Comentário a “Nietzsche’s early concept of culture”: Nietzsche – Cultura e futuro

 

Leonardo Maia [1]

 

Referência do artigo comentado: Jeong, J. Nietzsche’s early concept of culture. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 206 –221, 2021.

 

1) O pensamento de Nietzsche, como poucos na história da Filosofia, não parece demandar apenas um exercício de interpretação, de decifração. Na verdade, uma tal orientação, que o tome tão somente como uma filosofia-a-mais, a-ser-lida apenas, conflita grandemente com a maior força, a potência esperada para ele – a de suscitar a suspeição crítica generalizada, condição que impele a um novo tipo de ação e à mudança. Nesse sentido, em vários momentos de seu pensamento, Nietzsche apresenta materiais, direções que parecem pouco ter a ver com a filosofia canônica, pois eles justamente se destinam não a um “estudo”, mas às batalhas, cumprem uma estratégia conflitual e funcionam muito mais como os pontos de um programa.

A seu modo, Nietzsche conduz uma operação semelhante à de Marx, nas suas teses sobre Feuerbach: há já excesso de análises, descrições, a hora é outra – da transformação pela filosofia e, talvez, para além dela. A certa passividade filosofante contradiz então fortemente com o élan e a força que Nietzsche empresta ao seu pensamento. Da filosofia se espera a responsabilidade de um compromissso, o cumprimento de tarefas. E, nesse sentido, Nietzsche espera adesões.

Seu pensamento assim deve ser medido, avaliado. É dessa forma que ele é conduzido, por Nietzsche, muito mais na direção de um convite para a sua exploração experimental, ou mesmo da sua utilização explosiva, pela efetiva incorporação, viva e vital, do seu sentido e valor. Do seu “programa”. Em outras palavras, não lemos Nietzsche, mas nos tornamos, se tudo correr como esperado, nietzschianos (ou então não, passando a figurar, com isso, na longa lista de seus adversários – como o foram, sucessivamente, Sócrates, Platão, Schopenhauer, Wagner etc.).

Como em um processo de revezamento e de passagem de bastão – seu pensamento chega até nós, nós o recebemos, e então o passamos adiante. Mas, com vistas a uma revolução, e não apenas à sua recepção. Ou mesmo algo maior, até mesmo cósmico, recuperando a força fundante desse termo afinal descido à terra, e tornado essencialmente criador. Em resumo, há sempre a concepção/expectativa programática, a compreensão da filosofia como elemento de definição para uma (nova) valoração e ação, a passagem ao ato. Enfim, a obra de Nietzsche não vem à luz para ser tão somente entendida, mas para operar uma definitiva transformação (uma transvaloração, uma transfiguração, uma travessia...).

Em grande medida, essa montagem nietzschiana se define com vistas ao campo da cultura, a uma atividade e ação sobre ele. É ali que se travam as lutas mais decisivas. Ao menos em seu início, Nietzsche é certamente um “pensador da cultura”. Entre duas pontas, entre a genealogia e a vontade de potência, entre as causas e os devires, estende-se, assim, o vasto mundo da Cultura.[2]

Nesse sentido, não é dos aspectos menos curiosos do pensamento de Nietzsche o funcionamento da noção de “cultura” na economia geral de seus problemas e proposições, em meio ao conjunto dos seus conceitos. Aliás, por toda a sua importância no conjunto do pensamento nietzschiano, talvez ela mereça vir nomeada em maiúscula, acompanhando o termo em alemão: Cultura.[3] O interesse maior aqui talvez esteja no fato de que a determinação pensada para ele parece conflitar com algumas noções importantes da filosofia de Nietzsche. Em seu sentido mais geral, Cultura parece por exemplo atentar, ou ao menos se colocar em posição contrastiva, com o aspecto de Futuro reiteradas vezes evocado por Nietzsche. Conceito este que, sob formas várias e com propósitos distintos, porém frequentemente convergentes, funciona também – assim como a própria Cultura – como uma espécie de princípio organizativo para a obra, tanto na sua produção, quanto no desenho dos seus principais temas. Tomada em uma concepção ampla, poderíamos dizer que Cultura é onde o homem se encontra, onde ele está (mesmo potencialmente, virtualmente), e Futuro, ao contrário, é onde o homem não está.

Seria o caso de pensar que a Cultura pode favorecer o Futuro, preparando-o ou o antecipando? Ou, afinal, o convívio entre ambos, em última análise, é antagônico, incompatível, ao menos no sentido de que, para ultrapassar a Cultura (e, portanto, sobrepujar o presente), é preciso afinal escapar de fato a ela? Assim, impõe-se criar, efetivamente, as estratégias de um desligamento absoluto do “atual”, do que há e do que ora se apresenta, para com isso desembaraçar-se de qualquer projeto de repetição e reprodução, requisito essencial para poder então avançar, para se conquistar a posição de Futuro, com tudo o que ela, conforme tal concepção radicalizada, pode oferecer – desde “novos” valores transmutados, até um “além” do homem?

O futuro parece, com efeito, um permanente forçamento em relação ao mundo da cultura, como uma partida em relação a ela, representando um relançamento firme em outra direção. Em outras palavras, ele revela uma nova criação – a mais nova possível –, a qual, ao mesmo tempo, seria uma redefinição e uma extensão do atual plano da cultura (o próprio Nietzsche o sublinha várias vezes), mas também um redesenho tão definitivo que a simples inserção numa situação unificada, estável, é de condição incerta.

Contudo, é sem dúvida excessivo considerar a cultura como um entrave ao futuro. Não há uma dialética estrita a esse ponto. Ou, por outro lado, a concepção mesma do tensionamento, em Nietzsche, guarda um caráter processual que contraindica a atribuição tão determinada ou restritiva de situações estanques (nesse sentido, a própria noção de ambiente ou elemento que propomos para a compreensão desse termo nos parece mais adequada, ao menos para exprimir a fluidez que lhe é intrínseca).

 

2) Entendemos que a filosofia de Nietzsche se liga profundamente – como um motivo, uma motivação – a esse sentido de futuro. É como uma perspectiva, um ponto de vista a contrapelo: pensar a partir do futuro, tomando-o como critério ou crivo, para então acessarmos o presente. A rigor, ela não se organiza nem se propõe com vistas à simples alocação e inserção em seu próprio tempo (o qual parece sempre insuficiente), mas sim a um desejado porvir. Até mesmo a leitores pósteros, a esses outros que sequer ainda são, que não estariam então entre Nietzsche e os seus contemporâneos, e que de algum modo são eles mesmos gestados ou preparados pelas formulações nietzschianas. Assim, há um grave problema aí, que não se liga propriamente à circularidade dessa proposição, mas a uma estranha medida, que instaura uma significativa descoincidência especular entre os “leitores futuros”, esse “povo por vir”, ou essa “comunidade que vem”, à altura da dinamite nietzschiana (que todavia só por ela podem ser criados ou inventados) – e... nós.

Na verdade, isso vale para qualquer “nós” – pois quem seriam esses, qual a medida, o crivo para eles? Os precursores de uma filosofia sempre futura? As perguntas aí se avolumam, na intenção de alcançar inclusive a forma de relação que podemos manter com tal pensamento, quanto a esse seu sentido de projeção. Que leitores somos de Nietzsche? Realmente, nós o estamos lendo e sendo fiéis às suas intenções? Nesse caso, até que ponto teríamos já sido de fato reinventados por sua filosofia, ou em que medida somos ao menos “nietzschianos”, em proximidade e sintonia com seu pensamento? Permanecemos em situação exterior à sua filosofia e à experiência que ela exige? (sobretudo, a de sermos também pósteros de nós mesmos, afinal?)

Nesse caso, com efeito, jamais poderá se configurar exatamente um “nós”, ao menos não no presente, atual, mas que a rigor tampouco se encarnaria exatamente em um agrupamento eventual, ou em qualquer outro leitor ou povo futuro, senão esse que é apelado pela letra da obra e supostamente de forma não apenas retórica, pela sua própria promessa ou antecipação. O contato com a obra é assim uma experimentação no tempo. A realidade evocada é tão somente talvez a da própria anunciação: o que vem, de fato, não vem, mas sempre virá, conforme uma espécie de “futuro do futuro”, em declinação intensiva dos futuros do presente ou do pretérito. Assim, desdobrando a expectativa de uma vidência interventiva, a filosofia só poderia mesmo se fazer “contra o tempo”, entretanto, com o risco de que sejam aí já todos os “tempos”, em favor de um tempo indefinidamente por vir. Essa perspectiva “negativa”, pois talvez apenas contrária ao presente, só muito incertamente preenche um futuro necessariamente vazio.

E, com isso, de duas, uma:

Se a própria posteridade (do futuro) é incerta – sobretudo o seu caráter “póstumo” –, uma vez que se aceite a coincidência da inscrição passiva no presente, então, esse mesmo futuro não pode ser deixado à solta, como um signo extraviado, perdido. De fato, há que inventá-lo desde já, como alternativa experimental ao presente.

Ou ,ainda, uma vez que não se atinge o efeito esperado de futuro, revela-se o efeito contrário ao da sua própria posteridade, afinal, tornada por si mesma inócua – e tão somente nos revolvemos no presente, liberando imagens não mais que imaginárias de um futuro que de antemão sabemos inexistente, ao mesmo tempo que, com isso, despotencializamos absolutamente o próprio presente. Não seria essa a pior forma de niilismo, talez um niilismo à russa? (pensemos n’Os demônios, de Dostoiévski: não há qualquer proposta de futuro, mas sobretudo porque se atenta permanentemente, e mesmo de forma vulgar, torpe, contra tudo o que é presente. Assim, tudo é permitido, necessariamente, uma vez que já não existe nada, nada se sustenta...)

Desse quadro, o que extrair? O “futuro” de Nietzsche precisará mostrar-se afinal um puro acontecimento, um evento de intensidade, movente, ou justamente uma intensificação que se produz como fruto mesmo desse permanente deslocamento em sua direção. Em outras palavras, o presente não basta, mas o futuro não chega. O acontecimento, porém, impele a um, resistindo ao outro.

Por outro lado, a filosofia de Nietzsche, desse modo, precisa empurrar a si mesma, como uma incrível megamáquina, um mecanismo de produção em moto perpétuo, segundo uma autopoiese que a faz extravasar indefinidamente a si mesma, forçando a uma recuperação que é então uma inevitável criação – uma produção de extrapolação, de suplementação, de transbordamento (“ser é ser mais”), que a desborda por todo o tempo: é tão somente o futuro que pode retornar eternamente; o Eterno Retorno só pode ser necessariamente o do futuro – que abrimos – de novo até nós... Essa filosofia já necessariamente inconclusa (por tudo isso que exprime – e, ainda mais, em razão do que virá!), em seu próprio processo excessivo de produção/expressão, precisa contar, mesmo paradoxalmente, com tal perspectiva “futurista” como o seu horizonte de realização. Aquilo, portanto, que de alguma forma permanece irresolvido, se apresenta como inacabado, ou ainda aberto, para que, justamente, um futuro possa se soldar a ele, possa se inscrever como “marca” em todo enunciado nietzschiano, como sinal da passagem que desvela para além de si. É nesse espaço escavado no tempo que reside todo o possível do pensamento. Ali, Nietzsche deposita tudo o que pensa.

Seja como for, da condição de alguma posição futura (como é já, por exemplo, o nosso caso, hoje, em relação ao momento histórico da produção nietzschiana), é preciso fazer um julgamento também desse sentido e desse motivo, em benefício da própria filosofia de Nietzsche, de resto, ao menos para que o Futuro não se defina aí apenas como um Adiamento. Devir não é buscar diferir...

 

3) Para esse propósito ganhar materialidade, o próprio Nietzsche parece tomar seus cuidados ou precauções: nesse sentido, o termo Cultura parece ser absolutamente essencial. Com efeito, ele concentra de algum modo todas as linhas de força do seu pensamento: espaço de gêneses e de genealogias, imanência conflitual de forças e potências em combate ou em jogo, lugar de expressão mas também de avaliação dos valores, lugar da comunicação dos gênios, lugar talvez do exercício e da efetuação da Grande política e de outros temas e direções visados por Nietzsche, inclusive nos momentos finais de sua obra. De uma ponta a outra, toda a obra, todas as suas questões parecem se enfeixar sob essa noção maior, de Cultura. E, com isso, Cultura se apresenta em especial, talvez, como um elemento, um ambiente. Vida, Acontecimento, Pensamento: tudo isso advém na Cultura... Estamos na Cultura, como em um ambiente – mais, possivelmente, do que somos na cultura. “Estamos” com sentido de impermanência (em e como resistência ao presente, ao modo de Hölderlin), mas também como experiência antiessencialista de passagem ou travessia (tantas vezes evocada, por exemplo, no Zaratustra), e como em um espaço (comum) de convite à sua própria recriação.

Cultura é, portanto, esse grande ambiente, esse hiperelemento, em que se inscrevem, mas também sobretudo se excrevem os possíveis, as suas construções, fabulações, assim como os seus impasses e fechamentos. Como bem apontou Deleuze: trata-se de um ambiente genérico, lugar de expressão de um exercício genérico do homem (talvez ele mesmo um ser ainda excessivamente genérico, demasiado indefinido, vago).

Mas não apenas isso. Naquilo que de fato importa, Cultura é também o ambiente insuperável de experimentação, de criação, de afirmação. O ambiente, em sentido forte, que faz com que essas múltiplas criações sejam, em última análise, conversíveis ou traduzíveis ao conjunto da experiência humana (até mesmo contra esse conjunto, apontando finalmente para a sua superação), em lugar de se mostrarem meras pontas soltas, esforços desorientados, inócuos ou artificiais. Cultura é, dessa forma, ocasião de um Projeto diferencial; ao fim e ao cabo, para retomar um termo mais adequadamente nietzschiano, um projeto “superior”.

Sob vários aspectos, Cultura parece, em Nietzsche, ter vindo substituir e superar, qualitativamente, o “Real”. Propõe-se agora um real absolutamente dinâmico, que não é Fim (e que não tem fim), mas Meio (plástico, aberto...). Ela, dessa maneira, substitui ainda a ideia hegeliana de Absoluto. E essa substituição parece se dar na direção de um efeito de intensificação, de potenciação (como dirá, alguns anos mais tarde, John Dewey, vai-se do Absolutismo ao Experimentalismo – é exatamente esse o caminho já em Nietzsche). O real dinâmico, impermanente, é igualmente um real inacabado, a ser incessantemente (re)criado. Esse Real é, portanto, um Hiper-Real, precisamente por mostra-se um real em choque, em expansão e em tensão, cuja ontologia é essencialmente processual, conforme o dinamismo próprio, particular, dos seus múltiplos conflitos. A concepção de unidade, muitas vezes evocada por Nietzsche junto à de Cultura, parece ser antes um resultado provisório, pois não apenas a Cultura é produto de encontros ou choques (de forças, de valores etc., mas mesmo as diversas Culturas, pensadas nessa condição mesma de unidade, divergem e combatem.[4]

 

4) Esse último aspecto talvez seja profícuo para uma possível recuperação presente do tema nietzschiano. O que é Cultura hoje? O que significa ainda Cultura após o século XX, ou seja, em tempos, geopolíticos e mesmo geofilosóficos, de afastamento da Europa, tempos pós-europeus? Parece-nos sobretudo interessante buscar determinar as condições de aplicabilidade desse conceito hoje, de todo modo em uma “situação futura” em relação àquela em que Nietzsche pensou esse mesmo conceito (e justamente, então, sob chave e expectativa elas mesmas essencialmente futuras).

Ao mesmo tempo, essa seria a condição para verificar a pertinência presente do problema nietzschiano, e determinar sejam os seus limites contemporâneos, as novas situações que se apresentam, como também em que medida Nietzsche já antevira as eventuais formas de ultrapassagem (para o futuro) dos impasses que as suas construções filosóficas poderiam conhecer.

O que nos parece inevitável é a exigência de confrontarmos Nietzsche com a pertinência ativa (pragmática?) do seu próprio conceito. E assim poder melhor verificar se lhe cabe ainda alguma força atual, de maneira a que possamos reconhecer-lhe, se houver, a sua real potência presente, pois, de fato, da filosofia do futuro, precisamos dela, inversamente, sempre agora. É hoje, já, que precisamos de futuro... E não apenas mais à frente, mais adiante. E, por isso mesmo, o sentido de cultura merece uma nova “testagem”.

Em primeiro lugar, porque o século XX parece ter sido acima de tudo um século da cultura, um momento decisivo para a cultura: esta possivelmente terá sido um dos termos-chave, um dos problemas por excelência da contemporaneidade, razão maior de ser, possivelmente, das grandes criações, dos grandes abalos e da grande transformação experimentada em todo esse período – não seria, afinal, em razão da “Cultura”, que vimos se desfazer antigos mundos e ascenderem outros novos? Dito de forma mais clara, a Europa, que não apenas cunhara o próprio termo, mas que lhe conferira toda a importância que ele portou, essa Europa antes hegemônica, conhecerá um declínio importante (talvez definitivo) e assiste à ascensão de outros países ou regiões, muitos deles anteriormente colocados sob domínio colonial (e cultural...) europeu. E não seria, precisamente, esse declínio, então, principalmente cultural? A ideia mesma de cultura sobrevive a tal declínio? E Nietzsche é um analista agudo de todos esses processos.

Aliás, cumpre lembrar que, a despeito de a) sua tentativa de vincular cultura a um projeto futuro, e de b) sua perspectiva de pensar o ambiente da cultura como um ambiente suficientemente genérico para garantir, sob o aspecto de uma grande abertura, um horizonte quase total de criação, Nietzsche frequentemente preconizou a desejável “unidade” da cultura como uma unidade eminentemente “europeia”. Consumar a cultura, levá-la aos seus melhores fins envolveria afirmar um sentido sintético e criativo proveniente de uma cultura centralmente europeia, em seus critérios (em relação à qual, frequentemente outras expressões culturais se mostram influências perniciosas, ou mesmo decadentes). Há sem dúvida aí, para Nietzsche, toda uma hierarquia, sem a qual talvez nem se pudesse perceber ou dizer propriamente a cultura (a condição plural das culturas é também a de uma hierarquia entre elas).

Assim, se uma das principais marcas do século XX é o da certa ubiquidade cultural, esta contudo se desliga significativamente da sua orientação precedente, eurocentrada, ou euronormativa. A Cultura contemporânea é crescentemente pós-europeia, senão mesmo antieuropeia, anticolonial e decolonial. Ora, onde não está, presentemente, por onde quer que se ache a cultura, também a sua crítica e a sua transformação, um redesenho da cultura e da atividade cultural? Contracultura ou descontrução da(s) cultura(s): por todas as razões, boa parte das grandes transformações que percebemos no contemporâneo envolvem a perspectiva de que essas alcancem uma nova expressão cultural, redesenhem até inteiramente o nosso mundo presente (pensemos na incrível inovação tecnológica a marcar um único século, quando, ao seu final, além de “aterrissarmos” inclusive na Lua, seríamos capazes de, por diversoso meios, positivos ou sombrios, atingir já todas as partes do planeta de forma imediata, numa profunda revolução global, comunicacional e social, a qual ainda não foi de todo desdobrada, ou compreendida).

Há que se aquilatar, em tudo isso, a preponderância de novas exigências e direções culturais. Em particular, decerto, a norte-americana. E, no sentido especial que Nietzsche confere a determinadas palavras decisivas, altissonantes, como “criação”, “novo”, “grande”, “superior”, os Estados Unidos tomam claramente da Europa a direção que se emprestava a esses signos, para conferir-lhes uma significação própria, eminentemente sua.

A questão imediata que se apresenta é a de se é possível, face ao sentido anterior, europeu ou mesmo eurocêntrico, falar-se ainda em uma “cultura americana”, em sentido estrito. Parece-nos que, antes disso, a perspectiva americana foi com efeito a de dissolver as grandes linhas daquilo que a Europa procurara subsumir sob o termo “Cultura”, aparentemente em benefício de outra noção, muito menos abrangente, de modo de vida. A ideia de um modo de vida americano – aliás percebida, ao menos em parte dos seus principais contornos, já por Tocqueville, e criticada, de forma antecipatória, pelo próprio Nietzsche e tantos outros – é em essência uma ideia parcial e não total, clivada, a qual não aspira à totalização que marca o termo “cultura”.

No máximo, é uma perspectiva, um ponto de vista tornado “absoluto”, empregado, funcional e estrategicamente, como crivo ou critério – uma visão de mundo, um padrão de gosto, ou mesmo de interesses, como padrão de vida. Ou seja, o que surge aí é uma Ideia econômica, mais que cultural, favorecida por uma projeção geopolítica, por sua vez antecipada pela condição declinante da Europa, após duas guerras catastróficas. A “cultura” americana, a despeito da sua grande pujança, parece antes de tudo ter vindo ocupar um vazio (e, de certo modo, aprofundar tal vazio). Encontra diante de si uma Europa literalmente destruída e culturalmente exangue.

Com isso, o século XX representa um deslocamento definitivo da cultura. Da ideia de Cultura para outras possibilidades pós-culturais, ou contraculturais. Da cultura europeia para outras culturas – ou mesmo “não-culturas”, como seria talvez o caso, ao menos para padrões “europeus”, de tal perspectiva americana. E desta, em seguida, para onde? Para onde estamos nos encaminhando, “culturalmente”?

Mais uma vez, neste momento inicial do século XXI, em que a cultura parece conhecer deslocamentos decisivos, e agora possivelmente até mais radicais, quando a globalização experimenta não apenas o sucesso do seu espraiamento mundial, porém, uma verdadeira reversão crítica das suas inspirações iniciais, com o crescente abandono da ocidentalização e da sua centralidade, que marcara o planeta desde a “Era dos Descobrimentos”, e do enriquecimento por ela proporcionado, ao longo de cinco séculos (justamente, os últimos séculos “europeus”), juntamente com todos os desenvolvimentos técnicos, políticos, religiosos e, de maneira geral, culturais que aí se definem, parecemos estar diante de dois formidáveis retornos – ou mesmo mais – de culturas talvez ainda mais tradicionais que a europeia, i.e., as da China, da Rússia (ou, quiçá, a da Índia). É dessa nova orientalização que parecem originar-se os signos futuros a nos desmarcar do ocidentalismo anterior (e que é também, em grande medida, o de Nietzsche). Talvez um novo mundo Oriental, por vir...

O que a obra de Nietzsche teria ainda dizer a esse mundo? A esse novo mundo da cultura, completamente estranho àquele enfocado por ele? Um mundo que, do ponto de vista mesmo da cultura, esteve quase sempre ao largo de suas preocupações. Ou pior, foi frequentemente hostilizado por ele, senão descartado, em comparação com as perspectivas descortinadas pela Europa (há, decerto, menções positivas, aos EUA, à Rússia, à Índia, ou mesmo à China, ao longo da obra nietzschiana, mas em geral as evocações dessas outras culturas descrevem experiências rebaixadas demais – argentárias, laboriosas, democráticas... - talvez ainda religiosas demais, moralizantes demais, até niilistas demais, para que possam aparecer como reais alternativas à cultura europeia – aliás, cabe aí ser inclemente como o próprio Nietzsche sempre o fora: muitas de suas teses e termos soam já absolutamente inaceitáveis, por racistas ou reacionários).

Não apenas a geopolítica, mas a geofilosofia mudou... Para ficar em três temas culturais nietzschianos maiores, todos marcadamente europeus - a herança grega (ou clássica), a unidade da Europa, tantas vezes e tão ardorosamente preconizada, ou mesmo a “mediterraneização” mundial , qual o seu real alcance presente? São questões que hoje talvez quase nada importem a um mundo (e a um mundo da cultura) em transição; nesse caso, qual ainda o papel de “crítico da cultura” a ser atribuído a Nietzsche? Em especial, como articular seu pensamento (quase sempre eminentemente europeu) às incontáveis e incontornáveis perspectivas antieurocêntricas ou decoloniais?

Nesse caso, parece-nos que sobressai, mais uma vez, o sentido de futuro, sempre instalado por Nietzsche dentro da própria noção de cultura. O sentido de grande transformação, que toma a filosofia como um tipo de exercício civilizacional, de experimentação planetária ou cósmica – ou seja, como Grande Política ou, se quisermos, como Grande Cultura. Nisso, o presente século é (ou será) ainda profundamente nietzschiano.

Esse será talvez o futuro do futuro da filosofia de Nietzsche.

São estas as ponderações a partir do texto de Jeong (2021).

 

REFERÊNCIA

Jeong, J. Nietzsche’s early concept of culture. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 206 –221, 2021.

 

Recebido: 23/4/2021

Aceito: 25/4/2021


 

 



[1] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2080-9259. E-mail: leomaiaufrj@gmail.com.

[2] Essa situação progressivamente se redefine em seu pensamento – e Gilles Deleuze certamente tem muita razão em considerar Nietzsche não como (mais) um pensador da cultura, e sim como um prenunciador da contracultura. Seja como for, o pensamento de Nietzsche se define, ao longo da obra, como uma ação sobre a cultura e, em especial, em favor de uma nova e inédita cultura por vir. Ou senão, de elementos por vir, apontando para outro lugar e patamar; assim o super-homem, a vontade de potência, a concepção do ser como “ser-mais”: tudo aponta para frente, tudo relança, tudo põe em movimento...

[3] O artigo do Professor Jeong (2021) apresenta, de maneira muito acurada, o conceito de cultura em Nietzsche (ou mesmo o seu universo, o “complexo-cultura”), sob a forma de uma continuada, senão mesmo desejada tensão. De fato, os conceitos nietzschianos parecem quase todos observar um critério de tensionamento e cabe avaliar, como em parte já o faz o próprio Jeong (2021), se isso não se deve, justamente, à sua aparição e à sua expressão no mundo da cultura. A partir de algumas hipóteses desenvolvidas no artigo, tomamos uma direção um pouco diversa, buscando não apenas precisar o sentido (e o lugar) do conceito de cultura, no pensamento nietzschiano, mas colocando ele mesmo em situação de tensão, condição que nos parece definir a sua relação ao menos com um outro conceito (ou critério...) fundamental em Nietzsche – o de futuro.

[4] A expressão consagrada por Samuel Huntington, já no século XX, de um choque de civilizações como marca do encontro de culturas, na contemporaneidade, certamente pode ser aproximada em alguma medida das concepções nietzschianas de Cultura. Em última análise, a unicidade ou unificação cultural é provisória, pois, para além da sua eventual unidade, as culturas também se concebem em necessário tensionamento, buscando elas mesmas, voluntariamente, os choques.