ENTREVISTA

NÃO PODEMOS PENSAR NA EXPERIÊNCIA NEGRA NO BRASIL SEM CONSIDERAR SUAS RELAÇÕES HISTÓRICAS E CONTEMPORÂNEAS COM A ÁFRICA. Com Luiza Nascimento dos Reis[1]

 

Luca Bussotti[2]

 

A revista Trans/Form/Ação publica, neste número, a entrevista com Luiza Nascimento dos Reis, historiadora e coordenadora do Instituto de Estudos de África da Universidade Federal de Pernambuco, agora associado ao Centro de Estudos Avançados da mesma universidade. Luiza é especialista em história da África e em relações étnico-raciais, com enfoque especial para as relações contemporâneas entre Brasil e Nigéria, destacando as contribuições e interligações entre intelectuais brasileiros e africanos, em meados do século XX. Sua tese abordou a história do mais antigo centro de estudos africanos e asiáticos do Brasil, o Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, da qual derivou, dentre outros, um artigo recente sobre o exílio africano do historiador Paulo Fernando de Moares Farias.

Nos últimos tempos, tem-se dedicado a artistas africanos e afro-brasileiros, tomando suas trajetórias de vida e produções artísticas como possibilidades para investigar aspectos relacionados à construção de identidades e reflexões sobre a sociedade, em contextos marcados pela colonização e pelo racismo, incluindo questões relativas à afirmação de mulheres. Nesse esforço, procurando cruzar os seus conhecimentos de historiadora com uma abordagem mais artística e estética, sem descurar os aspectos filosóficos por detrás dessa opção, encenou com estudantes um texto do dramaturgo nigeriano Wole Soyinka, prêmio Nobel de literatura, em 1986, e vem produzindo material audiovisual sobre o maestro pernambucano Moacir Santos.

Neste momento, revisitando questões abordadas ao longo de sua trajetória como pesquisadora, prepara uma publicação sobre estudantes africanos e africanas que chegaram ao Brasil, nos anos 1960.

A entrevista foi concedida a Luca Bussotti, Professor Associado Visitante na Universidade Federal de Pernambuco e especialista em Estudos Africanos, em fevereiro de 2021.

 

Luca: A sua produção científica, assim como o seu compromisso na didática da história da África e em outras atividades, dentro e fora da universidade, apontam para uma reflexão sobre o papel de intelectuais negros, no Brasil, e seus contatos e diálogos com outros, na diáspora. Pode nos dar seu ponto de vista geral acerca desses dois elementos profundamente interligados?

Luiza: Tenho me dedicado a estudar a relação de pesquisadores brasileiros com pesquisadores oriundos dos países africanos. Ou seja, relações acadêmicas e culturais entre Brasil e África, especialmente entre os anos de 1960-1980.

O diálogo e a circulação de intelectuais negros brasileiros, nessas conexões Brasil-África, são fruto de uma paulatina inserção, tanto porque a Universidade brasileira era absolutamente branca, em 1960, registrando raras exceções, quanto porque o interesse em desenvolver estudos sobre África, no período, estava, no mínimo, sendo despertado devido às questões coloniais portuguesas. Por outro lado, tão logo brasileiros tenham esboçado interesses acadêmicos, intelectuais africanos vão reagir positivamente, buscando construir conexões com o Brasil, que parecia ser uma alternativa às ex-metrópoles coloniais. Entre o interesse despertado e as ações efetivas de intercâmbio e diálogo, há muita instabilidade e lacunas, seja porque os poucos intelectuais brasileiros (brancos) se voltam para África, em sua maioria embasados na ideologia da democracia racial, seja porque os intelectuais africanos vão, aos poucos, entendendo como funciona o racismo no Brasil, que afirmava harmonia racial, mas não tinha negros em seus quadros mais importantes. Some-se a falta de interesse institucional e político, no Brasil, e instabilidades acadêmicas e políticas, nos países africanos. Ainda assim, quando intelectuais/artistas negros brasileiros conseguiram efetivamente estabelecer contatos com intelectuais/artistas africanos, os resultados foram profícuos, como o que aconteceu na então Universidade da Bahia, em 1960, entre o escultor brasileiro Mestre Didi e o linguista nigeriano Ebenézer Lasebikan, primeiro professor africano numa universidade brasileira, e a experiência entre o dramaturgo nigeriano Wole Soyinka e o dramaturgo brasileiro Abdias do Nascimento, na Nigéria, em 1977.

Luca: Um dos temas que estudou, inclusive por causa da sua origem baiana, foi a contribuição que, desde os anos 1960, o Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA deu ao estudo das relações raciais no Brasil. Que tipo de aspectos poderia destacar, a esse propósito? Será que tais contribuições deixaram um marco relevante no filosofia afro-brasileira, assim como na vida prática, sobretudo no Nordeste do país?

Luiza: Se o CEAO surgiu, em 1959, com uma proposta precursora de estabelecer conexões acadêmicas entre Brasil e países africanos, estava embasado numa velha perspectiva de relações raciais brasileiras pautada na ideologia da democracia racial. À época, essa ideologia, que pressupunha relações raciais harmoniosas, mestiçagem e ausência de racismo, tornou-se o principal argumento da política externa brasileira, a qual apresentava nosso país como um modelo para o mundo, especialmente para os Estados Unidos e para os países africanos. Os intelectuais reunidos nas três primeiras décadas do CEAO vão, de modo geral, reproduzir essa ideologia, no Brasil, e defendê-la em grandes eventos internacionais, em países africanos, marcando profunda e negativamente a imagem do Centro.

Outro aspecto a destacar foi o nagocentrismo, perspectiva que entendia serem as tradições dos povos yorubá ou nagô (especialmente da Nigéria) como as únicas e determinantes para as tradições religiosas de matriz africana, na Bahia, construindo a imagem de uma Salvador yorubana, um verdadeiro pedaço da África yorubá, no país. Em que pese a importância das tradições yorubás no Brasil, o nagocentrismo valorizava alguns terreiros e excluía outros, organizados em função de outras matrizes.

Mesmo partindo de conceitos equivocados ou limitados, o CEAO começou um importante trabalho de pesquisa, com longas temporadas de trabalho de campo, no continente africano, para visibilizar a história de terreiros e de determinadas personalidades negras, conectando-as historicamente ao passado que estava no continente africano. Assim, seus pesquisadores contribuíram para o fim da perseguição do Estado aos terreiros. E, paulatinamente, passaram a ter suas perspectivas políticas frontalmente questionadas por intelectuais, ativistas e religiosos, tornando o CEAO, nas décadas subsequentes, um espaço de reivindicação para que as demandas e perspectivas da população negra, especialmente do povo de terreiro, se fizessem presentes, no espaço acadêmico.

Desse modo, não é sem razão que Salvador é hoje uma das mais importantes cidades no mundo, no que se refere ao estudo da história e cultura negra e em mobilizações e articulações políticas negras. Essas questões vêm sendo reivindicadas com muita pressão, nas instituições dessa cidade, há bastante tempo.

Acredito que o que o CEAO começou a discutir foi a importância da experiência cultural negra, para a afirmação política negra contemporânea, de maneira que não podemos pensar na experiência negra, no Brasil, sem considerar suas relações históricas e contemporâneas com a África. Esses aspectos, mesmo que já venham sendo discutidos nas últimas décadas, no Brasil, são pouco destacados nos demais estados do Nordeste, cujas práticas culturais populares e seus praticantes tendem a ser – ou são deliberadamente – desvinculados das relações com a África ou da cultura negra brasileira.

Luca: Hoje em dia, além do supramencionado CEAO da UFBA, são vários os centros de pesquisa que lidam com questões africanas e afro-brasileiras, inclusive o Instituto de Estudos de África, que atualmente coordena. Do seu ponto de vista, qual é a contribuição principal de tais centros, e quais as limitações mais relevantes?

Luiza: Uma característica que observei desde o CEAO, e que posso verificar ainda hoje, no IEAF e nos demais centros, no Brasil, é a possibilidade de reunir num espaço acadêmico pessoas de diferentes áreas do conhecimento interessadas em desenvolver ações de pesquisa, ensino e extensão em temas africanos e afro-brasileiros. Isso é importante, porque tende a ultrapassar as limitações impostas pela disciplinaridade e organização departamental. Na maioria das experiências, os centros de estudos africanos, no Brasil, buscam reunir pesquisadores e estudantes em diferentes estágios de formação e atuação, procuram incrementar o intercâmbio com pesquisadores de outros países africanos e de países da diáspora negra, estimular uma produção bibliográfica específica, bem como tendem a dialogar com outros segmentos da sociedade interessados no estudo de temas africanos, a exemplo de estudantes negros ou africanos, movimentos sociais e coletivos negros. Via de regra, buscam construir um diálogo com segmentos da sociedade, sem o qual dificilmente terão público para seus eventos, os quais, assim como o próprio estudo da África, no Brasil, ainda tendem a estar concentrados em grupos de interessados.

Em que pesem os esforços dos últimos vinte anos, para o incremento do estudo e difusão da pesquisa e ensino de África, no Brasil, os centros de estudos africanos, no país, são espaços de resistência acadêmica, já que África, africanos e afro-descendentes nunca foram prioridade na agenda pública ou acadêmica brasileira. Esses centros testemunham os avanços e limitações de abordagens acerca da África, na academia e sociedade brasileira. No que se refere a limitações, por exemplo, posso citar o esforço do IEAF em conectar pesquisadores e pesquisadoras dos demais estados do Nordeste, que, assim como o estado de Pernambuco, não construíram uma memória pública sobre a presença e a contribuição de africanos e afrodescendentes para a história local. Cabe ainda mencionar a necessidade de avançarmos nas demais áreas do conhecimento, para além da concentração na área de humanidades, letras e artes, recorrentes nos centros de estudos africanos, no Brasil. Este será um desafio que o nosso Instituto deverá enfrentar, já que prevê, nos próximos meses, uma reconfiguração institucional, de modo a integrar um Centro de Estudos Avançados, na UFPE.

Luca: Outro elemento interessante que você estudou tem a ver com a contribuição dos estudantes africanos, no Brasil. Por vezes, esse relacionamento é complexo, pois tal grupo de estudantes vive fora dos seus países, em condições econômicas e sociais nada fáceis, em parte marginalizados da mesma vida acadêmica. Do seu ponto de vista, como é que a academia brasileira poderia aproveitar mais e melhor esses estudantes? Pode dar exemplos de “boas práticas”, na sua inserção em centros universitários brasileiros?

Luiza: No Brasil, a experiência dos estudantes africanos é sempre complexa, pois independentemente de sua origem ou condição financeira, se já são falantes ou não da língua portuguesa, todos têm que lidar com o racismo, em todas as instituições. Isso significa que, uma vez no Brasil, embora aqui desembarquem com uma imagem completamente diferente, vão ter que lidar com todos os estereótipos associados aos negros brasileiros e aos africanos, de maneira geral, relacionados à falta de inteligência, à violência, à pobreza. É muito decepcionante verificar que dilemas e problemas enfrentados pelos primeiros estudantes africanos, no Brasil, conforme analisei, observando a experiência das duas primeiras turmas que chegaram em 1961 e 1962, são ainda as questões colocadas por estudantes contemporâneos. Trata-se de questões básicas, como, por exemplo, a designação de alguém para recebê-los no aeroporto e apresentar os espaços na Universidade onde terão que apresentar documentos. Somem-se as dificuldades estruturais e financeiras para permanência no país. Em relação às violências físicas ou psicológicas, cito o caso de dois estudantes que tiveram uma arma apontada para suas cabeças, dentro do câmpus da Universidade, por um suposto – e nunca identificado – segurança e a situação de um estudante da pós-graduação que estava por desistir do Brasil, porque, por dias, estando na universidade ou não, ninguém lhe dirigia a palavra.

Se não tem apoio nessas questões, menos ainda quando se trata de estímulo e reconhecimento na vida intelectual e exercício profissional, de modo que, mesmo recebendo estudantes de países africanos há sessenta anos, os quais aqui realizam seus cursos de graduação e pós-graduação, pouquíssimos são aqueles que depois passam a integrar o quadro de professores dessas instituições. Essa situação tendeu a receber maior atenção, mais recentemente, através de propostas específicas, como é o caso da UNILAB, que tem assegurado um percentual de seus quadros a estudantes e professores oriundos de países africanos de língua oficial portuguesa. Essa instituição inovadora, que completa 10 anos de existência, não está livre dos diversos problemas que afetam as Universidades brasileiras e a sociedade. Tenho notícia de pesquisa feita naquela instituição que aponta para um cotidiano de grandes tensões raciais.

Dessa forma, estudantes africanos e africanas, assim como professoras e professores africanos, tendem a ter uma vida acadêmica marginal e limitada, nas instituições acadêmicas brasileiras, sendo, de modo geral, subaproveitados em seu potencial intelectual.

Luca: A arte, nos últimos tempos, se tornou um dos seus interesses: quer a arte afro-brasileira, por exemplo, baiana e pernambucana, quer a arte africana num sentido lato, como, por exemplo, os seus estudos sobre O Leão e a Joia, do nigeriano Wole Soyinka, que ganhou, em 1986, o prêmio Nobel da literatura. Na obra de Soyinka, destacam-se elementos de uma estética de elevado nível e de grandes valores éticos, mas, frequentemente, fora dos grandes circuitos internacionais. Do seu ponto de vista, o que é que essa arte multifacetada consegue transmitir como suas mensagens principais e quais sugestões daria, para que ela tivesse um acesso privilegiado, por parte especialmente dos jovens engajados em melhorar as relações étnico-raciais em todo o mundo?

Luiza: Tenho me esforçado para compreender alguns artistas e suas produções. Artistas africanos e afrodescendentes sempre estiveram envolvidos nessas conexões entre Brasil e África, mobilizando diferentes linguagens e diferentes perspectivas, as quais contribuem para refletir acerca da própria experiência, num mundo marcado por grandes processos, como a descolonização, o enfrentamento ao racismo e a conquista de direitos. Soyinka é uma dessas pessoas, cuja dramaturgia, que data do final dos anos 1950, ainda é muito pouco conhecida e encenada no Brasil. O Leão e a Joia, texto dramático de sua autoria, levou cinquenta anos para chegar ao Brasil!

Para mim, a principal mensagem que passam é que não há como compreender e sobreviver, no mundo atual, sem passar pela criatividade negra e africana. Como veem, pensam, sentem e imaginam o mundo. Essa arte consegue sobretudo nos provocar... outras possibilidades políticas, outros sentimentos, outras histórias, outras imagens. E podem nos fazer pensar e sentir para além do que nos é disponibilizado diariamente, conectando-nos com outras pessoas, através dos sentimentos que despertam. As artes negras, africanas e afrodescendentes nos provocam a construir um mundo diferente do que está aí.

 

Luca: Hoje em dia se costuma falar de “democracia racial”, mas, principalmente em dois dos maiores países americanos, os Estados Unidos e o Brasil, essa democracia está muito longe de ser efetivada. Na sua opinião, o que é que está faltando para que isso aconteça?

Luiza: Acredito que essa questão deva ser reformulada. Hoje em dia, ainda se costuma falar de democracia racial, uma ideologia que está prestes a completar um século, aqui no Brasil, e já devia ter sido de fato superada, contudo, honestamente, não acredito que, em algum tempo, possa vir a ser efetivada. Essa ideia já é construída de maneira absolutamente equivocada, quando pressupõe que categorias que foram racializadas após longos processos de escravidão e colonização possam conviver em harmonia, em países que foram estruturados a partir dessas desigualdades sociorraciais. Não tenho notícia da utilização dessa expressão, nos Estados Unidos, porém, é importante salientar que outros países, igualmente marcados pelas violentas heranças escravistas e coloniais, também desenvolveram suas ideologias de “democracia racial”, como bem demonstrou a premiada tese do historiador Pedro Cubas, ao analisar os argumentos da mestiçagem adotados em Cuba. A cientista política Eurídice Monteiro mostrou, num livro também premiado, como ideologia semelhante foi estruturada em Cabo Verde.

No Brasil, embora estudiosos e ativistas tenham questionado e desmontado há décadas esse argumento, uma “mestiçagem harmoniosa” é reiterada cotidianamente, em discursos indiretos, como aquilo que subjaz à identidade brasileira, com profunda repercussão no Brasil e no exterior. Essa ideologia tanto pressupõe ausência de racismo como tende a dificultar o autorreconhecimento e a reivindicação dos negros e negras por melhores condições de vida, em todos os aspectos. Mantém-se como um desafio e compromisso, neste século XXI, levarmos à frente as reivindicações e lutas construídas pelo movimento social negro, especialmente ao longo do século XX, que evidenciaram como uma democracia como a nossa precisa estabelecer ações efetivas para o combate ao racismo.

Luca: O continente africano tem contribuído ao pensamento filosófico, sobretudo à filosofia política, com o pensamento engajado de vários autores e correntes, tais como a Negritude, o Afrocentrismo – de Anta Diop até Asante –, perspectivas de socialismo africano teorizadas por Nyerere, Nkrumah e outros; entretanto, hoje se assiste a um evidente recuo dos espaços de diálogo e de democracia, nos países africanos. Será que tais pensadores foram superados, nas suas reflexões, pela realidade econômica e política daquele continente, de modo que as suas ideias se tornaram tão inefetivas, de sorte a resultar quase que completamente negligenciadas?

Luiza: Em primeiro lugar, parece-me que, embora em condições diferentes, os recuos nos espaços de diálogo e democracia não são apenas nos países africanos, como temos visto em países da Europa ou América, cujas instituições são, ou eram, consideradas modelos de democracia. Em segundo lugar, essa questão pressupõe que as ideias desses intelectuais tenham sido profundamente consideradas na construção dos estados nacionais africanos, nos últimos sessenta anos – e isso não se verifica. Conforme destacou Carlos Moore, foi bastante perigoso ser um ou uma intelectual no continente africano, nos anos imediatamente pós-independência, dada a imensa lista daqueles que foram assassinados, abertamente ou em situações suspeitas. Isso evidencia em quais condições esses homens e mulheres tiveram que desenvolver seus pensamentos: num século bastante conturbado, no qual foram os primeiros a ter acesso à escolarização formal, em línguas então estrangeiras, e a ingressar em universidades ou centros de pesquisa coloniais para, então, formular questões para o enfrentamento da colonização.

Não acredito que, nestes sessenta anos, as principais questões tenham mudado.

Nunca poderemos medir ou mensurar a importância de um ou uma intelectual pelo reconhecimento que tenha obtido. Se assim fosse, a fórmula poderia ser ao contrário: intelectuais menos reconhecidos podem ser os mais importantes e, por isso mesmo, não receberam ou recebem a devida atenção. Os pensadores africanos do século XX tiveram que construir seu pensamento em meio às lutas pela descolonização política e frente aos desafios impostos aos Estados nacionais que emergiam e em instituições que (re)construíam. Então, do meu ponto de vista, temos necessariamente que considerar esses intelectuais sem os quais estaremos jogando fora os importantes passos que conseguiram dar, na história recente do continente.

Luca: A questão da mulher negra representa, dentro do contexto das relações étnico-raciais, um elemento ainda mais problemático e específico, o qual mereceu a sua atenção em algumas atividades e publicações. Quais são os passos para a frente, que o feminismo negro brasileiro e africano tem dado, para posicionar a mulher negra como sujeito protagonista da sua própria história, assim como da história dos seus respectivos povos?

Luiza: Vou destacar o trabalho árduo e persistente de uma intelectualidade negra, de mulheres oriundas de países das Américas, mulheres de países africanos, que se esforçaram bastante, ao longo do século XX, para adentrar nos espaços escolares, na maioria absoluta das vezes, simultaneamente exercendo seus nada fáceis trabalhos pouco remunerados. Nesse percurso, refletiram sobre suas experiências individuais e coletivas, fortaleceram suas comunidades, construíram produtos artísticos, redimensionaram atividades culturais, preparando espaços de organização política e abordagens teóricas e metodológicas que reivindicam outras perspectivas para a história negra.

A desconstrução de uma história eurocentrada e colonial, para a construção de uma história verdadeiramente descolonizada, na qual as mulheres negras são protagonistas, só é possível com a participação ativa das mulheres negras, africanas e afrodescendentes, que rejeitam a subordinação e opressões a que estão submetidas, reivindicam outros espaços de atuação na sociedade contemporânea e expõem as limitações das abordagens acadêmicas que pouco ou nada conseguem perscrutar da história dessas mulheres, como fez, para nunca deixar de citar essa importante historiadora negra, Beatriz Nascimento. Obviamente, isso não está restrito à disciplina da História, contando com mulheres que vêm das mais diversas áreas, mas especialmente nas humanidades, letras e artes. E requer um constante e profícuo diálogo entre mulheres que estão na academia e as mulheres que atuam nos diversos outros espaços da sociedade.

Luca: Finalizando, que tipo de pensamento e de ação seriam necessários para que a mulher negra, nas suas várias latitudes, conseguisse se libertar definitivamente dos laços do neocolonialismo e do paternalismo?

Luiza: Já sabemos que não há nenhuma receita pronta e que o caminho passa pela organização para o enfrentamento e desmonte das ideologias e opressões que insistem em relegar os piores espaços para as mulheres negras, para a comunidade negra. Não há como trabalharmos para a construção de uma sociedade diferente, se não for uma construção coletiva.

 

Recebido: 12/7/2021

Aceito: 25/7/2021


 

 



[1] Professora de História da África na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE – Brasil. Coordenadora do Instituto de Estudos de África (IEAF/UFPE), Recife, PE – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9859-8121. E-mail: luiza.reis@ufpe.br.

[2] Professor Visitante na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE – Brasil, e investigador no Centro de Estudos Internacionais de Lisboa (CEI-ISCTE). Docente no curso de Doutorado em Paz, Democracia, Movimentos Sociais e Desenvolvimento Humano da Universidade Técnica de Moçambique (UDM), Maputo – Moçambique. ORCID: https://orcid.org/ 0000-0002-1720-3571. E-mail: labronicus@gmail.com.