O infinito e o aberto: sobre as intuições éticas de Levinas e Bergson
Resumo: Levinas é quase que unicamente estudado pela ótica da fenomenologia e, evidentemente, isso é bastante justificável, pelo fato de o filósofo se dizer herdeiro de Husserl, embora seja muito importante considerar outras influências para uma compreensão mais aprofundada de seu pensamento, como o talmudismo e a literatura russa. Mas, em geral, permanece esquecida uma importante referência que Levinas nunca deixa de mencionar, em suas entrevistas e mesmo no prefácio para a edição alemã (1987) de seu importante livro Totalité et infini: a filosofia de Bergson. Nosso objetivo é buscar os elementos dessa aproximação, muitas vezes mencionada, porém, pouco explorada, entre as intuições éticas de Levinas e de Bergson. Ainda que não seja a obra Les deux sources de la morale et de la religion a que Levinas gosta de lembrar, quando se refere a Bergson, é ela que evocaremos, para sugerir uma comunicação intuitiva que conecta o conceito bergsoniano de aberto e o conceito levinasiano de infinito. Levinas dá um passo além da fenomenologia, quando elabora um de seus conceitos fundamentais, o de visage, e é ele mesmo quem admite, na conversa com Philippe Nemo, intitulada Éthique et infini (1984), mas deveríamos nos surpreender, se a noção mais importante da ética levinasiana, a de infinitude, revelasse o que há de mais essencial na ética de Bergson, o sentido de abertura, pelo qual se anuncia uma responsabilidade sem limites, ou seja, incondicional?
Palavras-chave: Infinito. Aberto. Ética. Responsabilidade.
Introdução
Nos escritos de Levinas, incluindo suas entrevistas, a presença de Bergson não é aleatória ou pouco importante, ainda que não provoque consequências explícitas nos desdobramentos teóricos do autor de Totalité et infini. É majoritariamente na tradição da fenomenologia que Levinas será lido e comentado, e, num segundo plano, pela ótica do judaísmo, notadamente o da vertente talmudista.[2] Poucos são os trabalhos que se dedicam a analisar a aproximação entre o bergsonismo e, em particular, a ética dual do fechado e do aberto, e a filosofia da infinitude ética.[3] É preciso também lembrar que a obra de Bergson dedicada ao tema, Les deux sources de la morale et de la religion, de 1932, é a menos lida e comentada. Frédéric Worms chega a considerar que, da mesma forma que L’évolution créatrice sofre um certo prejuízo por ser lida e conhecida demasiadamente, por outro lado, Les deux sources padece por falta de leitores.[4]
Minha intenção, neste ensaio, é estudar as intuições fundamentais das teorias éticas de Levinas e Bergson – o infinito e o aberto – e, também, sugerir uma comunhão entre esses dois filósofos, uma espécie de campo de comunicação que permite que eles, falando línguas conceituais bem diferentes, consigam se entender a respeito daquilo em que consiste essencialmente para ambos o problema da ética. Se este ensaio conseguir elevar o volume de leitores da última grande obra de Bergson, já terá valido a pena o seu esforço. Mas a minha aposta não deixa de ser também a de trazer mais leitores levinasianos para o campo bergsoniano, a fim de misturar essas duas frequências, encontrar seus pontos de contato e experimentar novas potências.
A infinitude, que é a ruptura da totalidade conduzida por uma crítica contundente e sempre recorrente da ontologia, constitui o coração da ética levinasiana. De fato, a crítica da ontologia é quase um método em Levinas, uma chave de compreensão fundamental desse pensamento. Tem a ética como filosofia primeira, que é o acolhimento da ideia de infinito, ao mesmo tempo que sua impossível tematização, em virtude de um cogito surpreendido com um conteúdo sem contornos de cogitação, portanto, fora de cogitação – enfim, a afirmação dessa primazia absoluta deriva da crítica do ser, assim como impõe a tarefa constantemente renovada dessa crítica, sua continuidade no movimento do pensamento filosófico.
O leitor de Levinas conhece o problema do discurso de Totalité et infini, analisado por Jacques Derrida, no ensaio “Violence et métaphysique”,[5] e é justamente a questão de uma linguagem possível e impossível da ética, uma vez que o discurso que afirma a ética como filosofia primeira, recai no lugar que diz ter abandonado, a ontologia. Levinas persiste em seu caminho de crítica do ser e propõe, em Autrement qu’être, que aparece em 1974, um discurso ético constantemente tensionado entre o dito e o dizer, entre o momento propositivo e digamos, espacializante, e sua temporalidade irreconciliável e extraordinária, a qual Levinas chama de diacronia. A ética de Levinas pode muito bem ser explicada pela dificuldade em traduzir a temporalidade da ética, em termos espaciais.
A responsabilidade, sendo de uma ordem outra que a do ser, obriga o seu discurso a se arrancar constantemente de si, sob pena de se cristalizar em um dito perfeitamente coerente consigo mesmo, uma cogitação, mas, por esse motivo, tornando-se neutro, teorético e impessoal, e, por isso, ameaçando falsear a responsabilidade ética. Essa radicalidade do ato ético está marcada, assim, por uma incondição, que é no fundo o limite do pensamento, ao mesmo tempo que é seu motivo. De um ponto de vista levinasiano, uma teoria da responsabilidade só pode ser equívoca, visto que seu rigor depende de um constante desdizer. Se Bergson acusa a metafísica tradicional de ser espacializante, de traduzir tudo em termos espaciais, inclusive o tempo e o movimento, podemos aqui propor uma chave para entender Levinas, de forma bergsoniana: a responsabilidade, ao virar o tema de um dito, delimita-se em termos espaciais, mas, enquanto dizer, ela é justo aquilo que escapa do espaço, assumindo uma forma temporal. O dilema da responsabilidade é o de não poder se contentar com uma inteligência que é geométrica e numérica, e, ao mesmo tempo, ela não pode deixar de recorrer a essa inteligência. A responsabilidade tem uma natureza supraintelectual, a qual, no entanto, se intelectualiza em forma de teoria, porém, por assim dizer, diferenciando a teoria pelo movimento incessante do dito-dizer-desdizer. O acolhimento da ideia de infinito é uma intuição que não se rende ao conceito, como o tempo não se rende ao espaço.
1 Bergson: ética da abertura
A ética de Bergson deriva de uma filosofia da vida. Les deux sources é onde culmina o vitalismo bergsoniano e onde veremos novas séries de linhas divergentes: o aberto e o fechado, o dinâmico e o estático, o instinto virtual e a intuição mística. Aberto e fechado são a fórmula geral do dualismo que Bergson propõe, para explicar os fenômenos da moral e da religião. Trata-se de um misto: a moral se constitui em linhas que diferem por natureza – do fechado não se chega ao aberto. O que Bergson está indicando com o termo aberto, ao abordar a atitude dos grandes místicos, é um tipo de responsabilidade incondicional, um gesto fora do comum, extraordinário, encontrável apenas em certas personalidades privilegiadas, que, no entanto, são capazes de nos tocar, pois a mensagem moral que trazem ressoa no fundo da alma comum, suscitando não mais uma pressão ou constrangimento, mas uma aspiração, um tipo não restrito de sentimento moral, o qual nos eleva, ao nos lançar na corrente de um élan vital amoroso e estendido, capaz de estabelecer conexões que extrapolam os limites da obrigação. Essa elevação da aspiração mística nos devolve ao princípio criador da vida.
O aberto e o fechado são os dois sentidos da moral, que resultam de duas qualidades diferentes de forças atuantes na vida social. A mais elementar e, sem dúvida alguma, a mais determinante da moral que compartilhamos é a força da obrigação. É a moral no sentido mais comum, caracterizada por um automatismo tão eficiente quanto ausente de reflexão, e estruturada pelo mecanismo descomplicado do hábito. Trata-se de uma força de constrangimento da vida, de natureza conservadora, cujo propósito é o compromisso com a situação social, a sociedade, no sentido fechado: esta ou aquela, esta e não aquela. O sentimento da obrigação é condicionado a contextos específicos, e a ação dele decorrente é um comprometimento da vida enquanto vida social, enquanto parte no todo. A obrigação depende de um apagamento de si: ela cresce, na medida em que deve decrescer o interesse por si próprio.[6] Será preciso esclarecer por que esse desinteresse por si mesmo que constitui a moral da obrigação é infraintelectual, por que a eficácia da obrigação não depende da inteligência, embora tenha que fazer uso dela. A explicação de Bergson o leva a criticar o intelectualismo das teorias morais, tanto o de vertente kantiana quanto a abordagem utilitarista.[7]
Para explicar esse sentimento moral, é evidente que é preciso abordar a sociedade, mas, nessa abordagem, ser capaz de ver através dela o modo como a vida em geral está operando em nós e por nós. É sempre o movimento da vida que está em questão, no bergsonismo. “O erro seria de crer que pressão e aspiração morais encontram sua explicação definitiva na vida social considerada como um simples fato.” (DS, p. 102). Bergson recorre às teses de L’évolution créatrice para explicar a moral da obrigação.[8] A obrigação é nosso lado instintivo manifestado como uma força da natureza que age em nós. Evidentemente, ela não pode ter todas as características encontráveis nas sociedades dos insetos himenópteros (abelhas e formigas); não podemos comparar a obrigação com a ação coordenada instintivamente das abelhas, nem a gênese, nem a funcionalidade, porque Bergson estabelece a diferença de natureza que separa a inteligência, predominante nas sociedades humanas, do instinto, responsável pelas colmeias e formigueiros. Abelhas e formigas não agem por obrigação: seria preciso que fossem inteligentes, aliás, esse é o motivo pelo qual suas sociedades são tão perfeitas e estáveis, ainda que não variem.
Porém, a obrigação não resulta de nenhum acordo previamente estabelecido pela inteligência, ela é anteriormente uma reação ao poder dissolvente e antissocial da inteligência. Tal reação toma a forma de um instinto virtual: a evolução é sempre um arranjo de tendências, e cada resultado específico testemunha avanços e recuos das tendências, e não presenças e ausências. Por exemplo, na grande divisão evolutiva da vida animal,[9] a qual corresponde às correntes do instinto e da inteligência, o impulso vital que anima cada ser vivo permanece ligado às duas forças, sendo uma mais presente e determinante das consequências mais visíveis, e a outra, não ausente, mas virtualmente presente, ou seja, podendo se atualizar, quando for o caso de haver a necessidade de compensar os efeitos exagerados da seleção evolutiva de tendências.
Bergson compreende que a vida é um todo, que, ao se dividir no movimento da especiação, precisa distribuir suas partes de forma diferenciada e, por isso, pelas lacunas que serão inevitáveis, a própria vida buscará suas compensações. O instinto virtual é o mecanismo de efeito reativo que nos mantém amarrados socialmente, entendendo-se que a inteligência age primeiramente em benefício do indivíduo, que ela é egoísta por natureza (interessada), como se ela constituísse um problema moral, antes mesmo de ela inventar conceitos para a moral, e conceitos que servirão para pautar a problematização nesse gênero de conhecimento. Quer dizer, a inteligência não funda a moral em conceitos, como se estivesse em um campo neutro; a inteligência já é um problema (moral) para o qual ela própria criará alternativas, maneiras de conter os efeitos danosos que já se anunciam no seu próprio psiquismo.
Bergson fala frequentemente, desde Evolução criadora, que o instinto permanece como uma franja da inteligência. Todavia, no contexto de Duas fontes, essa franja é elaborada em termos de uma virtualidade que serve para explicar a pressão social que sentimos e à qual respondemos. A obrigação tem uma natureza infraintelectual, não sendo instintiva, no sentido estrito, dado que nossa sociedade resulta de um trabalho inteligente, mas ela é uma atualização de nossa instintividade virtual, que é compensatória do poder desagregante da inteligência. A noção de virtualidade é muito importante de ser compreendida, pois ela atravessa todo o bergsonismo e é por ela que compreendemos o caráter criador da diferenciação, conforme frisa Deleuze (2012, p. 84-85): “para atualizar-se, o virtual não pode proceder por limitação, mas deve criar suas próprias linhas de atualização em atos positivos.”
O par virtual-atual contrapõe-se ao par possível-real: quando explicamos o real pelas suas possibilidades, sempre visíveis ou dedutíveis do arranjo determinado que se realizou, ignoramos o que há de indeterminado na própria realidade e, por isso, ignoramos o aspecto propriamente temporal do real, a sua duração: se o real deriva do que foi possível, ele está pré-formado, pré-determinado; contudo, o virtual, ao se atualizar, cria as condições pelas quais se atualiza. Assim se explica o efeito do instinto virtual: ele não é uma possibilidade que pré-forma a sociedade humana, mas uma memória ligada ao impulso vital que vai operar por meio de dispositivos de ação, os quais garantem o elo social – são as regras, os constrangimentos que criamos para ordenar a vida em comum, não exatamente porque compreendemos intelectualmente sua razão de ser.
As obrigações não são da ordem do saber, como são as leis científicas da razão pura; mas também não são provenientes de uma outra ordem racional, que seria a razão prática. Aqui estamos bem distantes do kantismo. Se quisermos entender as obrigações como um saber, seria preciso imaginar um saber que age por nós, como que à nossa revelia. Embora ele convoque a inteligência em seu proveito, pois é necessário dar às regras uma racionalidade, ele não encontra na inteligência o seu fundamento: a preocupação com a sociedade não nasce da inteligência – para tanto, precisaríamos supor uma neutralidade completamente abstrata da inteligência, uma pura forma – mas por causa dela, como reação a ela, reação, entenda-se, infraintelectual, na forma de obrigação. Porque não temos a capacidade social das abelhas, nos damos obrigações, e até somos capazes de compreender a razão de ser de cada uma delas, somos capazes de discipliná-las como formas transmissíveis de conhecimentos. Porém, o todo da obrigação permanece anterior à razão, ele provém de um instinto virtual.
O conceito de função fabuladora introduz a religião na ética vitalista de Bergson, e é mais um desdobramento do instinto virtual. O conceito é apresentado no segundo capítulo de Duas fontes, intitulado “A religião estática”. Logo no segundo parágrafo do capítulo, deparamos com uma declaração em favor da hipótese não intelectualista do ordenamento social: “Encontramos no passado, encontraríamos mesmo hoje sociedades humanas que não tem nem ciência, nem arte, nem filosofia. Mas jamais houve sociedade sem religião.” (DS, p. 105). Aquilo que parece essencial para haver sociedade não depende exatamente da inteligência. Por outro lado, não teria havido religião, mesmo no sentido de suas formas mais elementares, se a inteligência não tivesse ocupado esse lugar central na vida humana, de orientá-la na direção de experiências razoáveis, de buscar verdades baseadas em fatos – digamos que, a seu modo, a religião é inteligente, e é preciso entender bem esse modo, disso dependendo o reconhecimento da diferença de natureza entre religião e inteligência.
Tal reconhecimento sempre nos dá a chance de denunciar a estupidez da superstição e de todas as espécies de fanatismo. É preciso que não haja dúvidas sobre como Bergson valoriza a inteligência: uma vez que ele é anti-intelectualista, isso pode dar margem a críticas que o acusem de irracionalismo. O vitalismo de Bergson não é irracionalista. O problema, segundo Bergson, é que vamos longe demais nas consequências das experiências razoáveis: as descobertas científicas sempre tiveram que pagar seu preço para buscar uma acomodação social e, por mais que hoje ela esteja domesticada como instituição social, como não era na época de Galileu, ela permanece sendo um corpo estranho e perigoso aos olhos da sociedade.[10] No processo de diferenciação, na cisão do impulso vital em inteligência e instinto, a sociedade, como força da vida, organiza-se instintivamente, mediante ação muito mais dirigida pelo hábito do que pela reflexão. A inteligência, por mais habilidosa que seja para inventar as razões de nossa obediência, não tem como neutralizar essa diferença, nenhuma teoria irá cobrir o intervalo que separa a inteligência da sociedade. A inteligência, o qual é um processo verificável individualmente no todo da paisagem social, é sempre menos do que gostaria de ser.
Por outro lado, ela tem um alcance que ela, de certa forma, desconhece – o caso da função fabuladora é um exemplo disso: a superstição é um absurdo que só a inteligência pode criar e, quando julgamos o comportamento supersticioso, nem sempre enxergamos a sua razão mais fundamental – o instinto na forma de virtualidade, induzindo a inteligência a criar ficções, a compor ideias que ela própria não pode entender e que, no entanto, cumprem um papel fundamental, inclusive para que a inteligência possa continuar agindo razoavelmente.
Além do caráter antissocial da inteligência, Bergson aponta outros perigos que suscitarão o dispositivo fabulatório. O animal inteligente sabe de sua mortalidade e também entende que não tem garantias de ser bem-sucedido em suas ações, que as coisas, enfim, são imprevisíveis. O sentimento do risco e a ideia geral da morte, os quais derivam de nossa capacidade reflexiva, não têm nenhuma vantagem do ponto de vista do élan vital, interessado evolutivamente em aprimorar a capacidade animal de agir. A inteligência permanece ligada à ação, contudo, a consciência, ao se ampliar em nós, aumenta o intervalo entre a ação executada e sua projeção no pensamento antecipatório. Hesitamos em agir imediatamente, porque preferimos calcular os passos, medir as consequências.
Com certeza, o resultado geral do cálculo aponta para nossa soberania técnica. Mas, do ponto de vista individual, nossa consciência nos deprime, diminui nossa capacidade de ação, nos desanima – e desanimar, não custa lembrar, é inibir a animalidade. “Se o élan de vida distrai todos os outros viventes da representação da morte, o pensamento da morte deve desacelerar no homem o movimento da vida.” (DS, p. 136). Evidentemente, haverá uma compensação. Assim nascem, segundo Bergson, as imagens de vida depois da morte. Do ponto de vista da vida, que permanece muito mais radicalmente ligada ao instinto, mesmo quando ele concede espaço para o florescimento da inteligência, não há nenhuma utilidade no pensamento da morte. O instinto virtual vai forçar a inteligência a produzir imagens que neutralizam o efeito negativo causado pela consciência da finitude. “Considerada desse segundo ponto de vista, a religião é uma reação defensiva da natureza contra a representação, pela inteligência, da inevitabilidade da morte.” (DS, p. 137). A inteligência da religião seria, digamos, uma inteligência da natureza.
O terceiro ponto de vista pelo qual Bergson explica a religião, ligada ao instinto mais que à inteligência, diz respeito ao risco de dar errado, que é muito aparentado ao pensamento da morte, uma vez que ambos provêm do intervalo da consciência, da concessão dada à inteligência. A projeção de um ato, no objetivo refletido da ação, não virá desacompanhada de ideias positivas, as quais neutralizam o efeito da consciência de que se pode falhar. Novamente, tal pensamento não tem utilidade, quando entendemos que a vida é impulso e movimento. “O animal é seguro dele mesmo. Entre o objetivo e o ato, nada nele se interpõe.” (DS, p. 144-145). A tendência da inteligência autoconsciente é pensar sobre o ato, e é por isso que o ser humano tende a inibir sua animalidade. Desde a Evolução criadora, nós nos acostumamos a pensar a inteligência em seu sentido mais concreto e rente à vida: ela é uma força que articula mecanicamente o passo-a-passo da ação e quando lhe ocorre de suspender o presente em vista de um futuro desejado, quando lhe ocorre de imaginar um objetivo, ela passa a produzir artifícios extramecânicos compensatórios de uma mecânica não mais inteiramente dona de si, porque ciente de suas fraquezas em face do imprevisível. É nos intervalos da inteligência humana, na suspensão do presente, que se inserem as formas mais elementares da religião[11]. Elas fazem crer para que a ação não fraqueje, para que o imprevisível não desencoraje a iniciativa.[12]
Contudo, até agora tratamos apenas do fechado. A natureza nos encerra, através da função fabuladora, no interior da sociedade, exatamente através da obediência. A visão geral da sociedade é a de uma organização fechada, que, em boa dose, imita as sociedades instintivas. A natureza nos convence de que é preciso obedecer, sem que saibamos exatamente por que, ainda que produzamos filosofias que racionalizam a obediência. Mas, apenas obedecendo, pouca diferença fazemos em relação a uma sociedade puramente instintiva. A moral da obediência só precisa imitar o instinto dos insetos para chegar a sua melhor performance. Evidentemente, a natureza espera mais de nós: que saibamos sair do circuito fechado inteligência-instinto, que é o que consome a maior parte de nossas vidas. A sociedade fechada está destinada a viver em estado latente de guerra,[13] ela sempre terá uma outra sociedade como sua antagonista: o encerramento da sociedade é o limite das condições que formam as obrigações e responsabilidades.
No entanto, dessa maneira, a moral fechada estabelece um sentido condicionado e, portanto, impessoal para a responsabilidade. Uma responsabilidade, enfim, geral e abstrata. Obviamente, aqui está um ponto clarividente acerca do motivo deste ensaio, a comunhão entre a ética de Bergson e a de Levinas: em ambos, o conceito radical de responsabilidade não opera na impessoalidade. Na verdade, não tem sentido considerar uma responsabilidade impessoal: enquanto apenas obedecemos, não somos ainda responsáveis,[14] pois é mais a natureza que age por nós do que cada um por si mesmo. É claro que o impulso vital vai pedir passagem, ele não pode se contentar com o estado estacionário e reacionário da sociedade fechada, no mínimo, porque este é belicoso por natureza, tende a naturalizar o estado de guerra e todas as suas iniquidades. É através do conceito de emoção criadora que saltamos para o aberto.
2 Mística, emoção e criação
A sociedade nunca deixa de ser fechada, mas ela abriga individualidades capazes de conectar a humanidade inteira, e não apenas os mais próximos, os de dentro. O conceito de aberto, ponto central da ética bergsoniana – assim como é o de infinito, na ética levinasiana – se articula na análise da alma aberta. O método de Bergson, já o sabemos, passa sempre pela diferença de natureza, e a primeira coisa importante a dizer nessa análise é que não se passa do fechado ao aberto como se passa do frio ao quente, ou seja, por diferença de grau. Outra coisa importante a ser vista nessa teoria da diferenciação de Bergson é que a diferença de natureza não implica substância estabilizadora, porém, tendência do élan vital, não esquecendo que estamos numa filosofia da duração, a qual entende a vida como estado de movimento. Embora possa parecer, na análise de Bergson, que ele caracterize a alma aberta, aludindo, por exemplo, à experiência mística,[15] não se trata de demarcar um tipo, enfatizar na diferença, ou na tendência, um tipo de identidade, mas antes de caracterizar para fazer ver uma determinada configuração do élan vital, o contorno material de uma tendência ou feixe de intensidade.
Mais uma vez, é preciso lembrar o propósito do vitalismo: fazer ver na espécie formada a marca dos movimentos, focalizar os movimentos e não suas estabilidades ou estados estacionários. A alma aberta se encarna em personalidades privilegiadas, ressalta Bergson, mas talvez o mais importante é que ela ressoe nas almas comuns; a alma aberta está mais à altura de sua realização, na experiência mística, mas não quer dizer que esteja ausente da vida comum. A maior prova disso é que as experiências místicas provocam, movem por aspiração: a elas nos dirigimos, não por pressão, mas porque sentimos que há ali algo de desejável e grandioso. O essencial desse tipo de força é sua simplicidade, e toda forma de racionalização que a inteligência faz dela, religiosa ou filosófica, deveria ser capaz de traduzir essa simplicidade.[16] Todavia, a inteligência se enreda em formulações complicadas, sem contar que, em geral, desconsidera a diferença de natureza.
O que faz a alma aberta é mover a sociedade para fora de seu círculo vicioso. Trata-se de um movimento que não está referido a um objeto e nem deriva de uma representação prévia da inteligência. Esse é o tipo de emoção que Bergson atribui tanto à experiência mística quanto a certas experiências estéticas, como a criação de uma obra musical[17], por exemplo. Desse movimento criador da alma aberta, Bergson faz surgir uma sociedade aberta. Contudo, a palavra sociedade deve ganhar outra conotação, porque ela não vai formar os contornos de uma sociedade como imaginamos, mas vai traçar linhas de divisão dentro da massa social, bem como de uma massa a outra, através de uma espécie de contágio que não encontra obstáculos.
É a partir desse contágio da emoção criadora que podemos formar uma sociedade aberta. No final de seu Bergsonismo, ao remeter à emoção criadora, Deleuze evoca o conceito de memória, que, no contexto de Matéria e memória, tem um funcionamento semelhante ao de emoção, na análise da alma aberta:
E o que seria essa emoção criadora senão, precisamente, uma Memória cósmica, que atualiza ao mesmo tempo todos os níveis, que libera o homem do plano ou do nível que lhe é próprio para fazer dele um criador, um ente adequado a todo movimento da criação? Tal encarnação da memória cósmica em emoções criadoras, tal liberação ocorre, sem dúvida, em almas privilegiadas. A emoção criadora salta de uma alma a outra, “de quando em quando”, atravessando desertos fechados. Mas, a cada membro de uma sociedade fechada, se ele se abre à emoção criadora, esta comunica a ele uma espécie de reminiscência, uma agitação que lhe permite prosseguir e, de alma em alma, ela traça o desenho de uma sociedade aberta, sociedade de criadores, na qual se passa de um gênio a outro por intermédio de discípulos, de espectadores ou de ouvintes. (DELEUZE, 2012, p. 98).
Na imagem que Deleuze cria de sociedade aberta, fica evidente a diferença de natureza entre o aberto e o fechado. É apenas por comodidade que chamamos esse circuito diferenciador da alma aberta de sociedade.[18] Na verdade, o desenho traçado pelo contágio da emoção criadora implica mais uma libertação da ideia de sociedade. O aberto é a forma ética do impulso vital. O que há de propriamente criador na corrente da vida, aquilo que ela busca em seu longo processo evolutivo, ela encontra nessas almas privilegiadas que comunicam o amor em sua forma essencial, o amor incondicional. É difícil dizer o que é isso, e de fato essas almas estão mais afeitas a fazer do que a definir um conceito seu. Incondicional significa sem referência a um objeto – a família, a pátria, o lugar onde se nasce – e sem justificativa; inclusive, quando se alude, a propósito da alma mística, a amor estendido à humanidade inteira, é para transcender a ideia de humanidade. Não se pode amar a humanidade inteira, se ainda não demos um passo para além dela.
Aqui encontramos a responsabilidade sem por que de Levinas, essa relação que é d’emblée éthique; e, se nos referimos a relação, é também por uma questão de comodidade, porque, de fato, com Levinas a relação já significa um estar além da relação, que opera como condição anárquica, ou seja, como incondicional. Se, em Bergson, o aberto vai além da sociedade como forma, em Levinas, a ética, embora fale de uma relação singular – mas exatamente devido a essa singularidade! – já fala para além da relação. De forma direta e ativa, sem por que, sem mediação, sem justificativa, a intuição mística, que é também estética, o élan do amor, atinge aquele ponto a que a intuição filosófica desejaria chegar, mas a que nunca chega, porque, no fundo, a filosofia continua sendo produção de teoria[19], coisa que não faz diferença para o essencial da experiência mística. O filósofo permanece preso – e protegido – em sua grade contemplativa e, quando tratamos de emoção, é preciso entender um movimento, uma iniciativa no nível do fluxo evolutivo da vida[20]. Pode ser que um místico venha a produzir uma filosofia, mas um filósofo místico, da mesma forma como aquele que em Levinas recebe a ideia de infinito, faz mais do que pensar.
3 Levinas: ética da infinitude
Levinas não se cansa de frisar que a alteridade é uma concretude, que o outro é de carne e osso, e tem fome. Logo, devemos concluir que se trata da intersubjetividade, que estamos amarrados à estrutura moderna e transcendental de sujeito-objeto, que é preciso, portanto, em se tratando de ética, desobjetivar o sujeito? Ora, chegaríamos, pois, à geometria da intersubjetividade ética e tudo poderia ser descrito adequadamente? É preciso ir direto ao capítulo quarto de Autrement qu’être para, mais uma vez, entender a substituição.[21] Se ainda nos referimos a relação ou a intersubjetividade, é para evocar uma ressonância, um dizer, uma temporalidade diacrônica. Na substituição, o pensamento ético de Levinas encontra seu termo, o início e o fim, um derivando interminavelmente do outro, o impossível tomando forma, a ontologia destituída de ser: mais uma vez – outramente que. A responsabilidade levinasiana não seria assimétrica e sans pourquoi, se permanecesse amarrada ao espaço intersubjetivo. A estrutura hegeliana do reconhecimento é frontalmente atacada pela assimetria da infinitude. Aqui, Levinas é tão pouco moderno quanto Bergson. Nunca é em vão relembrar a fórmula dostoievskiana, exaustivamente citada nos escritos de Levinas: somos todos responsáveis de tudo e de todos, e eu mais do que todos os outros – nessa ênfase do “eu mais que todos os outros”, encontra-se a chave da fórmula, espécie de síntese do infinito ético ou do que pode significar essa filosofia às avessas, essa sabedoria do amor.[22]
Essa sabedoria do amor: não seria ela um modo de dizer a experiência mística bergsoniana? Não seria ela também a condição de uma superabundância, de um transbordamento da alma? Vamos lembrar de novo o que escreve Levinas, no prefácio de Totalidade e infinito (para a edição alemã de 1987). Ele reivindica uma fidelidade à obra inovadora de Henri Bergson, cuja noção de duração liberou o tempo de sua obediência à astronomia e o pensamento de seu apego ao espaço, bem como de seu exclusivismo teorético. A inversão que Levinas propõe, na filosofia (que não deixa de ser uma maneira de contrariar o hábito intelectual), também libera o pensamento do exclusivismo teorético e – arrisco afirmar – de uma forma que está mais adequada ao bergsonismo que à fenomenologia.[23] Se liberamos a noção de alteridade de seu humanismo, não poderíamos entender Levinas como um vitalista? Mas o humanismo levinasiano de l’autre homme já não comportaria também essa exigência da alma privilegiada de estar além da humanidade, de fazer parte de uma sociedade aberta, o que significa estendida a toda forma de vida?
O infinito é uma superabundância do tempo, que, em certas almas, toma a forma de um puro amor. Levinas também não desobedece à astronomia com sua noção de tempo diacrônico, esse tempo urgente da responsabilidade que desafia a lógica e consegue sempre começar novamente?[24] Em si como exílio: essa figura, tão recorrente em Autrement qu’être, não seria bem mais fácil de entendê-la, se liberássemos o pensamento de seu apego ao espaço? Em Levinas, a utopia é por excelência a condição humana, não porque vislumbramos um mundo por vir, não por idealismo, mas porque, engajados na construção desse por vir, na forma de ação ético-política, suspendemos nosso lugar, ou melhor, suspendemos em nós o lugar, a espacialidade, a métrica. A utopia levinasiana do humano é o tempo como encarnação.[25]
Em todo caso, voltamos ao ponto: o infinito de Levinas se comunica muito bem com o aberto de Bergson. Mesmo quando Levinas alude a obrigação – esse conceito rigorosamente definido, em Bergson, como mecanismo da sociedade fechada, a invocar um instinto virtual e uma religiosidade fabulatória –, já estamos na incondição do infinito; embora seja um ordenamento, ele provém de uma altura que se manifesta incomensurável, portanto, como equívoco. O que resulta desse ordenamento do infinito é uma responsabilidade sem tamanho, sem condições, sem medidas, portanto, radicalmente insubstituível. E, por essas mesmas razões, também podemos afirmar que a responsabilidade levinasiana é desobediente, no sentido já mencionado, quando abordamos a moral fechada da obrigação (e que nos fez lembrar o famoso caso do nazista Adolf Eichmann). Porque obedecer ao ordenamento ético do infinito é o mesmo que não ter qualquer referência capaz de dar uma objetividade à obediência, uma explicação, uma justificativa. E, ao contrário do que pensaria o senso comum, essa ausência de referência não é nenhum alívio, mas a radicalização, ou melhor ainda, a encarnação da responsabilidade – insubstituível e, por conseguinte, pessoal. É oportuno lembrar que a experiência mística remete a uma pessoalidade. Totalidade e infinito correspondem a um modo de dizer fechado e aberto. Da mesma forma, outramente que ser é um caminho para pensar o tempo liberado da física e sua espacialização.
Considerações finais
Levinas e Bergson estão mais próximos do que supõem seus leitores mais habituais. Entretanto, se filosofar é desabituar o pensamento, como sugere Bergson, o que pretendi fazer aqui foi liberar nossos hábitos de interpretação, distraí-los dos caminhos de sempre. No caso, tratar de um certo bergsonismo levinasiano não é nada comum. Mas o hábito é da natureza instintiva, ele é previsível e se move sempre para o mesmo lugar, como se não se movesse de verdade. Não é por hábito que evoluímos, inclusive quando estamos lidando com conceitos já conhecidos. Mas, se entendermos que o conceito é algo vivo, obviamente, ele comporta linhas de diferenciação por onde o pensamento pode continuar evoluindo. Bergson encontra na alma mística o élan vital liberado, ou seja, criando o tempo da vida, abrindo a vida pelo fluxo do tempo que ganha a forma de um amor universal, sem fronteiras, sem objetos, sem condições determinadas. Levinas, na moldura da intersubjetividade, introduz um equívoco – a ideia de infinito – que também vai ganhar a forma de um amor expandido, sem fronteiras, sem objetos – uma modalidade de pensamento anárquica, o acolhimento incondicional.
Ler Levinas pelo bergsonismo é encontrar nessa ideia de infinito o élan vital, a reserva de tempo que faz a vida expandir pelo fio de uma responsabilidade sem limite, porque nunca parando de começar – Levinas traduz o tempo em responsabilidade. Se, por um lado, Bergson parece estar mais afinado com os desafios desse tempo de ameaça ecológica, quando as molduras da intersubjetividade e do reconhecimento não dão conta da multidão de seres em seus variados processos de interação, por outro lado, Levinas, com a ênfase de uma responsabilidade assimétrica, parece tocar no coração da atitude mística, contudo, de sorte a trazê-la mais para perto e, assim, quem sabe, apontar o caminho do que seria uma politização mais verdadeira, mais radical, mais comprometida, à altura do desafio ecológico. O infinito como abertura, o ímpeto da vida como uma responsabilidade encarnada e amorosa.
The infinite and the open: on the ethical intuitions of Levinas and Bergson
Abstract: Levinas is almost solely studied from the perspective of phenomenology, and this is evidently quite justifiable by the fact that the philosopher claims to be Husserl’s heir, although it is very importante to consider other influences for a deeper understanding of his thought, such as talmudism and Russian literature. But, in general, an important reference remains forgotten that Levinas never fails to mention in his interviews and even in the preface to the German edition (1987) of his important book Totalité et infini: Bergson’s philosophy. Our objective is to seek the elements of this approach, often mentioned but little explored, between the ethical intuitions of Levinas and Bergson. Although it is not the work Les deux sources de la morale et de la religion that Levinas likes to remember when referring to Bergson, it is what we will evoke to suggest an intuitive communication that connects the bergsonian concept of open and the levinasian concept of the infinite. Levinas takes a step beyond phenomenology when he elaborates one of his fundamental concepts, that of visage, and it is he himself who admits in the conversation with Philippe Nemo entitled Éthique et infini (1984), but we should be surprised if the most important notion of Levinas ethics, that of infinity, would reveal what is most essential in Bergson’s ethics, the sense of openness through which unlimited, in other words, unconditional, responsibility is announced?
Key-words: Infinite. Open. Ethic. Responsibility.
Referências
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FARIAS, André Brayner de. Poéticas da hospitalidade – ensaios para uma filosofia do acolhimento. Porto Alegre: Zouk, 2018.
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TROTIGNON, Pierre. Autre voie, même voix: Levinas et Bergson. In: L’Herne, 60: Emmanuel Levinas. Paris: Éditions de l’Herne, 1991. p. 287-293.
VIEILLARD-BARON, Jean-Louis. Levinas et Bergson. Revue philosophique de La France et de l’étranger, v. 4, n. 135, p. 455-478, 2010. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-philosophique-2010-4-page-455.htm. Acesso em: 13 maio 2021.
WORMS, Frédéric. Bergson ou os dois sentidos da vida. Tradução: Aristóteles A. Predebon. São Paulo: Ed. UNIFESP, 2011.
Recebido: 11/01/2022
Aceito: 16/09/2022
[1] Professor do PPG de Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, RS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8659-3921; abfaria1@ucs.br.
[2] Embora Levinas tenha escrito, em janeiro de 1987, no prefácio à edição alemã de seu Totalité et infini. que “[...] o livro também reivindica no pensamento contemporâneo uma fidelidade à obra renovadora de Henri Bergson que notadamente tornou possível muitas das posições essenciais dos mestres da fenomenologia: na noção de duração, ele liberou o tempo de sua obediência à astronomia, o pensamento de seu apego ao espaço e ao sólido, a seus prolongamentos tecnológicos e até mesmo a seu exclusivismo teorético.” (LEVINAS, 2000, p. I). Todas as traduções são de minha responsabilidade.
[3] Dois trabalhos aqui precisam ser citados: TROTIGNON, Pierre. Autre voie, même voix: Levinas et Bergson. In: L’Herne, 60: Emmanuel Levinas. Paris: Editions de l’Herne, 1991. p. 287-293; VIEILLARD-BARON, Jean-Louis. Levinas et Bergson. Revue philosophique de La France et de l’étranger. v. 4, n. 135, p. 455-478, 2010. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-philosophique-2010-4-page-455.htm. Acesso em: 13 maio de 2021.
[4] Essa opinião quem desenvolve é Frédéric Worms, em suas audioaulas publicadas no Youtube: Henri Bergson expliqué par Frédéric Worms. Disponível em: https://www.fremeaux.com/fr/4706-henri-bergson-explique-par-frederic-worms-3561302541624-fa5416.html. Acesso em: 9 set. 2021.
[5] Ver Derrida (2011, p. 111-223).
[6] Em Autrement qu’être, a subjetivação ética é um movimento de desinteressamento, mas isso ocorre em outro registro, que é o da crítica levinasiana à ontologia. O desinteresse, em Levinas, é sem dúvida uma atitude de alma aberta, no caso, uma transcendência. E quando Levinas alude a obrigação, é também em outro registro, que não é de moral fechada, não havendo qualquer prescrição ou normativa. Levinas, ao tratar de ética, está todo o tempo no plano da abertura. Esse é um ponto muito importante: a ética levinasiana não é uma moral, como é a obrigação fechada em Bergson; por outro lado, Bergson descreve a experiência mística como moral aberta; se quisermos considerar uma moral, em Levinas, devemos sem dúvida entendê-la como abertura, não pressão, mas aspiração, enfim, transcendência, outramente que ser. Ver LEVINAS, E. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Paris: Kluwer Academic, 2001. p. 13-39.
[7] Ver BERGSON, Henri. Les deux sources de la morale et de la religion. Édition critique dirigée par Frédéric Worms. Paris: PUF, 2013a. p. 85-96 (Doravante DS). Precisamente, a crítica do intelectualismo no final do primeiro capítulo de Duas fontes.
[8] O vitalismo de Bergson é um caminho distinto e crítico das abordagens intelectualistas que, ao desconsiderarem a diferença de natureza na qual se constitui a moral, essa mistura entre pressão e aspiração, tende a centralizar o papel da inteligência que acaba por confundir essas duas matérias morais, em termos de categorias da razão pura: “As duas forças, exercendo-se em regiões diferentes da alma, projetam-se sobre o plano intermediário, que é o da inteligência. Elas serão daí por diante substituídas por suas projeções. Estas se mesclam e se interpenetram. Disso resulta uma transposição das ordens e dos chamados em termos de razão pura.” (DS, p. 85-86).
[9] A divisão entre invertebrados e vertebrados.
[10] “Uma experiência sistematicamente falsa, firmando-se diante da inteligência, poderá interrompê-la no momento em que ela iria muito longe nas consequências que ela tira da experiência verdadeira. Assim teria então procedido a natureza. Nessas condições, não haveria surpresa em perceber que a inteligência, uma vez formada, tenha sido invadida pela superstição, que um ser essencialmente inteligente é naturalmente supersticioso, e que somente os seres inteligentes sejam supersticiosos.” (DS, p. 113).
[11] A análise que Bergson faz da sorte, utilizando a figura do jogador, é como uma gênese da nossa disposição religiosa. A sorte preenche o intervalo de insegurança que o lance de dados implica, todavia, ela impõe que se creia nela, ela estabelece a crença. “A sorte não é uma pessoa completa; é preciso mais que isso para fazer uma divindade. Mas ela tem dela certos elementos, precisamente o suficiente para que confieis nela.” (DS, p. 147).
[12] “O impulso vital é otimista. Todas as representações religiosas que saem aqui diretamente dele poderiam, pois, definir-se da mesma maneira: são reações defensivas da natureza contra a representação, pela inteligência, de uma margem desencorajante de imprevisto entre a iniciativa tomada e o efeito desejado.” (DS, p. 146).
[13] Por aqui, chegamos com Bergson a uma questão fundamental, a qual é objeto das análises biopolíticas de Michel Foucault, particularmente no curso Em defesa da sociedade. Na opinião de Foucault, defender a sociedade significa ter que inventar as razões da guerra, explícita ou implícita. A soberania, na biopolítica, está congenitamente articulada à guerra, e entender a política seria compreender como se deve continuar em estado de guerra, sem que se precise declará-la. E aqui também chegamos a um ponto decisivo da argumentação levinasiana, exatamente o tema que abre o prefácio de Totalité et infini, onde aparecem duas ideias bem conhecidas dos leitores de Levinas: a que afirma ser a política a arte de prever e ganhar a guerra e a de que a política se opõe à moral, assim como a filosofia se opõe à ingenuidade (cf. LEVINAS, 2000, p. 5; FOUCAULT, 2010. p. 3-19).
[14] É o caso do nazista Eichmann, o qual afirmava, em seu julgamento, que apenas tinha cumprido ordens, ou seja, ele não estava à altura de merecer aquela responsabilidade. Conforme lemos no capítulo VIII do famoso relato arendtiano, intitulado “Deveres de um cidadão respeitador das leis”: “Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia às ordens, ele também obedecia à lei. Eichmann tinha uma vaga noção de que isso podia ser uma importante distinção, mas nem a defesa nem os juízes jamais insistiram com ele sobre isso.” (ARENDT, 1999, p. 152).
[15] Parte capital do terceiro capítulo de Duas fontes. Ver DS (p. 240-255), onde se leem as análises de Bergson sobre o misticismo cristão, o qual ele considera a experiência mística mais completa. Eis a opinião de Frédéric Worms sobre esse texto crucial de Duas fontes: “Nós tocamos, com o terceiro capítulo das Duas Fontes da Moral e da Religião, não somente em um novo foco central da filosofia de Bergson, mas também no ápice de sua arte de escrever.” (WORMS, 2010, p. 328).
[16] O elogio de Bergson ao cristianismo tem a ver com a simplicidade da fórmula Deus é amor: “Deus é amor, e ele é objeto de amor: todo o aporte do misticismo está aí. Desse duplo amor o misticismo nunca vai parar de falar. Sua descrição é interminável porque a coisa a descrever é inexprimível. Mas o que ela diz claramente, é que o amor divino não é qualquer coisa de Deus: é Deus ele mesmo.” (DS, p. 267).
[17] Ver DS (p. 268), onde Bergson comenta sobre o trabalho de composição de uma sinfonia, no caso, de Beethoven, bem como do tipo de emoção que ela suscita: “Uma emoção desse tipo se assemelha sem dúvida, ainda que de muito longe, ao sublime amor que é para o místico a essência mesma de Deus.”
[18] Ocorre o mesmo com o conceito de misticismo. Bergson inicia o terceiro capítulo de Duas fontes com uma longa exposição que enfatiza a diferença de natureza entre religião e misticismo, e questiona o uso da mesma palavra (religião) para indicar situações que derivam de fontes distintas: a religião é infraintelectual e o misticismo é supraintelectual. Da mesma forma, o fechado é instintivo e o aberto tem natureza intuitiva. Os conceitos de religião e sociedade nivelam por baixo situações que se distinguem por natureza.
[19] “Tudo se passa como se o que permanecia indeterminado na intuição filosófica recebesse uma determinação de um novo gênero na intuição mística – como se a ‘probabilidade’ propriamente filosófica se prolongasse em certeza mística.” (DELEUZE, 2012, p. 99).
[20] Assim como é preciso sempre recordar a importância da biologia para o vitalismo: a obrigação responde a uma demanda da natureza, é uma pressão infraintelectual que produzimos para atender a uma demanda da vida. “Forneçamos, pois, à palavra biologia o sentido muito compreensivo que deveria ter, que tomará talvez um dia, e digamos para concluir que toda moral, pressão ou aspiração, é de essência biológica.” (DS, p. 103).
[21] “Seria talvez a substituição a condição mais original e paradoxal da liberdade: ´avoir l’autre dans sa peau’ – original porque anterior à cultura, ao território e à gramática, portanto livre para inventar a cultura, o território e a gramática; paradoxal porque ninguém escolhe ser refém, e a possibilidade de recusar uma tal eleição ainda não nasceu, vai ser preciso inventar a cultura, o território e a gramática.” (FARIAS, 2018, p. 57).
[22] “Mas os sujeitos da responsabilidade não se somam. A responsabilidade não é um festim do qual cada um, para seu estômago moral, só receberia no final algumas migalhas, um pouco de poeira ou lascas. Ela é indivisível, está nesse ‘responder presente’ que cada um deve repetir para si mesmo. É uma intensidade moral.” (GROS, 2018, p. 194).
[23] E aqui também cabe refletir sobre o papel exercido pelo talmude, na articulação da ética levinasiana. Sim, Levinas permanece um fenomenólogo, mas isso seria suficiente para compreender sua filosofia? Levinas é um dos grandes continuadores do movimento fenomenológico, e o fato de sua obra extrapolar a fenomenologia é sinal do grande respeito que esse singular e radical pensador da ética sempre teve para com seu mestre Husserl.
[24] Embora não seja minha intenção remarcar a diferença entre os filósofos ou a crítica que Levinas endereça a Bergson, cabe lembrar alguns lugares onde podemos verificar pontos críticos importantes: Le temps et l’autre e Dieu, la mort et le temps. A questão mais sensível que causa estranhamento em Levinas parece ser a relação com a morte. Para Levinas, o bergsonismo é uma filosofia onde a morte não tem importância. Ver, a esse respeito, Le temps et l’autre (LEVINAS, 2004, p. 62-64, p. 68-76) e Dieu, la mort et le temps (LEVINAS, 2002, p. 64-66, p. 80, p. 114), onde a questão da morte é o centro da discussão.
[25] “Ser sem ser assassino. Podemos nos desvencilhar dessa responsabilidade, negar o lugar onde ela me incumbe, buscar a salvação do anacoreta. Podemos escolher a utopia. Mas, ao contrário, não se pode fugir, em nome do espírito, das condições onde sua obra ganha seu sentido, permanecer aqui embaixo. E isso quer dizer – escolher a ação ética.” (LEVINAS, 1997, p. 145).