Comentário a “Nietzsche’s early concept of culture”

 

Adriana Delbó Lopes[1]

 

Referência do artigo comentado: Jeong, J. Nietzsche’s early concept of culture. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 206 –221, 2021.

 

No artigo “O conceito inicial de cultura em Nietzsche”, Jihun Jeong (2021) alega ter por objetivo a análise e a elucidação da definição de Nietzsche de cultura. O fato de afirmar tratar-se de “definição inicial de cultura” não limita a importância do tema apenas aos interessados nas primeiras obras de Nietzsche, uma vez que nisso que é chamado de “inicial” há algo que percorre a filosofia de Nietzsche – a análise da riqueza ou da decadência na relação humana com a vida, através da construção de cultura ou da incapacidade para tanto, graças ao desmesurado poder atribuído a apenas um ou a outro aspecto da cultura – sobreposição da moral, do Estado, ou da religião, ou da ciência, ou de qualquer outro âmbito, no máximo, um servindo tão somente ao outro. Sem o fortalecimento do ímpeto artístico em todas as elaborações culturais, a perspectivação de todas as obras não é possível, porque cada qual é tomada com valor e verdade absolutos. A vontade de verdade é alimentada. A vontade artística é soterrada.

No próprio artigo, há o reconhecimento de que a “[...] preocupação com a cultura não se limita ao período inicial. No chamado período intermediário positivista, ele [Nietzsche] clama por ‘um conhecimento das condições da cultura superior a todos os graus anteriores de tal conhecimento’ como ‘a enorme tarefa para os grandes espíritos do próximo século (HH I 25).”.

No artigo “O conceito inicial de cultura em Nietzsche”, embora Burkhardt tenha sido mencionado apenas na nota cinco, como hipótese a uma possível interferência que ele tenha exercido sobre Nietzsche (já que cultura como “unidade de estilo artístico” é uma expressão de Burckhardt), Jihun Jeong reconhece que a unidade que diz do que seja cultura tem a ver com o estilo artístico, manifestando-se em todas as instâncias da vida de um povo. É com base nessa definição burckhardtiana que Nietzsche compara povos e épocas, analisando quais formações culturais se sobrepõem ou se equilibram em uma ou outra.

Nesse sentido, ele estabelece, em O nascimento da tragédia e em escritos do período, a comparação entre gregos e modernos. Identificar o ímpeto artístico não só na arte, mas também no Estado, no mito e na religiosidade, atesta a superioridade de um povo, comparado a povos e épocas que têm na moral (cristã) o único poder, inclusive sobre o Estado democrático moderno (tal como Nietzsche escreve, em Além de bem e mal, aforismo 202: “[...] o movimento democrático é herdeiro do movimento cristão”). Enquanto o princípio de igualdade é adotado como verdade absoluta e algo necessariamente bom, pensando-o a partir dos únicos pontos de vistas que vigoram entre homens modernos – quais sejam: moral e econômico –, Nietzsche faz uso do mesmo termo, a partir da denúncia sobre a falta de condições para elaborações artísticas na relação de cada um consigo (impossibilidade de cultivo de si), com as construções culturais, com a vida. O igual não tranpõe. Suas questões são muito mais relativas a como podem se manifestar as distinções e as singularidades, quando se faz necessário permanecer moral e politicamente vigilante à igualdade e crente nesse princípio como salvação da existência.

Jihun Jeong destaca: “[o] primeiro estágio da cultura: a crença na linguagem como designação metafórica contínua.” (KSA 7: 19 [329]). Isso difere da crença na linguagem como descrição e verdade. Talvez por estarmos bem aquém desse estágio, ainda há, na leitura que se faz de Nietzsche, muitos olhos e ouvidos voltados para termos usados por ele, tal como “grandioso”, “nobreza”, entre outros, como sua defesa de uma organização aristocrática da sociedade. A crença de que “grandes indivíduos” são indivíduos concretos e privilegiados, do ponto de vista econômico ou de raça, e que são selecionados (por Nietzsche?) compete com a compreensão de que se trata de grandeza pelo quanto de artístico a vida ainda possa se manifestar, nos indivíduos (e, portanto, nesse sentido, indivíduos distintos e grandiosos). Tal confusão embaralha inclusive a percepção de um pano de fundo básico da Filosofia de Nietzsche: o diagnóstico de que cultura não pode estar fadada a algo herdado, por já ter ocorrido no passado.

É a partir da compreensão que Nietzsche tem de cultura, sob a influência de Burckhardt em seu pensamento, que conceitos como “grandes espíritos”, “espíritos nobres”, “grandes indivíduos”, “cultura superior”, “grande política”, “indivíduo soberano”, “moral superior”, entre outros, podem ser vistos pelo viés do conceito burckhardiano de cultura e, por decorrência, de grandeza – algo que, segundo ele mesmo, não tem sistematicidade, mas funciona pelo sentimento de falta, do gosto pelo que ainda não foi alcançado ou pelo que já deixara de ser, mas não deixa de ser almejado. É nesse sentido que “espírito nobre” não se vincula à nobreza proveniente das distinções e opressões de classe. Pelo mesmo motivo, “indivíduo soberano” não é uma vertente do indíviduo burguês, preocupado com o efeito favorável da economia em sua própria vida, mas sim a ideia de um “indivíduo soberano” (personagem) em relação à soberania da sociedade sobre os indivíduos. “Soberania do indivíduo” é uma contraposição à soberania da sociedade sobre as singularidades – obstáculo às condições para elaborações artísticas em quaisquer épocas e povos.

Portanto, somente com a compreensão do conceito de cultura (cultura como ímpeto à grandeza, para além da elevação de um ou outro aspecto da vida social) que determinados termos, como “superior”, “grandioso” e “nobre”, podem ser mantidos à distância das demandas da política moderna (também objeto de crítica, na obra de Nietzsche). A falta do recorte de classe, nos escritos de Nietzsche, poderia até ser motivo de queixa por parte de leitores que quisessem encontrá-lo. Entretanto, a inclusão da perspectiva de classe não se sustenta na análise que Nietzsche faz de distintos povos e épocas. A preocupação de Nietzsche é outra: qual o fortalecimento permanente, ininterrupto e sem controle do ímpeto artístico, em todas as instâncias da vida? Até que ponto moral, conhecimento, ciência, religião e política não se sobrepõem à potência artística da existência? A comparação entre as culturas tem a ver com os motivos para a decadência humana, no que diz respeito à capacidade para elaboração de culura, e não pelo desaparecimento da classe aristocrática.

Inicialmente, Jihun Jeong até parece que irá se pautar pela interpretação de Nietzsche como um elitista, quando escreve que “[...] é inegável que Nietzsche assume uma postura elitista ao apresentar a proposição: ‘A humanidade deve trabalhar incessantemente para produzir grandes indivíduos’ (UM III: 6).” Entretanto, o artigo não é conduzido para a defesa dessa posição; a humanidade não é interpretada como uma classe social, o que exigiria ao menos explicar por que a ideia de “grandes indivíduos” estaria sendo interpretada como indivíduos selecionados (por Nietzsche ou por quem quer que seja), em torno dos quais todos os demais viveriam para gerar a eles benefícios. Por que “grandes indivíduos” não são compreendidos como a contraposição nietzschiana aos indivíduos apequenados (o “bicho anão”, tal como em Assim Falava Zaratustra, Nietzsche nomeia como “homem moderno”) a partir dos tipos, personagens por ele criados (conforme defende Antônio Edmilson Pascoal)? Por que “grandes indivíduos” não podem ser interpretados como a contraposição nietzschiana aos indivíduos planificados que se orgulham e se esforçam para se manter na igualdade que esse formato exige?

Enfim, a equiparação entre “grandes indivíduos” e indivíduos selecionados, privilegiados socialmente, por uma política que também exige que toda a humanidade trabalhe para tal apequenamento, não se sustenta, se considerarmos a ideia de grandeza em Burckhardt, a qual subjaz ao conceito de cultura, em Nietzsche. Se a diferenciação entre os homens é limitada à diferenciação econômica, não é esta que Nietzsche reivindica; aliás, é pela crítica a essa limitação que a diferenciação que ele reivindica é diferenciação artística, descontrolada, imensurável. É por contraposição ao gosto moderno pelo apequenamento de todos que a figura do “grande”, do “nobre de espírito” é por Nietzsche elaborada. Eles não são, portanto, defendidos como fruto de uma estratégia política, econômica e moral, representando interesses de classes.

Se considerarmos o quanto Nietzsche mantém a discussão com Burckhardt, no que concerne ao conceito de cultura e, por decorrência, de grandeza, isso nos ajuda a compreender que, no caso de ambos, o termo “grande” não diz de alguém assim determinado por qualquer outra autoridade ou instituição. “Grande” é uma decorrência do incômodo de ambos com a hegemonia do pequeno. Assim, o “espírito nobre” é uma contraposição à hegemonia do plebeu equiparado a bom. Burckhardt admitia a problemática em torno do termo “grande”, mas nem por isso desistiu de usá-lo:

[...] temos plena consciência do caráter problemático de que se reveste em si, esse conceito de grandeza, sendo-nos necessários renunciar, portanto, a qualquer critério sistemático e científico. Tomaremos como ponto de partida as dimensões ínfimas do ser humano, a sua volubilidade e incoerência inatas. A grandeza é tudo aquilo que nós não somos. Um inseto oculto na relva pode considerar gigantesca uma avelã que coloquemos a seu lado (se chegar a notá-la), justamente porque ela se revela desproporcional ao seu tamanho de inseto. Apesar de nossa limitação pessoal, porém, sentimos que a noção de grandeza é indispensável ao ser humano e que não devemos permitir que fôssemos privados dele, reconhecendo sempre, todavia, a relatividade desse conceito, que jamais poderemos definir de maneira absoluta. (BURCKHARDT, 1961, p. 212).

 

No artigo “O conceito inicial de cultura em Nietzsche”, Jihun Jeong trata, portanto, de um fio condutor da obra de Nietzsche, qual seja: a crítica à cultura, a análise dos percalços que interrompem a continuidade de elaboração de cultura e que tornam a humanidade decadente, diminuída, antiartística, serviçal dos fatores que ela mesma construiu – a moral, o Estado, a religião, a economia. Sem condição de vazão para o ímpeto artístico, sem valor para ele, sem permissão a ele, sem essa unidade de estilo, não há cultura. Cada aspecto da cultura adquire poder ou luta por isso, controlando a cada e a todos. O artista se esvai. Restam tão somente partes desvinculadas da obra, em disputa ou em conluio entre si. A maior derrotada é a própria humanidade, já que as potencialidades artísticas não se reconhecem nem atuam enquanto tal. O artista, por conseguinte, se rende ao feito e o cultua, em detrimento da própria vida.

 

REFERÊNCIAS

BURCKHARDT, J. Reflexões sobre a história. Trad. Leo Gilson Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1961.

Jeong, J. Nietzsche’s early concept of culture. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 206 –221, 2021.

NIETZSCHE, Friedrich W. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

NIETZSCHE, Friedrich W. Kritische Studienausgabe [KSA] (15 volumes). Editado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. München: DTV; De Gruyter, 1999.

PASCHOAL, A. E. Ficcional, demasiado ficcional: o personagem Nietzsche nos prefácios de 1886. Estudos Nietzsche, v. 10, p. 91-115, 2019.

 

Recebido: 12/7/2021

Aceito: 15/7/2021


 

 



[1] Professora associada no Curso de Graduação em Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5841-1932. E-mail: delbo@ufg.br.