COMENTÁRIO A “LA MÁQUINA DE GUERRA NÓMADA DEL COVID-19: paisajes estéticos del epidemiocapitalismo”: A MORTE MAIS TERRÍVEL QUE A MORTE FASCISTA: SOBRE PACIFICAR MÁQUINAS DE GUERRA NO EPIDEMIOCAPITALISMO

 

Alexandre Filordi de Carvalho[1]

 

Referência do artigo comentado: ROMERO TENORIO, José Manuel; Andres ALVAREZ, William. La máquina de guerra nómada del COVID-19: paisajes estéticos del epidemiocapitalismo. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 242-257, 2021.

 

Um diagnóstico remarca o tratamento conceitual dispensado à máquina de guerra nômade:

Os poderes estabelecidos ocuparam a terra, e fizeram organizações de povo. Os meios de comunicação de massa, as grandes organizações do povo, do tipo partido ou sindicato, são máquinas de reproduzir, máquinas de levar ao vago [...]. Os poderes estabelecidos nos colocaram na situação de um combate ao mesmo tempo atômico e cósmico, galáctico. (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 172).

 

                A máquina de guerra nômade se delineia como estratégia móvel, múltipla e plurívoca, visando a vazar os poderes estabelecidos, que, há muito tempo, estão decalcados no sedentarismo do Estado. Romero Tenorio e Andres Alvarez (2021) exploram o tríplice enlace desse diagnóstico, com muita originalidade, atualizando-o para problematizarem a produção de subjetividades, no contexto pandêmico da COVID-19.

Em um eixo, o artigo analisa como os poderes estabelecidos, sintetizados na junção Estado e capitalismo, convergem, por intermédio da massificação de máquinas de reprodução psíquicas, afetivas, políticas e sociais, paisagens e passagens estéticas, no que denominaram epidemiocapitalismo.

Este, por sua vez, em um segundo eixo analítico, funciona como fractal a refratar a alucinação individualizante contemporânea, pois, para haver sedentarismo, aprofundado pela pandemia, há de se atomizar as forças subjetivas. Encontra-se o indivíduo, assim, antes de qualquer política demográfica, convertido em signo aderente à massa a qual se reduzirá e reproduzirá. Por isso mesmo, no epidemiocapitalismo, prevalece o “capitalismo de vigilância” (ZUBOFF, 2019), dissipando com toda sua predição subjetiva a demanda de sujeição epidêmica aos poderes estabelecidos. A pandemia de COVID-19 assinala não apenas o poder dessa nova forma de capitalismo, porém, também indicia como o Estado se aparelha para a mais-vigilância e o mais-controle, molecularizando a sua ocupação na terra, com a dissipação de um terror benevolente, denominado, no texto, net-f(l)asci(x)smo – jogo de palavra advindo de Netflix.

Trata-se de uma espécie de nova camuflagem do fascismo, cujo poder é manejado, de modo programado, controlado e autoritário, por referentes comunicacionais algoritmizados, os quais criam valas de pilotagem de temporalidade e de espacialidade, gerando um “superávit comportamental” e uma “automação das escolhas” (ZUBOFF, 2019), prenhes de ócio instrumentalizado, numa ideia, amplamente estriados. Produz-se, então, uma subjetividade condicionada às máquinas de modelizar e modular as vidas, conforme a demanda da passividade confortável. Não à toa, os autores indagam: “Como será o próximo maio de 68? Consistirá em ver séries em casa?”

Por conseguinte, em um eixo derradeiro, o texto indaga por situações de combates capazes de colocar à prova os confiscos das máquinas de guerra nômade pelo díptico Estado-capital. Ao Estado epidemiocapitalista que se apropria das máquinas de guerra nômade por osmose, gerando o próprio caos paralisante por caosmose, é preciso inocular a própria máquina de guerra nômade, donde a necessidade de se indagar: como o coronavírus, efeito de superfície do epidemiocapitalismo, se estabelece como ferramenta de poder e, ao mesmo tempo, de resistência?

Malgrado a força de atualização do artigo e a excepcionalidade do diagnóstico que conduz o leitor a fazer da “atividade filosófica”, como sugeriu Foucault (1998, p. 13), “[...] tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe”, é interessante notar como alguns fios argumentativos, um tanto quanto desencontrados, em hipótese alguma demérito textual, modulam a potência analítica da máquina de guerra nômade a se projetar para além do texto. Destaco três aspectos.

A noção de “semiosfera” é tomada en passant no texto, para ressaltar como o povo misak, na Colômbia, resistia às incursões paramilitares, fazendo da produção de seus tecidos a afirmação de estratégias de máquina de guerra contra o estriamento da força brutal. Para os autores, a ação dos misakes consistia num enriquecimento estético de semiosferas, face ao reducionismo das violências contra eles perpetradas. Contudo, há outro lado da semiosfera. Há também a semiosfera como produção capitalista, no sentido de se produzir um semiocapitalismo. E não seria, desse modo, que o epidemiocapitalismo seria possível, justamente porque códigos abstratos incessantes, ainda que fossem virais – as fake news que o digam – ensejam sentido de dominação advindas de sucessivas programações de atividade semiológicas e semióticas dominantes? Ao menos é o que sustenta Berardi (2005, p. 117), enfatizando que, em tempos de semiocapitalismo, “[...] o capitalismo funciona como potência de sobredeterminação semiótica.” E não seria por aí que se projetaria o net-f(l)asci(x)smo? E ele não seria o sintoma mais superficial de uma semiosfera cuja força imperial de assujeitamento corresponderia ao lado mais escandaloso do Estado: convergir toda semiosfera para a conservação do próprio Estado? Não se situaria aí, no lugar do Estado, o que Deleuze e Guattari (2012 b) preferem denominar forma-Estado, justamente por se tratar de como passamos a replicar toda semiosfera do consenso? “A forma-Estado ganha algo de essencial ao desenvolver-se assim no pensamento: todo um consenso.” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 46).

Ora, o semiocapitalismo coincide com o net-f(l)asci(x)smo, porque ele é um gatilho político de uma Pax semiosférica, a qual, por incrível que pareça, é pós-fascista e não mais fascista. Há aqui um segundo aspecto interessante de se fazer notar, a partir do texto. Para Deleuze e Guattari (2012b), o aperfeiçoamento do confisco da máquina de guerra nômade inflacionou a codependência Estado-capitalismo a tal grau, que, de tanto confiscá-la, o Estado não mais estria, mas a tudo alisaria. A força mais ignóbil e aviltante do alisamento exacerbado pelo Estado encontra-se na imposição do Terror da pacificação. Aqui é onde qualquer um passa a ser inimigo a ser combatido. As recentes manifestações, na Colômbia, de trabalhadores contra as sórdidas reformas neoliberais foram combatidas violentamente, com guerra semiótica da informação controlada e falseada à imposição da morte em nome da paz do Estado. O mesmo ocorre no Brasil, quando o aparelho policial é chamado para reprimir violentamente manifestações contra o Estado e a proteger os manifestantes da extrema direita, os quais mimam o Estado.

Nesse caso, os termos de Deleuze e Guattari (2012b, p. 115, grifos nossos) não deixam dúvidas:

[...] o fascismo não passa de um esboço, e a figura pós-fascista é a de uma máquina de guerra que toma diretamente a paz por objeto, como paz do Terror ou da Sobrevivência. A máquina de guerra torna a formar de novo um espaço liso que agora pretende controlar, cercar toda a terra. A própria guerra total é ultrapassada em direção a uma forma de paz ainda mais terrífica. A máquina de guerra se encarregou do fim, da ordem mundial, e os Estados não passam de objetos ou meios apropriados para essa nova máquina.

 

                Destarte, tanto epidemiocapitalismo quanto net-f(l)asci(x)smo são nomes dados à ampla estratégia da paz do Terror que cerca toda a terra. Com efeito, a nova ordem mundial precisa pacificar as subjetividades com semioesferas a funcionar como injeções de paralisia. A tirania da techné, o sistema GAFAM – Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft – para além da Netflix, engendra a manipulação do alisamento do Estado por ser o próprio sistema um sintoma do que se tornou o Estado: a mão invisível que impõe a paz ainda mais terrífica por uma semioesfera sobrecodificada.

            Se a pandemia se transformou na paisagem privilegiada de tudo isso, é porque ela é a metástase escancarada que identifica todo aquele que transtorna a pacificação: fique no seu devido lugar e aja como os programas de conduta, de ação, de atitude e de posicionamento individual estabelecem. Aqui um terceiro aspecto desponta, pois passamos a conviver com uma morte mais terrível que a morte fascista, sabida de onde emanava. E não é a morte deflagrada pelo código a-significante de um vírus. Trata-se da morte significada pela cumplicidade silente do Estado: há vidas que não importam ser vividas, porque são vidas que atrapalham a ordem e o progresso da paz terrífica, que sempre precisa ser lucrativa. “Sem dúvida, a situação atual é desesperadora”, argumentaram Deleuze e Guattari (2012b, p. 116), mas justamente completam: porque “[...] vimos estabelecer como objetivo uma paz talvez ainda mais terrífica que a morte fascista; nós a vimos fixar um novo tipo de inimigo, que já não era um outro Estado, nem mesmo outro regime, mas ‘o inimigo qualquer’.”

            Sob tal horizonte, Romero Tenorio e Andres Alvarez (2021) nos propiciam uma força analítica singular. Impossível ler o texto e não desejar somar-nos às fileiras dos inimigos quaisquer, pois a vida não pode continuar sendo a aceitação pacífica do “vago” e de uma vida insuportável, que o Estado epidemiocapitalista, com todo seu net-f(l)asci(x)smo, quer nos impor.

 

ReferÊncias

BERARDI, F. A fábrica da infelicidade. Trabalho cognitivo e crise na new economy. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs. V. 4. São Paulo: Editora 34, 2012a.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs. V. 5. São Paulo: Editora 34, 2012b.

FOUCAULT, M. O uso dos prazeres. História da sexualidade 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998.

ROMERO TENORIO, J. M.; Andres ALVAREZ, W. La máquina de guerra nómada del COVID-19: paisajes estéticos del epidemiocapitalismo. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 242-257, 2021.

ZUBOFF, S. The age of surveillance capitalism. The fight for a human future at the new frontier of power. New York: PublicAffairs, 2019.

 

Recebido: 20/7/2021

Aceito: 06/8/2021

 



[1] Professor do PPGE da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP – Brasil – e do DED da Universidade Federal de Lavras (/UFLA), Lavras, MG – Brasil. Pesquisador CNPq/PQ 2. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4510-9440. E-mail: alexandre.filordi@ufla.br.