marca o contorno da coisa, o envelope que a cor vem preencher. Mas uma distinção desse tipo, clara para o entendimento, é contestada pela pintura. Algumas linhas, e nada mais que linhas, eram suficientes aos pintores pré-históricos da caverna de Teruel, na Espanha, para nos fazer ver um grupo de caçadores. Merleau-Ponty recorda que Leonardo da Vinci, no Tratado da Pintura, se referiu a “descobrir em cada objeto [...] a maneira particular pela qual uma certa linha sinuosa perpassa toda sua extensão como seu eixo gerador.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 72). Tomando um exemplo mais próximo a nós, Paul Klee foi um pintor para quem era necessária apenas uma linha para que estruturasse diante de nós o personagem de um “bruto tímido”, e para tornar visível uma espécie de gênese das coisas (Cf. MERLEAU-PONTY, 1964, p. 74). Isso mostra que a linha, em vez de ser um limite, pode exprimir a coisa, em sua inteireza, e paradoxalmente funcionar como uma “parte total”. O que vale para a linha vale também para a cor: ela também funciona como parte total capaz de sozinha apresentar o objeto em sua forma e volume próprios, como em Cézanne, que costumava dizer: “Quando a cor está em sua perfeição, a forma está em sua plenitude.”

Não menos significativo que os entrecruzamentos dos quais tenho falado é o fato de que frequentemente bons pintores – pensemos em Degas, Renoir, Picasso e Matisse – foram também bons escultores, ainda que os gestos e processos requeridos para fazer uma escultura sejam diferentes daqueles requeridos pela pintura. Merleau-Ponty vê nisso “[...] a prova de que há um sistema de equivalências, um Logos das linhas, das luzes, dos relevos, das massas, uma apresentação sem conceito do Ser universal.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 71). Ou como escreve, em outro trecho, “[...] um polimorfismo do Ser.”

É ainda a noção de entrecruzamento que guia a reflexão de Merleau-Ponty, mesmo não expressamente formulada, em sua meditação sobre o estilo, em seu ensaio sobre As vozes do silêncio de Malraux.

Por estilo podemos entender a coerência estrutural conquistada por uma obra individual, coerência com a qual o espectador se familiariza rapidamente e que lhe permite reconhecer como obras de determinado pintor as telas que ele nunca viu. Sobre isso, Malraux alude a uma “deformação coerente” que se exprime como se a forma conquistada pelo artista fosse puramente arbitrária com relação ao visível e coerente somente com relação a si mesma, no sentido de que o estilo forma uma espécie de sistema. Mais precisamente, ele se exprime como se o estilo fosse imposto soberanamente pelo artista, sem nenhuma preliminar no mundo visível. “As artes plásticas”, diz ele, “[...] não nascem de uma forma de ver o mundo, mas do fazê-lo.” Merleau-Ponty recusa esse voluntarismo, essa ideia de soberania, esse acosmismo.[3] E o que ele recusa nessas noções é precisamente o fato de que elas se fundamentam sobre as alternativas e os dualismos dos quais falamos. Malraux nos impõe uma escolha entre o mundo visível e o mundo espiritual do criador, e o mundo do criador não tem nenhum antecedente no mundo sensível, de modo que a vitória de um estilo parece implicar a abdicação de um grande número de outros, diante da genialidade do pintor. Porém, Merleau-Ponty afirma não haver abdicação, mas reconhecimento. Tal reconhecimento é baseado no fato de que o estilo se impõe simplesmente porque ele adere ao visível e, de alguma maneira, encontra nele seus antecedentes, sendo, nessa medida, acessível aos demais, como uma construção interindividual, não emergindo ex nihilo e jorrando da solidão tempestuosa do gênio (cf. MERLEAU-PONTY, 1960, p. 67-68 e 72-73). Visto pelos outros, o pintor pode às vezes aparecer como o criador de um contramundo, entretanto, para o pintor em trabalho, há um mundo, e é um mundo que lança a ele um apelo ao qual ele jamais cessará de responder.

Há ainda um último entrecruzamento. O pintor não responde somente àquilo que o mundo visível espera dele, nem meramente segue as tarefas inerentes à pintura, desde seus primeiros passos, mas ele se inscreve sempre em uma tradição da pintura, na medida em que há entrecruzamento entre sua obra e essa tradição. Nesse ponto, novamente o debate com Malraux é esclarecedor. Malraux insiste que a pintura forma uma aventura temporal única, de tal forma que há uma fraternidade entre pintores do passado e do presente, um parentesco entre passado e presente, nos problemas e soluções, em suma, uma unidade da pintura como tal. Contudo, essa unidade se exprime apenas como retrospectiva, ou seja, é tornada visível e, por assim dizer, constituída posteriormente pelo fenômeno moderno do museu. Assim, a unidade da pintura parece ser, para Malraux, trans-histórica, e ele vê na história efetiva nada além de desunião, uma luta de cada pintor com os demais, esquecimento, fracasso no reconhecimento. É essa dualidade — de um lado, a unidade do museu, e, de outro, a divisão histórica — que Merleau-Ponty recusa. Dizer que a unidade é retrospectiva é ignorar que, assim como ver é sempre ver mais do que se vê, ou seja, uma franja invisível que não tem lugar na totalidade dos dados estritamente visuais, em sentido positivo, também pintar é pintar além do que se pinta. Desde que existe, a pintura excede a si mesma. Ao mesmo tempo que ela se oferece aos olhares, ela abre um campo de visibilidade que a transborda, seu poder perceptivo é acoplado a um poder prospectivo. Em vez de opor a unidade intemporal do museu à divisão da história efetiva, trata-se de compreender a própria história efetiva em termos de entrecruzamentos temporais, nos quais nem o já adquirido e nem o novo são absolutos e a ideia “[...] de uma totalização da pintura [...] é desprovida de sentido.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 90).

Se for verdade que os entrecruzamentos constituem a raiz e a fonte do pensamento, e se for verdade, por outro lado, que a própria pintura tem suas raízes e sua fonte nos entrecruzamentos análogos, podemos compreender por que Merleau-Ponty fala de um “pensamento mudo” da pintura (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 91).

Compreende-se, com isso, que Merleau-Ponty está muito longe dos filósofos que, desde Platão, proclamam de uma maneira ou outra a necessária superação da pintura, seja em nome das Ideias, platônicas ou cartesianas, seja em nome daquelas da História do Espírito, ou daquela da Práxis material, da absurdidade da Vontade, seja ainda em nome da história do Ser. A atenção desses filósofos, embora falem de pintura, não se volta para a especificidade do visível.

Reconhecemos isso ao dizer, em sentido contrário a todas as grandes narrativas que, desde o mito da caverna, proclamam a morte da arte: “Ainda que dure milhões de anos, o mundo ainda estará por pintar, para os pintores, se eles ainda existirem, e acabará sem que seja totalmente pintado.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 90.)

 

REFERÊNCIAS

HUSSERL, E. Manuscrit K III1 III, p. 19-20.

MERLEAU-PONTY, M. Signes. Paris: Gallimard, 1960.

MERLEAU-PONTY, M. L’oeil et l’esprit. Paris: Gallimard, 1964.

 

Recebido: 25/01/2022

Aceito: 13/06/2022



[1] Título original: “Le penseur et le peintre: sur Merleau-Ponty”, publicado pela revista La Part de L’Oeil, em sua edição de nº 7, Dossier: Art et Phénoménologie, p. 39-46, no ano de 1991. Agradeço a Dirk Dehouck pela gentileza e atenção, e pela autorização da publicação da tradução do texto em português. O autor Jacques Taminiaux (in memoriam) foi um filósofo belga, professor emérito da Université de Louvain e do Boston College.

[2] Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7795-8116 E-mail: tnschw@usp.br. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

[3] Negação do mundo real e sensível. [N.T.]