Comentário a “Reminiscência e alma remêmora no Fédon de Platão”: CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA TEORIA DO CONHECIMENTO PLATÔNICA “TÉCNICA” EM CHARLES KAHN

 

Guilherme Domingues da Motta[1]

 

Referência do artigo comentado: Rachid, r. j. r. Reminiscência e alma remêmora no Fédon de Platão. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 294 –314, 2021.

 

O artigo “Reminscência e alma remêmora no Fédon de Platão”, de Rodolfo José Rocha Rachid (2021), trata com grande erudição e rigor uma diversidade de temas ligados à reminiscência e que perpassam a obra de Platão: o das relações da alma com o corpo e seu impacto para o conhecimento, o da semelhança de natureza entre a alma e as realidades inteligíveis, o da relação entre as coisas sensíveis e as ideias, o do papel dos mitos escatológicos na obra platônica e o da filosofia como uma forma particular de iniciação. Porém, de todos os temas abordados no artigo, o que eu gostaria de destacar e, de algum modo, expandir, é o do caráter ingênito do conhecimento, para Platão.

Ao tratar desse tema, e da questão conexa da rememoração, Rachid (2021) apresenta a visão de Monique Dixsaut e anuncia que, para ela, o esquecimento não significa “[...] a perda de um conteúdo, pois o esquecido não é a soma de conhecimentos, mas sim o poder da alma de apreender a verdade do ser.” (DIXSAUT apud RACHID, 2021, p. XX). Uma boa compreensão do que significa o conhecimento ingênito que está na base da capacidade humana de “rememorar” é fundamental para quem pretende abordar, com profundidade, a teoria do conhecimento de Platão. Sobre esse ponto, entendo que o maior risco que correm os leitores menos avançados é o de contentar-se com a versão “mítica” dessa teoria do conhecimento (MOTTA, 2015).

Essa versão mítica, por mais que seja rica imaginativamente, e por mais que possa ser um caminho simbólico para compreender a reminiscência, não só não faz justiça à sofisticação filosófica de Platão, mas, se for o único caminho percorrido, ou percorrido sem aprofundamento, pode deixar nos estudantes que são introduzidos a ela uma sensação desconfortável: a de que foram apresentados a uma solução imaginativamente rica, e até engenhosa, para a questão fundamental da teoria do conhecimento, mas que uma solução menos “mítica” e mais “técnica” ficou faltando. Seria preciso esperar um próximo filósofo na história da filosofia, para encontrar esse tratamento “técnico” da questão? Quem sabe, Aristóteles?

Não penso que seja assim. Já em Platão, há uma abordagem perfeitamente “técnica” da teoria do conhecimento. O texto mais conciso e magistral que conheço sobre o que chamo aqui de “versão técnica” da teoria de conhecimento de Platão é Platão e a reminiscência, de Charles Kahn (2011), autor também citado por Rachid (2021), no âmbito da sua discussão sobre o Mênon.

Além de indicar certas aproximações possíveis entre as filosofias moderna, contemporânea e a psicologia com a teoria do conhecimento de Platão, Kahn (2021) também defende que há uma profunda unidade quanto ao tema da reminiscência, ao longo dos diálogos de Platão, a começar pelos três nos quais a reminiscência tem um papel central e é explicitamente mencionada: o Mênon, o Fédon e o Fedro.

Em sua análise da passagem da “rememoração” do escravo, no Mênon, Kahn (2011) conclui:

Para cobrir o que está ocorrendo na lição de geometria, a reminiscência deve significar não somente a percepção de relações formais, mas também a capacidade de fazer julgamentos de verdade e falsidade, de igualdade e similaridade. São esses julgamentos que são as “doxai que estavam nele” e que foram trazidas à luz pelo questionamento de Sócrates. Mais em geral, podemos dizer que a reminiscência está aqui pela racionalidade ou logos no sentido aristotélico, como a capacidade distintivamente humana de compreender o discurso e de fazer um uso racional da percepção sensível. (KAHN, 2011, p. 121).

 

Kahn (2011) ressalta que o entendimento da rememoração como o exercício da racionalidade comum a todos os homens está presente, de diferentes modos, também nos outros dois diálogos mencionados. Para o autor, a racionalidade em tela pode ser concebida como “[...] articulada na clássica descrição dos três atos do intelecto: apreender conceitos; formar juízos e seguir inferências.” (KAHN, 2011, p. 122).

De acordo com Kahn (2011), essas capacidades, conjugadas com o domínio de uma língua forneceriam a base para a reminiscência, e aduz, em apoio a essa visão, passagens do Mênon (82b4) e do Fédon (249b7).

Para dar conta da introdução das Formas, na discussão da reminiscência, e da questão da disparidade entre elas e os sensíveis que delas participam, Kahn (2011) sustenta que não é necessário abrir mão da concepção mais genérica de reminiscência mencionada em sua análise do Mênon, a do exercício da racionalidade mediada pela linguagem: seria suficiente admitir a distinção entre esse tipo de reminiscência e uma “reminiscência para filósofos”. Kahn (2011) argumenta em favor de que essas duas concepções de reminiscência são perfeitamente conciliáveis e que se repetem também no Fedro.

A visão unitarista de Kahn (2011) sobre o tema da reminiscência em Platão lhe permite ainda defender que a falta de referência explícita à reminiscência, na República, não representa qualquer descontinuidade em relação às suas visões sobre o conhecimento, mas, antes, que a reminiscência passa a significar, nessa obra, “[...] uma visão noética das formas e de sua fonte incondicional.” (KAHN, 2011, p. 128). Sobre essa obra de Platão, Kahn (2011) destaca o passo 518c, que trata da conversão da alma inteira em direção aos objetos mais altos do conhecimento, e a passagem da Caverna, como claramente inatistas. Para Kahn (2011), a ausência de menção explícita à reminiscência, nessa última passagem e na própria República, se justifica por motivos retóricos e artísticos. Essa referência “[...] estragaria o curso dramático e a dificuldade de saída da Caverna, caso Platão tivesse dado aos prisioneiros um contato prévio com o mundo lá fora.” (KAHN, 2011, p. 130).

Ao aduzir passos-chave do Teeteto e do Timeu, Kahn (2011) aponta a indissociabilidade entre a epistemologia e a ontologia platônicas e propõe o sentido mais profundo da reminiscência, em Platão:

É porque a realidade tem uma estrutura fixa que a alma tem de ter uma versão da mesma estrutura. Sugiro que essa noção de afinidade ou identidade formal entre mente e o mundo, entre a alma e as Formas, é o sentido profundo da reminiscência. (KAHN, 2011, p. 131).

 

Ao concluir o texto com uma proposta de compreensão das próprias Formas, Kahn (2011) fornece ao leitor uma visão concisa, mas completa, dos pontos-chave para a compreensão da teoria do conhecimento platônico, em conexão com sua ontologia.

É claro que eu não poderia pretender ser exaustivo, quanto à exposição do texto de Kahn, no espaço de que disponho aqui. A intenção foi a de procurar mostrar, em conexão com um tema abordado por Rachid, que Kahn consegue analisar a questão da teoria do conhecimento, em Platão, percorrendo diversos diálogos e encontrando neles a possibilidade de uma abordagem “técnica” e, em grande medida, unitária, para a questão da reminiscência.

            A pretexto de acrescentar à discussão que desperta o texto de Rachid, acabei por deixar implícita a exortação para que os leitores vão ao texto de Charles Kahn, sobre o qual só pude dar indicações. Entendo que ele constitui grande contribuição à compreensão de que Platão não é apenas o “precursor” de questões filosóficas que serão tratadas em sua complexidade só mais tarde: o que se depreende do texto de Kahn é que Platão é um filósofo cuja atualidade precisa ser reconhecida, mesmo num campo como a teoria do conhecimento, que tanto se desenvolveu na história da filosofia.

 

REFERÊNCIAS

KAHN, C. Platão e a reminiscência. In: BENSON, H. H. (org.) Platão. São Paulo: Artmed, 2011. p. 120-132.

MOTTA, G. D. Há teoria da reminiscência na República de Platão? In: CARVALHO, M; CORNELLI, G.; MONTENEGRO, M. A. (org.). Platão. 1. ed. São Paulo: ANPOF, 2015. v. 1, p. 175-186.

Rachid, r. j. r. Reminiscência e alma remêmora no Fédon de Platão. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 294 –314, 2021.

 

Recebido: 29/5/2021

Aceito: 30/5/2021


 

 



[1] Professor na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3379-513X. E-mail: gmotta427@gmail.com.